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Trujillo, D. H. S., Lemos, F. C. S., Reis Júnior, L. P., & Oliveira, P. T. R. Subjetividade e espaço: análises com
Michel Foucault.

Subjetividade e espaço: análises com Michel Foucault

Subjectivity and Space: Analysis with Michel Foucault

Subjetividad y espacio: análisis con Michel Foucault

Diego Henrique da Silva Trujillo1


Flávia Cristina Silveira Lemos2
Leandro Passarinho Reis Júnior3
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira4

Resumo

O artigo é um ensaio sobre o conceito de espaço e o de subjetividade nos trabalhos de Michel Foucault,
articulando Psicologia, História e Filosofia, sendo um dos objetivos é analisar como o espaço foi abordado ao
longo do trabalho de Foucault. Um ponto relevante é a interrogação sobre espaço como objeto exclusivo da
Geografia ou de qualquer outro saber e da problemática das estratégias de poder no espaço e na criação de
modos de viver, sentir e pensar. Os mecanismos de controle são acionados e se dirigem aos corpos, visando
estabelecer e traçar limites nas relações móveis das forças no campo da formação da subjetividade assujeitada.
Busca-se concluir o artigo com uma análise inquietante da importância do conceito de espaço e propõe-se a
ruptura das fronteiras disciplinares para operar uma analítica do poder, saber e subjetividade no jogo estratégico
dos poderes e dos discursos, em arquivos e por meio das instituições.

Palavras-chave: Subjetividade. Espaço. Foucault. Psicologia. História.

Abstract

The article is an essay on the concept of space and that of subjectivity in the works of Michel Foucault,
articulating Psychology, History and Philosophy. One of the objectives is to analyze how the space was
approached, throughout the work of Foucault. A relevant point is the question about space as the exclusive object
of Geography or any other knowledge and the problematic of strategies of power in space and the creation of
ways of living, feeling and thinking. The control mechanisms are activated and directed to the bodies, aiming to
establish and draw limits in the mobile relations of the forces in the field of subjectivity formation. The paper
seeks to conclude the article with a disturbing analysis of the importance of the concept of space and proposes
the rupture of the disciplinary boundaries to operate an analytic of power, knowledge and subjectivity in the
strategic game of powers and discourses, in archives and through institutions.

Keywords: Subjectivity. Space. Foucault. Psychology. History.

Resumen

El artículo es un ensayo sobre el concepto de espacio y el de subjetividad en los trabajos de Michel Foucault,
articulando Psicología, Historia y Filosofía. Uno de los objetivos es analizar cómo el espacio fue abordado, a lo

1
Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Psicologia Social pela UFPA.
2
Psicóloga graduada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra em Psicologia pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Doutora em História pela Unesp. Profa. Associada II de Psicologia Social da UFPA.
Bolsista de produtividade em pesquisa PQ2 CNPq.
3
Psicólogo. Doutor e mestre em Educação. Prof. adjunto II de Psicologia da Educação da Universidade Federal
do Pará (UFPA).
4
Psicólogo. Doutor e mestre em Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp-Fiocruz).
Professor associado III de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 16(1), São João del-Rei, janeiro-março de 2021. e-3018.
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largo del trabajo de Foucault. Un punto relevante es la interrogación sobre espacio como objeto exclusivo de la
Geografía o de cualquier otro saber y de la problemática de las estrategias de poder en el espacio y en la creación
de modos de vivir, sentir y pensar. Los mecanismos de control son accionados y se dirigen a los cuerpos,
buscando establecer y trazar límites en las relaciones móviles de las fuerzas en el campo de la formación de la
subjetividad asujetada. Se busca concluir el artículo con un análisis inquietante de la importancia del concepto de
espacio y se propone la ruptura de las fronteras disciplinares para operar una analítica del poder, saber y
subjetividad en el juego estratégico de los poderes y de los discursos, en archivos y por medio instituciones.

Palabras clave: Subjetividad. El espacio. Foucault. Psicología. Historia.

