Problema? Qual é o problema? A música vocal brasileira vai muito bem.
Cada vez mais há excelentes cantores dedicando boa parte dos seus programas à canção nacional. Pesquisadores e candidatos a mestrado nas universidades dedicam seus esforços ao resgate do repertório brasileiro desconhecido, pouco conhecido ou não disponível. Nos últimos anos, artigos e pesquisas sobre a vida e a obra vocal de Heitor Villa-Lobos, Waldemar Henrique, Souza Lima, Osvaldo Lacerda, Nepomuceno, Claudio Santoro, Guerra Peixe, Ernst Widmer, Dinorah de Carvalho e muitos outros vêm sendo divulgados. Os nossos professores e cantores buscam cada vez mais cantar com a sonoridade natural da fala brasileira, com um som que não seja encasacado e artificial. O reconhecimento da diferença na maneira de cantar o repertório nacional, em comparação com a do repertório europeu, torna a inclusão da canção brasileira nos recitais de canto cada vez mais prazerosa. O modelo da canção brasileira é muito mais próximo à fala, colocando uma importância maior ainda na palavra( não está errado, mas eu diria "dando uma importância maior à palavra" ou "privilegiando a palavra"). (DUARTE, 1994) Como estrangeira, sempre achei remarcável a proximidade da canção erudita brasileira da canção popular - maior que em qualquer dos repertórios europeus ou o norte-americano. Mas, é aí que reside o problema. Se, como Mário de Andrade afirmou, nós temos que ³nacionalizar o nosso canto, indo beber na fonte do povo.² (ANDRADE, 1991, p. 97), olhar para o música popular (na época, folclórica) para a maneira correta de cantar, a questão hoje é a mesma que apresenta-se na dicção lírica QUAL música popular? As MPB carioca e paulista são distintas em estilo e pronúncia. A nordestina axé, forró? A caipira? ³A fala de um (“dum” é português de Portugal) povo é porventura (está esquisito, trocaria para talvez), mais que a própria linguagem, a melhor característica, a mais íntima realidade senão da sua maneira de pensar, pelo menos da sua maneira de expressão verbal.² (ANDRADE, 1991, p. 95) Todos reconhecem que a maneira brasileira de falar o português é distinta da portuguesa. Porém, o Brasil é um país continental de proporções gigantescas e cada região possui uma cultura distinta e uma maneira diferente de falar. Sotaques de cada região enriquecem a cultura geral do país, refletindo a realidade e individualidade de experiência de cada brasileiro. Ninguém é dono da verdade, da verdadeira maneira de falar brasileiramente porque cada um é o produto da sua realidade. E o canto erudito, onde fica? Em 1938 houve o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada em São Paulo para estabelecer regras gerais de pronúncia para o canto erudito. Mário de Andrade redigiu um documento básico que depois foi submetido à discussão de todos os participantes e aprovado ³Normas para boa pronúncia da Língua Nacional no canto erudito². Nos anos 50, os atores fizeram um documento parecido aplicado ao teatro. Mas agora são 2002 e mudou o português falada nas ruas e na televisão meio que não existia em 1938 e era debutante nos anos 50, mas que hoje une o país de norte ao sul. Há cantores que ainda insistem nas regras estabelecidas em 1938. Como o acordo subseqüente dos atores favoreceu o sotaque carioca, já ouvi cantores do Rio de Janeiro insistirem que o carioquês (mude o formato da fonte ou ponha aspas, já que carioquês não existe, é expressão) é a única maneira correta de cantar. E as outras manifestações da língua nacional? O Paulistano, o nordestino, o gaúcho, o amazonense, etc.? Está na hora de um Segundo Congresso da Língua Nacional Cantada acontecer. UNESP e UNICAMP estão propondo a organização do mesmo para o ano que vem e é muito importante que seja, de fato, em caráter nacional, incluindo a participação de cantores do país inteiro. Hoje, a intenção de um Congresso da Língua Nacional Cantada seria diferente (do que?, seria bom completar). Primeiro, não devemos mexer na pronuncia da música popular, cuja espontaneidade e naturalidade será sempre o verdadeiro espelho da fala regional. Segundo, não