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Francyne França
Universidade Federal do Rio de Janeiro
SENTIDOS NO SILÊNCIO
o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos
Francyne França
RIO DE JANEIRO
MAIO 2016
SENTIDOS NO SILÊNCIO
o vazio em Galáxias, de Haroldo de Campos
Francyne França
RIO DE JANEIRO
MAIO 2016
França, Francyne.
Com uma proposta de abolição dos limites entre poesia e prosa, Haroldo de Campos nos
apresenta cinquenta fragmentos textuais, cada um dos quais compostos por sucessivos im-
pulsos narrativos, cujos desfechos, no entanto, jamais se revelam. Em Galáxias, o texto é
submetido à ação incessante de uma força desagregadora, que enfraquece os nexos lógi-
cos, transformando o fio discursivo em uma trama verbivocovisual. O presente trabalho
dedica-se a investigar a produção de sentido a partir desses vazios discursivos, que fazem o
pêndulo da linguagem oscilar em direção à concretude das palavras. Com uma ostensiva e
aliciadora textura sonora, os efeitos de Galáxias, paradoxalmente, são sentidos no silêncio.
Comovendo o leitor pelo que diz, mas também – e sobretudo – pelo que falha em dizer, o
texto se converte em coisa a ser experimentada, mais do que apenas compreendida. Um con-
vite à participação, o vazio é o espaço pleno de prováveis, instância extralógica, centro ativo
de uma rede de relações inesgotáveis.
RIO DE JANEIRO
MAIO 2016
ABSTRACT
With a proposal to abolish the boundaries between poetry and prose, Haroldo de Campos
presents fifty textual fragments, each of which consists of successive narrative impulses,
whose outcomes, however, are never revealed. In Galáxias, the text is submitted to the
unceasing action of a disruptive force that weakens the logical connections, turning the
discursive line into a verbivocovisual web. This work investigates the production of meaning
out of this discursive emptiness, which makes the pendulum of language swing towards
the concreteness of words. With a rich and seductive sound texture, the effects of Galáxias,
paradoxically, are felt in the silence. Touching the reader for what it says but also – and
especially – by failing to say, the text becomes something to be experienced more than just
understood. An invitation to participate, the void is plenty of probabilities, it is the active
center of a network of infinite relations.
RIO DE JANEIRO
MAIO 2016
À minha amada avó, Elizabeth
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
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CAPÍTULO 1
Diante de Galáxias:
o objeto gráfico de Mira Schendel e o vazio da linguagem
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CAPÍTULO 2
Sentidos no silêncio: o vazio em Galáxias
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CAPÍTULO 3
Uma arquitetura de vazios:
Galáxias na fronteira entre a literatura e as artes plásticas
55
CONCLUSÃO
79
REFERÊNCIAS
83
ANEXOS
87
ÍNDICE DE IMAGENS
94
Introdução
O vazio se insere na arte contemporânea como uma lacuna a ser preenchida pelos
Uma tendência cuja origem remonta aos idos do século XVIII – a partir do revolucio-
nário pensamento de Goya, para quem a arte deveria ser uma experiência centrada no
indivíduo –, essa atração pelo vazio se tornou um denominador comum em boa parte das
produções artísticas do século XX, nas quais a participação do sujeito se coloca, então,
a ser compreendida não mais como um estatuto a priori e fixo de determinados objetos, mas
como uma experiência de sensibilização fundada pela interação do fruidor com a obra, em
uma instância virtual e vertiginosa – a qual denominarei espaço de fruição –, que se sustenta
enquanto dura esse estado de influência mútua. O que significa dizer que o fenômeno esté-
tico não preexiste, mas nasce da síntese, no espaço-tempo, dos fatos objetivos da obra com
por Haroldo de Campos, pela primeira vez, no pequeno artigo “A obra de arte aberta”,
mais fôlego e amplitude, por Umberto Eco, em sua Obra aberta. Mais do que mero acaso,
essa coincidência temática entre os dois estudos independentes reflete a urgência com
que a questão se erguia naquele momento histórico, durante o qual a obra de arte passa a
ser encarada menos como objeto autossuficiente, e mais como “estrutura de uma relação
convidado a se apropriar, realizando “atos de liberdade consciente” (ECO, 1991, p. 41), que o
colocam no “centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis” (POUSSEUR apud op. cit.).
Justamente no vazio, portanto, instaura-se o chamado espaço de fruição, essa dimensão imate-
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rial na qual o fruidor e a obra se encontram, firmando-se como polos de uma mesma e ambi-
Com uma proposta de abolição dos limites entre poesia e prosa, o livro de
temático “o livro como viagem e a viagem como livro”. Cada um desses fragmentos é
composto por sucessivos impulsos discursivos, que, tendo o seu sentido lógico constante-
mente esvaziado, jamais se concluem. Esses vazios de sentido – que operam no texto como
cretude das palavras. Quer dizer, quando se rompe o fio dessas inconclusas narrativas – as
conteúdo para a forma da linguagem, passando a interpelar o leitor não apenas como uma
mensagem a ser decodificada, mas também como uma experiência de natureza sensível
do leitor. Trata-se de produzir efeitos que extrapolam a lógica das ideias bem concatenadas;
de expandir o raio de alcance, convertendo o texto em alguma coisa que pode ser experi-
mentada, mais do que apenas compreendida. Um convite à ação do leitor – à fruição autô-
zibilidade, dentro da qual o sujeito vive a realidade imediata da linguagem. Uma linguagem
que, como que saltando à vista, revela sentidos que florescem não apenas como informação
intelectual, mas sob a forma do fenômeno a que chamados imagem poética. Vem daí, pois,
a formulação de Haroldo, segundo a qual a obra é uma épica que se resolve numa epifânica.
Haroldo, é composto por três ensaios que falam sobre o vazio a partir de perspectivas que,
embora distintas, têm como ponto de convergência o enfoque na relação que se estabe-
lece entre o vazio e a participação do leitor, entendido aí como elemento fundamental para
a plena realização dos sentidos de Galáxias. Diante desse propósito, trilhei um percurso
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atravessado por questões da arte contemporânea, da filosofia e da psicanálise, que foram
a espiral de letras que estampa a capa do livro é o ponto de partida para uma reflexão sobre
o vazio como dimensão inextricável da linguagem. A obra de Mira pretende-se uma ima-
gem da inauguração do sentido. Uma imagem da imagem, portanto, procura capturar não
apenas as marcas da expressão, mas o que em torno dessas marcas se mantém inexprimível:
os sentidos que habitam o vazio da linguagem e cujos efeitos se realizam como uma expe-
riência imediata do sujeito. Conferindo existência visual ao silêncio em torno das palavras, a
obra de Mira diz muito sobre a poesia de modo geral, mas em especial sobre a forma como
Haroldo trata a linguagem em seu livro. Em Galáxias, o provável é ativado justamente pelos
mente relacionado com a ruptura dos gêneros. A análise de trechos de alguns fragmentos
do livro nos permite ver que a dissolução da fronteira entre poesia e prosa se produz pelo
lógico, o fio narrativo se transforma em uma trama verbivocovisual, cujos efeitos resultam
dentro da variável temporal. Ficará claro, portanto, que o fenômeno da poesia, para além
ratura e as artes plásticas”, volta-se para o corpo do livro, assinalando, no contraste entre
livro, a relação do texto com o branco da página – entendido aqui como o horizonte silen-
cioso do indizível – é reforçada por certas escolhas editoriais do autor, especialmente pela
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livro não é somente o suporte para os textos, mas uma parte fundamental do projeto. Con-
editorial e plástica, cujos sentidos se firmam ou se reafirmam por sua própria constituição
física, podemos dizer que o vazio – elemento responsável pela ruptura de gêneros no nível
do texto, e que, no nível gráfico, materializa-se pelo branco da página – coloca Galáxias
O vazio funciona como um elemento que estrutura o texto e que se impõe como
valor conceitual a todos os aspectos do projeto do livro. Conforme foi concebido por
Haroldo, Galáxias é uma obra que se abre para a entrada do leitor, o qual navega pelas lacu-
nas do texto, traçando o seu próprio percurso. Mais do que abolir a fronteira entre a poesia
e a prosa, Galáxias é uma obra de ruptura de limites. O único domínio no qual está inscrito
o livro de Haroldo é o da poesia, um domínio que não se limita a gênero, nem mesmo ao
imagens poéticas, o texto galáctico não persegue uma forma, mas assume uma espacialidade
da qual não pode ser dissociado. Objeto integral, o livro de Haroldo, mais que apenas a
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capítulo 1
Diante de Galáxias:
o objeto gráfico de Mira Schendel e o vazio da linguagem
Haroldo de Campos
Publicado no catálogo da retrospectiva
de Mira Schendel no MAM, em 1966
centro da página, a partir de onde se alastra pelo papel branco, como uma nuvem de poeira
tipográfica. Ou, pelo contrário, será essa mancha escura um buraco negro pelo qual, diante
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dos meus olhos, a nebulosa elíptica está sendo devorada? Encaro o objeto gráfico de Mira
Schendel1 estampado na capa de Galáxias, sem saber ao certo onde se funda e como evolui
Figura 1: detalhe de Sem título (1972), da série Objetos Gráficos, Mira Schendel.
tiva isométrica, cuja posição pode ser percebida de duas maneiras distintas e mutuamente
1 Artista plástica nascida na Suíça e radicada no Brasil, onde, entre os anos de 1950 e 1988, produziu toda
a sua obra.
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mado por dois quadrados vazados e pelas quatro linhas que ligam os vértices do primeiro
quadrado aos do segundo – parece estar voltada para o canto inferior esquerdo ou para o
de uma propriedade que identifico nas duas imagens: a capacidade de fundir duas reali-
fenômeno chamado percepção multiestável, sob efeito do qual o observador interpreta uma
única figura como duas formas diferentes e alternadas. A espiral não induz o mesmo fenô-
meno, nem provoca ou pretende provocar algum tipo de ilusão ótica: sua ambiguidade, de
natureza virtual e não visual, manifesta-se na absoluta incerteza a respeito de uma questão
Despois de ler um pouco sobre o trabalho de Mira Schendel, descobri que origi-
nalmente a “galáxia gráfica”, que faz parte de uma série de trabalhos da artista intitulada
Objetos Gráficos, não era exposta na parede, como um quadro. A figura – obtida com a
aplicação de tipos transferíveis2 e que fora prensada entre lâminas de acrílico transparente
– ficava suspensa por fios de náilon, que a fixavam no teto do espaço expositivo, em um
2 Também chamada de press type ou dry transfer, a técnica de tipos transferíveis, popular nos anos 1970
e 1980, é um método de impressão pelo qual os caracteres são transferidos de um filme plástico transpa
rente para a superfície desejada, aplicando-se sobre eles uma pressão de raspagem.
