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Pesquisadores, populações locais e áreas protegidas: entre a rigidez dicotômica perita e a

instabilidade estrutural dos seus "lados"

Cleyton Gerhardt1

Cinco compassos para a instabilidade


Cuidado com a falta de nexo; cuidado com quem você anda;
cuidado com quem te ajuda; cuidado com seu amigo e muito
cuidado com o inimigo, cuidado com o que eu lhe digo, se
cuide até de você.
Hermes Aquino, 1976.

Antes de entrar propriamente nas análises que compõem este paper, abro breve espaço
para descrever cinco episódios ocorridos em 2008. Eles podem ser vistos como uma pequena
introdução ao que pretendo desenvolver no tópico seguinte. O primeiro relata uma rápida
conversa que tive com a assistente de um antropóloga da qual me tornei amigo durante meu
trabalho no campo vivido em decorrência de minha tese de doutorado (Gerhardt, 2008); o
segundo e o terceiro são curtos incidentes ocorridos entre eu e dois pesquisadores também em
situações informais; por fim, o quarto e quinto referem-se à transcrição de trechos do
depoimento de uma antropóloga e um eng. florestal aos quais pude então manter contato,
conversar e entrevistar.
1º compasso: num certo momento tive oportunidade de conversar com a assistente de
um antropólogo ligado a um centro de pesquisa que desenvolve e apóia trabalhos científicos
feitos junto às populações locais atingidas por UCs. Na época, ainda viciado nas “caixinhas”,
imaginava que este centro pertencesse a “corrente” socioambientalista. Perguntei então,
despretensiosa e descontraidamente, se ela poderia dar um exemplo de outra instituição que
também fizesse pesquisa sobre nosso tema e que fosse igualmente representativa e forte como
a dela, mas que pertencesse ao “outro lado” (usei exatamente esta expressão). Prontamente ela
citou, para minha surpresa, uma instituição que, do meu ponto de vista à época, seria
associada claramente à “ótica” socioambientalista (na verdade, pensava ser a entidade
socioambientalista por excelência). Quando, ainda perplexo ao ouvir tal associação
inesperada (pois achava que as duas entidades seriam “aliadas”), indaguei: “mas eles não são
amigos?”, minha interlocutora retorquiu rapidamente (como veremos, bem ao estilo Nuer):
“mais ou menos, mais ou menos!”.
2º compasso: o segundo episódio ocorreu ao voltar de carona com uma antropóloga
(que havia entrevistado meses antes) de um seminário sobre áreas protegidas e populações
locais. Esta pesquisadora desenvolve, há vários anos, um trabalho de investigação numa
região historicamente marcada por conflitos envolvendo populações locais e agentes

1
ambientas ligados às UCs ali existentes (incluindo aí, além de gestores, funcionários das
unidades, profissionais ligados ao turismo local e representantes de ONGs, também cientistas
das áreas sociais e biológicas que fazem pesquisa na região). A certa altura, comentando sobre
a situação local, ela falava a sua orientada, que também estava junto no carro, sobre a entrada
em cena de um novo gestor ambiental que passou a ter forte influência nos rumos da política
ambiental local. Pelo que percebi, em princípio esta pessoa parecia, aos olhos de ambas, ter
um perfil diferente dos administradores anteriores, no sentido de ser mais sensível aos
conflitos com a população local, sendo que ambos (gestor, antropóloga e sua orientanda)
teriam começado a estabelecer um movimento de aproximação e de diálogo mútuos. Porém, a
certa altura, depois de alguns comentários mais gerais, esta antropóloga vira-se para sua
companheira de viagem e diz enfaticamente para ela algo como: “mas nós temos de saber qual
é a dele, precisamos saber, de fato, qual é a dele! Porque pode ser que ele não seja o que
parece ser”.
3º compasso: outro evento ocorreu após a entrevista que realizei com um zoólogo que
há tempos desenvolve e orienta pesquisas sobre impacto da caça executada por populações
locais em áreas de Mata Atlântica e cujo núcleo de pesquisa é bastante reconhecido na área de
mamíferos de grande e médio porte. Após a entrevista começamos a conversar sobre possíveis
nomes de pessoas que seria interessante entrevistar. Em certo momento, este zoólogo
comentou, em tom informal: “mas queria saber também o que esse pessoal da [cita nome de
uma ONG nacional com intensa atuação e foco na Mata Atlântica] e das Grandes ONGs, do
tipo [cita nome de uma ONG internacional com forte presença no Brasil], estão pensando.
Eles são muito difíceis, ficam nadando e flutuando sem mostrar o que realmente pensam”2.
4º compasso: transcrevo abaixo trecho de entrevista que realizei com um eng. florestal
cuja obra é muito citada em textos acadêmicos sobre UCs. Ao lhe perguntar no final da
entrevista como se identificaria enquanto profissional este respondeu da seguinte forma:
esses preservacionistas que estavam lá na década de 70 se reúnem com estes, os socioambientalistas.
Quem são os inimigos do eucalipto? Os ambientalistas não são inimigos do eucalipto. Todo este
espectro aqui de ambientalistas não são inimigos do eucalipto porque ele tem o seu lugar (...). Quer
dizer, a extrema direita se reúne com a esquerda e a extrema esquerda. Proibir o plantio de
eucalipto, como saiu uma lei no Espírito Santo! Como pode! Ora, esses que fizeram isso são idênticos
aos preservacionistas de que eu estava falando (...). Os socioambientalistas se opõem [à soja], mas
concordam em explorar, porque agora as Resex estão explorando madeira; e sem plano de manejo.
Então, há um contínuo político que dá todo um giro, e a extrema direita se encontra com os
socioambientalistas. Os protetores de cachorros, por exemplo, uma vez escrevi contra isso e vieram
mais de 70 correspondências contra o que eu havia escrito. A metade era de preservacionistas e a outra
de gente de esquerda. Faziam o mesmo comentário. Isso é absurdo. Então, respondendo a sua pergunta,
eu estou no centro, que é o mais difícil.

2
Apesar destas entidades não produzirem diretamente pesquisa científica, cientistas de áreas distintas circulam
por elas, são por elas patrocinados, contribuem com seus projetos ou mesmo ocupam cargos efetivos.
5º Compasso: por fim, reproduzo novamente o comentário - já citado no “Prelúdio
para uma controvérsia" - de uma antropóloga com quem conversei:
porque eu mesma, se fosse falar com um ambientalista, por exemplo... esqueci o nome do cara,
escreveu um artigo duro, horrível, sobre populações tradicionais, você deve saber quem é [(neste
momento, cito o nome de um pesquisador)]. Então, se estivesse sendo entrevistada [por ele], por
exemplo, acho que não teria muito a falar não (...). Acho que tem um momento em que a pessoa tem
que se posicionar politicamente, por isso que te argüi também. Porque se você acha “dane-se o meio
ambiente”, então acho que a gente não tem que trocar figurinha. Eu tenho que saber com quem estou
falando.

