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Imigração: Aportes sobre a história de bastidores.

Portugueses e espanhóis como estudo de


caso (Rio de Janeiro, 1890-1930)1

Devemos compreender que sempre persistiram


atitudes populares em relação ao crime, chegando
por vezes a constituir um código não escrito
totalmente diferente das leis do país. Certos
crimes eram condenados por ambos os
códigos /.../. Mas outros crimes eram ativamente
perdoados por comunidades inteiras.
(THOMPSON, 1987, v. I, p. 62)

Nascido em Valença, Viana do Castelo, o português Luís A. da S. Guimarães

chegou ao Brasil no ano de 1833, quando tinha 23 anos, empregando-se, como caixeiro,

em uma loja da cidade. Em 1844, onze anos depois de sua chegada, conseguiu

transformar projeto em realidade, tornando-se sócio da casa de fazendas onde

trabalhava. Sete anos mais tarde (1851), conseguiu abrir seu próprio negócio: um

armazém de fazendas por atacado, como indica seu registro no Tribunal do Comércio do

Rio de Janeiro.2 Sua trajetória de sucessos possibilitou-lhe receber honrarias nos dois

lados do Atlântico, tornando-se Cavaleiro da Ordem de Cristo no Brasil e Comendador

da Ordem de Cristo em Portugal (CYPRIANO, 2010, p.136).3


1
O artigo é produto de pesquisa inédita baseada nos processos de expulsão, que propôs uma nova
possibilidade de discussão sobre os bastidores da imigração, contemplando estrangeiros que, através de
atos e palavras, colocaram-se em oposição à ordem estabelecida. Os resultados da referida pesquisa
foram apresentados como Tese de Doutorado na USP e, posteriormente, publicados em dois livros ( Os
estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio (1992) e Os Indesejáveis. Desclassificados da
Modernidade. Protesto, crime e expulsão (1996). O primeiro livro recebeu premiação do Arquivo
Nacional e o segundo tornou-se referência temática e metodológica para inúmeras dissertações, teses e
artigos posteriores, sendo citado por autores não só do Rio e São Paulo como, também, por trabalhos
desenvolvidos em outros estados da Federação e outros países. Vd. por exemplo, Matos (......), Pascal
(...), Sarmiento (...). Deve ser mencionado que a primeira menção à documentação relativa aos processos
de expulsão foi feita por Maram (....), embora este autor não a tivesse utilizado como fonte de pesquisa,
o que o levou a concluir que os anarquistas haviam sido expulsos do país com outras tipificações de
crime, sem atentar para o fato de que houve, também, intensa repressão à vadiagem, à mendicância, aos
crimes contra a propriedade e ao caftismo, relacionado ao tráfico internacional de brancas, todos estes
contemplados nas leis que regulamentaram a expulsão.
2
Os Tribunais de Comércio foram estabelecidos com a entrada em vigor do Código Comercial, no ano
de 1850.
3
A de Trajetória de Luís Antonio da Silva Guimarães foi traçada por Cypriano, a partir do cruzamento
das seguintes fontes: BRASIL. Arquivo Nacional. Série Indústria e Comércio – Comércio- Junta e
Tribunal. IC357.AN; BRASIL. Arquivo Nacional. Códice 381, v.4, fl.122v/códice 381, v. 16, fl. 75.
Apresentação de passaportes de estrangeiros na Polícia; RIO DE JANEIRO. Almanaque
Administrativo, Comercial e Industrial do Rio de Janeiro (Almanaque Laemmert), ano de 1855, p. 327
e. 475. O trabalho foi defendido, como dissertação de mestrado na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), sob a orientação da autora deste artigo.
José S. Aguirre era galego de Verin e desembarcou no Rio de Janeiro em 1891.

Era casado com uma conterrânea, analfabeta como ele, de quem já estava separado no

momento em que foi processado com vistas à sua expulsão. Nesse momento, o endereço

por ele fornecido às autoridades policiais era indicativo de sua precariedade social:

Caverna das Oliveiras, nº 24. Ele havia chegado ao Brasil com a idade de 25 anos e,

após 36 anos de permanência no país, terminou expulso, quando corria o ano de 1927,

sob a acusação de ser conhecido ladrão e vigarista. Tinha, então, 61 anos e se mantinha

analfabeto como o era no momento da chegada.4

As duas trajetórias acima destacadas são casos exemplares de processos que

afetaram estrangeiros pobres nos bastidores da cidade do Rio de Janeiro. No amplo

espaço de possibilidades existente entre os extremos que estas narrativas ilustram,

colocaram-se inúmeras outras histórias de vida, transcorridas em um cotidiano urbano

marcado por tensões e dificuldades, que afetavam diretamente o imigrante fixado na

cidade-capital. Em grande parte, essas histórias caracterizaram-se como dramas urbanos

pontilhados por doenças e acidentes de trabalho, que acarretavam, para muitos daqueles

que não tinham redes de apoio, a inevitabilidade da mendicância ou, em alguns casos e

em uma outra perspectiva, trajetórias marcadas pelo protesto violento nas ruas.

Bem sabemos que os sucessos migratórios ganharam visibilidade na história

vivida e na história narrada, alimentando continuamente a mitologia da imigração. Os

desalentos, os fracassos e o cotidiano da pobreza, entretanto, tenderam a ser

desprezados, relegando seus protagonistas ao silêncio que pesa sobre aqueles que não

souberam ou não puderam transformar sonhos e desejos em realidade, ou, ainda,

aqueles que abraçaram a contravenção e o crime como alternativa.5


4
BRASIL. Arquivo Nacional. Série Poder Judiciário (SPJ), módulo 101 (processos de expulsão),
pacotilha IJJ7165, 1927.
5
O livro Os Indesejáveis foi considerado, por alguns críticos, como marca de mudança nos rumos para
se pensar a imigração na cidade do Rio de Janeiro. Dentre eles, Ênio da Silveira, que afirmou que o
livro poderia vir a se transformar em um clássico, como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire (Vd.
MENEZES, 1996).
Procurando trilhar os caminhos indicados por Thompson, ao instar os

historiadores a buscar, nos processos criminais, as vozes silenciadas das classes

populares (1987), tornamos os processos de expulsão, instituídos entre 1907 e 1930,

como objeto de reflexão sobre os caminhos e descaminhos percorridos por imigrantes

pobres que se tornaram alvo das políticas de imposição da ordem na capital brasileira. 6

Nesses processos, fragmentos da história de vida de centenas de imigrantes indicam,

que muitos daqueles que, um dia, haviam optado por partir em busca de um novo

futuro, não conseguiram realizar seus projetos. A partir desses, é possível perceber que

não só alegrias e sucessos compuseram a história da imigração, mas, também, tristezas,

desalentos, fracassos e revolta, compondo uma história das sensibilidades ainda por ser

construída.