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ponto afastado da parede. A composição, portanto, podia ser vista de todos os ângulos,
oferecendo-se a uma “leitura circular, na qual o texto seria o centro imóvel, e o leitor o
obra, descontruindo as noções de frente e trás como coisas distintas, para instituir uma
realidade integral. Expostos como grandes pendentes, os Objetos Gráficos permitem que
a visão do observador percorra cada milímetro de sua superfície, mais ou menos como
A partir dessa descoberta, o Objeto gráfico – que até então eu compreendera como uma
peito do movimento me parece ainda mais aguda. Dentro de uma galeria de arte ima-
ginária, onde, em minha mente, projeta-se a composição com suas lâminas de acrílico,
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vislumbro múltiplas possibilidades. Posicionada em um dos lados da espiral, imagino que
em minha direção. Ou que as letras são por ele absorvidas, como que para o epicentro de
considero que a espiral poderia, também, estar se expandindo de mim para o lado de lá do
Objeto, o lado oposto àquele em que me encontro. Ou, ainda, convergindo para mim. Por
fim, suponho que uma imensa massa esférica esteja sendo tragada pelo ponto escuro, ou
sendo por ele expelida em todas as direções. Como, afinal, determinar o sentido de uma
seu estado de fato. O objeto desta reflexão, no entanto, é um movimento que se realiza
como virtualidade, de modo que seus desdobramentos podem apenas ser imaginados.
Poderíamos, então, supor que a espiral de letras – como o “anjo de quatro asas que, ao
todas as direções?
capa de Galáxias, indo além da associação imediata entre a figura e o título do livro. A
ideia era relacionar a espiral de Mira Schendel com o texto de Haroldo de Campos, a
partir de um traço que me pareceu comum a ambos: a tensão como elemento estruturante.
Em linhas gerais, a tensão em Galáxias está relacionada com o trânsito incessante entre
comparação não seria mais do que um trampolim textual, o impulso que me lançaria ao
3 O Alfabeto Enfurecido é o nome da exposição que reuniu as obras de León Ferrari e Mira Schendel, sob
curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas. Iniciada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA),
a exposição passou pelo Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia (MNCARS), em Madri, antes de
encerrar o seu percurso em 2010, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre.
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assunto em torno do qual este meu estudo gira. Contudo, ao investigar um pouco melhor
o contexto sob o qual o Objeto Gráfico foi produzido, percebi, na obra de Mira, uma série
Creio que uma questão fundamental para a compreensão da “galáxia gráfica” diz
respeito ao emprego das letras na construção dessa imagem. Da forma como foram organi-
zados, os caracteres podem ser lidos, mas não formam um texto legível. O que teria, então,
motivado a artista a fazer da linguagem a sua matéria? Para tentar responder a essa pergunta,
eu remonto a um conjunto de trabalhos de Mira, anterior à série de que a espiral faz parte.
Antes de desenvolver os Objetos Gráficos, Mira Schendel já adotara a relação entre a imagem
e a palavra como preocupação essencial em seu fazer artístico. Entre 1964 e 1967, a artista
produziu uma série intitulada Monotipias, com aproximadamente duas mil peças, que con-
com tinta a óleo preta sobre o finíssimo e translúcido papel de arroz japonês.
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A série é resultado de uma tentativa – frustrada, segundo a artista – de surpreen-
vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabili-
dade e relativa eternidade” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58). Tratava-se, portanto,
obra a tentativa de imortalizar o fugaz e dar sentido ao efêmero. Para poder fazê-lo, é
óbvio que devo fixar o próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no
Nas Monotipias, Mira Schendel se volta para o que Foucault chamou de duplo empí-
pela articulação de uma “dimensão sempre aberta [...] que ele [o sujeito] não reflete num
cogito” e “o pensamento pelo qual a capta” (FOUCAULT, 2007, p. 445. Grifo do autor). Na
tela formada pelas múltiplas camadas de papel, o contraste da tinta preta com a sua ausência
essas duas dimensões contrárias e coesas que constituem a nossa apreensão do real.
Como um “eco [visual] que se distancia à medida que as folhas vão se sobre-
de tinta que compõem as Monotipias revelam-se aos poucos entre as diáfanas camadas,
perfurando com a sua gradativa emergência a palidez do papel em branco. Nesse com-
e das várias nuances de preto – que vão desde a máxima definição à sua extinção completa,
que as engloba espacializam o pensamento e o “que nele, em torno dele, debaixo dele, não
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pelo contrário, antivida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado
de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse fazer coincidir estes dois reinos,
teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo.
(SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58)
aspecto opalescente e irregular da superfície produz uma ilusão de espessura, que restitui à
realidade – tornada clara pelas palavras – a sua opacidade. Como um nevoeiro, a superfície
do papel dá a ver além, sem invisibilizar o espaço entre. Na articulação desse vazio espesso
ao acaso e à curiosidade: “Uma vez ganhei um papel japonês finíssimo aos montes. Deixei
guardado, não sabendo o que eu poderia fazer com aquilo. [...] Me foi dado. ‘Você quer?’,
elemento central em sua obra e o impulso para um percurso artístico marcado pelo expe-
tido, a transparência na obra de Mira está relacionada com a tentativa de expressar uma
tela, no entanto, converte o universo fundado pela obra em uma realidade finita, o que é
reforçado pelas sequências lineares de letras que sugerem início meio e fim.
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dos, coisa que o tempo não pode. Fixam, sem imortalizar, a fluidez do tempo.
(SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58)
Em 1967, Mira Schendel participa da Bienal de São Paulo com a série Objetos
Gráficos, de que faz parte a espiral de letras que deu origem à capa de Galáxias. No que
diz respeito ao suporte, os Objetos Gráficos se incluem no conjunto da obra de Mira como
Por volta de 1970, Mira dispensou o uso de folhas de papel de arroz nos objetos grá-
ficos, passando a aplicar as letras decalcáveis diretamente sobre o acrílico. A galáxia gráfica foi
produzida durante essa fase da série. Tratava-se de negar o plano que separa um lado do outro
mostrar o máximo de suas faces, para ser ela mesma” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58).
Estruturado dessa forma, o suporte rompe a relação primordial da tela com a parede e
expande o espaço da obra para o vazio do espaço real. “A hierarquia do olhar”, portanto,
“é quebrada, conduzindo a uma leitura circular e virtual” (MARQUES, 2011, p. 27). Situado
com a potência lógica de seu olhar e com o movimento de seu corpo, em uma órbita contem-
plativa, que – para além de mero consumo retiniano da imagem – se constitui, sobretudo,
como interação: a composição é o centro físico e a condição básica para a realização da expe-
riência estética, mas precisa do sujeito para se revelar em toda a sua extensão. Deslocando-se
vista passiva e pacífica em autêntico polo emissor de energia” (BRITO, 2005, p. 290).
No espaço de fruição que se funda por esse movimento, a forma como o sujeito
percepção (2011), o tempo é percebido pelo sujeito em função dos objetos e do espaço.
Por exemplo, a realidade presente é esta: eu, sentada diante do computador, digitando um
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texto, que vai crescendo diante dos meus olhos à medida que o tempo passa. Em algumas
horas, no entanto, estarei me dedicando a uma nova tarefa e este momento terá se tornado
parte do passado. Porém, este texto não deixará de existir. Nem a mesa sobre a qual o
monitor está apoiado. Da mesma forma, os livros continuarão impondo a sua sólida pre-
sença às prateleiras que os suportam. Tudo, aliás, permanecerá exatamente como agora.
Com exceção do meu corpo, que estará habitando um novo espaço e não mais esta sala:
“o tempo”, diz Merleau-Ponty, “não é um processo real, uma sucessão efetiva que eu me
limitaria a registrar. Ele nasce da minha relação com as coisas. [...] Aquilo que para mim é
passado ou futuro está presente no mundo” (pp. 551-2). O tempo, portanto, é um produto
da consciência. Ele não tem início, meio e fim, e a sua fluidez somente é percebida quando
se lança do símbolo de volta para a vida” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p. 58). Como o
observador que outrora, da margem, constatava a passagem do rio, e agora, conduzido por
agora a questão que todas essas considerações a respeito da obra de Mira se dedicaram
está claro, é capturar o momento em que apreendemos, por meio da linguagem, a vivên-
símbolo. Mas o que a galáxia gráfica nos diz a esse respeito e, sobretudo, a respeito da obra
de Haroldo de Campos?
De maneira global, podemos dizer que, como queria Mira, a explosão de letras
para fora, um impulso de expressão que rompe a esfera do subjetivo, convertendo-se, fora do
supor a existência de uma força centrípeta, que atua da extremidade para o centro, sugerindo
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Essa ruptura está relacionada com o duplo impacto da linguagem sobre o real,
ao mesmo tempo ponte e obstáculo entre ele e o sujeito. Como já havia declarado outra
artista em face do mesmo drama, “sem dar uma forma, nada me existe. [...] Só posso
do mundo, mas se insere na subjetividade, como uma fenda através da qual o alheio se
infiltra no próprio. Quando digo que sinto amor, tristeza, alegria, saudade, ou mesmo
mesmo entre os objetos gráficos: a figura não foi produzida sobre papel, mas impressa
entre lâminas acrílicas, de modo que o espaço entre as letras permanece vazio. Com
sua translúcida opacidade, o papel japonês, para além de mero suporte das imagens
incorpóreo não mais nos é dado por meio de uma representação, mas pelo concreto
vazio que se forma entre os caracteres no interior da estrutura, e que se deixa ver através
falsa transparência do sentido explicado” (SCHENDEL apud NAVES, 2010, p.58). Mais
do que apenas capturar as marcas da expressão, o quadro que se forma entre os limites
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a linguagem e o rastro de silêncio que se estende por seu caminho. Desse modo, na obra
invadida pelos símbolos da linguagem e pela matéria não simbolizável em seu entorno.
Como um elemento fantasmático que cerca a realidade concreta, essa matéria não sim-
bolizável não pode ser plenamente compreendida ou explicada – como bem lembrou a
artista –, mas a sua percepção é o que nos dá o sentido pleno da realidade para qual a
linguagem aponta. “Todas as nossas versões do real”, conforme aponta Octavio Paz, em
O arco e a Lira, “não recriam aquilo que pretendem exprimir. Limitam-se a representá-lo
ou descrevê-lo”. E continua:
pazes de capturá-la em sua integralidade, os símbolos atravessam o real e, tal qual uma
peneira, operam um processo cuja própria natureza é a perda e a redução de alguma coisa
a algo menor. O mundo se nos apresenta como uma realidade complexa, cuja “pluralidade
em nosso imaginário. A palavra que o nomeia, portanto, mais do que apontar para uma
definição – “objeto que serve para sentar” –, remete ao sem fim de qualidades perceptíveis
na experiência com o cotidiano utensílio, e também à relação particular que cada sujeito
estabelece com ele. A palavra “cadeira” pode expressar alívio para uma pessoa exausta e
que anseia por se sentar. Para alguém que não tem os movimentos das pernas, por sua
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vez, pode ser o símbolo de uma realidade aprisionadora; ou, pelo contrário, representar
em alguma cultura hipotética na qual as cadeiras não existam. Para ele, a palavra cadeira
ou toda explicação que se dê sobre ela não será capaz de conduzi-lo senão a uma com-
preensão teórica do móvel. Isso porque a realidade integral da cadeira só pode ser expe-
rimentada diante da cadeira e sem qualquer mediação, de modo que a matéria subjetiva
que uma menção a ela pode movimentar – como a sensação de alívio, de aprisionamento
da linguagem. Seja a linguagem pela qual o objeto para sentar, de determinado tamanho
e material é descrito para quem não o conhece. Seja a linguagem que nos dá acesso à
lembrança da cadeira e a toda a carga subjetiva em que essa lembrança está imersa. Em
ambos os casos, as experiências são vividas por meio da linguagem: uma linguagem que,
em nossa mente, e graças ao qual conseguimos reconhecer as coisas que um dia se nos
apresentaram. A realidade figurada pelo vazio na peça de Schendel, ao que me parece, não
se reporta a essa carga subjetiva evocada pela linguagem em sua função referencial, mas à
pode deflagrar. Como a própria artista esclarece, sua obra caminha sempre no sentido de
no qual a vivência se derrama para o símbolo”. Trata-se, portanto, como o nome da obra
Nesse sentido, creio poder dizer que, considerando a realidade geral de sua com-
5 O termo imagem poética – que diz respeito a um fenômeno da arte em geral, não apenas da poesia –
aqui será usado para designar especificamente a sua realização pelas palavras.