Embora a palavra “cuidado” deva ser lida (com cuidado) a partir de duas de suas
conotações (“precaução” e “responsabilidade”), tais episódios indicam que talvez seja
oportuno o conselho de Hermes Aquino: “cuidado com quem você anda; cuidado com quem
te ajuda; cuidado com seu amigo e muito cuidado com o inimigo, cuidado com o que lhe digo,
se cuide até de você”. Além de ilustrar como pode ser instável a fronteira que separa cientistas
ligados ao nosso “tema quente”, devo dizer que não foram exceções, ao contrário, são
exemplos entre outros que poderia relatar. Mas como a visualização desta inconstância foi se
intensificando, certas indagações foram surgindo: o que faz com que, por vezes, quem parecia
“amigo” passe a ser “mais ou menos” amigo e aquele que supostamente “quer se aproximar”
possa não ser “o que parece ser”? O que leva cientistas a ficarem atentos em “saber qual é a
dele”, isto é, do outro? Por que alguns acham que colegas ficam “flutuando sem mostrar o que
realmente pensam” e outros que “esses se reúnem com estes” ou “esses que fizeram isso são
idênticos” aos “mesmos de antes”? Por que nos confrontamos em certas situações para depois
buscar em virtuais “inimigos” potenciais “aliados”? Como entender a fluidez entre a certeza
de saber em que “posição” se está e a indeterminação que ronda o cotidiano nativo quando
precisam saber onde “estão os outros” ou “com quem estou falando”? Enfim, à interrogação
crítica feita por Maria José Aquino (2002, p.25) ao estudar diferenças e semelhanças entre
ONGs amazônicas: “por que essa realidade [ambientalista] dissonante precisa ser vista como
um movimento único?”, sugeriria indagação alternativa: como funcionaria este trabalho
pendular em que, por vezes, fazemos questão de nos distinguir para depois desejarmos nos
aproximar?

Destrinchando a instabilidade estrutural segmentar das oposições


Nessa discussão há alas e elos. Tudo depende com
quem você escolhe compartilhar, com quem quer se
aliar, com quem você quer trocar.
Anita (entrevistada)

Lá pela 23º entrevista, depois de conversar mais de duas horas com um dos principais
personagens envolvidos com a criação de UCs na década de oitenta, este comentou comigo:
você deve estar tendo acesso às opiniões mais diversificadas (no início pensava que iria achar só dois lados). Não
existem dois lados, existe uma multiplicidade de lados. Se tiver contato com conservacionistas, digamos, do lado
favorável às UCs integral, vai ver que há muitas divergências e pontos de vista. E há pontos de união e unidade
de pensamento com o lado socioambientalista, porque há socioambientalistas que, mesmo preocupados com
aspectos sociais, realmente estão preocupados com natureza. Então há uma diversidade extensa de opiniões e
pontos de vista.

Como tentei mostrar inicialmente, é comum pesquisadores descreverem o campo onde


atuam a partir de “perspectivas” polarizadas. Embora possam reconhecer a complexidade
destas (como no caso acima,) muitos operam na prática através de dicotomias (que, como
vimos, podem ser mais gerais ou mais específicas). Como também comentei, uma solução
encontrada foi propor contínuos, isto é, hierarquizações seriadas onde, preservados os pólos,
caberia ao intérprete recheá-las com outras “posições” (como ilustra o depoimento do eng.
florestal que, ao argumentar que “há todo um contínuo político” em que se vê como um
ambientalista que está “no centro”, se coloca entre socioambientalistas e preservacionistas).
Mas vimos que esta operação preserva intacta a dualidade, pois entre dois pontos sempre há
espaço para colocar mais um ponto na linha que os une. Ademais, vale comentário de Lévi-
Strauss (1996, p.164) sobre estruturas dualistas indonésias formadas por um número ímpar de
elementos: “todo sistema ímpar pode ser reduzido a um sistema par, tratando-o sob a forma de
‘uma oposição do centro com os lados adjacentes’”. Assim, se identifico três “visões” e ponho
uma delas “entre” as demais, tenho um meio (um centro) opondo-se aos extremos (a
periferia).
Mas e se não aceitássemos este tipo de esquema descritivo-prescritivo, seria possível
imaginar uma distribuição de “posições” diferente? Uma alternativa seria pensar com Lévi-
Strauss (1996, p.158) e sua análise sobre a coexistência de “estruturas diametrais simétricas e
estruturas concêntricas desiguais” entre os Bororo que “o ponto (...) é que o próprio dualismo
seja duplo”. O que me faz voltar à hipótese da pesquisa: oposições e alianças são acionadas
por pesquisadores em planos ou níveis de alteridade-afinidade diferenciados, o que implica,
por sua vez, numa segmentaridade relacional instável. Neste caso, além de procurar saber de
quem ou do que a pessoa está falando quando lança mão de um esquema dual qualquer
visando definir os outros, é preciso perceber qual a instância-circunstância em que ele é
acionado. Aí então, se pensados sob esta ótica, como propõe Lévi-Strauss (996, p.158), dois
esquemas dicotômicos
não precisam corresponder a duas disposições diferentes. Podem corresponder, também, a duas
maneiras de descrever uma organização muito complexa que não pode ser formalizada por um só
modelo. (...), mesmo num tipo de estrutura social simétrica (ao menos em aparência) como a
organização dualista, a relação entre as metades nunca é estática, nem tão recíproca quanto tenderíamos
a representá-la.

Ao identificar “pontos de vista” sobre nosso “tema quente” tendemos a negligenciar


um aspecto que, por ser evidente, é pouco considerado: “a grande coisa sobre um ponto de
vista é, precisamente, o fato de que você pode mudá-lo. Por que seria prisioneiro dele?”
(Latour (2006, p.343). Mas é preciso atenção ao comentário. Não é que pesquisadores mudem
de opinião a todo instante, ou melhor, não é uma questão de opinião, mas de movimento
espacial e temporal executado frente aos demais “atores”, suas ações, interpretações e objetos
de pesquisa. Como explica Latour (2006, p.343), “se você pode ter diferentes pontos de vista
sobre uma estátua, é porque a estátua em si mesma é tridimensional e lhe permite, sim,
permite que você ande em torno dela. Se algo comporta uma multiplicidade de pontos de
vista, é porque é algo muito complexo, dotado de dobras intrincadas, bem organizado, e
bonito, sim, objetivamente bonito”.
Ter à disposição noções e conceitos (designativos ou prescritivos) e os combinarmos
de modos distintos indica que estamos diante de algo “muito complexo” e “dotado de dobras”
(daí a pertinência do conselho de Lévi-Strauss: pensar “dualismos como duplos”). Eventuais
incertezas sobre “onde estão os outros” e a proliferação de classificações cuja abrangência se
sobrepõe a todo instante significa que nativos não estão parados sustentando um “ponto de
vista”, mas “andando em torno da estátua”. Vistas em conjunto, oposições subentendem a
capacidade deles se “moverem”, como comenta Latour, “de um ponto de vista para outro”.
Um entrevistado percebeu bem este caráter dinâmico. Apesar de se ver como “antropólogo
associado seguramente à ecologia social ou ao ecologismo social”, ao lhe indagar como se
identificaria enquanto pesquisador este alertou: “mas é difícil na verdade ter uma identidade
só. Acho que esse é um trabalho de polígamo, de ir mudando seus conceitos”.
Além disso, se, por um lado, tal “movimento” não se restringe a um único “objeto” ou
“estátua”, como ilustra este trecho do depoimento de outro entrevistado: “ao menos pra mim
não tenho uma única perspectiva de olhar; se estava olhando pro meio ambiente, agora
estou pensando em olhar a questão dos quilombolas, a questão de etnicidade; ao mesmo
tempo estou olhando a questão das políticas repressivas relacionadas com políticas de
ressocialização”. Já, por outro lado, ao se movimentarem e circularem por espaços distintos,
certo pragmatismo pode estar por trás das “posições” adotadas. Tal aspecto também surgiu
durante as entrevistas de forma recorrente, mas trago apenas dois momentos para ilustrar o
que venho afirmando. Quando conversava com uma antropóloga sobre as implicações do uso
da categoria “população tradicional”, esta a certa altura recomendou:
você tem que ter todo cuidado de dizer e usar de acordo com a necessidade. Você tem que ter ciência
do que está falando, com quem está falando e aonde você está falando. Então você usa a expressão de
acordo com a necessidade. É bem diferente eu usar o termo população tradicional num texto
acadêmico e em uma argumentação com alguém do IBAMA. Tem que usar de acordo com a
necessidade3.