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Introdução Geografia, tais como: território, domínio,


solo, horizonte, arquipélago, geopolítica,
Atentando-se para sobre a questão do região, paisagem. Foucault aponta que, por
conceito de espaço e subjetividade nos exemplo, as noções de território e de
trabalhos de Foucault, é que no presente domínio são noções jurídico-políticas; a
trabalho busca-se trabalhar com a noção de noção de solo é histórico-geológica; região
espaço como operador de análise nas é noção fiscal, administrativa e militar;
diferentes formas em que o pensamento de horizonte é noção pictórica, mas também
Foucault apresentou nas obras que tratam estratégica. Depois de o entrevistador
do poder disciplinar. Sendo assim, será enfatizar que a noção de “região” dos
empreendida uma tentativa de geógrafos é a mesma que a “região” militar
compreensão das diferentes formas que o (que vem de regere, comandar; e província
filósofo efetuou em suas produções que vem de território vencido, vincere), que o
tratam acerca da relação entre verdade, campo remete ao campo de batalha,
espaço, poder e processos de subjetivação Foucault explana que foi muito reprovado
por meio de ferramentas metodológicas por tais obsessões espaciais, e que de fato
que o filósofo utilizara em suas pesquisas elas o obcecaram. Porém ele acreditava
históricas sobre poder e assujeitamento. Na que por meio delas ele descobrira o que
entrevista concedida ao jornal francês procurava: as relações que podem existir
Hérodote, intitulada “Sobre a Geografia”, entre saber e poder.
presente no livro Microfísica do Poder
(1979), Foucault assinalou que a Geografia Desde o momento em que se pode analisar o
devia estar bem no centro das coisas de saber em termos de região, de domínio, de
implantação, de deslocamento, de
que se ocupava. O entrevistador (o transferência, pode-se apreender o processo
geógrafo Yves Lacoste) ressaltou que ele pelo qual o saber funciona como um poder e
se referia frequentemente a historiadores reproduz os seus efeitos. Existe uma
como: Lucien Febvre, Braudel e Le Roy administração do saber, uma política do
Ladurie. Historiadores esses que tentavam saber, relações de poder que passam pelo
saber e que naturalmente, quando se quer
dialogar com a Geografia e instaurar uma descrevê-las, remetem àquelas formas de
espécie de geo-história ou uma dominação a que se referem noções como
antropogeografia. campo, posição, região, território. E o termo
O entrevistador apontou que até político-estratégico indica como o militar e o
então os estudos de Foucault tinham um administrativo efetivamente se inscrevem
em um solo ou em formas de discurso.
cuidado rigoroso com a periodização e que Quem encarasse a análise dos discursos
suas pesquisas tinham um caráter somente em termos de continuidade
deliberadamente histórico ou arqueológico, temporal seria necessariamente levado a
o que privilegiava o fator temporal em seus analisá-la e encará-la como a transformação
trabalhos, mas que contrastavam com o interna de uma consciência individual.
Construiria ainda uma grande consciência
caráter indefinido e de relativas coletiva no interior da qual se passariam as
indeterminações das localizações. Em coisas. (Foucault, 1979b, p. 90).
seguida, apontou que, mesmo com a falta
de precisão espacial em suas pesquisas, Percebe-se então nos estudos
metáforas espaciais eram constantemente históricos que Foucault empreendera uma
utilizadas. Essas metáforas espaciais às forma de analisar os discursos, não por
quais Yves Lacoste fez referência são intermédio de uma busca de sentidos
noções largamente utilizadas pela implícitos à formação dos saberes, mas de

