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ISSN: 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil
Resumo
O presente ensaio tem como objetivo apresentar o ethos que subjaz às duas grandes narrativas
homéricas, no intuito de caracterizar o povo grego tal como descrito por Homero, tanto na
Ilíada quanto na Odisséia, como uma Cultura da Vergonha em oposição a uma Cultura da
Culpa, terminologia cunhada por Ruth Benedict e apropriada por E. R. Dodds em sua
análise do mundo helênico. Pretende-se, ainda, mostrar que mesmo definida essencialmente
como uma cultura da vergonha, a coletividade narrada por Homero, principalmente na
Odisséia, deixa antever as condições de possibilidade para o estabelecimento de uma cultura
da culpa, que irá concretizar-se nos períodos posteriores da Antigüidade helênica.
Unitermos
O ethos homérico
Antes de embarcarmos nas veredas do ethos homérico propriamente
dito, acreditamos ser de extrema relevância fazermos uma delimitação
semântica do termo ethos desde suas origens gregas, no intuito de precisarmos
o uso que dele faremos no decorrer deste texto4.
O vocábulo ethos é uma transliteração dos dois termos gregos ethos
(çèïò – com eta inicial) e ethos (åèïò – com épsilon inicial). Essas duas grafias
de ethos existentes no grego dão origem a duas acepções distintas dessa
palavra. O ethos grafado com eta (ç) inicial designa a morada do homem e
do animal (zóon) em geral. Este sentido de um lugar de estada permanente e
habitual, de um abrigo protetor (morada), é a raiz semântica que origina a
significação do ethos como costume, estilo de vida e ação. Por sua vez, o
ethos com épsilon (å) inicial refere-se ao comportamento que resulta de um
constante repetir-se dos mesmos atos, um comportamento que ocorre
freqüentemente, mas não sempre, tampouco em decorrência de uma
necessidade natural. O ethos expressa, nesse caso, uma constância no agir
contraposta ao impulso do desejo, denotando uma orientação habitual para
agir de certa maneira. Ele se desdobra, assim, como espaço da formação do
hábito, entendido como disposição permanente para agir de acordo com os
imperativos de realização do bem, tornando-se lugar privilegiado de inscrição
da praxis humana.
Isso posto, destacamos que quando aludirmos aqui ao ethos homérico
operaremos uma condensação dos dois sentidos originais dessa palavra: iremos
nos referir tanto aos costumes, estilos de vida e ação da coletividade homérica,
quanto aos atos que lhe são habituais. Com efeito, a transcrição latina de ethos
– mos – já agrupa essas duas acepções.
Feita essa preliminar semântica do termo ethos, passemos à sua análise
no escopo do mundo homérico. Não há, em Homero, uma teoria da ética
propriamente dita, no sentido de que seus poemas não apresentam uma
doutrina sistemática que pretenda, conscientemente, refletir sobre os valores
subjacentes à conduta dos heróis. Contudo, está presente de forma nítida nos
personagens que habitam o mundo de Homero uma organização prática, uma
sociedade dinâmica na qual antevemos um ethos (ainda que não haja reflexão
sistemática sobre o mesmo), isto é, um modo de ser, um espírito que anima
uma coletividade, algo que é característico e predominante nas atitudes de um
povo, e que marca suas realizações.
determinadas por seu destino, ora atravessadas por alguma intervenção externa,
o que torna bem mais fácil para ele admitir um erro e pagar por seu ato, em
suma, lidar com a vergonha.
Percebemos, igualmente, que o herói homérico imputa culpa
(responsabilidade) aos deuses, mas não a interioriza; ele não experimenta um
sentimento de culpa vinculado a uma consciência moral. De fato, a ate não é
posta no caminho do herói como uma punição por atos irrefletidos ou faltas
anteriores. Ela é a própria irreflexão, e como tal, justifica os eventuais fracassos
e deslizes de conduta do herói, não envolvendo, de modo algum, uma idéia de
culpa no sentido moral.
O homem homérico não possuía um conceito unificado de alma ou
personalidade11 (ele não possui interioridade), bem como buscava explicar
seu caráter e sua conduta exclusivamente em termos racionais12. Logo, todos
seus impulsos não racionais lhes eram alheios, e conseqüentemente, atribuídos
a uma origem externa, o que virtualmente impossibilita a interiorização de
uma noção de erro ou falta moral. Ora, sabemos muito bem que sem a
interiorização de uma idéia de falta, isto é, sem a existência de uma consciência
moral internalizada, não há espaço algum para a experiência da culpa.
Não obstante, propomos, em seguida, delinear alguns aspectos da cultura
homérica (uma cultura da vergonha), que permitirão ulteriormente (na Grécia
Arcaica) o estabelecimento de uma cultura da culpa13.
Notas
1. Este trabalho foi realizado no escopo da pesquisa “O sentimento de culpa em Freud:
manifestações clínicas e implicações éticas”, coordenada pelo Prof. Dr. Eduardo Dias Gontijo
(UFMG) e financiada pelo CNPq (bolsa PIBIC).
2. Como exemplo paradigmático dessa concepção, podemos citar o advinho-cego Tirésias, figura
central no mito de Édipo.
3. Destacamos que a datação dos períodos da cultura helênica não é, de modo algum, unânime.
Existem, pois, autores que optam por incluir Homero na Grécia Arcaica, suprimindo a distinção
aqui posta entre período homérico e arcaico. Na esteira de autores como E. R. Dodds (2002,
p. 35) e Marilena Chauí (2000, p. 34), mantemos, não obstante, a referida distinção,
correspondente a uma diferenciação de ethos fundamental à nossa argumentação.
4. Seguiremos aqui a exposição de Pe. Henrique C. de Lima Vaz presente no primeiro capítulo
(Fenomenologia do Ethos) de seu Escritos de Filosofia II: ética e cultura. Remetemos, portanto,
o leitor à fonte original (Vaz, 1988, p. 11-16).
5. É válido ressaltarmos que não se trata, para Homero e para os gregos em geral, de uma
virtude vinculada ao austero cumprimento de deveres, conotação dada ao termo pelo
cristianismo; mas de algo relacionado à possibilidade do exercício da eudaimonia, ou em
outras palavras, da vida plenamente realizada.
Referências Bibliográficas
BENEDICT, Ruth. The Chrysanthemum and the sword. Cambridge: Riverside Press, 1968.
HOLANDA, Aurélio Buarque. Novo Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
LLEDÓ, Emilio. El mundo Homérico. In: CAMPS, Victoria. Historia de la Ética: de los gregos al
renacimiento. Barcelona: Editorial Crítica, 1988. vol. 1.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga: das origens a Sócrates. São Paulo: Loyola, 1999.
vol. 1.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988.
VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
The Homeric Ethos, the Shame Culture and the Guilt Culture
Abstract
The present essay intends to bring out the ethos that lies beneath the two great Homeric
narratives, in order to characterize the Greek people, as described in the Iliad and in the
Odyssey, as a Shame Culture in opposition to the Guilt Culture, terminology coined by Ruth
Benedict and adopted by E. R. Dodds in his analysis of the Hellenic world. It also aims to
show that, though defined essentially as a shame culture, the collectivity referred to by Homer,
mainly in the Odyssey, allows to foresee the conditions of possibility for the establishment of
a guilt culture, that will come to existence in ulterior periods of Greek antiquity.
Keywords
Ariana Lucero
Aluna de graduação (Universidade Federal de Minas Gerais); Bolsista de Iniciação
Científica (CNPq).
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recebido em 05/12/06
versão revisada recebida em 05/04/07
aprovado em 07/04/07