3
Algo parecido ocorreu com outras duas entrevistadas também ao falarem sobre “populações tradicionais”. A
primeira (a qual se definiu como “ecóloga humana”) admitiu: “acho uma categoria extremamente complicada, é
um termo muito complicado, porque realmente cada vez que usar você precisa qualificar exatamente o que está
querendo dizer com isso (...). Ela deve ser qualificada cada vez que se usar”; já a segunda (antropóloga que se
O outro episódio em que a circustancialidade das posições assumidas por
pesquisadores veio à tona (no sentido de assumi-las “de acordo com a necessidade”) foi
quando entrevistava um geógrafo que foi, nos anos 1980, um dos intelectuais que
assessoravam Chico Mendes:
fui apresentado ao Chico no Rio de Janeiro no final de 84 (...). Numa conversa de 5 minutos, não mais
do que cinco minutos, ele apertou minha mão e disse: “mas, vem cá, você é socialista?”; disse: “sou!”;
mas você é ecologista?”; e disse “sou!”; e ele reponde: “mas pode?”. Esse é um diálogo do Chico que
você pode transcrever tal como tô te falando, que sustento, de um cara que iria me tornar grande amigo,
um assessor de confiança pessoal dele. Por essa razão eu pergunto: por que não pode? Na verdade
não quero ser um ecologista insensível às injustiças sociais e nem tampouco quero uma razão social que
silencie sobre as experiências das culturas e sobre a devastação da natureza (...). No caso do Chico,
nossa relação se fazia mais ou menos contundente de acordo com o lado que o Chico buscava.

A instabilidade que os depoimentos e as situações descritas supõem (visível no trecho


“de acordo com o lado”) se complexifica ainda mais ao aceitar a metáfora da estátua proposta
por Latour. Além de cientistas circularem “em torno” (em volta) e no “entorno” (nas
cercanias) da “estátua”, acham-se incluídos em um sistema temporal mais amplo. Assim,
como estão em movimento tanto aquele que anda ao redor da estátua como a própria estátua,
as “relações” estabelecidas com outros “atores” irão variar de acordo com o lado que se deseja
aproximar. Ademais, como a estátua (que pode representar um pesquisador, um núcleo de
pesquisa, uma controvérsia, um grupo social) também se modifica, na próxima volta “ao redor
da estátua” (quando voltarmos a refletir sobre nossos pares, instituições, aquela antiga
controvérsia, a situação de uma UC ou de populações tradicionais que nela vivam), não
teremos mais diante de nós a mesma estátua (os mesmos pares, instituições, controvérsias,
UCs e populações). O depoimento de um historiador com quem conversei ilustra este caráter
dinâmico:
primeiro veio à idéia de que os conservacionistas da FBCN foram rotulados como preservacionistas,
embora FBCN signifique Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (...). Só que aquela
divisão importada dos Estados Unidos entre preservacionistas e conservacionistas, pelo menos num
primeiro momento, não fazia muito sentido aqui no Brasil. Hoje, o rótulo de conservacionista ficou
mesmo para o grupo (...) que defende o tipo de posição que (...) tem uma preocupação mais tópica
com a proteção da biodiversidade e com as áreas protegidas. Agora os socioambientalistas desistiram
de se autorotular conservacionistas e viraram socioambientalistas (...). É preciso não embarcar num
discurso pronto, é preciso fugir dos rótulos, se é conservacionista, socioambientalista, isso não leva
muito longe.

Como apontam Deleuze e Parnet (1998, p.10), “durante esse tempo, enquanto se gira
em torno [das] questões, há devires que operam em silêncio, que são quase imperceptíveis” e
que, em certos momentos, permitem que se possa, até mesmo, desistir de se auto-rotular. E,
de fato, para quem não quer se perder em meio à diversidade das “posições” adotadas pelos

graduou bióloga) reconheceu: “teve uma crítica pesada sobre populações tradicionais, mas tem situações que tem
que usar essa terminologia. Depende de como você usa, como reproduz a definição dela”.
sujeitos da pesquisa, o conselho final deste historiador (“fugir dos rótulos”, pois “isso não
leva muito longe”) parece fazer bastante sentido.
Além disso, a constante instabilidade pode levar pesquisadores a realmente mudarem
seus “pontos de vista”, fato que também surgiu nos depoimentos que recolhi. Um primatólgo
com quem conversei, por exemplo, revendo sua trajetória ao longo dos últimos 20 anos,
observou: “no início da década de noventa eu ainda era muito preservacionista, mas eu
nunca me considerei um preservacionista, me considerava um conservacionista, só que
hoje eu estou muito além disso, hoje a gente está totalmente envolvido com a dimensão mais
social, digamos assim”. Já uma socióloga com quem tive contato durante seminário
promovido pela antropóloga Maria José Carneiro em 2007 admitiu: “tive uma época que
virei conservacionista total. É assim, a gente vai mudando. Hoje sou ambientalista, mas
não sou preservacionista”. Esta mesma socióloga, se referindo a Carlos Joly neste mesmo
seminário – pesquisador da Unicamp que teve papel decisivo na elaboração de políticas de
preservação no estado de São Paulo nos anos 1990 e um dos mentores do Programa Biota -,
alegou que este botânico “era dos mais preservacionistas, só que depois virou defensor das
populações tradicionais e dos conhecimentos locais”.
Ora, se há algo a extrair destas frases é o caráter inconstante e dinâmico que elas
denotam, afinal, se um dia “eu ainda era muito”, mesmo assim “nunca me considerei”, “só
que hoje eu estou” [reparem que o verbo “estar” já subentende algo que pode mudar]; se “me
considerava” isso, “tive uma época que virei” aquilo, pois “a gente vai mudando” e “hoje sou”
assim apesar de que “não sou” assado; por fim, se ele “era dos mais”, “depois virou” outra
coisa. Outro exemplo de autores que mudaram seu “ponto de vista” pode ser visto na resenha
(bastante crítica, aliás) de Silveira (2001, p.2) sobre o livro “Parks in Peril: people, politics
and protected áreas” (Brandon, Redford e Sanderson, 1998), coletânea de artigos patrocinada
pela ONG estadunidense TNC e muito citada no universo da biologia da conservação. Ao
atacar posições, idéias e argumentos sustentados por seus organizadores4, o autor avalia que
neste momento, uma nova posição polar é tomada pelos críticos do ‘uso sustentável’, aqueles que
apostam que conservação com sucesso se faz sem presença humana. É desta posição do debate que
fala a Nature Conservancy, fazendo parte desta tendência que separa a ‘verdadeira’ conservação
(aquela que se faz nos parques bem sucedidos) da conservação aliada ao uso, supostamente baseada em
‘slogans’ populistas. É interessante notar que dois dos editores do livro, Katrina Brandon e Kent
Redford, já estiveram, durante a década de 1990, alinhados a posições mais moderadas no debate,
apropriando-se do mesmo discurso em voga no período imediatamente posterior à Rio 92, que
hoje criticam. Estas posições podem ser vistas em livros como ‘Conservation of Neotropical Parks’
(ref) e ‘People and Parks: Linking Protected Area Management with Local Communities’ (WELLS &
BRANDON, 1992).

4
Silveira qualifica o livro como um “manifesto de defesa dos parques com uma roupagem de pesquisa científica
multidisciplinar”. Argumenta ainda que a citada ONG se pautaria por “um modelo que (...) certamente está longe
de ser compatível com idéias como democracia, cidadania, participação”, sendo que, se assim fosse,
“estaríamos diante do que em outros tempos seria chamado imperialismo”.
De fato, ao comparar o conteúdo destas duas últimas publicações com o livro “Parks
in Peril”, vê-se que uma autora como Katrina Brandon mudou radicalmente sua “posição” em
relação ao nosso “tema quente”. Embora não concorde com a visão geral do autor, aqui vale
conselho de Theodoro (2005, p.61) em sua análise sobre a dinâmica dos “conflitos
socioambientais”, os quais ora se precipitam ora se estabilizam, ora explicitam rupturas e
cisões ora parecem invisíveis e inexistentes, ora são vistos como irresolvíveis ora são
considerados superados:
pode haver momentos em que o conflito fica muito ‘quente’ e depois perder sua visibilidade, para
posteriormente ‘esquentar’ de novo. Assim, o entendimento, da dinâmica interna do conflito inclui a
identificação das polarizações das posições e o mapeamento das alianças e coalizões, sempre sob a
observação de que, durante o longo percurso do conflito, as posições dos distintos grupos podem
mudar de tal forma que antigos aliados se transformem em inimigos ou vice-versa.