Natural de Amarante, distrito do Porto, José dos Santos era analfabeto e tinha

chegado ao Brasil com 10 anos de idade. O que movera sua aventura transatlântica fora

a possibilidade de se empregar no comércio do Rio de Janeiro, com o fim de construir

um futuro melhor. Com 26 anos, porém, foi expulso do país acusado de ser um “ladrão

incorrigível”, partindo a bordo do vapor Comandante Cantuária com destino a Lisboa.

Se este, ao chegar a Lisboa, seguiu viagem em direção do Porto, visando reencontrar

seus familiares, ou, ao contrário, continuou na marginalidade na capital portuguesa, os

documentos não permitem saber. O que deve ser destacado é que José Dops Santos não

podia ser caracterizado como um indivíduo já afeito ao crime no momento em que

chegou ao país com a idade de 10 anos. Circunstâncias adversas ou a falta da orientação

6
A maioria dos processos de expulsão que compõem o módulo 101 do Arquivo Nacional, referente aos
processos de expulsão, está composta por processos movidos contra indivíduos fixados na cidade do Rio
de Janeiro. Deve ser destacado, entretanto, que muitos foram os indivíduos expulsos sem processo,
principalmente anarquistas, conforme foi analisado no já referido livro Os indesejáveis (1996), com base
em documentação inédita encontrada pela autora no Arquivo Histórico do Itamarati (Rio de Janeiro).
Sobre o tráfico de mulheres, o trabalho de Rago (1991), que contempla São Paulo, serviu de referência
para trabalho da autora, já mencionado, sobre o Rio de Janeiro (MENEZES, 1992).
familiar na terra de acolhida abrem-se, assim, como possibilidades explicativas de sua

entrada no mundo do crime.7

Nos bastidores de um processo de deslocamentos que possibilitara o

enriquecimento de comerciantes como Luís Antonio da Silva Guimarães - já citado

-movimentavam-se, portanto, homens e mulheres que, tendo emigrado em situação de

pobreza, tenderam a permanecer pobres – e, por vezes, miseráveis - ao longo de suas

vidas.

Muitos terminaram seus dias sem nenhum registro de sua trajetória, ocultos no

anonimato dos trabalhadores mergulhados no silêncio de suas batalhas diárias. Alguns,

sentindo-se fracassados, tenderam a cortar laços com a terra natal, como forma de

silenciar sobre sua real condição em terra estrangeira. Outros mantiveram os contatos,

mas tenderam a fantasiar sobre suas vidas. Alguns buscaram tomar nas mãos a

responsabilidade pela mudança de suas condições de vida, tornando-se alvos

privilegiados da repressão policial. Outros, enfim, acabaram por cair nas malhas da

criminalidade ou da contravenção, considerada como “ante-sala do crime”. Através de

dois grupos distintos: anarquistas e comunistas por um lado; ladrões, gatunos,

vigaristas, falsificadores, vadios, mendigos, vendedores de tóxicos ou de jogos de azar e

cafetões, por outro, é possível identificar algumas das lógicas cruéis que tenderam a

afetar o imigrante pobre em terras brasileiras, especialmente na cidade-capital, bem

como as formas como determinados crimes internacionais, como o tráfico de mulheres,

compuseram os bastidores dos deslocamentos internacionais.8

A discussão das teorias existentes sobre o crime na era das migrações de massa

não se constitui em objetivo desse artigo, nem, tampouco, o ideário ou as práticas

relacionadas com algumas correntes anarquistas. Não se constitui, também, em objetivo,


7
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7166, 1928.
8
Sobre o tráfico de mulheres, o trabalho de RAGO (1991), que contempla São Paulo, serviu de
referência para obra da autora sobre o “comércio do prazer” no Rio de Janeiro (MENEZES, 1992).
analisar as formas pelas quais a subversão e o crime foram associados, pelas autoridades

brasileiras, aos processos migratórios. Algumas questões, entretanto, merecem ser

contempladas, por serem essenciais para uma melhor compreensão dos temas

abordados. Uma destas questões é a tese de que os males sofridos pela sociedade

brasileira eram frutos das “más correntes migratórias” que haviam aportado no país,

com destaque para portugueses, espanhóis e italianos, as três nacionalidades de maior

presença em terras brasileiras.

Segundo Elysio de Carvalho9- Diretor do Serviço de Identificação da Polícia do

Distrito Federal, Professor da Escola de Polícia e colaborador da Biblioteca do Boletim

Policial -,10 a “criminalidade carioca” era “gravíssima”, observando-se, no Rio de

Janeiro, a ocorrência de ‘todas as formas de delinquência”:

Nestes seis últimos anos, de 1907a 1913, foram praticados no


Rio 17.702 crimes, tendo por autores, provados e conhecidos
18.359 indivíduos. Ora, enquanto se acometeramno período
mencionado 3.186 delitos contra a propriedade, verificaram-
se 11.550 contra a pessoa, o que é deveras de aterrorizar os
mais destemidos /.../ Aqui observa-se a inversão da lei que
preside o desenvolvimento da criminalidade nos países
de civilização superior, a qual, segundo ela, se transforma de
violenta em fraudulenta e, sendo assim, não sei como
conciliar este fato com a afirmação dos cronistas elegantes
de que o Rio se civiliza (CARVALHO, 1914, p. 14).

Ao colocar em dúvida o processo civilizatório vivido pelo Rio de Janeiro, o

autor justificava a ocorrência dos “desvios” existentes, através da tese da “degradação”

social, resultado, segundo ele, das misturas étnicas que afetavam a população do país.