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de palavras cujos sentidos alcançam muito além de seus significados estritos. Sensíveis, e
jetivo e que, portanto, não podem ser plenamente decodificadas. Ou, como costumamos
colocar, são informações que não podem ser ditas em outras palavras. “A imagem faz com
que as palavras percam a sua mobilidade e intermutabilidade” (PAZ, 1982, p. 135), isso
porque os seus sentidos nascem não apenas das marcas da linguagem, mas também – e
sobretudo – do espaço vazio que se forma entre elas, como sugere a obra de Schendel.
dependem desses pontos fixos, os quais, como ferramentas de uso habitual, manejam desa-
é mais do que um instrumento sutil com o qual percorremos a trilha das ideias.
porque elas nos colocam novamente em contato com o objeto linguagem, não mais
história”, como as descreveu Bachelard (2010, p. 36), as imagens não referem alguma coisa
exterior ou anterior a elas mesmas, mas fundam – diante de nossos olhos e ouvidos – uma
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E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar
que pedra é pedra, existe o que se chama arte. [...] o procedimento da arte é o
procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um
meio de experimentar o devir do objeto, o que é já é “passado” não importa
para a arte. (CHKLOVSKI, 2013, p. 91)
sação do objeto como visão e não como reconhecimento”. O objetivo da imagem poética,
portanto, é fazer a linguagem como que “saltar à vista” em sua máxima presentidade,
dando a ver – não a compreender – os sentidos das palavras. “Para ser ela mesma [...] a
letra, ao formular-se, deve mostrar o máximo de suas faces”, disse Mira Schendel, expli-
cando a importância da transparência obtida com o uso do acrílico nos objetos gráficos.
Não entendi muito bem essa colocação de Mira nas primeiras vezes em que a li, mas agora
me parece claro o que ela quis dizer. Quando fala sobre a letra – ou a palavra – “ser ela
mesma” em oposição a “ser outra coisa”, ao que me parece, a artista se refere ao aspecto
palavra aponta para alguma realidade externa – não diz outra coisa senão a si mesma.
cretude existencial das palavras”. Tais obras, segundo o poeta venezuelano, são “obstá-
culos, suspensos na nossa frente como campos tanto visuais como legíveis, [...] corpos
rado pela obra de Mira e a realidade da poesia, em que as palavras – meio e fim a
atividade poética detém a nossa atenção em percursos textuais tortuosos, que nos fazem
perceber o objeto linguagem, para além do conteúdo externo que evoca. Realidades
concretas – elas mesmas e não outra coisa, como queria Mira –, as palavras falam ao
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intelecto, mas também à sensibilidade. E constituem, verdadeiramente, corpos a serem
dizer, as palavras dizem; os múltiplos sentidos que florescem justamente nos espaços
vazios de significado. Este me parece ser o ponto crucial da relação que o objeto gráfico
estabelece com o livro Galáxias. A obra de Mira diz muito sobre a poesia de modo geral,
como acho que consegui demonstrar, mas em especial sobre a forma como Haroldo
Galáxias foi publicado pela primeira vez em 1984, pela editora Ex Libris. Antes
disso, no entanto, boa parte dos cinquenta fragmentos que viriam a integrar a versão final
do livro – escrito entre 1963 e 1976 – já havia sido divulgada de maneira episódica em
podemos tomar a revista Invenção, onde trechos de Galáxias foram pela primeira vez
uma sessão de Xadrez de Estrelas: Percurso Textual (1976), volume que compila a poesia
nados ao tema da viagem, a partir dos quais se articulam pequenas e sucessivas estórias,
cujos desfechos, no entanto, jamais se revelam. “Como arabescos que não se deixam
concluir” (CAMPOS, 1976, p. 91), esses impulsos narrativos sofrem a ação constante
6 Fragmentos avulsos de Galáxias também foram publicados em Flor do mal, Navilouca, Polem, Código e
Qorpo estranho, no Brasil; e O tempo e o modo do Brasil e revista Nova, em Portugal.
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discursivo produz, o equilíbrio estável do signo – “nexo ou ligadura estreita e como que
à concretude das palavras. Com o afrouxamento dos nós que atam o significante ao
extrapolam a condição de mero suporte das ideias, passando a serem percebidas pelo lei-
como uma constelação de significantes, estrutura na qual o sentido não se produz pela
concatenação lógica, mas pelo contágio mútuo dos vocábulos. Avizinhadas – não mais
encadeadas –, as palavras significam pelas ideias que carregam, mas também por sua tex-
tura sonora e seu aspecto gráfico. Em Galáxias, como veremos nos próximos capítulos,
motivo central em Galáxias. Proposto como experiência de abolição dos limites entre a
ouvido, o vivido, o lido” (CAMPOS, 2002, p. 695) – para depois descarregá-las, realizando
pela qual Haroldo persegue o seu propósito de ruptura dos gêneros. Guiado pela imagem
norteadora do “epos sem estória” (CAMPOS, 2010b, p. 271), o poeta combate a ameaça
constante de uma narrativa com a subtração do objeto narrado. Dessa forma, a informa-
ção lógica, em direção à qual as palavras – como flechas – se lançavam, é substituída pela
– suas camadas visual, sonora, semântica – e, ainda, da maneira como ela se articula com
as outras palavras.
30
A forma como é tratada a linguagem em Galáxias – herança tanto do movimento
tões que se colocavam de modo geral para a arte. Por um lado, o problema da redução
caráter objetal é restituído à palavra, que passa a ser percebida como um objeto complexo,
capaz de atingir com um só golpe os ouvidos e os olhos, tanto quanto o intelecto do leitor.
Operando com a materialidade de seu corpo sobre a dimensão sensível do sujeito, essa
linguagem produz sentidos que não podem ser explicados, mas imediatamente vividos.
Uma imagem da imagem, a obra de Mira Schendel é também uma imagem da realidade
textual em Galáxias, no qual o vazio pleno de prováveis é ativado ao redor das espiraladas
constelações significantes. Essa atração pelo vazio, pelos sentidos não simbolizáveis, sus-
Em “Ativamente o vazio” (1996) – ensaio que traça um paralelo entre a obra de Mira
e curador Guy Brett menciona uma série do artista filipino David Medalla chamada Efêmeros.
Uma dentre as obras que compunham essa série era feita de dois palitos de fósforo e duas
folhas, tendo sido chamada pelo seu autor de “balança para pesar a luz do sol e a sombra”:
Neste dispositivo para equalizar dois contrários ele poderia muito bem estar alu-
dindo, maliciosamente, à verdade do pintor, tal como expressa por Goya, que diz
que “na natureza existem apenas a luz do sol e a sombra”. (BRETT, 1996, p. 51).
Matheron, que o pintor da Maja desnuda gostava de zombar da forma como os acadêmi-
“Sempre linhas”, dizia “jamais corpos. Mas, afinal, onde eles encontram essas
linhas na natureza? Quanto a mim eu só vejo nela corpos iluminados e corpos
que não o são, planos que avançam e planos que recuam, relevos e vazios. Meu
31
olho jamais percebe nem lineamentos, nem detalhes. [...] Meu pincel não deve
ver mais [...] do que eu” (MATHERON apud TODOROV, 2011, p.22)
Conforme as afirmações atribuídas pelo amigo a Goya, o pintor não deve retra-
tar o mundo tal como ele é, mas a maneira como ele o vê, transformando a realidade
objetiva pela percepção subjetiva: “a experiência do pintor, e não o mundo em si, cons-
alusão ao pintor, apontada por Guy Brett no título da peça de Medalla, diria respeito
nos conta Brett, Medalla dizia que seus efêmeros eram como “metáforas em miniatura
xaltação” (MEDALLA apud BRETT, 1996, p. 51). Ora, entendendo que metáforas são
elementos concretos que exprimem uma abstração, podemos assumir que os efêmeros,
como foram propostos por Medalla, remetem a alguma coisa que, concretamente, não
está ali. A fala do artista filipino reforça que a arte não é um estatuto do objeto, mas “um
processo de sensibilização” (BRETT, 1996, p. 49), que se realiza como uma virtualidade
Goya não apenas abriram uma brecha na tradição pictórica – universo em que represen-
taram, nas palavras de Todorov, uma “revolução coperniciana”–, como anteciparam uma
vado essa atração pela noção de vazio nos experimentos de artistas como David Medalla.
como uma lacuna a ser preenchida pelo sujeito, cujos particularíssimos sentidos – e sen-
de fruição é materializada, por exemplo, pelos Penetráveis de Hélio Oiticica, nos quais
32
das instalações labirínticas criadas pelo artista. Em procedimento de certa forma análogo,
virtual formado pelo vazio que vaza do vão entre as placas de acrílico e se expande pelo
espaço real no entorno da obra. No livro de Haroldo, o espaço do sujeito se forma nos
o livro formam como que um mosaico no qual o leitor é quem dá a liga entre as peças,
dade do estético” (CAMPOS, 2010a, p. 15. Grifo do autor) como uma das características
No artigo “A obra de arte aberta”,7 publicado pela primeira vez no Diário de São
Paulo, em 1955, Haroldo procura delinear “o campo vetorial da arte de nosso tempo”,
7 O artigo foi republicado no livro A teoria da poesia em concreta, cuja primeira edição data de 1965.
33
tendo como eixos radiais as obras de Mallarmé, James Joyce, Ezra Pound e e.e.cummings.
– e expandida para além da teoria estética – por Umberto Eco, no livro Obra aberta, de
obra de arte cristalizada, do tipo diamante –, Eco inclui, entre outras coisas, a noção de
estrutura de uma “relação fruitiva com seus receptores” (ECO, 1991, p. 29), segundo a
qual a obra tende a promover “atos de liberdade consciente” (ECO, 1991, p. 41), colocando
o intérprete como “centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele
instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva
os modos definitivos de organização da obra fruída” (POUSSEUR apud ECO, 1991, p. 41).
A obra de arte aberta, completa Eco, “exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque
não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar, num ato de con-
se enquadram em uma categoria de textos que não são legíveis, mas escritíveis (scriptibles),
segundo a descrição proposta por Roland Barthes. Voltadas para o horizonte do provável, as
galáxias significantes não admitem somente um, mas múltiplos sentidos, os quais, no entanto,
não se realizam senão pela operação da leitura-escritiva: “quanto mais o texto é plural, tanto
menos ele será escrito antes que eu o leia” (BARTHES apud CAMPOS, 2010c, p. 244).