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buscar, nestes, diferentes estratégias que o campo e a cidade; com vistas a distribuir
possibilitaram suas constituições como as dissimetrias; com estratégias para
estabelecer uma geometria da cidade e
produtores de verdade. O uso de metáforas favorecer a higiene pública com fins de
espaciais nas pesquisas de Foucault sobre garantia do consumo; diminuir os perigos de
os discursos nos mostra uma das vertentes uma circulação desordenada e urbanizar o
espaciais em suas obras. meio como a metáfora de um organismo
Ainda na entrevista, foi ressaltado funcional, constituindo regras para o
aumento ou diminuição do número de
que em Vigiar e Punir (1975) ele foi além habitantes por espaço. (Lemos, 2012, p.
das metáforas espaciais em relação ao 141).
discurso, na medida em que tratou também
de instituições em termos de arquitetura, de Portanto, uma outra vertente espacial
figuras espaciais. Falou sobre uma rede de nas pesquisas de Foucault – dessa vez
micropoderes descentralizada, coordenação acerca da descrição de uma tecnologia que,
transversal de instituições e tecnologias. mediante determinada organização
Por outro lado, há a institucionalização de estratégica, poderia não só gerir a
hospitais, escolas, casas de correção em localização e o fluxo de pessoas, mas
torno do aparelho do Estado e também uma também produzir e transmitir informações
polícia centralizada, exercendo uma sobre as populações para fins de controle,
vigilância permanente, capaz de tornar bem como para evitar possíveis revoltas e
tudo visível à condição de se tornar ela epidemias. Em uma entrevista concedida a
própria invisível. Lemos (2012), sobre essa Paul Rabinow para a revista Skyline em
questão, diz que Foucault passou a utilizar 1982, intitulada “Espaço, Saber e Poder”,
como ferramenta de análise da sociedade a Foucault aponta que no século XVIII
planta da arquitetura do panóptico, o qual assiste-se ao desenvolvimento de uma
além de ser utilizado nas prisões também reflexão sobre Arquitetura em função de
foi utilizado para controlar os corpos e objetivos e técnicas de governo das
populações preventivamente em outros sociedades. Diz ainda que naquele mesmo
equipamentos parajudiciários de caráter século começa a aparecer uma Literatura
disciplinar individual e de gestão da vida política sobre como deve ser a ordem de
de determinados segmentos da população. uma sociedade, o que deve ser uma cidade,
Tal tecnologia era entendida como um tendo em conta as exigências de
modelo ideal para propiciar máxima manutenção da ordem, a fim de que
visibilidade e articulação de informações e também se evitem epidemias, revoltas,
de diversas estratégias relacionadas a permitindo uma vida familiar, decente e
saberes e poderes. Sobre a utilização do moral. Não é que antes do século XVIII
panoptismo como tecnologia de controle não houvesse algum debate acerca da
dos corpos e do espaço, a autora escreve: relação entre Arquitetura e política, mas
Foucault (1982) observa que a partir desse
Dessa maneira, o panóptico era uma século todos os tratados que consideram a
tecnologia utilizada para gerir a população política como arte de governar homens
no âmbito das migrações e de seus supostos
perigos; no fluxo nas estradas; para regular a
incluem, necessariamente, um ou mais
urbanização nas cidades e nas moradias; capítulos sobre urbanismo, equipamentos
fazer circular os produtos pelos rios e mares; coletivos, higiene e Arquitetura privada. A
ao administrar um território; tornar um local respeito dessa questão da Arquitetura e do
alvo de investimento para capitalizá-lo; ao espaço como objetos essenciais para os
desfazer as aglomerações indesejadas; para
impedir a circulação considerada arriscada;
homens políticos, Foucault (1982, p. 4),
com o objetivo de controlar as relações entre assevera que:

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constantes e suas variáveis (Foucault,