Porém, ao pensar de modo menos rígido sobre o uso das categorias designativas
disponíveis, é preciso nos afastar do perigo de julgar o trabalho de algum pesquisador
afirmando que sua análise seria inconsistente porque demasiado ambígua, que suas noções e
conceitos não corresponderiam à realidade atual ou que as oposições com as quais trabalha
seriam meros clichês redutores desta mesma realidade. No limite, diria, como na reflexão de
Viveiros de Castro (2002a, p.97) sobre o “problema das afinidades na Amazônia”, que
haveria um “privilégio analítico do método das classes em detrimento do método das
relações”; ou, ainda com este antropólogo, que haveria maior “adesão à lógica dos termos em
detrimento da consideração estrita das relações”. Nesse sentido, uma outra opção seria
manejar polaridades seguindo conselho de Lévi-Strauss (1996, p.187): não “tratar as
desigualdades das metades” como “irregularidades do sistema”, pois “o estudo das
organizações dualistas revela tantas anomalias e contradições que seria melhor (...) tratar as
formas aparentes de dualismo como distorções superficiais de estruturas muito mais
complexas”.
Para aprofundar este caráter instável, dinâmico e complexo proponho agora um
diálogo interpretativo com estudo clássico de Evans-Pritchard sobre os Nuer, povo nilótico da
África Oriental. Ainda que sejam dois casos totalmente distintos, creio ser possível, em
termos metodológicos, traçar algumas homologias. Iniciemos, antes, porém, revendo
brevemente como Evans-Pritchard descreve a estrutura política Nuer. Segundo o autor (2005,
p.10), estes “dividem-se em uma série de grupos que não possuem organização comum ou
uma administração central (...), constituem, em termos políticos, um amontoado de tribos que
algumas vezes formam federações pouco rígidas”. Cada “tribo divide-se em uma série de
segmentos e (...) os membros de cada uma delas consideram-se a si mesmos como
comunidades distintas e por vezes agem como tais”. Adiante (op. cit., p.154) comenta que
“cada segmento é, por sua vez, segmentado e há oposição entre suas partes. Os membros de
qualquer segmento unem-se na guerra contra segmentos adjacentes da mesma ordem e unem-
se com esses segmentos adjacentes contra seções maiores”. Mas a estrutura de cada tribo,
segmento e seção Nuer só pode ser entendida quando vista em relação aos seus vizinhos, os
Dinka. Assim, para os Nuer, “o povo Dinka é o inimigo”5. Apesar da “guerra entre Dinka e
Nuer não [ser] meramente um conflito de interesses, mas também um relacionamento
estrutural entre dois povos”, a luta entre eles “tem sido incessante”, “parece ter atingido um
estágio de equilíbrio e [pode] ser chamada de instituição estabelecida” (op. cit., p.138).
Mas essa relação confrontacional permanente se estende para dentro do povo Nuer.
Deste modo, “segmentos e seções” Nuer encontram-se em permanente estado de hostilidade:
“membros de qualquer segmento unem-se na guerra contra segmentos adjacentes da mesma
ordem e unem-se com esses segmentos adjacentes contra seções maiores” (op. cit., p.154).
Quer dizer, se confrontos são iminentes, uniões e alianças também o são. Isto ocorreria em
parte porque, internamente, a estrutura política Nuer possuiria, por um lado, uma “invariável
tendência para divisões e oposição de seus segmentos” e, por outro, “uma tendência para a
fusão com outros grupos de sua própria ordem em oposição a segmentos políticos maiores do
que o seu próprio grupo. Os valores políticos, portanto, estão sempre em conflito” (op. cit.,
p.149). Por fim, como conseqüência deste estado de união com beligerância,
uma pessoa vê a si mesma como membro de um grupo apenas enquanto em oposição a outros
grupos e vê um membro de outro grupo como membro de uma unidade social, por mais que esta esteja
fragmentada em segmentos opostos (...). Assim, se e de que lado um homem irá lutar depende do
relacionamento estrutural das pessoas envolvidas na luta e do seu próprio relacionamento com
cada um dos lados.

A primeira correspondência refere-se ao fato de que tanto os Nuer como pesquisadores


se encontram “divididos em uma série de grupos que não possuem uma organização comum”.
Assim, não há tanto um estado-maior Nuer como uma grande organização ambientalista ou
um centro de pesquisa sob o qual todos estariam submetidos (o que há são entidades
ambientalistas menores e maiores, centros de pesquisa mais fortes e mais fracos); não há tanto
um chefe Nuer como um cientista-chefe (no máximo, pesquisadores titulares, bolsistas
produtividade em pesquisa do CNPq, categoria 1 – Nível A); não há tanto uma tribo Nuer
coagindo outra como um grupo de cientistas coagindo outros (em uma controvérsia, eles se
enfrentam, mas quem sairá vencedor ou mesmo se haverá vencedor, não se sabe
antecipadamente). Em suma, quando ambos interagem não há nem instituições superiores
acima das pessoas nem “atores” especializados que exerçam um poder que lhes foi delegado
ad hoc. Como resultado, a qualidade das interações tende a ser mais horizontal do que