9
Jornalista, poeta, historiador, técnico de identificação e professor, Elysio de Carvalho foi, durante
algum tempo de sua vida, anarquista de destaque, tendo participado da criação da Universidade Popular
em 1904. Renegando seu passado anarquista, transformou-se em um dos representantes do pensamento
conservador no Brasil. Arauto da primazia da ordem sobre o progresso, seguidor das teses lombrosianas
em suas análises sobre o crime, foi, nos últimos tempos de vida, nacionalistas de destaque, mais uma
vez antenado com as correntes de pensamento que corriam o mundo.
10
A Biblioteca do Boletim Policial constituiu-se por edições publicadas entre 1912 e 1915, perfazendo
um total de 32 fascículos, alguns dos quais editados em língua francesa. Elysio de Carvalho foi um de
seus principais colaboradores, sendo autor de 13 artigos, publicados nos números II, III, IV, VII, VIII,
XII, XIV, XVII, XXVI, XXVII, XXVIII, XXIX e XXXII.
Como explicação para a existência dessa situação, o autor pontuava as marcas

“degradantes” da colonização, da escravidão e da imigração:

Ao nosso orgulho nativo, ao nossosensualismo mórbido /.../ e


a essa vadiagem de fraque insolente e debochada /.../, e
mais a situação política do país, a densidade da população, a
má qualidade das correntes imigratórias, provenientes
de países como a Itália, Espanha e Portugal, que ocupam
na Geografia geral dos homicídios os três primeiros
lugares, ao alcoolismo e, finalmente, à fraqueza
darepressão e à insuficiência da polícia devemos 90% do
sangue derramado cada ano no Rio de Janeiro.
(CARVALHO, 1914, p. 15 - Grifos nossos)

Diferentemente do que era colocado pelo autor, as estatísticas das Casas de

Detenção e de Correção indicavam a predominância de “nacionais” (brasileiros) no

tocante aos crimes contra a pessoa, cabendo aos estrangeiros o protagonismo nos crimes

contra a propriedade e no tráfico de mulheres.

A tese da propensão de determinadas nacionalidades para determinados crimes

tinha ampla circulação à época, constituindo-se em campo privilegiado de reflexão para

criminalistas renomados como Sighele e Ferri, discípulos de Lombroso. No caso dos

criminalistas brasileiros, estes buscavam adaptar as teorias circulantes à realidade que

analisavam, baseando-se em estatísticas que pareciam comprovar as enunciações

teóricas. O caráter “atávico” do crime, proposto por Lombroso, encontrou, assim,

inúmeras possibilidades de aplicação, constituindo-se em corrente marginal àquela que

contemplava a questão da pobreza na análise do crime, tão bem defendida pelo jurista

Evaristo de Moraes (1921), responsável por vários habeas corpus impetrados em favor

de estrangeiros processados.11

No caso específico dos anarquistas, a tese consagrada era a de que eles eram

“aves de arribação”: homens sem raízes que se colocavam como “mal” a ser extirpado.

11
Estamos abordando um período no qual os trabalhadores lutavam por redução da jornada de trabalho,
auxílio doença e melhores salários. As leis trabalhistas, que garantiram oito horas de trabalho férias
remuneradas e proteção contra desemprego e doenças só ocorreu a partir de 1930.
Em síntese, imigrantes “indesejáveis”, que “uma onda trazia e a outra levava”, ainda

que a explicação da expansão do anarquismo como consequência direta do

deslocamento de indivíduos “perigosos” não encontre comprovação empírica nos

processos de expulsão, que indicam que muitos dos anarquistas expulsos eram

indivíduos que haviam entrado no país quando eram muito jovens, alguns deles com

idades inferiores aos 10 anos.

Analisar os processos de expulsão instituídos a partir de 1907 12 abre, portanto, a

possibilidade de adentrar nos bastidores da imigração de massa dirigida para terras

brasileiras, tornando-se possível travar contato com atores anônimos do drama urbano;

com discursos e práticas dirigidos contra o estrangeiro, principalmente, contra o

estrangeiro pobre; com os embates ideológicos que agitavam a época; com a expansão

das chamadas “doenças” das grandes cidades; com os problemas inerentes ao mercado

de trabalho; com os desvios do sistema presidiário; com a tensão entre defesa da lei e

defesa da ordem; com a situação de abandono vivida por jovens e idosos; com o

discurso higienista que fundamentava o combate à mendicidade; com a consagração do

trabalho enquanto valor social, que justificava a repressão à vadiagem. Enfim, com um

cotidiano de enfrentamentos entre defensores da ordem e “desordeiros”, entendidos em

um sentido amplo que contemplava todo aquele que se voltasse contra a ordem

estabelecida, quer por palavras quer por ações. Ademais, permite afastar a névoa que

envolve as histórias de insucessos e fracassos que afetaram centenas de imigrantes que,

um dia, haviam atravessado o oceano em busca de uma vida melhor.

12
Os processos foram estabelecidos como forma de compassar o Brasil com os ditames do Direito
Internacional, que advogava que nenhum estrangeiro podia ser expulso sem processo. A adoção desse
dispositivo, porém, não impediu que expulsões sem processo continuassem a ser realizadas, atingindo,
principalmente, lideranças anarquistas, em virtude dos dispositivos constitucionais que garantiam
igualdade de direitos entre brasileiros e estrangeiros. Dentre eles, a liberdade de expressão. O ano de
1907 marca a entrada em vigor do decreto nº 1641 de 7 de janeiro, que regulamentava a entrada e
expulsão de estrangeiros.
A partir de indícios de trajetórias descritas por imigrantes sujeitos à repressão, é

possível estabelecer um exercício dialético entre impulsos individuais e

condicionamentos coletivos, de forma a analisar as duras condições de trabalho e vida

oferecidas ao imigrante pobre e sem qualificação na cidade do Rio de Janeiro, sujeito à

aceitação de qualquer salário para sobreviver; à revolta que, por vezes, explodia em

violência e às malhas tecidas por formas ilícitas de viver.

Deve ser observado, entretanto, que pobreza não era e não é sinônimo de crime.