Nesse “livro-areia / escorrendo entre os dedos” (CAMPOS, 2004, fragmento 48),8 o gesto nar-
rativo se perde em lacunas comunicativas nas quais a ilusão do “sentido explicado”, nas pala-
8 Nem as páginas nem os fragmentos de Galáxias estão numerados, de modo que, quando houver a
necessidade, serão referidos de acordo com a posição que ocupam na sequência do livro.
34
vras de Mira Schendel, invariavelmente se converte em enigma. Em espaços de incerteza, onde
em um campo de probabilidades.
probabilidades. Posta não como resultado, mas como processo, a obra convida o intérprete a
participar, preenchendo com a matéria de sua própria subjetividade os vazios de sentido que
se lhe apresentam. Nesse processo, portanto, a informação estética não preexiste, mas nasce
da síntese dos fatos objetivos da obra com os dados a ela incorporados pelo sujeito. É na
conjunção dessas duas realidades, a objetiva e a subjetiva, que se forma o espaço de fruição.
Lugar que não é físico e não é fixo, mas virtual e provisório: um campo invisível, que se funda
no “espaço sem palavras de que o livro faz-se” (CAMPOS, 2004, fragmento 31). Oferecendo
ao leitor uma trilha que leva ao vazio da linguagem, Galáxias, como o objeto gráfico em
sua capa, chama a atenção para uma dimensão silenciosa que somente vislumbramos sem
podermos realmente apreender. Ao aceitar o desafio dessa leitura, o sujeito não tem outra
saída, senão participar ativamente da produção dos sentidos, “num ato de congenialidade
35
CAPÍTULO 2
Alfredo Bosi
O ser e o tempo da poesia
caros ao antigo e ilustre tema da viagem. Como nas grandes narrativas marítimas – ou nos
diários de bordo –, o texto passeia por eventos históricos, mitológicos e cotidianos, per-
correndo múltiplos cenários nos quais aventura-se pela cultura, pela arte, pela literatura
e pela linguagem.9 Mas Galáxias não é um livro de viagem. O elemento central de suas
antiestórias não é o objeto do relato, mas o relatar em si. No texto de Haroldo, o material
semântico apenas empresta o seu corpo para uma odisseia cujas peripécias se passam na
“Seduzia-me fazer uma experiência de abolição ou rarefação dos limites entre poesia
e prosa”, revelou o autor, esclarecendo que o livro se desenvolve “no sentido não propriamente
de uma épica (narração), mas de uma epifânica (visão)” (CAMPOS, 2002, p. 42). Como expli-
discursiva. Na prosa, segundo a formulação de Octavio Paz, o sentido é “algo como uma flecha
que obriga todas as palavras a apontarem [...] para uma mesma direção” (PAZ, 1982, p. 130).
9 Em “Viajando pelas Galáxias”, o professor de literatura luso-brasileira Kenneth David Jackson nos apre
senta como que uma cartografia da viagem galáctica, expondo a sequência de cidades e de referências
literárias, artísticas e estéticas que constituem a matéria-prima dos cinquenta fragmentos. O texto foi
publicado no livro Céu acima (incluso entre as referências bibliográficas desta dissertação), organizado
pela crítica literária, tradutora e professora Leda Tenório.
36
Em Galáxias, a trilha dessa flecha não leva a lugar algum: tal qual uma miragem, o enredo sem-
pre desaparece antes que possa ser alcançado. Diante da aparente falta de sentido que se instaura
com a interrupção do gesto narrativo, o leitor acaba sendo acessado pela materialidade mesma
do texto. Quer dizer, quando o objeto do relato é elidido – para usar a expressão proposta por
Andrés Sánchez Robayna (1979) –, também a forma da linguagem passa a produzir sentido,
agindo sobre o leitor, todavia, não como uma mensagem a ser decodificada, mas como um
evento de natureza extralógica. Daí a ser caracterizada pelo autor como uma obra “epifânica”.
expressão tomada de empréstimo do músico francês Pierre Boulez, que assim designou as
estruturas de conteúdo fixo e ordenação livre que se integram em suas sonatas: “o intér-
prete, dentro da peça passa a ter possibilidades de escolha [...] mas as possibilidades serão
delimita o raio de ação do sujeito, submetendo a obra de estrutura aberta – “um livro onde
fixos no começo e no fim do texto, os formantes “balizam o jogo de páginas móveis, inter-
O formante inicial não apenas institui o ponto de partida, como ainda fornece
trecho antecede e antecipa os traços que determinarão a realidade geral do projeto. As pri-
fala ao mesmo tempo em que dão a ver – “miradouro aléfico” (CAMPOS, 2004, p. 119) – a
imagem do livro inteiro. Um texto no qual os sentidos nascem nas ruínas da estrutura
O começo, todavia, não é o ponto fixo do qual nos distanciamos à medida que a nossa
jornada pelo texto avança, mas o momento em que se rompe a continuidade das ideias, e a
37
e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da11
O CD isto não é um livro de viagem registra a leitura oral, executada pelo próprio
autor, de alguns dos fragmentos de Galáxias, entre os quais, o formante inicial. Curio-
samente, em sua leitura Haroldo ignora a conjunção aditiva que abre o texto, dizendo
apenas “começo aqui”. A partícula elidida pelo poeta, no entanto, será determinante para
a interpretação que darei à passagem. Pronunciada com o som de /i/ – considerando uma
rima em –i, com a palavra “aqui”. A conjunção que se realiza na partícula átona – repetida
outras cinco vezes ao longo do trecho – estabelece uma imprevista relação não com a
forma análoga que aparecerá logo em seguida, mas com a sílaba tônica da palavra “aqui”.
musical, ao compasso quaternário –, distribuem-se, pelo trecho, oito acentos com interva-
los de quatro sílabas poéticas, começando pela primeira, como ilustro a seguir:
que ela introduz. Situada no ponto de partida do formante inicial e, portanto, no grau
11 Os fragmentos completos a que pertencem os trechos analisados neste capítulo podem ser consulta
dos na seção Anexos desta dissertação.
38
tido e, portanto, da própria imagem poética, este átomo de linguagem dá a ver, em sua
instantânea e fugaz novidade, a única coisa que importa no texto: o começo da viagem.
“O fim é o comêço”, diz uma passagem do mesmo fragmento, na qual a palavra “fim” deve
ser compreendida sob um prisma, do qual se projetam, por um lado, a ideia de finalidade,
ou destinação; por outro, a de extremidade, ou acuidade, o limite entre o ser e o não ser.
concretamente pelas palavras, que reiteram o impulso iniciático a cada vez que o acento
silábico se abate sobre o texto e produz uma nova interrupção na continuidade da frase.
Em certo sentido, como afirmou Haroldo,12 Galáxias tem “uma estrutura de estória
por assim dizer, fixa um ponto de partida: “e começo aqui e meço aqui este começo”. A infor-
mação de caráter semântico, no entanto, não se completa. Assimilado pelo corpo do texto,
respectivamente, pela passagem e obstrução do ar), o trecho é marcado por ciclos de dura-
da linguagem: “este começo e recomeço e remeço e arremesso”. Os constantes cortes a que esses
sons e os seus tons submetem o texto produzem um balanço ondulatório – do tipo onda
contra rocha –, que por sua vez também é violentamente interrompido: antes que o ritmo
12 Em “Do epos ao epifânico (gênese e elaboração das Galáxias)”, entrevista publicada em 06/10/1984, no
Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde (O Estado de S. Paulo), e posteriormente reeditada
para Metalinguagem e outras metas.
39
Uma metafísica instantânea, nas palavras de Bachelard, a poesia opera no domí-
no qual a meia-noite não marca mais uma hora no relógio do jovem personagem que dá
entre o hoje e o amanhã, no “ponto de junção do seu futuro e do seu passado já idênti-
cos” (MALLARMÉ, 1990, p. 75). Em A lógica do sentido, Deleuze confronta duas leituras
dos corpos e depende da matéria que o limita e preenche; e o outro é pura linha reta na
(DELEUZE, 2011, p. 65). Cronos, portanto, é o tempo do relógio, o tempo que é determi-
nado pelo movimento da terra e que rege os ciclos do universo físico, transformando dia
primavera. Aion, por sua vez, é o tempo subjetivo que cada indivíduo carrega consigo, um
os minutos nas horas, as horas no dia, os dias na semana e assim por diante. O tempo aiô-
nico, pura linha reta, conforme o descreveu Deleuze, é um tempo irrecuperável, “fugindo
nos dois sentidos ao mesmo tempo do passado e do futuro” (DELEUZE, 2011, p. 65).
aion
passado futuro
Deleuze chama de haecceity, ou em português, hecceidade. De origem latina (haec, que sig-
nifica isto), a expressão designa a espaciotemporalidade inerente a todo evento, algo como
Mira Schendel se propôs a capturar, o preciso momento em que uma experiência imediata
40
mento: o acontecimento é o próprio sentido” (DELEUZE, 2011, p. 23). Segundo a tempora-
lidade do Cronos, a meia-noite – notação que indica determinada posição do sol em relação
uma realidade aiônica, uma hecceidade, jamais realizar-se-á uma segunda vez. Ao descer as
escadas em direção à cripta de seus antepassados, Igitur – personagem nomeado pela con-
junção latina que expressa justamente o sentido de conclusão – penetra neste preciso ponto,
cuja duração não mais é dada pelos ponteiros do relógio – “horas vazias, puramente negati-
vas” (MALLARMÉ, 1990, p. 57) –, Bachelard propôs chamar de “vertical, para distingui-lo
aliás, dedica um longo ensaio ao estudo dessa atômica unidade temporal: trata-se do livro
A intuição do instante, em cujo capítulo final – “Instante poético e instante metafísico” – ele
mesmo tempo sensíveis pelo leitor. Não apenas uma informação lógica comunicada pelas
palavras, mas uma hecceidade – para usar a expressão deleuziana –, os sentidos do texto,
de natureza estética e não semântica, resultam da articulação dos significantes com os seus
significados. Esses sentidos, embora até certo ponto previstos pelo autor – “necessário
calmente privada de um lugar fixo, essa instância – que no primeiro capítulo chamei de
41
espaço de fruição – se sustenta em equilíbrio instável, do tipo que só é alcançado em movi-
mento, como o que se produz pelo malabarista: “alguém que administra três objetos onde só
cabem dois. Nesse caso, tem que introduzir o conceito de tempo. Na verdade, o malabarista
é aquele que encontra o lugar no tempo” (MEIRELES apud MAIA, 2009, p. 72-3). Um sutil
Creio que a esta altura já não é mais possível fazer suspense a respeito do meu
conforme a breve explicação de Haroldo no texto elaborado para isto não é um livro de
demanda é o próprio ser do conto, o ‘quem’ da narração”. Tudo o que se passa no texto, diz
ele, “concorre para o clima de demanda infinita, busca sem termo [...] empreendida por
meuminino começou sua gesta cirandejo no bosque deu com a bela endormida
belabela me diga uma estória de vida mas a bela endormida de silêncio
endormia e ninguém lhe contava essa estória se havia meuminino disparte
para um reino entrefosco que o rei morto era posto e o rei posto era morto
mas ninguém lhe contava essa estória
13 Tomei emprestada a expressão que dá nome a uma entrevista concedida ao crítico de arte Ronaldo
Brito pelo artista plástico Cildo Meireles, que usa a figura do malabarista como metáfora de seu conceito-
‑síntese de território.