Bom, penso que terá a ver com um conjunto 1982, p. 5).
de fenômenos – por exemplo: o problema da A partir daí, surgem toda uma
cidade e a ideia, claramente formulada no
início do século XVII, de que o governo de
espécie de saberes e de práticas colocando
um grande Estado, como a França, deve problemas de ordem social como
pensar o seu território segundo o modelo da fundamentais para o governo das
cidade. A cidade deixa de ser compreendida populações e das questões espaciais que
como um lugar privilegiado, uma exceção lhes perpassavam. Tanto médicos como
num território de campos, florestas e
estradas. As cidades deixam de ser ilhas que
militares foram administradores do espaço
escapavam à lei comum. Pelo contrário, com coletivo, agindo por meio de
os problemas que levantavam e as formas racionalidades da Economia, da política, da
particulares que desenvolveram, as cidades Geografia, da Estatística e da História. Em
passam a servir de modelo para uma nome de uma defesa social e de uma
racionalidade governamental que se aplicará
ao território no seu conjunto.
gestão do território, higienizavam a cidade
em função de cuidadosas circulações,
Portanto, toda uma série de utopias fazendo a liberdade funcionar nos limites
ou projetos de governo de território que de práticas de segurança (Lemos, 2012, p.
partem da ideia de que o Estado é uma 141). A autora destaca ainda que Foucault
grande cidade, que seria então o modelo de abordou tanto em Vigiar e Punir (1975)
onde se produziriam as regras que se quanto em Segurança, Território e
aplicariam ao Estado – e dentro do População (1977-1978) os três modelos
território deveria se aplicar um programa analíticos de funcionamento dos
de racionalidade governamental mecanismos de repartição dos corpos no
denominado “polícia”, sendo esta um espaço:
sistema de regulamentação da conduta O primeiro, realizado pela soberania
geral dos indivíduos para que tudo fosse jurídica, é o modelo da lepra, em que se
controlado, até que as coisas se separavam leprosos de não leprosos por
sustentassem por elas mesmas, sem a meio de uma exclusão social. O segundo,
necessidade de nenhuma intervenção. realizado pela disciplina, é o modelo da
(Foucault, 1982, p.4.). Percebeu-se então quarentena ou de gestão da peste, a qual
no século XVIII, a partir da questão do permitia quadricular a cidade e regular a
liberalismo, que uma racionalidade que circulação com estratégias de vigilância. O
visasse governar todos os segmentos da terceiro, realizado pelas técnicas de
sociedade em todas suas minúcias não segurança e de tratamento do aleatório, é o
fazia sentido. A ideia de sociedade mudou modelo do governo da varíola, embasado
essa visão. Uma noção diferente que no cálculo probabilístico dos
deveria ser levada em consideração para se acontecimentos (Lemos, 2012, p. 142). Por
pensar a gestão do território, pois a conseguinte, diferentes formas de gestão
sociedade apresentava uma realidade dos corpos no espaço que, mesmo
complexa e independente com leis próprias provenientes de outro período histórico,
e mecanismos de reação, regulamentações funcionam ainda na atualidade. Em
específicas e desordem possível. Portanto, relação, por exemplo, à medicalização da
uma noção incompatível com a cidade, Foucault (1979c, p. 47) diz que
racionalidade de intervenção policial,
O controle da sociedade sobre os indivíduos
fazendo-se necessário inclusive refletir não se opera simplesmente pela consciência
sobre suas características específicas, suas ou pela ideologia, mas começa no corpo,
com o corpo. Foi no biológico, no somático,

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no corporal que, antes de tudo, investiu a uma subjetividade docilizada (Candiotto,