Razões cuja explicação foge ao campo da História explicavam porque uns deixavam-se

seduzir pelo crime enquanto outros permaneciam apostando em caminhos lícitos para

sobreviver, deslocando-se de emprego para emprego. O que não pode ser esquecido é o

fato de que muitos indivíduos processados haviam migrado muito jovens, com destaque

para aqueles que migravam sós, com o objetivo de se tornarem caixeiros na cidade,

deixando atrás de si suas referências familiares e de mundo. Um deles foi Amadeu J.

Bastos.

Apelidado Carioquinha ou Manca Mula, Amadeu era natural de Viseu e chegou

ao Brasil com a idade de 11 anos, empregando-se no comércio da cidade. Era solteiro e

morador na zona portuária do Rio de Janeiro. Quatorze anos depois de sua chegada, foi

processado, terminando por ser expulso no ano de 1928, quando tinha 25 anos, acusado

de ser “gatuno, especialista na arte de furtar carteiras.13

O que deve ser destacado em seu processo é o fato dele ter sido preso, pela

primeira vez, quando tinha apenas 13 anos, seguindo-se outras 35 detenções. A

13
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotinha IJJ 7 127, 1928. Observe-se que os apelidos,
regra geral, indicavam características físicas, defeitos físicos ou marcas de doenças como a varíola.
Alberto Fernandes - se é que este era seu nome verdadeiro -, processado e expulso em 1907, com 27
anos, por vagabundagem e gatunagem, por exemplo, era conhecido como “Bexiga”, em referência as
marcas das pústulas deixadas por seu corpo. Natural de Lugo (Galícia), ele era funileiro, solteiro,
analfabeto e não tinha residência, vagando pelas ruas do Rio de Janeiro. Cf. BRASIL. Arquivo
Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ 7131, 1907. Havia, também, o “Bexiga Novo”, Joaquim S.
Guimarães, português do Porto, solteiro de 25 anos, com 19 entradas na polícia como ladrão, até ser
expulso no ano de 1907. BRASIL. Arquivo nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7158.
circulação entre os cárceres e as ruas, que caracterizou a vida de muitos jovens como

ele, remete, pelo menos, a duas possibilidades explicativas. A primeira, o abandono que

afetava muitos jovens, separados da família e libertos da orientação necessária ao longo

de sua passagem à idade adulta. A segunda, o fato da capital brasileira não contar com

mecanismos efetivos de recuperação, ainda que, em 1902, uma colônia correcional

(Dois Rios) tivesse sido criada com o objetivo da recuperação da vadiagem pelo

trabalho. Uma ala especial destinava-se, inclusive, aos menores infratores.

Os apelidos pelos quais Amadeu J. Bastosera conhecido eram,

tambémsignificativos. O primeiro deles,“Carioquinha”,remetia diretamente ao fato do

jovem ter crescido na cidade, com ela sendo identificado. 14 O segundo, “Manca Mula”,

indicava que o mesmo tinha defeito físico - mancava, o que o impossibilitava de

executar alguns trabalhos, principalmente os mais pesados, que afetavam os indivíduos

menos qualificados.

Os aportes analíticos que estruturam esse artigo têm por base uma amostra

formada por 252 processos movidos contra portugueses (171) 15 e espanhóis (81)

“indesejáveis”,selecionada no conjunto dos processos de expulsão movidos aos

estrangeiros entre os anos de 1907 (primeira lei que regulamentou a questão) e 1930

(fim da Primeira República), a partir de um critério de seleção que contemplou o

descarte dos processos sucintos ou pedidos de informações. Com base nessa amostra,

serão discutidas quatro possibilidades principais para pensar a questão dos estrangeiros

que se movimentavam nos bastidores da imigração na cidade do Rio de Janeiro,

considerada a imigração para além do simples ato de entrada no país. Em última

instância, essas possibilidades contemplam o imigrante pobre qualificado pelas

14
Carioca é designação que caracteriza o natural da cidade do Rio de Janeiro, devendo ser observado,
também, que o uso de diminutivos faz parte da cultura local.
15
Sobre imigração portuguesa no Brasil, ver LOBO, 2001; MARTINS e SOUSA, 2006 e 2007; MATOS,
SOUSA e HECKER, 2008; SOUZA, MARTINS e MATOS, 2009; SARGES, SOUSA, MATOS,
VIEIRA JUNIOR e CANCELA, 2010.
autoridades constituídas como indivíduos “nocivos” à sociedade e/ou “perigosos” aos

“interesses da República; imersos nas tramas dos mundos do trabalho ou do crime.

Gráfico 1 - Distribuição da amostra por qualificação de delito

Anarquistas/comunistas
Roubo/furto
Vadiagem/mendicância
Lenocínio/caftismo
Outros

Considerando-se o movimento descrito no tempo pelos processos da mostra,

observamos a existência de picos nos momentos de entrada em vigor de determinadas

leis (1907, 1913, 1921, 1926);da radicalização do protesto anarquista nas ruas (1919-

1921);do aumento da repressão ao caftismo, por conta das pressões internacionais

(1913, 1927).

Gráfico 2 - Distribuição da amostra por qualificação do delito

60

50
Outros
40
Vadiagem/mendicância
30 Lenocínio
Roubo/furto
20 Anarquismo/comunismo

10

0
07 09 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29
1 9 1 9 19 1 9 1 9 19 19 1 9 19 1 9 1 9 19
Excetuando-se o crime de lenocínio, que está subdimensionado na amostra, por

conta da pequena participação de portugueses e espanhóis no tráfico internacional, o

movimento descrito no tempo acompanha as tendências gerais do conjunto formado

pelos processos, tendo em vista que a participação portuguesa é decisiva em todas as

outras manifestações.

Anarquistas: “aves de arribação”?

Álvaro D. Cerdeira, natural do concelho do Castelo, distrito de Viseu, chegou ao

Brasil com a idade de 9 anos, na virada do oitocentos para o novecentos, em 1900. Foi

processado como comunista - em realidade, era anarquista comunista - no ano de 1920,

quando tinha 29 anos. Era tamanqueiro, alfabetizado, solteiro e morava em um dos

subúrbios da capital brasileira (bairro de Cascadura). O motivo de sua prisão foi

adistribuição de panfletos contra o filme “Lua Nova”, exibido nos circuitos do Rio de

Janeiro, no ano de 1919, com versões apócrifas sobre a revolução de 1917 na Rússia.16

Seu companheiro de militância e desventuras chegou com 14 anos, acusado de

ser o responsável pela confecção dos panfletos em questão. Como demonstra seu auto

de identificação, Adolfo Alonso era natural de Crespos, província de Ourense (Galícia).