5
Segundo Evans-Pritchard, além de ambos os povos se assemelharem culturalmente, os Dinka habitam a mesma
região da África Oriental onde estão localizadas e distribuídas as tribos Nuer.
vertical, ou melhor, mais simétrica do que assimétrica. Como no caso Nuer, não há centro
nem periferia, isto é, o poder de cientistas monopolizarem efeitos de verdade acha-se
fragmentado e distribuído entre pós-graduações, institutos de pesquisa, mas, também, entre
ONGs, entidades ambientalistas, setores administrativos de órgãos ambientais nos três níveis
de governo (federal, estadual e municipal) e assim por diante.
Mas quando falo em interações simétricas, não me refiro à estrutura universitária
vinculada à pesquisa científica, à subordinação administrativa a que cientistas encontram-se
submetidos, às vantagens e desvantagens de se estar em uma dada universidade ou programa
de pós-graduação e muito menos às instituições que compõem o Estado brasileiro ou
instâncias como família, religião e ensino. O que quero enfatizar é que tanto nas guerras entre
tribos e segmentos Nuer como em controvérsias sobre populações locais e áreas protegidas
não há, entre pesquisadores, entidades mediadoras transcendentes ou personagens externos
colocados de antemão em planos superiores. Como notou Gellner (apud Goldman, 2006,
p.189) em relação às tribos da África do Norte (que incluem, diga-se de passagem, os Nuer),
também entre pesquisadores (que, no presente caso, se envolveram com nosso “tema quente”)
a “vontade de autonomia em face de um poder central” é um traço de unidade, ou melhor,
uma característica que os aproxima.
Portanto, não estou negando, por exemplo, que há instituições e estruturas que
orientam normas de conduta, bem como regras a serem cumpridas para que publicações sejam
aceitas, lidas e reproduzidas, mas que a distribuição de poder tende a ser menos vertical do
que em outras situações de confronto, pois não há uma prévia subordinação hierárquica ou
figuras centralizadoras. Se há pesquisadores com maior autoridade para julgar (ou para fazer
calar) seus colegas e o que escrevem sobre nosso “tema quente”, tal autoridade precisa ser
constantemente conquistada na luta discursiva diária travada nas interfaces de arenas político-
científicas, sendo que, como veremos no quinto capítulo, tal “conquista” passa pela trajetória
(não só acadêmica) das pessoas, ou seja, passa pelos lugares por onde andaram, experiências
que tiveram e pessoas que conheceram e entraram em contato ao longo de suas carreiras.
Já sobre o termo simetria, não pretendo indicar com ele uma suposta “igualdade” na
configuração de forças existente entre os sujeitos da pesquisa. Por mais que ocupem
“posições” diferentes e se distingam pelas suas trajetórias, em tese partilham o ethos
acadêmico e trazem incorporado o habitus científico, o que significa abertura para se
pronunciar e ser levado a sério por seus pares. Não que não haja pesquisadores com maior
prestígio – ou maior “capital social” - devido ao conjunto de sua obra, à qualidade da
instituição onde trabalham ou à atuação pretérita junto a ONGs e/ou instituições
governamentais. Sem dúvida isso confere a alguns maior poder na “luta pelo monopólio da
verdade”, como diria Bourdieu (1989), visto serem nítidas as diferenças de força entre um
pesquisador sênior e um doutorando, um professor de reconhecida pós-graduação da USP e
outro que trabalhe na Universidade Federal do Acre, um cientista que assessora uma grande
ONG que apóia e patrocina pesquisas na área e outro que está distante do universo
“ongueiro” ou, ainda, entre aquele que possui “contatos” amistosos com quadros do
Ministério do Meio Ambiente e aquele que não os possui. Até porque, voltando aos nativos de
Evans-Pritchard, algo parecido deveria ocorrer com os Nuer. Afinal, também entre eles
haveria indivíduos com maior porte físico ou habilidade para lutar (o que tende a ser
vantajoso numa batalha), tribos mais numerosas do que outras (o que é importante em um
confronto), além de se supor que, numa guerra, “seções” Nuer conseguiriam mobilizar a
adesão de um número maior de aliados.
Pode parecer paradoxal, mas simetria caminha aqui lado a lado com desigualdade,
desigualdades enunciativas em que a polissemia e a proliferação de significantes avança pela
já instável estrutura discursiva que marca o debate sobre nosso “tema quente”. Como para
Tavolaro (2000, p.80), também aqui “a disponibilidade de diferenças é tão grande que se
torna mais difícil para um discurso em particular fixar tais diferenças como momentos de uma
ordem estável”. Nesse sentido, vejo a imanência da simetria como ponto de partida para que
forças e influências sejam assimetricamente distribuídos na prática, ou seja, simetria como
condição para que “posição”, “prestígio” e poder de monopolizar a atenção através de
“argumentos de autoridade” possam vir a ser construídos e exercidos de forma diferenciada.
E, neste ponto, me aproprio dos comentários de Guilherme Sá (2006, p.38) sobre
“antropologia como esporte de contato” para ressaltar: também entre aqueles que pesquisam
áreas protegidas e populações locais “um acordo implícito entre as partes rege suas eventuais
assimetrias. Deixando de lado a belicosidade dos ‘combatentes’, os conflitos passam a ser
previstos, monitorados e mediados pelos próprios ‘jogadores’ dentro de uma lógica, intrínseca
ao jogo, de relações simétricas”.
Em parte devido à relativa ausência de delegação exterior, a constante tensão entre
confronto e aliança constitui característica inerente à dinâmica interativa dos sujeitos da
pesquisa6. Se para os Nuer a guerra era parte do seu cotidiano, a controvérsia (que não deixa
de ser uma espécie de batalha) faz parte do cotidiano nativo. Se para os primeiros a “guerra
entre eles” era uma “instituição estabelecida”, pesquisadores desafiam e são desafiados
constantemente por seus colegas7. Como a relação entre atração e repulsão (afinidade e

6
Quando falo em confrontos, disputas, lutas, combates, enfrentamentos e hostilidades me refiro, bem entendido,
às arenas discursivas estabelecidas nas interfaces do campo científico com o plano da ação política mais ampla.
7
Adiantando o que veremos no próximo capítulo, a situação se complica quando controvérsias passam a ser
discutidas em planos distintos. Assim, se existem grandes controvérsias mobilizando a atenção de número
alteridade; oposição e combinação; fissão e fusão; separação e reunião) não possui centro
gravitacional definido, disputas interpretativas sobre nosso “tema quente” subentendem
constantes deslocamentos de “posições” e “pontos de vista”, os quais se desdobram, por sua
vez, em outras “posições” e “pontos de vista”. Assim, se pensamos em termos de
deslocamentos, ou melhor, que cientistas se movimentam constantemente por entre níveis de
alteridade-afinidade distintos, vale a asserção de Deleuze (2006, p.93): “movimento implica
uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma imbricação de pontos de
vista, coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação”.
Visto por este prisma, pesquisadores, ao debaterem uma controvérsia, interagem a
partir de uma “harmonia conflituosa” ou, como propõe Mafesolli (2006, p.173), de uma
“organicidade dos contrários” onde “com o terceiro [quarto, quinto, sexto...] ponto de vista é
o infinito que começa”. Arrisco dizer que, se há um substantivo para nomear a movimentação
nativa, este seria idiossincrasia, visto que pesquisadores reagem de modo muito particular à
ação de seus pares. Em suma, são vários “eus” e vários “outros” atuando em planos distintos.
Mas se tal característica tende, por um lado, a gerar situações de desentendimento e
desencontro (onde a oposição é, segundo Deleuze, a representação máxima da diferença), por
outro, garante flexibilidade suficiente para que encontros e entendimentos também ocorram.
Chegamos então à segunda correspondência que pretendo estabelecer: a relação entre
pesquisadores segue padrão próximo ao que Evans-Pritchard chamou de “anarquia ordenada”.
Como no caso Nuer, cientistas “num momento [estão] lutando entre si e, noutro, [estão]
combinados contra uma terceira parte” (op. cit., p.156). Voltando à “Pausa de cinco
compassos”, se “cada um cuida de seu próprio negócio encontrando ao mesmo tempo os
outros” (Deleuze e Parnet, 1998, p.17), neste encontro, temos indivíduos e organizações
“nadando e flutuando”, rivalidades se diluindo para depois ressurgirem, “esses se reunindo
com estes” enquanto “amigos” se tornam “mais ou menos” amigos.
O que acontece é que confrontos e controvérsias ora se condensam ora se dissipam,
divergências ora se manifestam de forma clara e límpida ora parecem demasiado confusas e
vagas, antagonismos ora se intensificam ora se diluem e oposições binárias ora são ativadas
ora sejam descartadas. Se, como disse um eng. florestal com quem conversei (o qual, no
início dos anos 1990, era francamente a favor das UCs “com gente dentro” e hoje é
extremante crítico a elas) “temos de estar unidos nesta guerra pela preservação levando em
conta a dimensão humana contra nossos inimigos”, a questão em jogo aqui é estar atento em
saber, ao nos movimentarmos, quem são “nossos inimigos” da vez. Dilema este percebido por