14 Os fragmentos de Galáxias não estão nomeados, de modo que aqui serão referidos pelas palavras
que os introduzem, assim como foi feito no índice que lista os fragmentos de acordo com a ordem em que
aparecem no livro (e que corresponde à cronologia de produção dos textos).
42
No ensaio “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua”, Haroldo propõe uma lei-
da qual associa o conceito de texto “escritível” de Barthes, sobre o qual eu tratei no primeiro
capítulo, com a noção lacaniana de desejo do Outro. Elemento fundamental da teoria psica-
nalítica de Lacan, o grande Outro – em oposição ao pequeno outro, isto é, o outro indivíduo,
as outras pessoas – diz respeito, em poucas palavras, a uma alteridade de natureza coletiva
que inevitavelmente se infiltra no sujeito por meio da linguagem, determinando desde a sua
identidade até as camadas mais profundas de sua realidade psíquica. Na teoria lacaniana, a
falta radical que resulta da saída do ventre materno. A criança, desde o nasci-
mento, perdeu seu complemento anatômico, sua falta é um vazio, um buraco,
uma “hiância” [...] Desde a seção do cordão umbilical, desde que é arrancada
da placenta, às membranas internas da mãe [primeira manifestação do grande
Outro a que o indivíduo é submetido], a criança recém-nascida se encontra
separada de uma parte de si mesma. (FAGES, 1977, p. 42)
o choro do bebê até a expressão verbal. Trata-se do meio pelo qual a necessidade de um
indivíduo se faz reconhecer pelos demais e por ele mesmo. No processo de simboliza-
ção, a linguagem – reciclando aqui uma comparação que usei para falar sobre o caráter
43
Referindo-se a Hegel, a fórmula se explicita: “O desejo mesmo do homem se
constitui sob o signo da mediação, é desejo de fazer reconhecer seu desejo.
Tem por objeto um desejo, o desejo do outro, no sentido de que o homem não
tem objeto que se constitua por seu desejo sem alguma mediação” [...] O que o
homem deseja é que o outro o deseje: ele quer ser aquilo que falta ao outro, ser
a causa do desejo do outro. (FAGES, 1977, p. 45)
com o outro que em mim habita. Após essas considerações, podemos agora tentar enten-
der melhor a relação que se estabelece entre o conceito lacaniano de desejo do Outro e
“passatempos e matatempos”. Com uma estrutura de conto de fadas – “nada mais aliciador
para um leitor ávido por estórias”, como bem observou Marília Garcia15 –, o fragmento é
uma estória, o texto percorre a trilha de uma série de clássicos da literatura universal e
suas célebres personagens. A primeira delas Xerazade, ou Sherezada, como quis Haroldo
– lendária rainha persa e narradora de As Mil e Uma Noites –, evoca a imagem da narrativa
damente interrompida pela inserção de uma estrutura digressiva, que suspende o anda-
mento da estória, instaurando uma realidade na qual o instante fica detido e os ponteiros
15 A escritora produziu um artigo intitulado “Superfície e enigma nas Galáxias de Haroldo de Campos”,
que foi publicado na Revista de Letras, São Paulo, v. 47, n. 1, pp. 193-209, jan./jun. 2007.
44
na pétrea figura da palavra “minuscoleante”. Minúsculo-minuscolear-minuscoleante: de
ao mesmo tempo revelam pela micrológica estrutura. Uma recusa à progressão do tempo,
a palavra minuscoleante se estende não apenas pela eternidade de seu particípio presente,
e ao mesmo tempo agente, o fenômeno atrai a atenção do leitor e o conduz para o domínio
“este minuscoleante / instante de minutos instando alguém e instado além”, nas quais o
mais adiante, o livro Galáxias como um todo – ostenta uma estrutura de narrativas engas-
tadas (TODOROV). Esperamos ansiosamente pelo desfecho, mas uma estória leva a outra
estória, que leva a outra estória, que leva a outra estória: de Sherezada à Bela Adormecida,
da Bela Adormecida ao país das maravilhas, então à Dânae e ao cisne mallarmaico. Perse-
guindo, como o rei Xariar, uma conclusão que jamais se nos apresentará, tropeçamos nos
súbitos desvios de rota, que se inserem no texto, como alçapões pelos quais a narrativa
Galáxias, como definiu Haroldo, é um gesto épico que se resolve numa epifâ-
nica. “Na epifania”, explica o autor, “a visão prevalece sobre a ação. Quero dizer que o
narrar – o gesto narrativo próprio da prosa – deixou-se levar de roldão pela prolifera-
tendo como desfecho uma informação extralógica, realizada pela atuação concriativa
do leitor-escritor – “você também vira objeto do jogo” –, que se infiltra no texto através
45
lacaniana, podemos dizer que a falta do objeto narrativo produz uma necessidade que
pelo desejo do leitor, grande Outro de cujo subjetivo material o texto se alimenta: “no
Produzindo sentidos que resultam do que as palavras dizem e, sobretudo do que falham em
dizer, o texto reanima uma instância da linguagem que Lacan chamou de lalangue, ou, na
tradução de Haroldo, “lalíngua”: trata-se de “uma língua enfatizada, uma língua tensionada
pela ‘função poética’, uma língua que ‘serve a coisas inteiramente diversas da comunicação’”
(CAMPOS, 2010c, p. 243). Recorrendo a uma cunhagem de seu poema “Ciropédia ou a edu-
dade da figura materna – lembremos que, em sua vida intrauterina, o sujeito está carnalmente
ligado ao corpo da mãe – com a “lalíngua”, uma língua cuja mensagem verbivocovisual “nos
‘afeta’ com ‘efeitos’ que são ‘afetos’” (CAMPOS, 2010C, p. 243). A “lalíngua”, eu diria, tomando
Dotado de uma materialidade que não se deixa ignorar, o corpo do texto se ergue
como um sólido obstáculo – “corpo a ser decifrado com o corpo” –, reclamando a presença
corporal do sujeito diante dele. Um livro para ser lido em voz alta, como recomendou o
próprio Haroldo, Galáxias ostenta uma aliciadora e irrecusável textura sonora, que induz
o leitor ao gesto oral. Para além de simples declamação, a vocalização do livro não ape-
nas estimula o sentido da audição, como também promove a experiência táctil, dimensão
46
vela e revela que cala e descala aquela goma de palavras aquela aromada
goto é o título daquele que é considerado o mais importante e representativo tratado poé-
tico do período medieval no Japão17, escrito em 1473 pelo poeta-monge Shinkei. Segundo
inglesa do livro, que leva o sugestivo título Murmured conversations Sasamegoto –, o tra-
tado de Shinkei institui uma estética na qual a reflexão e os sentimentos se situam acima
do mero jogo de linguagem. “Uma palavra japonesa que significa literalmente ‘coisa de
palavras’” (BARBOSA, 2011, sem paginação), sasamegoto em Galáxias aponta para essa
“O som do signo”, disse Alfredo Bosi, “guarda, na sua aérea e ondulante maté-
ria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo” (2000, p.52).
17 Segundo a informação que consta no site da Stanford University Press, disponível no seguinte endereço
virtual: http://www.sup.org/books/title/?id=5893
47
“sasamegoto” evoca essa presença física, sensual, da boca humana, pela qual os sons das
palavras viajam, no curso de sua realização. O fragmento é o signo de uma tentativa incan-
sável – empreendida por toda a extensão de Galáxias – de tornar real a utopia descrita por
tiplos erres, em seus registros fricativo e vibrante – entrelábios, farfalhando etc. –, cuja
No ensaio “The fourth dimension of a poem” (2012), Meyer Howard Abrams nos
lembra de que o uso da linguagem envolve também uma ação corporal, a qual, delibera-
damente ou não, é explorada pelos poetas em suas produções. Conforme detalha o autor,
quatro dimensões contribuem conjuntamente para o efeito global produzido pela leitura
de um poema:
48
Uma dimensão é o seu aspecto visual, que sinaliza que você deve ler o texto
impresso como um poema, não como prosa; e que também oferece pistas
visuais como o andamento, pausas, paradas e a entonação de sua leitura. Uma
segunda dimensão são os sons das palavras quando lidas em voz alta; ou, se
elas são lidas silenciosamente, os sons como eles são imaginados pelo leitor.
Uma terceira, e de longe a mais importante dimensão, é o sentido das palavras
que você lê ou ouve. A quarta dimensão – quase totalmente negligenciada nas
discussões sobre poesia – é a atividade de enunciar a grande variedade de sons
da fala que constituem as palavras de um poema.18 (p. 2, tradução livre)
através do qual ele se realiza: não o texto escrito ou impresso – com o qual comumente é
confundido – mas a articulação dos sons pela voz humana. Abrams salienta a importância
de atentar para essa quarta dimensão, que muitas vezes passa despercebida no uso habi-
tual da linguagem. Um poema se realiza plenamente, segundo ele, somente através das
18 Trecho original:
One dimension is its visible aspect, which signals that you are to read the printed text
as a poem, not as prose, and also offers visual cues as to the pace, pauses, stops and
intonation of your reading. A second dimension is the sounds of the words when they
are read aloud; or if they are read silently, the sounds as they are imagined by the
reader. A third, and by far the most important dimension, is the meaning of the words
that you read or hear. The fourth dimension – one that is almost totally neglected in
discussion of poetry – is the activity of enunciating the great variety of speech-sounds
that constitute the words of a poem.
19 Trecho original:
An important advantage of reading a poem aloud is that to do so helps to reembody it,
by emphasizing the palpability of its material medium. And that is important, because
the oral actions that body forth the words of a poem, even when they remain below the
level of awareness, may serve, in intricate and diverse ways to interact with, confirm,
and enhance the meanings and feelings that the words convey.
49
No artigo “Escrever com a boca” (2008), Laura Erber observa, a respeito da obra
do poeta francês Ghérasim Luca, que a oralização é uma forma “de agir sobre a palavra,
gesto que abre, que desfigura, que subverte a sucessividade do escrito” (p. 2). A afirmação
uma forma de o leitor possuir o texto e de ser por ele possuído, satisfazendo o desejo mútuo
e insaciável de um pelo Outro. Trata-se, como propôs a escritora, de escrever também com
a boca os sentidos da obra, de preencher os seus vazios não apenas com o conteúdo etéreo
Não estou aqui defendendo a oralização como único caminho possível, ou como
a forma correta de acessar os sentidos de Galáxias, mas colocando em pauta essa natureza
violentamente sonora, diante da qual a leitura em voz alta produz efeitos bastante distintos
da leitura silenciosa. “Assim”, como colocou Gérard Genette, “não nos faltará apreciar, com
os ouvidos e com a leitura muda, as sonoridades de um poema, tal como um músico expe-
riente pode apreciar uma sinfonia apenas com o estudo de sua partitura” (apud op, cit.).
certa forma dissolve o limite que separa o leitor e a obra, projetando um campo virtual onde
centro da experiência estética, não com uma atitude subjetivante, ou psicologizante, mas a
partir de uma tendência articulada com o que Hal Foster chamou de “retorno do real”. A
50
novecentista, mas uma experiência do real, como proposto dentro da teoria lacaniana.