Alfaiate por profissão, estava casado no momento em que respondeu ao processo e tinha

20 anos. Com seu retorno à Espanha, a esposa permaneceu no Brasil, tendo em vista que

a expulsão era um ato que só atingia o próprio indivíduo. Faziam 6 anos que A. A.

residia na cidade, tempo suficiente para que se tivesse tornado militante ou simpatizante

das causas anarquistas, pois, segundo a polícia, teria dado vivas ao anarquismo,

16
O filme era uma versão romanceada de uma notícia publicada pela imprensa sobre a socialização da
mulher na Rússia, que desencadeou uma onda de protestos tanto no momento da circulação da notícia
nos jornais quanto por ocasião da chegada às telas da versão hollywoodiana. SinopsedisponívelemThe
American Film Institut Catalog. Feature Films: University of California Press, 1911-1920 – The New
Moon. Sobre o tema, ver MENEZES, 2002: 47-58.
juntamente com os companheiros que o acompanhavam, tendo assumido ter se tornado

anarquista aos 15 anos de idade, segundo as autoridades que o interrogaram.17

Como demonstram os registros existentes, os dois jovens não podiam ser

considerados “aves de arribação”. Pelo contrário, haviam passado parte de sua infância

e/ou juventude no Brasil, tornando-se anarquistas nos circuitos libertários com os quais

entraram em contato no ambiente de trabalho.

Certamente, havia aqueles que já migravam adeptos de ideologias consideradas

“perigosas”, qualificadas como flores“exóticas” no Brasil, com destaque para o

anarquismo. Foi o caso de Manuel Gonzalez, galego de La Coruña. Cozinheiro e

servente de pedreiro, ele era solteiro e analfabeto e havia entrado no país oito meses

antes de ser preso em flagrante, processado e expulso, como anarquista, em 1921.

Tinha, então, 32 anos e era membro da União da Construção Civil, dominada por

anarquistas radicais, partidários do uso da violência como estratégia de luta.18

O tempo curto entre entrada no país e expulsão, porém, não era a norma,

consideradas as idades com que muitos anarquistas haviam chegado ao Brasil,

indicativas de que suas opções ideológicas haviam sido assumidas no contexto de um

mercado de trabalho de baixos salários e longas jornadas, sem qualquer proteção no

caso de desemprego.19

A presença de indivíduos, há longo tempo residentes no país, também ocorria no

conjunto daqueles que se dedicavam à Propaganda pelo Ato,20 como evidencia o

processo movido contra G. F., espanhol de Barcelona.

17
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ. Módulo 101, Processos de expulsão, pacotilha IJJ 7138, 1919.
18
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ., Módulo 101, pacotilha IJJ7168, 1919.
19
Sobre movimento operário e conflito urbano no Brasil, ver as obras referenciais de CARONE, 1984;
MARAM, 1979; RODRIGUES, 1988; FAUSTO, 1977.
20
A chamada Propaganda pelo Ato ou Propaganda pelo Fato caracterizava-se pelo uso da violência como
estratégia revolucionária, com o uso da dinamite como forma de “acelerar as contradições” no seio do
capitalismo. A corrente teve ampla aecitação dentre padeiros e operários da construção civil. No caso
dos primeiros, eles estiveram associados às explosões de padarias nos idos de 1920. Sobre Propaganda
pelo Ato, ver JOLL, 1977.
Padeiro por profissão, Gregorio Febre tinha 27 anos quando foi expulso do país

em 1920, acusado de ser anarquista perigosoe autor de atentados a dinamite em padarias

do Rio de Janeiro. Já havia sido preso em outras duas ocasiões por motivos políticos,

nos 21 anos em que viveu na cidade, onde chegou com apenas 6 anos de idade.21

Conforme indicam vários processos, a Anarquia foiassumida como caminho

possível de libertação e redenção. Alguns deixaram transparecer, em seus depoimentos,

sua revolta contra as difíceis condições de trabalho, com destaque para os padeiros,

sujeitos a trabalharem de madrugada, em ambientes cujo calor tornava-se insuportável,

em uma cidade quente como o Rio de Janeiro; explicação plausível para o fato dos

mesmos constituírem parte importante dos processados por atos de violência, ao lado de

operários da construção civil e outros profissionais atuantes no comércio da cidade.

A explicitação da revolta transformada em violência encontra-se evidente no

depoimento prestado à polícia pelo português ManuelAntonioPereira, natural de Braga,

que contava 24 anos no momento da expulsão.22

Solteiro e alfabetizado, Manoel Pereira já tinha duas entradas na polícia por

“agitação e anarquia”. Sua última prisão ocorreu em 1924, quando, membro da

Sociedade dos Empregados em Hotéis, Restaurantes e Cafés, protestava contra o

assassinato de um jovem espanhol. Em sua defesa, declarou que não dirigira insulto às

autoridades brasileiras, não assumindo ser subversivo, mas declarando que desejava um

21
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ., Módulo 101, pacotilha IJJ 7152, 1920. Como G. F., outros 7 padeiros
da amostra (6 portugueses e 1 espanhol), mais 5 operários da construção civil (4 portugueses e 1
espanhol), 1 vendedor de cigarros (espanhol) e 1 tamanqueiro (português) foram processados pelos
mesmos motivos. Observe-se, porém, que os processos não esgotam o universo daqueles que estiveram
envolvidos com a Propaganda pelo Ato ou daqueles que foram expulsos por este motivo, pois houve
expulsões totalmente realizadas à margem das leis (acreditamos que a maioria, no tocante aos
anarquistas). Nesse caso, é importante pontuar que a análise dos processos demonstra não ser
verdadeira a afirmação consagrada de que os anarquistas foram processados com outras qualificações,
conforme afirma MARAM, 1979.
22
Observe-se que, diferentemente de São Paulo, onde o movimento anarquista envolve, principalmente,
italianos e espanhóis, na cidade do Rio de Janeiro, considerado o fundo constituído pelos processos de
expulsão, a base da militância esta constituída, principalmente, por portugueses, adeptos do anarquismo
comunismo de Kropotkin, Réclus, Grave e outros.
regime no qual “não houvesse fome, justamente para os que trabalhavam”, enquanto