considerável de cientistas, existem meso e micro-controvérsias (mas de igual importância) sendo debatidas por
número menor de pesquisadores.
outra entrevistada cuja trajetória se caracteriza pelo constante trânsito entre biologia e ciências
sociais: “é claro que há um ambiente muito dividido, isso se não pode negar porque faz parte
da história, o que se pode dizer é o seguinte: como é que você se situa nesse momento”8.
Apesar de não envolver só cientistas, um episódio emblemático e que ilustra
claramente esta característica foi o posicionamento de certos “atores” por ocasião dos vetos
presidenciais no apagar das luzes da aprovação do SNUC, em 2000. Sancionada a lei,
convencionou-se (ou seja, virou fato) dizer que, nos dez anos que durou o debate, havia “dois
lados” ou “duas forças” bem visíveis e conhecidas disputando e defendendo interesses
distintos. Como já vimos, Sant’Anna (2003), Mercadante (2001), Santilli (2005) entre outros
nomeiam estes lados e forças através de termos como conservacionistas, preservacionistas e
socioambientalistas. Mas, e esse é o ponto onde quero chegar, um dos temas mais polêmicos
era o artigo que definia o que seriam “populações tradicionais”. Vejamos, pois, um pouco
como se deu esta polêmica.
Mercadante (2001) conta que a definição teria sido proposta pelos
socioambientalistas, os quais defendiam maior autonomia e participação ativa das populações
locais nas políticas de conservação baseadas na criação de UCs. Em princípio, portanto (ou
seja, teoricamente), socioambientalistas e representantes de populações tradicionais seriam
aliados. Contudo, o que ocorreu na ocasião do veto presidencial à definição que havia sido
proposta? Por estranho que pareça, não só preservacionistas ou conservacionistas propuseram
o veto à definição, mas, nas palavras de Mercadante (2001, p.229-230), “os próprios
seringueiros da Amazônia”. Assim, se para estes tal “definição era excessivamente restritiva”,
do outro lado (preservacionista) havia o argumento de que ela seria “excessivamente
abragente” e alcançaria “praticamente toda a população rural de baixa renda, impossibilitando
a proteção especial que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais”9. Como
comenta Santilli (2005, p.126) “o veto ao conceito de população tradicional foi defendido não
apenas por preservacionistas, que consideravam a definição excessivamente ampla e,
portanto, suscetível de utilização indevida, como também pelo movimento dos seringueiros da

8
Tendo se graduado, simultaneamente, nos cursos de Biologia e Psicologia, ao indagar a esta entrevistada com
ela se identificaria como pesquisadora, esta respondeu: “acho que sou uma pesquisadora transgressora, porque
não me enquadro nos moldes tradicionais de pesquisa, nem do ponto e vista teórico nem do ponto de vista
metodológico, nem do ponto e vista de olhar o papel do pesquisador. Me vejo como uma pesquisadora altamente
sintonizada com as questões políticas e sociais do país e como uma pesquisadora híbrida, no sentido de que
construí meu percurso, querendo ou não, como alguém que jamais vai conseguir se enquadrar num modelo
tradicional, por exemplo, de um CNPq ou do CAPES”.
9
Para Olmos et. alli (2001, p.282), a “definição foi vetada quando da aprovação do SNUC por razões óbvias. Ela
permite que quase toda a população rural brasileira possa ser classificada como ‘tradicional’ e, considerando as
facilidades previstas na legislação para as ‘populações tradicionais’ no interior de UCs, adotar aquela definição
significaria, na prática, que nenhuma área protegida seria implementada, ao mesmo tempo em que todas teriam
seus objetivos primários relacionados à conservação da biodiversidade e de serviços ambientais desvirtuados”.
Amazônia, que considerava a definição excessivamente restritiva pela exigência da
permanência na área ‘há três gerações’”10.
Quer dizer, ao menos neste momento, pretensos “adversários” atuaram conjuntamente,
ou seja, alinharam-se, ainda que pragmaticamente, em torno do objetivo pontual de defender
um pleito comum. Em suma, apesar de estarem claramente em “lados opostos”, neste
momento atuaram como se fossem aliados, e isso, reparem, a partir de argumentos
antagônicos. O fato das críticas serem aparentemente contraditórias (definição
excessivamente restritiva ou excessivamente abragente para o termo população tradicional)
não quer dizer que alguma delas não fosse mais correta ou “verdadeira”. Ocorre que seus
proponentes, como vimos com Latour, estavam “olhando a estátua” (neste caso, a definição
redigida no texto do SNUC) a partir de diferentes pontos de vista.
Outro episódio ocorreu em maio de 2007, quando o MMA decidiu dividir a estrutura
do IBAMA criando o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Não tenho
condições aqui de esmiuçar este debate, mas, pelo que percebi no CBUC deste mesmo ano,
pesquisadores sabidamente com visões antagônicas sobre nosso “tema quente” estavam,
naquele momento, “do mesmo lado” contra a criação do referido órgão. Tal situação ficou
explícita numa reunião realizada após o encerramento das atividades diárias do congresso
convocada pelos funcionários do IBAMA e do novo órgão, então em greve, para discutir a
questão. Como no caso anterior, motivações divergentes foram explicitadas pelos
participantes. De um lado estavam os que eram contra, por princípio, a criação de um órgão
exclusivo para gerenciar UCs; de outro, os que estavam de acordo com a divisão das funções
do Ibama (alguns inclusive reconheceram já ter defendido publicamente a idéia em outras
ocasiões), mas que, por discordarem do modo como havia sido proposta, se puseram contra a
criação do novo instituto. Quer dizer, embora sustentando “posições” contrárias (a favor ou
contra a criação de um órgão específico que estaria encarregado das políticas voltadas para
áreas protegidas), ambos os grupos se uniram circunstancialmente em prol de um objetivo
comum que, naquele momento, os reunia e aproximava.
Como a estrutura política Nuer, divergências não resultam só do confronto de
interesses, mas fazem parte de um relacionamento estrutural entre cientistas que, por mais que
venham de áreas distintas e tenham vivenciado experiências muito singulares, se reconhecem

10
Mercadante (2001) e Sant’Anna (2003a) contam em detalhes este episódio. Esta última comenta, em outro
texto (2003b, p.122), que “durante o processo de tramitação no Senado houve, por parte dos representantes dos
seringueiros, uma grande rejeição da forma como estava redigida a definição (...). O Conselho Nacional dos
Seringueiros interveio na discussão em torno deste conceito posicionando-se contra as propostas do SNUC.
Receava que o conceito, muito restritivo, entrasse em conflito com o estilo de vida extrativista, nômade, que
ainda repousa sobre outras atividades econômicas complementares, e os excluísse da lei”.
e partilham algo em comum11. Porém, tal como os “cinco compassos” do item anterior, estes
dois episódios ilustram como podem ser fluídas as configurações constituídas por “atores”
envolvidos com áreas protegidas e populações locais. Esta característica de confrontos e
alianças ora se condensarem ora se dissiparem relaciona-se diretamente com outra, a saber,
que, internamente, como os Nuer, “forças” ou “lados” dividem-se “em uma série de
segmentos”, “cada segmento é segmentado e há oposição entre suas partes”. E aqui poderia
substituir “segmentos” por “visões”, “vertentes”, “tendências”, “facções”, “paradigmas” etc.
O que nos remete mais uma vez ao item 2.4, onde falava sobre o caráter relacional das
oposições e categorias nelas contidas.
Também pesquisadores tendem a ver “a si mesmos como membros de um grupo
apenas enquanto em oposição a outros grupos”; da mesma forma, de que lado pretendem
“lutar dependerá do relacionamento estrutural das pessoas envolvidas na luta e do seu próprio
relacionamento com cada um dos lados”. Ou seja, ao mesmo tempo em que cientistas
possuem grande autonomia para se “posicionar” frente aos demais colegas, “correntes”,
“facções”, “vertentes”, “visões” ou sobre controvérsias sobre nosso “tema quente” (que vão
do problema dos “parques no papel” à questão das populações tradicionais), uma dependência
estrutural referente às oposições formadas tende a orientar este mesmo posicionamento.
Parafraseando Evans-Pritchard, “os valores políticos, portanto, estão sempre em conflito”.
Como comentam Lévi-Strauss e o próprio Evans-Pritchard, hostilidade pode implicar
algum nível de proximidade, e, assim como ocorre com nossas relações familiares, eventuais
desentendimentos podem ser vistos como sinal de intimidade (o que ajuda a entender, em
parte, os comentários conciliadores já citados e outros mencionados por alguns autores nos
tópicos 2.6 e 3.1 e em outras partes da tese). O importante a reter, no entanto, é que, quando
cientistas se aproximam, isso significa distanciamento ou isolamento em relação a outros
intérpretes, sendo que essa condição próxima ou distante tende a ser instável e temporária,
pois diz respeito às circunstâncias em que tal aproximação-distanciamento se dará; afinal,
outras lutas e combates, outras controvérsias e discussões, outros debates e polêmicas (mais
amplos ou mais restritos) certamente se avizinham na esquina. Demorei a perceber essa
interdependência estrutural de “posições” e “lados” que, paradoxalmente, desestrutura
orientações rígidas e definitivas. Porém, a coisa ficou nítida ao ler esta esclarecedora analogia
de Evans-Pritchard (2005, p.148) para pensar a situação Nuer:
se encontramos um inglês na Alemanha e perguntarmos onde é seu lar, ele pode responder que é a
Inglaterra. Se encontrarmos o mesmo homem em Londres e fizermos a mesma pergunta, ele nos dirá