sociedade capitalista. O corpo é uma 2012, p. 20).
realidade biopolítica. A medicina é uma
estratégia biopolítica.
A análise do poder disciplinar
possibilita pensar numa sociedade
Esse trecho, que faz parte do texto governamentalizada à normalidade
“O Nascimento da Medicina Social”, subjetivada por intermédio de diferentes
questiona a ideia de que a Medicina se espaços (escolares, hospitalares etc.), em
tornou social no século XIX por questões um sistema atual de repartição das
de caráter produtivista em função do multiplicidades em espaços vizinhos,
aumento populacional em algumas cidades judiciários e adjacentes a esses a fim de
europeias. Ele mostra que, ao exemplo da problematizar as práticas divisórias e seus
Alemanha, a Medicina, mesmo no século efeitos políticos, econômicos, sociais,
XVIII, já cumpria um papel de gestão dos subjetivos e históricos (Lemos, 2012,
corpos para o Estado. Naquele mesmo p.144). No curso “Segurança, Território e
século, na França, Medicina e Química se População” (1977-1978), Foucault diz que
articularam em torno do esquadrinhamento nos mecanismos de poder de soberania, os
da cidade a fim de evitar epidemias pelo disciplinares e os biopolíticos encontram-
método da quarentena. se respectivamente nestas tarefas: o
Foucault destaca, porém, que o primeiro na gestão de um território
modelo inglês de medicalização (Medicina submetido ao soberano; o segundo
dos pobres), englobou os outros dois objetivando o controle cotidiano dos
modelos, mas que apresentava como corpos de forma minuciosa, em relação à
novidade a articulação entre tratamento distribuição destes no espaço; e o terceiro
médico e assistência social, obrigando não gerindo a população em nome da vida com
só que os pobres para obter ajuda do objetivos de segurança (Lemos, 2012, p.
Estado tivessem que se submeter ao 144).
tratamento médico, mas também que Ora, as relações de poder são
fossem separados dos ricos por limites exercidas intramuros e extramuros,
estabelecidos dentro da própria cidade. Já a acontecendo sempre em algum espaço, por
questão do sistema prisional, tratada por isso, os mecanismos disciplinares e
Foucault em Vigiar e Punir, trata também biopolíticos governam populações e corpos
acerca da tecnologia disciplinar, que não em um lugar específico, regulando os
utiliza apenas da clausura num processos de circulação como gestão das
determinado espaço como assujeitamento multiplicidades. “Portanto, afinal, a
dos corpos, mas que lhes individualizam soberania, a disciplina, como também, é
numa localização que os distribuem e lhes claro, a segurança só podem lidar com
fazem circular numa rede de relações multiplicidades. Por outro lado, os
(Foucault, 1999, p. 123-125, apud Lemos, problemas de espaço são igualmente
2012, p. 144). A disciplina é a técnica de comuns a todas as três” (Foucault, 2008,
poder que fabrica os indivíduos ao utilizar pp. 16-17, apud Lemos, 2012, p. 145). Há
como plataforma uma anatomia política do ainda uma outra reflexão acerca do espaço
corpo. A distribuição e repartição que merece ser destacada na obra de
superficial dos corpos em um espaço Foucault. No texto “Heterotopias: de
determinado os tornam úteis e dóceis; mas espaços outros” (1984), o filósofo diz que
pela docilização e otimização dos corpos a própria noção de espaço tem a sua
visa-se à constituição de um incorporal, de história, e que mais do que problemas de
ordem histórica lidamos atualmente com

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problemáticas de caráter espacial. Para ele, mecanismos que permeiam politicamente


continuamos a enfrentar um processo de os espaços, seja quando eles são
dessacralização do espaço – o qual se perpassados por apreciações de
iniciou com Galileu ao estabelecer um normalidade, seja quando tecnologias são
espaço infinito, o espaço de extensão, que utilizadas para uma docilização em
se opôs ao espaço finito e de localização da proveito de um utilitarismo para fins
idade média (Foucault, 1984, p. 3). produtivos. É nesse entremeio que o
Essa dessacralização diz respeito à presente trabalho se propõe investigar e
vida governada por uma série de oposições explorar de que forma Foucault abordou o
que não podemos tocar e que a instituição espaço em suas obras sobre o poder
e a prática não ousaram violar: oposição disciplinar (1973-1979) e de que forma ele
entre o espaço privado e o espaço público, o relacionou à subjetividade, ou melhor, ao
entre o espaço da família e o espaço social, processo de assujeitamento que os
entre o espaço cultural e o espaço mecanismos disciplinares fazem funcionar
funcional, entre o espaço do lazer e o na sociedade.
espaço do trabalho. E em todas essas
oposições reside oculta ainda a ideia do Arqueologia, genealogia e espaço
sagrado (Foucault, 1984, p. 2). Foucault
(1984, p. 3) fala da importância de se Na entrevista “O Olho do Poder”, em
pensar a vivência no espaço da perspectiva Microfísica do Poder (1979d), Foucault
“do fora”: disse que, quando estava estudando sobre
as origens da Medicina clínica, ele havia
O espaço no qual vivemos, que nos conduz pensado em realizar um estudo sobre a
para fora de nós mesmos, no qual a erosão Arquitetura hospitalar na segunda metade
de nossas vidas, nosso tempo e nossa
história acontecem, o espaço que agarra e
do século XVIII, época da grande
nos ataca, é também em si mesmo um movimento de reforma das instituições
espaço heterogêneo. Em outras palavras, nós médicas. Ele queria saber como o olhar
não vivemos em uma espécie de vazio médico havia se institucionalizado, como
dentro do qual poderíamos colocar ele havia se inscrito efetivamente no
indivíduos e coisas. Nós não vivemos dentro
de um vazio que poderia ser colorido com
espaço social, como a nova forma
diferentes gradações de luz, vivemos dentro hospitalar era ao mesmo tempo efeito e o
de um conjunto de relações que definem suporte de um novo tipo de olhar. Ao
lugares, que são irredutíveis uns aos outros e examinar os diferentes projetos
certamente não sobrepostos uns aos outros. arquitetônicos elaborados depois do
segundo incêndio do Hôtel-Dieu, em 1772,
Depois de um breve percurso acerca ele percebera a importância de questões
das inquietações que Foucault introduzira relacionadas com o problema da
nas discussões sobre o poder, percebe-se visibilidade total dos corpos, dos
que ele nunca esteve alheio ao considerar o indivíduos e das coisas para um olhar
espaço como uma questão fundamental centralizado. No caso do hospital, tratava-
para uma abordagem filosófica. Pensar se de evitar problemas relacionados ao
historicamente a utilização do espaço como contato, aos contágios, às proximidades e
categoria que excede a disciplina aos amontoamentos, garantindo a
geográfica, colocando-o no cerne das ventilação e a circulação do ar – e ao
relações de poder, é de suma importância mesmo tempo dividir o espaço e deixá-lo
quando se busca compreender que o aberto, assegurar uma vigilância que fosse
processo de subjetivação é envolvido por ao mesmo tempo global e individualizante,
variados discursos, capturas do corpo por