que outros “viviam na fartura”.23

Vadiagem e mendicância: sintomas dos desajustes sociais

A tendência de responsabilizar o próprio indivíduo – e os processos migratórios -

por determinadas mazelas sociais vedava a percepção das condições que eram

oferecidas ao imigrante em um mercado de trabalho de muitos limites, no qual a oferta

de mão-de-obra tendia a superar a demanda. Por outro lado, determinadas

lógicas,características de um tempo de muitos distanciamentos entre o discurso da

modernidade e os avanços econômicos, dentre as quais se destacava uma imigração

massiva que contemplava a entrada no país de homens solteiros e sós, colaboraram -e

muito - para que indivíduos mais fracos (física ou mentalmente) acabassem lançados às

ruas.

A vadiagem, nesse contexto, era contravenção de amplo alcance, que incluía do

mendigo que vivia da caridade pública ao explorador de mulheres, tendo em vista sua

conceituação como o não exercício de trabalho ou o desenvolvimento de atividades

ilícitas (Código penal, 1890). Dessa forma, alguns teóricos lançaram-se a classificar os

vadios em categorias, propondo a existência de vadios válidos e inválidos. Os primeiros,

os que, por opção, recusavam-se a integrar o mundo do trabalho; os segundos os que

estavam dele excluídos por doenças, incapacidade física ou alienação mental. (vd.

MORAES, 1921). Quanto aos primeiros, advogava-se seu enquadramento nas

penalidades das leis; no segundo, seu recolhimento ao asilo de mendicidade.

A questão da vadiagem e da mendicância, porém, manteve-se como problema

permanente que afrontava a modernidade, mas ela não podia ser explicada como

23
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, processos de expulsão, pacotilha IJJ7168, 1924.
simples fruto da imigração, em virtude da grande quantidade de ex-escravos que não

encontravam colocação no mercado de trabalho.24

Com relação aos jovens estrangeiros que perambulavam pelas ruas, esta era uma

situação que se apresentava como desdobramento do afluxo de jovens, entre os 12 e os

16 anos, que partiam de Portugal ou da Espanha, com destaque para a Galícia, para se

tornarem caixeiros nas cidades litorâneas brasileiras. Desprovidos de recursos e libertos

da vigilância familiar, esses jovens trabalhavam e dormiam no ambiente de trabalho,

sujeitos ao comando de seus patrões, única figura a quem deviam obediência.Perder o

emprego, para eles, significava, quase inevitavelmente, perder casa e comida, razão pela

qual a vagabundagem exercida por jovens estrangeiros tornava-se de difícil solução,

transformando-se em tema recorrente nos escritos sobre a cidade.

Paulo Barreto (João do Rio), por exemplo, ao descrever quem eram os presos no

Rio de Janeiro da Belle Époque, destacava desses jovens no conjunto da população

carcerária:

Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, gatunos


conhecidos, na tropa lamentável dos recisivos, crianças
ingênuas, rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma
enorme quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna
criminosos. Quase todos estão inclusos, ou no artigo 393
(crime de vadiagem) ou no 313 (ofensas físicas). Nessa
enorme galeria, onde uma luz lívida espalha um vago horror,
vejo caixeirinhos portugueses com o lápis atrás da orelha, os
olhos cheios de angústia; italianos vendedores de jornais,
encolhidos, garçons de restaurantes; operários, entre as caras
cínicas dos pivetes reincidentes (BARRETO, 1981, p. 76).

Do conjunto acima descrito, fez parte Manoel Garcia, expulso do Brasil, como

ladrão, no ano de 1907, quando tinha 18 anos incompletos, após acumular prisões desde

os 13 anos. Alfabetizado, ele era espanhol, mas não sabiaprecisar o local de seu
24
O processo gradativo da abolição privilegiou, inicialmente, os filhos de escravos (1971),
posteriormente, os idosos sexagenários (1886). As faixas intermediárias, porém, permaneceram
exercendo o trabalho escravo até a Lei Áurea, de 1888. Esta, sucinta, não previu nenhuma ação para a
inserção social do ex-escravo, libertando, com grande impacto, uma massa de homens e mulheres que
não encontravam colocação em um mercado de trabalho dominado pelo trabalhador europeu,
principalmente na cidade do Rio de Janeiro.
nascimento nem, tampouco, o ano de sua entrada no Brasil. No momento em que foi

expulso, já tinha sete entradas na Casa de Detenção e já estivera na Colônia Correcional

Dois Rios, situada em ilha do litoral do estado do Rio de Janeiro.25

Considerando-se que a Colônia Correcional fora criada a partir de um discurso

que priorizava a recuperação pelo trabalho, podemos concluir que os procedimentos

adotados não resultavam em êxito e isto, possivelmente, pouco tinha a ver com as “más

correntes migratórias”, mas com determinadas lógicas a que ficavam sujeitos aqueles

que migravam. Essa lógica, acabava por afetar os mais jovens, o que se torna

plenamente visível quando analisamos a distribuição por idade dos indivíduos

processados com vistas à expulsão, da qual estão excluídos os anarquistas e caftens.

Como ilustra o gráfico abaixo (Gráfico 2), a maior incidência recaía na faixa

entre os 22 e 35 anos, com predominância de jovens entre os 22 e os 25 anos.

Gráfico 3 - Totais de Processados por Idade


mais de 60 anos
de 56 aos 60 anos
de 51 aos 55 anos
de 46 aos 50 anos
de 41 aos 45 anos
de 36 aos 40 anos
de 31 aos 35 anos
de 26 aos 30 anos
de 22 aos 25 anos
de 18 aos 21 anos
Menos de 18 anos
0 5 10 15 20 25 30 35

Com relação à mendicância, inclusa na conceituação de vadiagem, mas sem ser

seu sinônimo, reportagem publicada pelo jornal Correio da Manhã, no ano de

1917,demonstra como os mendigos faziam parte do cenário urbano, estando parte

significativa deles constituída por estrangeiros.