“O real que, segundo Foster, retorna na arte contemporânea”, explica a psicanalista Tania Rivera,
Para o que nos interessa, o real de Lacan deve ser compreendido como um
melhor, afetos – que acometem o sujeito, mas escapam à significação, e, portanto, à sua
de um indivíduo tocado por uma imagem” (FOSTER, 1996, p. 166). Em A câmara clara
(1984), Roland Barthes distingue em dois níveis as vivências que experimenta diante de
certas fotografias: o studium, uma forma de apreciação lúcida, consciente, dos atributos de
tais imagens; e o punctum, uma experiência que ele não busca, mas pela qual é atingido:
menta no seu encontro – ou desencontro, como afirmou sugestivamente Hal Foster – com
o real. Uma espécie de elo virtual que se forma pela interação com a obra, o punctum,
acrescenta Barthes, é “um suplemento: é o que acrescento à foto e que todavia já está nela
Hélio Oiticica para ilustrar a tendência da arte contemporânea de apagar a fronteira entre
51
o fruidor e a obra. Postura que se observa também nos Objetos Gráficos de Mira Schendel
e, claro, em Galáxias, conforme eu já havia assinalado. Convém destacar que, mais do que
simplesmente uma aproximação, essas obras promovem, entre o sujeito e o objeto, uma
O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho soberano capaz
de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descen-
trado, não coincide mais com um centro de organização da representação. O
sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou
suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se temporalizou
e deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Contudo, uma
vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, ele volta
de fora da representação como corpo real – o que reconfigura suas relações
consigo próprio, com o objeto e com o espaço. (RIVERA, 2013, p. 21)
leitura em voz alta – o texto, no qual subsiste, em última instância, a voz do próprio
autor; e o leitor, com a sua consciência e o seus órgãos – aderem uns aos outros, for-
mando uma singularidade complexa, que não é propriedade de um sujeito, mas uma
uma pessoa, tida como responsável por si mesma, se posiciona em meio a relações de
alteridade” (p. 19). Em situações como a leitura de um poema em voz alta, pelo contrá-
rio, a subjetividade se faz coletiva, “derivando de uma lógica dos afetos mais do que de
O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais senhor em sua própria casa”. Talvez
ele nem tenha mais casa, uma vez que o inconsciente o desaloja, faz de seu íntimo
o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que
é radicalmente singular, e no entanto vem de fora. (RIVERA, 2013, p. 23)
52
Se com a leitura silenciosa o indivíduo se infiltra na obra através dos sentidos por
ele atribuídos ao texto, com a leitura em voz alta, ele é também invadido por uma porção
de si mesmo até então alienada. “Não há”, como diz Tania Rivera, “coincidência entre eu
e meu corpo. Isso é o que a linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos
‘tenho um corpo’, mais do que ‘sou um corpo’” (op. cit.). A performance vocal do texto res-
ponde, segundo Paul Zumthor, ao desejo de restituir essa “unidade perdida” (2014, p. 66)
entre consciência e corpo. Na leitura em voz alta, o leitor extrapola a condição de obser-
vador isento diante de um objeto externo, para tornar-se parte integrante dessa instância
ao mesmo tempo particular e coletiva – não apenas por seu caráter intersubjetivo, mas
também pela “assimilação” da dimensão corporal, percebida pelo sujeito como alteridade –,
que se forma pela interação com o texto. Restituída, no ato performático, a materialidade
humana, reconfigura-se também a relação do sujeito consigo mesmo, passando ele a ocu-
par o espaço fruitivo com a sua existência integral, ou, conforme a formulação de Rivera,
Dissolvendo o limite entre o sujeito e ele mesmo, a leitura em voz alta desempe-
nha um papel importante também na transposição da fronteira entre poesia e prosa. Como
incessantemente do polo discursivo para o polo material da linguagem. Com uma sólida e
ostensiva textura sonora, os efeitos produzidos pelo ruidoso texto de Haroldo, paradoxal-
veis – motivo pelo qual Hal Foster fala não em encontro, mas em desencontro com o real –,
que acometem o sujeito na dimensão silenciosa de sua plena existência. Não se trata, pois,
de povoar a mente com conteúdos abstratos, mas de preencher o ser por completo com a
mais pura realidade de si, com “a subjetividade absoluta”, aquela que “só é atingida em um
não é um atributo de determinada forma ou objeto, mas uma experiência efêmera de extra-
53
logicidade, que se realiza a partir do contato do sujeito com a obra. Trata-se de uma configu-
ração que faz a linguagem – aí, em seu sentido lato, podendo ser um texto ou qualquer outra
plataforma expressiva – “gerar mais prazer do que informação” (2014, p. 64), como formu-
lou Paul Zumthor. Dentro desse contexto, a leitura em voz alta intensifica e complexifica a
Pela análise dos fragmentos pudemos ver que, com o esvaziamento do sentido
lógico, o fio narrativo se transforma em uma trama verbivocovisual, cujos efeitos se pro-
do leitor – dentro da variável temporal. Está claro, portanto, que o fenômeno da poesia,
para além de quaisquer paradigmas do gênero, não é um atributo do texto, mas uma expe-
da linguagem, de modo que as palavras falem não apenas ao intelecto, mas aos olhos,
é capaz de produzir efeitos que extrapolam o significado das palavras, para se realizarem
da prosa em poesia ocorre quando as mesmas palavras que ouvimos e usamos todos os
dias são organizadas de modo a produzirem novos sentidos – ferramentas usadas para
construir novas ferramentas –, que se nos revelam como momentâneos vislumbres de uma
dimensão inapreensível da linguagem, desse “silêncio que trava por detrás das palavras”.
54
CAPÍTULO 3
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
que integram a obra são formados pela reunião de pequenos cacos de discurso e consti-
tuem, eles mesmos, peças no grande mosaico que se compõe pelo quadro geral do livro.
Não à toa, esses textos são referidos pelo autor como fragmentos.
55
titutivo, no nível do texto –, que orientou a realização da obra desde a sua concepção até o
mido pelo corpo do texto – ou “mancha gráfica”, na terminologia editorial – como ele-
concretos – nos quais o bloco de texto muitas vezes reproduzia um desenho reconhe-
mesmo dos formatos tradicionais. Parece claro que o leitor reage à diferença, por exem-
plo, entre um texto escrito em linha contínua e um texto escrito em versos, o qual lê
num tom muito diferente do habitual, como observou Howard Nemerov. “Se, para testar
esta definição”, escreveu o poeta, “mostramos às pessoas poemas impressos [em linha
contínua], na maioria das vezes constatamos que leem o resultado como prosa, simples-
está situada em algum lugar entre a linha contínua e o verso. Justificado à esquerda
e com a margem direita livre, o texto é composto por longas linhas de comprimentos
variáveis, que, como os seus impulsos narrativos, perdem a força – ou o fôlego – antes
56
e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas
ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escrever
é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo
descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e
forçoso um livro onde tudo seja não esteja seja um umbigodomundolivro
um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo
da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro
todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fimcomêço
começa e fina recomeça e refina se afina o fim no funil do
começo afunila o começo no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomeço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas
e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e
nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total
tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro
e aqui me meço e começo e me projeto eco do começo eco do eco de um
comêço em eco no soco de um comêço em eco no oco eco de um soco
no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo só
conheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagem
onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala
57
É interessante observar que o texto não se divide em parágrafos e não apresenta
processo de produção de sentido é operado não por encadeamento sintático, mas por
constelação. Distribuídas pelo papel como pontos luminosos, essas unidades linguísticas
Sem título, sem o uso de letra maiúscula no início da trilha textual e sem qual-
quer indicação gráfica de sua conclusão ao final, cada um dos fragmentos se nos apre-
senta não como um percurso completo – com início, meio e fim –, mas como o recorte
pelo uso da conjunção “e” no ponto de partida do fragmento, que é também o ponto de
verbal, que é interrompido somente quando o leitor vira a página, e os jatos de lingua-
gem – ou explosões, para recuperar a relação com a imagem da capa – são subitamente
consumidos pelo completo vazio na página seguinte: distribuídos ao longo de cem pági-
nas, os cinquenta fragmentos ocupam apenas as páginas ímpares, o que significa dizer
que o verso de cada texto foi mantido em branco. Uma imagem que se produz tanto
determinado pelo avanço do texto e sua abrupta interrupção. Em uma dialética de impulso
sua insígnia” (fragmento 35) – sugere uma reorientação do movimento para o outro polo do
mesmo gesto: “a dobra que se desprega e se prega de sua / dobra mas se dobra e desdobra
como um duplo da obra” (fragmento 31). Como uma tomada de fôlego para o próximo
58
sopro de palavras, essas figuras de silêncio – análogas às pausas em uma partitura musical –
não sinalizam um momento de relaxamento, mas, pelo contrário, de máxima tensão. Nada
e ao mesmo tempo tudo, espaço vazio “pleno de prováveis” (fragmento 35), o silêncio em
dicional, com o miolo costurado, pela publicação em folhas soltas e livremente intercam-
biáveis pelo leitor (com exceção dos formantes inicial e terminal, que fixariam o ponto de
o livro de Haroldo não se estrutura em textos, como afirmou o crítico mexicano, mas em
folhas, tomadas por palavras, de um lado, e pelo vazio, de outro. Para além de mero suporte,
a superfície da página opera como elemento estrutural. No verso da folha, assinala a des-
/ trava por detrás das palavras”. Articulado com a tinta preta na frente, o branco da página
59
medida o infinito da linguagem” (2010c, p. 244) – nos vazios de sentido que se instauram
quando a clareza significativa é interrompida. Quer dizer, aquilo que as palavras dizem
relação aos elementos gráficos, encarna esse espaço múltiplo e indefinido do silêncio com
o que mais vejo aqui neste papel é o vazio do papel se redobrando escorpião
de palavras que se reprega sobre si mesmo e a cárie escancárie que faz
quando as palavras vazam de seu vazio o escorpião tem uma unha aguda de
palavras e seu pontaço ferra o silêncio unha o silêncio uno unho escrever
sobre o não escrever e quando este vazio mais se densa e dança e tensa
seus arabescos entre escrito e excrito tremendo a treliça de avessos
branco excremento de aranhas supressas suspensas silêncio onde o eu se
mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando filipêndula de texto extexto
por isso escrevo rescrevo cravo no vazio os grifos desse texto os garfos
as garras e da fábula só fica o finar da fábula o finir da fábula o
finíssono da que em vazio transvasa o que mais vejo aqui é o papel que
escalpo a polpa das palavras do papel que expalpo os brancos palpos do
telaranha papel que desses fios se tece dos fios das aranhas surpresas
sorrelfas supressas pois assim é o silêncio e da mais mínima margem
da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da palavra
o silêncio golfa o silêncio glória o silêncio gala e o vazio restaura
(fragmento 31)
O corpo do livro, portanto, não é somente um suporte para os textos, mas uma
parte fundamental do projeto. A articulação dos blocos textuais com o vazio de linguagem
que se alastra pela superfície do papel branco se relaciona profundamente com uma questão
fundamental no livro: a produção de sentido no espaço vazio entre as palavras. Com uma
plasticidade que não é estetizante, mas, pelo contrário, estrutural, essa dimensão visual se
lidade da linguagem. Também o livro, com seus traços objetais, passa a ser pensado como
60
parte integrante da obra. Alinhado com uma tendência que floresceu com o modernismo
fronteira entre poesia e prosa. A interpenetração dos gêneros textuais está diretamente
discurso. Em sua dimensão material, que se realiza na arquitetura do livro pelo branco da
página, a figura do vazio coloca Galáxias em situação limítrofe também com o livro de
artista, categoria da arte contemporânea que tem como grande protótipo a Caixa Verde
61
Cabe aqui esclarecer que um livro de artista não é um livro de arte. Este, não
mais que um livro comum que se ocupa do tema “arte”. O livro de artista tampouco
se confunde com os chamados livres d’artistes, termo que grafado em francês designa
A resposta curta para essa pergunta é “livro tornado objeto de arte”, ou, segundo
a formulação de Clive Phillpot, “livro feito ou concebido por um artista”. Como tais defini-
ções pouco ou nada esclarecem a respeito das implicações impostas pelo termo, precisarei
ção no tempo histórico, como explica Paulo Silveira, nas quarenta páginas que dedicou à
artista passou a ser entendido como uma categoria da arte – e problematizado como tal –
é ainda objeto de muitas divergências, tanto no que diz respeito à sua origem, como em rela-
ção à conceituação e à delineação de seus limites. Para este estudo, interessa o que Silveira
chamou de “sentido lato”, segundo o qual “o livro de artista é um filo, um tronco formal”
(SILVEIRA, 2012, p.52), em toda a sua liberdade, com múltiplas e heterogêneas manifesta-
62
ções possíveis. Dessa forma, adotarei uma visão amplificada, levando em consideração o que
criação artística que se realiza pela apropriação e experimentação do objeto livro – ori-
20 Sabemos que livros com imagens também estão plenamente acolhidos pelo formato tradicional. Aqui,
o significado de texto pode ser expandido para alguma coisa como mensagem, ou informação (que pode
ser de natureza visual) para a qual o livro seria apenas um veículo.