se pode excluir, nem baixar decreto, já que ninguém quer abrir mão da sua identidade regional. Talvez meus colegas vão me achar pessimista, mas acho difícil chegar a um consenso sobre a maneira dos brasileiros cantarem a canção erudita. Entretanto, há uma razão importante para o estabelecimento de regras básicas, mesmo que nos (é para significar nós?) brasileiros não tenhamos a intenção de seguí-las: a pesquisa para repertório novo se espalha no nível internacional e os cantores estrangeiros estão descobrindo a beleza da canção brasileira, que é pouco divulgada pela simples razão dos estrangeiros não terem um guia para a pronúncia brasileira. A maioria reconhece que a canção brasileira não deveria ser cantada com a pronúncia portuguesa, mas não sabe o que colocar no lugar. Ouvimos cantores com pronúncias das mais incríveis (“as mais absurdas” ou “as mais estapafúrdias”), outros com poucos erros depende com quem eles estudaram e sua vontade de ³acertar². (Isso não difere muito dos cantores brasileiros, muitos dos quais cantam com uma pronúncia pouca correta em línguas não latinas). Os alemães têm o Hoch Deutsch, os franceses têm uma pronúncia padrão, os ingleses respeitam a pronúncia londrina, na Itália o toscano reina. Espanhol apresenta problemas pelo fato de ser uma língua global com manifestações diferentes em cada país. Mas a língua brasileira? Cada um briga por sua pronúncia regional. Os sons mais problemáticos são os “erres” iniciais, intervogais e dobradas e os “esses” com chiado ou sem ou algo entre as duas possibilidades. Ainda tem as combinações /te/ e /ti/, /de/ e /di/. Os /e/ e /o/ finais abertos, fechados, reduzidos ou modificados? (esta pergunta está sem verbo) Como deve ser a pronúncia das vogais átonas? Os sons nasais continuam em debate, agora especialmente quando aparece /am/ final. Os artigos ³as² e ³os² devem, ou não, ser cantados como ³ais² e ³ois² (ainda com ou sem chiado)? Estes são alguns exemplos de sons que marcam regiões do país. Os Estados Unidos apresentam o mesmo problema que o Brasil em termos de tamanho e diversidade cultural. Os cantores norte-americanos aprendem a cantar um inglês neutro, nem de Inglaterra, nem dos Estados Unidos e, certamente, sem regionalismos. Quando jovem, no começo dos meus estudos de canto em Chicago (que já possui o sotaque norte-americano considerado padrão), foi muito difícil aceitar este inglês “nem cá, nem lá”. Hoje eu vejo a vantagem todos cantam igual e sem discussão. É uma possível maneira de resolver o problema da unificação da pronúncia nacional brasileira. Devem existir outras (outras o que ? Se for problemas, escreva outros). De certa forma, as regras de 1938 abrandam as diferenças regionais, criando uma pronúncia aceitável em qualquer lugar do país. Atualmente, estou orientando um brasiliense nativo na pós-graduação (está estranho, parece que ele nasceu na pós- graduação. Talvez seja melhor: “Atualmente estou orientando um pós-graduando nativo de Brasília”). Numa sala de aula, tivemos sete cantores de vários lugares do país: duas paulistanas, uma nissei, um uberlandense, uma goiana, uma alagoana e o brasiliense. Numa discussão sobre pronúncia da língua nacional, todos concordaram que o colega que nasceu em Brasília tem um sotaque não-identificável, um sotaque neutro que incorpora elementos de todos os regionalismos do Brasil. Talvez a solução possa ser encontrada dessa (um truque: você possivelmente cometerá menos enganos se sempre usar “dessa, desse, essa ou esse”, é muito difícil usar “este, esta”, etc., eu mesma tenho dificuldade com as regras) maneira. Precisamos nos encontrar para discutir a pronúncia da língua nacional para o canto erudito. Ainda mais, precisamos nos encontrar (use reunir para evitar repetir verbo) para trocar idéias sobre a canção brasileira, seu ensino e as perspectivas para sua divulgação, tanto no Brasil como no exterior. Mas para este último, é necessário entrar em consenso. Nossa música é maravilhosa como é que queremos que seja representada no exterior? A nossa resposta tem que ser³Brasileiramente².