25
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7146, 1907.
Nós queremos falar agora da legião de mendigos, na maior
parte estrangeiros, que vivem nas nossas praças públicas, nos
pontos de bonde, ou nas vizinhanças de certos
estabelecimentos /.../ exibindo as suas mazelas, por vezes
asquerosas chagas repugnantes que provocam náuseas.
Parece que a polícia deveria obrigar a recolherem-se aos
hospitais esses doentes, ou, pelo menos, a proibir
severamente que eles importunem o público com a exibição
de seu asco.
Parece também que deveriam ser remetidos para seus países
os mendigos estrangeiros /.../ que transformam a nossa capital
em nova corte dos milagres de repugnantes tradições (RIO
DE JANEIRO. Correio da Manhã, 15 ag. 1917).

No conjunto dessesindivíduos figuravam acidentados no trabalho, destacando-se

carregadores. Conforme demonstravam os jornais, vários destes acabavam por ter seus

membros inferiores esmagados pela queda das carroças que conduziam. Existiam,

também, mendigos com idade avançada, que, igualmente, não encontravam colocação

no mercado de trabalho. Alguns deles acabaram expulsos do país,como M. R., expulso

no ano de 1928.

Espanhol de La Coruña, Manoel Real declarou-se padeiro por profissão. Era

solteiro, analfabeto e não possuía residência fixa. Havia chegado ao Rio de Janeiro no

ano de 1890, quando tinha 26 anos, terminando expulso do país com a idade de 64 anos,

qualificado como “vadio costumaz e mendigo incorrigível”.26 Como ele, outros

mendigos estrangeiros terminaram expulsos, apesar de suas idades avançadas.

Acidentados ou idosos, não possuindo relações familiares ou redes de apoio, muitos

viram-se na contingência de viver nas ruas, contando com a caridade pública, incluindo-

se os ébrios, cujo número não pode ser desconsiderado.

Aexpulsão terminou sendo o caminho encontrado pelas autoridades para impedir

que a mendicância expusesse, para além de suas “chagas”, as “chagas” de uma cidade

que reivindicava ser Paris nos trópicos. Quantos conseguiram vencer a travessia,

26
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ. Módulo 101, Processos de expulsão, pacotilha IJJ 7169, 1928.
desembarcando na terra natal e reconstruindo sua vida, impossível saber. Alguns

haviam migrado crianças ou jovens e acabavam por retornar a uma terra com a qual já

não tinham mais afinidades, demonstrando a violência extrema que os atingia.

Imigração: manifestações do crime

As estatísticas existentes no Brasil, principalmente as de entrada nas Casas de

Detenção e Correção, indicam que os crimes contra a propriedade, ao longo da Primeira

República (1889-1930)foram, majoritariamente, cometidos por portugueses, espanhóis e

italianos, enquanto franceses, poloneses, austríacos e russos dominavam o tráfico de

mulherese os brasileiros lideravam os números referentes aos crimes contra a pessoa.

Longe de significar o caráter “atávico” de determinadas etnias e povos,27 as

estatísticas referiam-se a imigrantes sujeitos às lógicas da modernidade tal qual ela

atingia as economias periféricas. Um bom exemplo pode ser dado pela expansão do

lenocínio, em sua forma de caftismo,28com a mulher tornando-se uma mercadoria de

grande demanda, capaz de possibilitar a formação de poderosas redes criminais, aptas a

abastecer um mercado internacionalizado.29

Da mesma forma que houve franceses, poloneses e russos presos porcrime contra

a propriedade, também houve portugueses e espanhóis processados por prática de

lenocínio. Alguns exploravam as próprias esposas; outros, porém, eram criminosos

envolvidos com o tráfico internacional. Dentre estes, destacava-se o espanhol G. T.

Preso e expulso do Brasil em 1929, como caften, GasparTorregiossadizia-se “do

comércio”, declarando que, em 1919, havia deixado sua terra natal com destino a

27
Deve ser lembrado que a criminologia da época baseava-se em dados estatísticos para defender a
vinculação entre determinados crimes e determinados povos, em uma concepção evolucionista do
fenômeno criminal, do qual derivava a tese do atavismo de Lombroso.
28
O caftismo é uma das facetas do lenocínio, caracterizado pelo tráfico internacional de mulheres
destinadas à prostituição. O nome deriva de palavra judaica referente à roupa usada pelos judeus,
majoritários no domínio das rotas internacionais.
29
Sobre o tema, para a Europa, ver, dentre outros, a obra clássica de Louis FIAUX (1896) e CORBIN,
1978. Para o Brasil: RAGO, 1991 e MENEZES, 1996. Especificamente sobre portuguesas, SOARES,
1992.
Montevidéu, para dedicar-se à compra e venda de mercadorias, seguindo, em 1921, para

o Rio de Janeiro, quando tinha a idade de 34 anos. Nascido em Barcelona, Gaspar era

solteiro e alfabetizado. Segundo foi apurado em seuprocesso de expulsão, ele havia sido

preso, em 1916 ou 1917, na Espanha, pelo mesmo crime, quando se fazia passar por

francês.30Observe-se, nesse caso, que a rota Buenos Aires - Montevidéu - Rio de

Janeiro era importante rota do tráfico internacional, posicionada a cidade portenha como

centro de distribuição na América do Sul.31

Considerados os fluxos migratórios direcionados para o Brasil, por outro lado, é

possível afirmar que a presença destacada de portugueses, espanhóis e italianos nas

estatísticas criminais - destaque para os crimes contra a propriedade -acompanhava as

tendências gerais de imigração na cidade, nas quais os portugueses eram

esmagadoramente majoritários, seguidos, à distância, pelas outras duas nacionalidades.

Observe-se que, no caso de portugueses e galegos, identificados no mercado de

trabalho da cidade, era possível que a nacionalidade atribuída nos processos não

correspondesse à verdadeira, havendo, ainda, a possibilidade dos próprios marginais

aproveitarem-se dessa identificação para mudarem não apenas de nome a cada prisão –

como era muito comum -, mas, também de nacionalidade.