63
arte contemporânea. Segundo a artista, escritora, criadora de livros de artista e professora
produção” (apud SILVEIRA, p. 37. Meu grifo). Sob essa perspectiva, podemos entender
o livro de artista como aquele em que os sentidos da obra se firmam ou se reafirmam por
O ‘livro de artista’ é criado como um objeto de design, visto que o autor se preo-
cupa tanto com o ‘conteúdo’ quanto com a forma e faz desta uma ‘forma-signifi-
cante’. Enquanto o autor de textos tem uma atitude passiva em relação ao livro, o
artista de livros tem uma atitude ativa, já que ele é responsável pelo processo total
de produção, porque não cria na dicotomia ‘continente – conteúdo’, ‘significante
– significado’. (PLAZA, 1982, n. p.)
tante nesse seguimento, tendo precedido os livros de artista com os seus poemas-objeto,
produções nas quais a imagem gráfico-espacial já passa a ser privilegiada como forma.
cional, tendo circulado com desenvoltura pelos mercados livreiros de outros idiomas e
por exemplo, um dos mais relevantes e pouco conhecidos livros de artista editados no país
e anterior a muitas das obras mestras da categoria, foi resultado das obras formadoras do
64
É um volume composto por páginas mais ou menos transparentes, brancas
ou coloridas, que permitem entrever diagramas, letras e vocábulos, propondo
uma leitura dependente do gesto de folhear o livro. Raramente descrito e com
a quase totalidade de seus exemplares desaparecida, A ave sofreu, por muito
tempo, um injusto esquecimento, pouco a pouco em reparação. (2002, p. 7)
será “mais reflexa do que efetiva”, como lembram as pesquisadoras, críticas e curadoras
de arte Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa, uma vez que “suas realizações não
65
requerem necessariamente o suporte livro” (op. cit.). Para as autoras de Tendências do livro
tos mais decisivos: radicalizados em sua plasticidade, esses livros “requerem o ‘manuseio
expressivo’ por parte do leitor como condição de existência” (op. cit.), estando mais pró-
ximos da categoria do livro de artista, tal como costuma se apresentar nas artes plásticas.
dutos dessa categoria, o termo livro de artista abriga, sob o seu amplo arco conceitual,
remotamente referentes ao livro” (SILVEIRA, 2002, p. 1). Os livros objetos são obras que
66
subvertem drasticamente o formato clássico. Em geral, são peças únicas, de fisicalidade
escultórica, bem ao “agrado das galerias de arte e dos museus, guardando o apelo fetichista
das obras artísticas tradicionais” (p. 5). Comumente pressupõem a dissolução completa de
seu caráter bibliófilo. Trata-se de uma modalidade que “transpassa, ultrapassa a lineari-
gem escrita, o que existe é uma linguagem puramente experimental” (ANDRIOLLI apud
Para alguns, o livro-objeto é o verdadeiro livro de artista (uma ideia sem fundamen-
tação, segundo a opinião de Paulo Silveira). Para outros, como a especialista Moeglin-Delcroix,
67
essas peças pertencem ao universo da escultura: “um livro que não se pode abrir, como ocorre
68
Dentro da categoria livro de artista, como se vê, a forma segundo a qual o artista
mato tradicional e a sua negação, conforme assinala Silveira: ternura e injúria21 “podem
compartilhar a mesma obra, gerando tensão plástica na página” (SILVEIRA, 2008, p. 21).
assim, na superfície intacta de suas páginas, ocorre uma ruptura que não é de natureza
realizam. Sem que haja qualquer violação de sua integridade física, a página assume um
Galáxias é uma “obra entendida no seu todo, conteúdo e contenedor” (SILVEIRA, 2002,
p. 4), o que verdadeiramente a aproxima da categoria livro de artista. Em seu caráter ina-
21 Em A página violada, Paulo Silveira usa a dicotomia ternura-injúria para representar os sentimentos
de proteção ou de agravo, polos entre os quais se movimenta a ação dos criadores de livros de artistas:
69
proliferar poemas inumeráveis; ou ainda um gerador de textos, impulsionado
por um movimento próprio, no qual as palavras e frases pudessem emergir, aglu-
tinar-se, combinar-se em arranjos precisos, para depois desfazer-se, atomizar-se
em busca de novas combinações. (MACHADO apud LIMA, 2011, pp. 12-3)
infinito, sem começo e sem fim, de fazer-se e refazer-se, apontando continuamente para as
suas possibilidades ainda não realizadas. Em Galáxias, o branco – ou “cor da luz”, como é
chamado, devido à propriedade de refletir todos os raios luminosos, sem absorver nenhum
deles – é o signo visual de sua perpétua mobilidade e da infinitude proposta por Mallarmé,
demarcando um espaço que não é passivo, mas de alta voltagem poética. A leitura – sobre-
tudo dos formatos narrativos – nos habitua a considerar como nulo o tempo de passagem
entre as ocorrências textuais. No livro de Haroldo, no entanto, “cada pausa serpeia um viés
negra, a superfície da página forma a contextura das palavras, emoldura a mancha gráfica
e cobre o verso do texto com o silêncio de sua vacuidade. Em uma obra cujos sentidos se
livro, de envolver também os seus afetos na percepção de sua leitura. Seguindo o conselho
de Guimarães Rosa – “não dificulte o difícil...” –, Haroldo, então, decidiu privilegiar a boa
22 Em linguagem gráfica, o termo diz respeito ao grau de esforço despendido pelo leitor no ato da leitura.
Não deve ser confundido com legibilidade, conceito relacionado à capacidade de distinção entre as letras
de que o texto é composto.
70
tual e não retiniana que nasce no interior do aparato linguístico. Está claro que em Galáxias
predomina a função textual. Fará sentido, ainda assim, estabelecer uma aproximação entre a
obra de Haroldo e a categoria do livro de artista? Paulo Silveira afirma que sim:
comunicação23 e da arte:
uma manifestação sob influência do trânsito entre mídias, Galáxias se apropria – mesmo
23 Aqui, a palavra comunicação deve ser entendida em seu sentido lato, de transmissão de informação.
71
ao universo plástico, como a carga simbólica dos elementos cromáticos e as implicações
da relação entre figura e fundo. Inseminada de conceitos da arte, a obra subverte a forma
Certa vez, uma amiga – por sinal, bastante familiarizada com a noção de livro
Galáxias e se deparar com as páginas em branco entre os fragmentos, pensou estar diante
que chegam certos livros de artista – acabou induzindo a leitora desavisada a essa falha de
percepção. O anedótico episódio me levou a refletir sobre por que uma leitora habituada
A resposta para essa pergunta me parece estar relacionada com a noção de des-
arte pela mera escolha de um artista” (DUCHAMP apud OBALK, 2000). Em Galáxias, o
fora de seu território – desorienta o olhar do sujeito. “Exposto” na prateleira de uma livraria
e não na galeria de arte, o livro interpelou a personagem de meu pequeno relato com um
estranhamento pelo qual ela esperava ser acometida no nível do texto, não do “suporte”.
contemporânea do livro de artista foi reconhecida como uma forma de arte autônoma –,
também florescia no meio artístico uma preocupação com os locais tradicionais dedica-
dos à exposição das obras de arte. Levados por uma vontade de ultrapassar fronteiras, os
artistas passaram a refletir sobre instituições como os museus e as galerias de arte, ques-
72
O desenvolvimento de propostas como o Museu Imaginário, de André Malraux, e o Museu
Portátil (de que faz parte a Caixa Verde), de Duchamp, reflete esse interesse em sair do
a pensar no espaço “além do cubo branco”. Ele irá buscar esse espaço em outros
locais como o das publicações eventuais ou periódicas, e principalmente, no
livro de artista. O livro vai desempenhar o papel de lugar que substitui as pare-
des da galeria, como espaço de “apresentação pública” e disseminador de arte
para um público mais abrangente. (PANEK., 2005, p. 1)
O livro de artista deve, portanto, ser considerado em sua relação com essa
consciência de ser veículo. Ou melhor, ‘também’ veículo, já que antes de mais nada é um
projeto artístico inteiro” (SILVEIRA, 2002, p. 6). Dessa forma, os livros passam a desem-
penhar o papel de verdadeiras galerias móveis, carregando consigo, aonde forem, uma
exposição de si mesmos. Nesse sentido, poderíamos dizer que Galáxias realiza a função
se coloca para o público também como uma obra plástica, cujos efeitos atingem os olhos
73
arte contemporânea, cujos códigos o autor havia, em primeiro lugar, deslocado para o
universo literário. Com uma tiragem de noventa e três exemplares em grande formato –
Figura 12: livro-obra Galáxias (2015). Estojo aberto com dez caixas de madeira e tampa.
74
Placas de estações ferroviárias e bilhetes de trem; imagens do universo pop, ou
que remetem a fatos históricos, à cultura oriental, a questões da arte, e mais: variados itens
compõem esses objetos, entre os quais também se incluem alguns dos textos publicados
em Galáxias.