11
Já falei no primeiro capítulo sobre este “algo em comum”, mas, apenas para relembrar, no mínimo, todos já
atuaram como pesquisadores, circularam pelos meios científicos relacionados ao nosso tema e influenciaram
politicamente os rumos das políticas públicas voltadas para ele.
que seu lar é em Oxfordshire, enquanto que, se o encontrarmos naquela região, ele dirá o nome da
cidade ou aldeia onde mora. Se fizermos a pergunta em sua cidade ou aldeia, ele mencionará o nome da
sua rua, e, se perguntado na rua onde mora, ele indicará sua casa.

Parece óbvio? Creio que algo parecido se passa quando cientistas localizam onde se
encontram seus colegas e quais suas “posições”. Como me disse um historiador que
entrevistei: “quando falamos sobre conservacionistas, preservacionistas e
socioambientalistas, acho que o mais importante é romper com os estereótipos, depende de
quem você está falando e de cada situação”. Tal aspecto ficou explícito no depoimento de
um antropólogo quando discutíamos a atuação de seus colegas como mediadores junto às
populações tradicionais. Disse ele então:
é lógico que você não vai querer brigar se você está falando de Mata Atlântica com a CI, porque a CI
está administrando o GEF [Fundo Global para o Meio Ambiente da ONU] junto com a Fundação Mata
Atlântica. Se você está na Amazônia, não vai querer brigar com o Pró-Várzea, que está administrando
dinheiro do G-7. Então, se você quer atuar, se quer ter acesso a recursos, seja pra fazer um projeto de
pesquisa mais puro, mais íntegro, você já vai se auto-coibir naquilo que você vai estar querendo dizer.

Como na canção de Daniel Viglietti (1984), “la patria no és un solo lugar”12.


Reforçando minha hipótese, como no caso das categorias Nuer adotadas para simbolizar a
distância estrutural que internamente separa seus membros, antagonismos e alianças irão
variar conforme o nível de alteridade-afinidade que se deseja demarcar. E aqui vejo
novamente correspondência com o estudo de Goldman (2006) sobre a dinâmica política do
fazer política na cidade de Ilhéus13 quando este percebeu, para este caso particular, “que o que
é oposição em um plano pode perfeitamente ser conjunção em outro (...). Nesse sentido,
penso que a noção de segmentaridade também permite uma melhor compreensão das
movimentações políticas (...) tratando-as como efeito do funcionamento de um sistema dotado
de um certo tipo de estruturação dinâmica”.
Visto por este prisma, aparentes contradições e ambigüidades passam a ser vistas
como intrínsecas à dinâmica interativa nativa. Se numa situação um pesquisador expressa
inclinação por certo “grupo” (“segmento”) de colegas, há sempre a possibilidade latente de,
em outro contexto, dele procurar se distanciar ou ficar indiferente. O mesmo ocorre com
eventuais tipificações: em algum momento uma categoria pode ser usada para distinguir um
conjunto de cientistas, instituições, publicações e interpretações, já em outro, estes poderão
ser tipificados de maneira diversa. Tomando emprestada uma imagem proposta por Deleuze e
Parnet (1998), cientistas estão constantemente circulando por “linhas de segmentaridade”,

12
Trecho da canção “Soledad Barret”, militante Paraguaia morta no Brasil pela ditadura militar em 1973.
13
Goldman (2006, p.118) comenta que, nesta e em outras cidades da Bahia, há o “tempo da política”, que
basicamente se condensa nos meses que antecedem um ano de eleições: “o período eleitoral, como em tantas
outras regiões, é chamado ‘a política’, se diz que ‘a política’ começou ou acabou (assimilando-se, assim, o início
ou o fim das campanhas eleitorais), ou que ‘é ano de política’ (ou seja, é ano eleitoral). Todavia, política
também, e talvez principalmente, é aquilo que os ‘políticos’ fazem: acordos, arranjos, favores, pedidos,
promessas, articulações, manipulações, acusações, barganhas e assim por diante”.
sendo que enquanto umas são melhor delineadas, espessas e rígidas, outras são mais vagas,
finas e flexíveis.
O que nos leva à terceira correspondência com os Nuer: “se e de que lado [um
pesquisador irá se posicionar depende] da vinculação estrutural das pessoas envolvidas e do
seu próprio relacionamento com cada um dos lados”. Assim, se em princípio há cientistas que
se colocam na condição de “adversários”, ao menos potencialmente há chance de alguns
virem a agir como (que é diferente de “serem”) “aliados”. Igualmente, discordâncias e
concordâncias dependerão de quem desejamos discordar ou com quem pretendemos
concordar. Se tribos Nuer que já se confrontaram podem, mais adiante, se unir na luta contra
outras tribos, veremos no capítulo três que, numa (batalha) controvérsia, do mesmo modo que
convergências podem ser realçadas para reforçar pontos de vista comuns, divergências podem
ser provisoriamente desconsideradas quando um pesquisador se contrapõe aos argumentos de
outros especialistas.
Em suma, qualquer relação de afinidade que se estabeleça entre dois sujeitos implicará
a presença, ao menos, de um terceiro ao qual estes tenderão a se opor. Além disso, a
existência de afinidades entre “vertentes” não elimina a existência de conflitos
“intravertentes”. Por sua vez, além de evitar o risco de ficar esquizofrênico com suas idas e
vindas, pensar desta forma significa abdicar da idéia de acusar a conduta nativa como
irracional ou ilógica. Para não correr o risco da simplificação (reduzindo toda discussão a dois
“lados” estanques), seria preciso atentar para as situações em que sistemas dicotômicos são
acionados e, com isso, perceber quando pesquisadores tendem a estar em sintonia, dissintonia
ou, ainda, em assintonia. No desenrolar de uma controvérsia, aquele que está afastado poderá
chegar bem próximo, sendo que o “outro” poderá ser visto como forasteiro, estrangeiro ou
estranho ou, ao contrário, como vizinho, amigo ou parente. Estar alerta para esta peculiaridade
me parece decisivo se quisermos entender como controvérsias são, a partir de diferentes
instâncias, estabelecidas e debatidas.
Mas, apesar dos Nuer nos ajudar a entender como se movimentam e como se dão às
relações de proximidade e distanciamento entre nativos, é prudente ficar atento. Ainda que
seja possível afirmar, por exemplo, que dentro de um ambientalismo amplo e suas
“vertentes”, teríamos antagonismos entre pesquisadores com “visões” próximas ao
conservacionismo e outros identificados com o socioambientalismo, seria complicado propor
que ambos, irremediavelmente, se apoiariam mutuamente ao se confrontar com pesquisadores
afinados com o desenvolvimentismo. Tal axioma reduz novamente a complexidade,
multiplicidade e instabilidade a um modelo tão rígido quanto os diversos esquemas
dicotômicos e hierarquizações seriadas disponíveis no mercado das interpretações científicas.
Além do mais, apesar das “divisões merecerem ser entendidas como um equilíbrio entre
tendências contraditórias, contudo complementares”, uma oposição particular não pode ser
extrapolada para todas as demais oposições. Como alerta Goldman (2006, p.176) em seu
estudo aqui já citado, “é preciso observar que, ao contrário do que o caso Nuer tende a fazer
crer, os diferentes segmentos do sistema não se situam univocamente sobre planos uniformes
do diagrama segmentar. (...) se a narrativa diacrônica pode aumentar a inteligibilidade da
descrição, ela não é estritamente necessária ou suficiente para isso”.
Pensemos na distância que se para os Nuer dos Dinka, maiores grupos políticos
nilóticos identificados por Evans-Pritchard. Ora, ao imaginar algo parecido no contexto das
interações entre pesquisadores, pelo que vimos até aqui tenderíamos a concordar que um dos
maiores níveis de distanciamento aparece quando contrapomos “posições” (“discursos”,
“referências” etc.) ambientalistas (no seu sentido amplo, ou seja, aí incluídas suas várias
“vertentes”) às “posições” desenvolvimentistas14. De fato, como ocorre entre os Nuer e os
Dinka, ao menos no nível discursivo parece que a maioria dos cientistas que trabalham com
áreas protegidas e populações locais vê desenvolvimentistas (e o que representam) como seus
“maiores inimigos”. Assim, se seguirmos este raciocínio, a tendência seria “vertentes”
teoricamente próximas a este “grande ambientalismo” se unirem para sempre se contraporem
aos desenvolvimentistas.
Mas o que dizer então de afirmações como as que vimos no “quarto compasso” do
eng. florestal o qual se auto-definiu, em alguns momentos, como ambientalista e, em outros,
como conservacionista?: “proibir o plantio de eucalipto, como saiu uma lei no Espírito Santo!
Como pode!; os ambientalistas não são inimigos do eucalipto (...) porque ele tem o seu
lugar”; “todos somos favoráveis à caça, caça esportiva, inclusive de onças”; “eles se opõem
ao eucalipto, pinos, se opõem à soja, olha que imbecilidade. Nós achamos que a soja tem o
seu lugar, é necessário (...) e é claro que tem que explorar madeira, claro”15. Ora, ainda que
ele discordasse veementemente, não seria difícil que colegas seus viessem a acusá-lo de
desenvolvimentista.
Aqui acompanho comentário do próprio Evans-Pritchard (2005, p.156) sobre suas
descrições: “combinações não eram sempre tão regulares e simples como (...) eu as
apresentei”. Mas há ainda três diferenças em relação aos Nuer: primeiro, como no caso das