Um exemplo da existência dessa identificação entre o português e o galego no

imaginário da cidade tem visibilidade objetiva no processo movido a João F. da Silva ou

João Ferreira. Identificando-se como português das “ilhas”, João tinha 24 anos no

momento da expulsão. Pedreiro por profissão declarada, ele era casado, analfabeto e

conhecido nos meios criminais como “João Galego”.32

30
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7153, 1929.
31
Sobre a importância de Buenos Aires no tráfico internacional, vd. a obra clássica de LONDRES, 1927.
32
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7158, 1907.
Gráfico 4 - População estrangeira no Rio de Janeiro (Censo de 1920)
Portugueses
Italianos
Espanhóis
Turcos
Franceses
Alemães
Russos
Ingleses
Argentinos
Outros

Em alguns casos, é possível dizer que a pequena qualificação para o mercado de

trabalho tornou determinados indivíduospropensos a constituir-se enquanto “sobras do

arranjo social”, conforme palavras do Chefe de Polícia do Distrito Federal, em 1904,

logo após a revolta contra a vacina obrigatória, 33sendode se observar que,na amostra que

constitui a base de referência desse trabalho, 42 indivíduos (33 portugueses e 9

espanhóis) eramanalfabetos, o que constitui 16,66 % do total geral da amostra,

excluídos os anarquistas.Um desses indivíduos era o português Joaquim Silva.

Proveniente da aldeia de Santa Maria, Joaquim Silva declarou ser comprador e

vendedor de peixe. Tinha 50 anos quando foi processado, por lenocínio, no ano de

1927, tendo retornado a Portugal após sete anos de residência no Brasil. Analfabeto, só

sabia assinar o nome.34

Igualmente analfabeto, Antonio Cardoso, conhecido, também, por vários outros

nomes, foi expulso, no ano de 1930, como vadio e ladrão, após 12 anos de residência.

Português de Braga, ele era serralheiro, solteiro e tinha 25 anos no momento da partida.

Havia migrado com a família, no ano de 1918, mas, após a volta desta para Portugal,

permaneceu no Brasil, empregado em uma fábrica de louças do bairro de São Cristovão.

33
Sobre a Revolta da vacina, ver a obra referencial de SEVCENKO, 1985.
34
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7164, 1927.
Desempregado, teve dificuldades para arranjar nova colocação, acabando por ser preso,

pela primeira vez, quando tinha 17 anos. A partir de então, acumulouvárias entradas na

Casa de Detenção, travando contato com ladrões e outros tipos de criminosos. Vivendo

nas ruas, passou a contar com o produto dos roubos que sobreviver. Segundo os

investigadores encarregados de seu caso, tornou-se “especialista em arrombamentos” e

no conhecido “conto do vigário”.35

Pobreza e expulsão

No conjunto da amostra, com pouquíssimas exceções, os indivíduos

processados eram indivíduos pobres, com baixa qualificação eexercendo tarefas pouco

valorizadas em termos salariais.

Caixeiros, peixeiros, funileiros, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, pintores,

jardineiros, copeiros, garçons, cozinheiros, padeiros, ferreiros, motoristas, tintureiros,

marítimos, etc. constituíam a maioria esmagadora dos indivíduos que eram processados

e expulsos. Raros foram aqueles que, proprietários de um pequeno comércio, foram

presos e processados. Regra geral, isto ocorria no caso dos jogos de azar, com destaque

para o jogo do bicho,36 até hoje reprimido e popular no Rio de Janeiro. Através de

habeas corpus,37 estes indivíduos conseguiam escapar da expulsão, servido de exemplo

os processos movidos contra os portugueses Serafim A. de Almeida. eAnibal Serrano.

35
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7132, 1930.
36
O chamado jogo do bicho originou-se da venda de bilhetes e sorteios para custear o Jardim Zoológico,
criado no rio de Janeiro ao final do século XIX. Com o tempo, tornou-se costume adivinhar o “bicho” e
o jogo espalhou-se pela cidade, sendo rotineiro, inclusive, jornais como o Jornal do Brasil, apresentar
indicações “dicas”, escondidas a um primeiro olhar, ao leitor. Apesar da repressão continuada, era o
jogo preferido pelas classes populares e muitos estrangeiros com ele estiveram envolvidos, como
agenciadores ou como jogadores.
37
Observe-se que os habeas corpus, previstos nas leis que regulamentavam a expulsão, pordemandarem
a contratação de advogado, só eram possibilidade aberta a comerciantes contraventores e e indivíduos
envolvidos com o caftismo internacional.
Nascido em Coimbra, Serafim de Almeida era solteiro e tinha 49 anos no

momento em que foi preso e processado. Vivia no Brasil há 19 anos. Acusado de vender

o jogo do bicho em seu estabelecimento, foi preso, mas contratou advogado que

impetrou habeas corpus, que constou de argumentação de que a acusação não procedia

porque 30 milhões de pessoas jogavamno bicho. Acatado o habeas-corpus, S. A. O. foi

posto em liberdade.38

Natural de Lisboa, Anibal Serrano era sapateiro, casado e sabia apenas assinar o

nome. Tinha 39 anos quando foi processado, após cinco entradas na polícia, sob a

mesma acusação de agenciar o jogo do bicho. Como seu conterrâneo, contratou

advogado e livrou-se da expulsão, com a justificativa de que a mesma era ilegal, visto o

acusado ser proprietário de casa comercial, razão pela qual não podia ser considerado

um vadio.39

A amostra analisada, portanto, indica que a expulsão atingiu, basicamente,

estrangeiros pobres, em dois sentidos possíveis. Por um lado, atingiu trabalhadores

envolvidos com o movimento operário e/ou com práticas violentas de contestação à

ordem. Por outro, dirigiu-se a uma gama enorme de infratores, sujeitos a medidas de

disciplinarização e “limpeza” urbanas.Nesse último sentido, a expulsão constituiu-se em

verdadeiro “arrastão” em cujas malhas ficaram retidos estrangeiros “indesejáveis”,

considerados “nocivos” à saúde social, ainda que, para muitos, a entrada no crime não

se tivesse apresentado como opção, mas como contingência.

Referências

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1984.

38
BRASIL. Arquivo Nacional. SPJ, módulo 101, pacotilha IJJ7148, 1930.
39
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