Figura 13: conteúdo das caixas do livro-obra Galáxias (2015), Antonio Dias.
dade se articulam de formas múltiplas e desiguais para atingir o sujeito. Na obra original
75
por sua vez, radicaliza o aspecto plástico, convidando à leitura não somente dos fragmen-
maneira mais ou menos explícita com o livro de Haroldo. Recuperando o eixo temático
“o livro como viagem e a viagem como livro”, a peça de Antonio Dias, como uma caixa
artista por Galáxias. Esse percurso é resultado da articulação de sua matéria subjetiva com
os dados objetivos do texto e atravessa os vazios que estão simbolizados pelo branco da
página, espaço que o leitor é convidado a ocupar, de modo a escrever a sua própria estória.
Figura 14: conteúdo das caixas do livro-obra Galáxias (2015), Antonio Dias.
Com seus blocos textuais curiosamente diagramados e com o verso dos textos
livro. Como assinalei mais cedo neste texto, a maior injúria perpetrada contra o objeto
76
o apagamento do corpo do livro no território primordialmente bibliófilo da literatura,
em que a página é geralmente relegada à função de mero suporte passivo das palavras.
acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham
da obra, cujos sentidos não são dados soberanamente pelo seu autor, mas também pelo
leitor. Constantemente convidado a exercer sua autonomia, o sujeito desenha a sua trilha
Galáxias não só demarca o lugar destinado ao outro, como também assinala uma falta
do livro, cuja construção não se realiza apenas como ocupação, mas como projeção de
espaços negativos nos vazios com os quais se articula a sua estrutura. Dotados da volatili-
dade de um tempo imobilizado, esses espaços não permitem a permanência, mas exigem
consciente que determina integralmente a obra de Haroldo. Para além de quaisquer restri-
ções de caráter paradigmático, o livro de artista é, afinal, aquele em que o corpo material
e sensíveis – como afetos – pelo “leitor”. A respeito de Galáxias pertencer ou não à cate-
pretende ruptura de limites. O único domínio no qual está inscrito o livro de Haroldo é o
da poesia, um domínio que não se limita a gênero, nem mesmo ao território textual, mas
77
texto galáctico não persegue uma forma, mas assume uma espacialidade da qual não pode
ser dissociado. Objeto integral, o livro de Haroldo, mais que apenas a experiência das
78
CONCLUSÃO
A razão pela qual me senti tão fortemente impelida a começar minha leitura de
Galáxias pela capa, inicialmente, não me estava muito clara. O primeiro contato que tive
com a obra se deu através da edição publicada pela Editora 34, com a tão referida espiral
de letras na capa. Talvez por esse motivo, a marcante figura de Mira Schendel tenha ficado
tão profundamente arraigada na memória que tenho de Galáxias, tendo se tornado parte
nalmente era dedicar ao assunto dois ou três parágrafos, foi se flexibilizando à medida que
a reflexão ganhava corpo. Sem saber ao certo o destino a que esse percurso me conduziria,
permiti que a espiral de Mira se alastrasse pelo texto e fosse tomando conta de cinco, dez,
quinze páginas, até me dar conta de que ela se impusera como eixo temático do primeiro
Pensar sobre o objeto gráfico de Mira me levou também a pensar sobre ques-
tões relacionadas à linguagem, à arte e à poesia. Durante esse trajeto, comprovei o que
desde o princípio já suspeitava: para muito além de uma referência superficial ao título,
o objeto gráfico estampado na capa de Galáxias, tal qual um prefácio, exprime uma ver-
pontos, mas, em especial, por explorarem o vazio como espaço de produção de sentido,
convertendo-o em um lugar onde nós, seus fruidores, somos convidados a entrar. Certa
vez, li um texto25 no qual o artista visual Waltercio Caldas26 dizia que livros são “ambientes
diante do livro, encarado não como mero suporte material de textos, mas como território
25 O texto em questão foi publicado pela revista Serrote #10, como verbete da seção “Alfabeto Serrote”.
26 Artista brasileiro contemporâneo, cuja obra, composta por objetos, esculturas, desenhos, instalações, com
preende uma vasta produção de livros de artista, categoria abordada no terceiro capítulo desta dissertação.
79
de maneira atípica, o livro de Haroldo de Campos convida não apenas a percorrer a trilha
do texto impresso, mas a desbravar a extensão do seu corpo, com a atitude a que nos
nossas mãos. Curiosamente, a atenção que damos a ela costuma se resumir ao momento
mesmo a comprar o livro, seduzidos pelos atrativos de seu invólucro, mas em geral não
o percebemos como parte integrante do todo. Embora seja o ponto de partida lógico no
trajeto do leitor, a capa quase sempre passa despercebida durante o processo de fruição
literária. Dessa forma, começar o estudo de um livro pela capa – pelo começo, portanto –
constitui, paradoxalmente, uma espécie de subversão da ordem habitual das coisas. Após
ter tropeçado e avançado sobre as questões que se ergueram ao longo da pesquisa, percebi
que a decisão de falar sobre a capa, mais do que responder ao meu desejo de cometer
um pequeno ato de ousadia, fora guiada pela vontade de exercer a minha autonomia de
leitora-escritora e ocupar, com a matéria de mim mesma, esse espaço do livro que, de
fato, é destinado à minha ocupação. Pois, se aprendi alguma coisa ao longo de todas essas
Por todo o longo tempo em que refleti sobre a capa, tive dúvidas sobre a legitimi-
aparentemente lateral, sobretudo por fazê-lo de forma tão personalista. Mas lembremos:
por Haroldo e Umberto Eco, é a sua natureza inconclusa e relativa, cujos efeitos – possíveis
e incertos –, apenas sob a ação de outro, realizam-se plenamente. Trata-se de uma realidade
na qual o rigor científico não só não é obrigatório, como também não me parece pertinente.
“Um livro de viagem em que o leitor seja a viagem”, Galáxias não pede distanciamento,
Tarde por ocasião da publicação do livro, Haroldo diz que “um texto também constrói o seu
futuro leitor. [...] à medida que vai cindindo o seu sujeito, abolindo o seu autor, ele se encon-
80
tra e se perfaz no outro” (CAMPOS, 2010b, p. 277). Em harmonia com a fala do poeta e sem
qualquer pretensão de imparcialidade, portanto, esclareço que este estudo nasceu de minhas
particularíssimas impressões do livro, das coisas que vi, ouvi, li e vivi por aí. Tendo refletido
minha visão de mundo, tornou-se também um reflexo de mim. Tudo o que enxergamos no
um tópico relevante, justamente quando me pus a pensar sobre a espiral de Mira. Quando
decidi investir na imagem da capa, já não havia tempo para voltar atrás, caso essa inves-
tigação não me levasse a nada. A aposta, no entanto, valeu a pena. Embora à primeira
vista parecesse um desvio, o objeto gráfico acabou por fornecer os meios necessários para
Galáxias do ponto de vista de seus efeitos sensíveis, em especial, daqueles produzidos pela
sua textura sonora – não só foi preservada, como se enriqueceu com o florescimento de
A relevância desta dissertação deve ser avaliada não somente por seus resultados,
mas também – e sobretudo – pela forma final que este texto assume: a imagem de um
processo, com as suas incoerências e imprecisões. Longe de ter esgotado o assunto que me
propus investigar, encerro tendo aberto tantas ou mais lacunas quantas consegui comple-
tar. O trabalho que ora apresento, como deve ser a viagem por Galáxias, não mostra um
percurso completo – com início, meio e fim –, mas a figura final de algo que foi se desen-
volvendo até que uma ruptura cessasse a sua expansão. Em certa ocasião, conversando
com Fayga Ostrower, o filósofo José Américo Mota Pessanha explicou que a expressão
moira, comumente associada à ideia de destino, tem o seu sentido originalmente espacial,
É o sentido do espaço próprio [...]. Quando estende sua vida até o fim, ela
como que abriu no espaço tudo o que podia ser. Por isso, numa segunda
acepção da palavra, o “destino” fica sendo ligado ao “fim”; a pessoa chega ao
81
seu limite, ao seu fim, que se identifica com a morte. Só com a morte é que o
espaço da vida mostrou-se todo qual era. A vida é a conquista de um espaço
que vai se ampliando e que com a morte ganha sua configuração final. Então,
moira, destino, é aquele mapeamento, a sesmaria, o lote que cada um ocupou.
(PESSANHA apud OSTROWER, 2013, p. 27)
que, tendo nascido do encontro fortuito com o objeto gráfico de Mira Schendel, cresceu
livremente – quase a despeito do projeto –, até que não mais. Perdida nessa rede de rela-
ções inesgotáveis que encontra abrigo nos vazios do livro, muitas voltas e reviravoltas per-
mearam o processo da escrita. Agora, tendo desenhado o meu próprio mapa por Galáxias,
deixo aos outros essa figura, que sem, no entanto, estar completa, dou por encerrada aqui.
82
REFERÊNCIAS
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poem: and other essays. Nova Iorque; Londres: W. W. Norton & Company, 2012.
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quasi coelum. Signância quase céu. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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nível em: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/anais3/bernadette_panek.pdf
PLAZA, Julio. O livro como forma de arte (I). Arte em São Paulo. São Paulo, n. 6, abr.1982.
[sem paginação].
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
86
ANEXOS
ANEXO 1: Formante inicial
88
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo só
conheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagem
onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala
89
ANEXO 2: Fragmento 7
90
papel num leque o oval azul subindo como uma lua tsuki aoi tsuki mas
ahoj quer dizer também olá ou alô adeus numa outra parte onde a neve neva
e o moldau congela onde a neve calva e o moldava alva goldene stadt
cristas cimos cimalhas de ouro contra a neve flüsternd a voz daquela
dona as palavras virando névoa de gaze aflando ruflando como um corpo
de névoa primavera no inverno primavinda no inverno quando o trem estala
como um elástico na neve no dedo de luva branca da neve como o livro
se escreve nesse pasmado branco disparo de trem cortando rente cortando
em frente sempremente entressemprementenfrente a dona sasame daquela fala
91
ANEXO 3: Fragmento 47
92
de tal fada seu conto onde começa nesse mesmo onde acaba sua alma não tem
palma sua palma é uma água encantada vai minino meuminino desmaginar essa
maga é um trabalho fatigoso uma pena celerada você cava milhas adentro e
sai no poço onde cava você trabalha trezentos e recolhe um trecentavo troca
diamantes milheiros por um carvão mascavado quem sabe nesse carvão esteja
o pó-diamantário a madre-dos-diamantes morgana do lapidário e o menino
foi e a lenda não conta do seu fadário se voltou ou não voltou se desse ir
não se volta a lenda fechada em copas não-diz desdiz só dá voltas
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ÍNDICE DE IMAGENS
Figura 3 (p.19)
Registro da exposição O alfabeto enfurecido, no Museu Nacional
Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS), 24/11/2009-01/03/2010
94
Figura 7 (p. 75)
Wlademir Dias Pino
A ave, 1956
95
Figura 13 (p. 86)
Antonio Dias
Galáxias, 2015
Acrílico, MDF, foam, plástico, tecido,
algodão com diversos tipos de impressão
79 x 7 x 44 cm
96