14
Vimos no item 2.1 que outros termos (representando “posições”, “modelos”, “visões”) podem ser encontradas
na literatura para demarcar distinções em relação a esse ambientalismo amplo. Por exemplo: “modelo
predatório” (Léna, 2004) e “paradigma capital-expansionista” (Santilli, 2005). Como estou mais interessado na
discussão que pesquisadores fazem entre eles e, também, porque o termo desenvolvimentismo apareceu de forma
recorrente na literatura e na própria fala de muitos deles, preferi adotar este último para ilustrar a diferença aí
existente.
15
Só para situar o leitor, este pesquisador tem feito fortes críticas tanto ao “paradigma” socioambientalista como
a idéia de desenvolvimento sustentável quando associada à discussão sobre criação e gestão de UCs.
“linhagens ameríndias” estudadas por Lévi-Strauss (“posta a regra, ela comporta sempre
numerosas exceções”), as associações descritas não são associações necessárias, mas
tendências; segundo, divisões e rotulações podem ser contestados (às vezes, enfaticamente)
pelos colegas de quem as propõe; terceiro e mais importante, como visto no item 2.5, noções
como desenvolvimento, conservação, sustentável, ambientalismo etc. também estão em
disputa, sendo seus sentidos repletos de ambigüidades. Sobre este ponto, vimos que é prática
recorrente tentar associar, crítica e por vezes acusatoriamente “facções” e “grupos”
desenvolvimentistas tanto à “vertente” conservacionista como ao “paradigma”
socioambientalista. Não há contradição neste tipo de vinculação, ou melhor, não é uma
questão de contradição. Ocorre que a imprecisão polissêmica das expressões dá margem para
que curtos-circuitos aconteçam. No nosso caso, seria mais ou menos como se os Nuer não
tivessem, quando em confronto, capacidade de discernir quem seria Dinka de quem
pertenceria a uma seção Nuer.
Outro elemento que nos distancia dos Nuer é que categorias adotadas para designar
“atores” e suas “perspectivas” sobre nosso “tema quente” não possuem a mesma força
identitária das categorias Nuer. As implicações de pertencer a uma tribo Nuer não podem nem
de longe ser comparáveis às implicações de se ver ou ser visto como ambientalista,
socioambientalista, conservacionista, ecossocialista, sustentabilista. Se há uma orientação
para que “os membros de qualquer segmento unam-se na guerra contra segmentos adjacentes
(...) e unam-se com esses segmentos adjacentes contra seções maiores”, no presente caso,
além de tais “segmentos” não serem tão bem definidos como para os Nuer, o sentimento de
pertencimento pode ser muito tênue, volátil, gregário, efêmero e, até mesmo, inexistente.
Como comenta Goldman (2006, p.177), “tudo parece passar-se sobre um eixo diacrônico
reversível, que permite que segmentos separados se reúnam para se dissolver mais adiante e,
eventualmente, se reunir de novo”.
Sobre esta possibilidade, se a identificação com uma ou outra “corrente”, “vertente”,
“paradigma” pode ir da simpatia descompromissada ao engajamento militante, da simples
anuência à completa adesão, há também aqueles que não se identificam, não se vêem e
mesmo procuram deixar claro que não têm nenhuma afinidade ou compromisso com qualquer
uma delas. Exemplo disso foi o caso de uma socióloga que entrevistei a qual foi categórica
sobre este ponto: “nunca fui ambientalista, nada disso (...). Fiquei muito envolvida na
academia e em campo, não me envolvi com movimento ambientalista e esse tipo de coisa,
nunca, aliás, nunca, nem aqui no Brasil. Em termos de ação política não tive envolvimento
com esse tipo de coisa. Meu envolvimento foi sempre através do trabalho acadêmico. Sempre
tive essa característica”.
Obviamente, a posição sustentada por esta socióloga não significa que ela não possa
vir a ser enquadrada pelos demais através das rotulações disponíveis. Acontece que a
interação que se dá entre pesquisadores extrapola a idéia dicotômica de pertencer ou não
pertencer, se identificar ou não se identificar, na medida em que há uma pluralidade instável
de pertencimentos e não-pertencimentos sendo acionados quando falam sobre seus colegas,
mas, igualmente, sobre outros profissionais, instituições, “pontos de vista”, “visões” etc. De
fato, creio que se passa, entre nativos, algo percebido por Moacir Palmeira em estudo já
clássico (aliás, também citado por Goldman, op. cit.) sobre “Os comícios e a política das
facções”: “via de regra os autores pensam-nas como quase-grupos”. Nesse sentido, tal como
propõe Goldman sobre uma observação de Jeanne Fravet-Saada (1966 apud Goldman, 2006,
p.184), também aqui é possível dizer “que ‘uma disposição para a segmentação’ é mais
importante que a segmentação propriamente dita”. Portanto ao traçar paralelos com a estrutura
política Nuer, não podemos simplesmente transpô-la para a dinâmica interativa dos sujeitos
da pesquisa. Se adotei tal procedimento foi para ajudar a pensar sobre como nos relacionamos
no plano discursivo e, também, mostrar que dualidades, dicotomias, antagonismos e esquemas
designativos-prescritivos que adotamos subentendem níveis diferenciados de identidade-
alteridade e, por conseguinte, uma instabilidade inerente ao seu manuseio.

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