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separando cuidadosamente os indivíduos indiferenciado, posteriormente foi


que deviam ser vigiados. Foucault disse tornando-se específico e funcional: lugar
acreditar por muito tempo que a para comer, lugar para os pais dormirem,
preocupação com a distribuição dos lugar para as crianças dormirem, ou seja,
indivíduos em função de um ordenamento uma administração moral da vida dentro do
espacial fosse um problema da Medicina, espaço familiar. A respeito desse tema,
mas ao estudar documentos relacionados à Foucault (1979d, p. 116) diz que
penalidade, ele percebeu que na primeira
metade do século XIX (época da reforma seria preciso fazer uma “história dos
das prisões) que a maioria dos textos espaços” – que seria ao mesmo tempo uma
“história dos poderes” – que estudasse desde
relacionados ao tema fazia referência ao as grandes estratégias da geopolítica até as
projeto panóptico de Jeremy Bentham. pequenas táticas do habitat, da arquitetura
O filósofo diz ainda que a questão da institucional, da sala de aula ou da
visibilidade por um ponto central já era organização hospitalar, passando pelas
colocado por escolas militares. Ele dá implantações econômico-políticas.
como exemplo os dormitórios da Escola
Militar de Paris de 1751, na qual cada Observa-se, principalmente a partir
aluno se situava em uma cela envidraçada do século XVIII, a partir de questões
onde ele podia ser visto durante a noite suscitadas pela população, a necessidade
sem ter nenhum contato com seus colegas, de gerência desta por uma administração
nem mesmo com os empregados. Foucault espacial, a qual foi se especializando em
diz que o irmão de Bentham, ao visitar essa torno não só das mais variadas instituições,
Escola Militar, teve a ideia do panopticon. mas como no próprio interior da vida
A ideia do panopticon poderia ser anterior familiar. É como se o poder, a partir dessa
a Bentham, mas foi ele que a formulou, a óptica espacial, fosse a dimensão que
batizou, e diz Foucault ainda que a própria procura atingir o indivíduo em todos os
palavra panopticon foi fundamental. lugares em que poderia ocupar na
Bentham dizia que sua invenção era o sociedade. Até mesmo a preocupação
“Ovo de Colombo” – ideia que médicos, histórica com o espaço, diz Foucault
penalistas, industriais e educadores (1979d), foi muito negligenciada, pois era
procuravam para resolver seus problemas compreendido apenas em sua forma de
relacionados à vigilância. natureza, ou pertencendo à Geografia
Ainda na mesma entrevista, Foucault física, algo “pré-histórico”. O que
diz que no fim do século XVIII a importava era apenas o espaço entendido
Arquitetura começa a se especializar e a se como substrato ou a partir de suas
articular com problemas da população, da fronteiras, entretanto, o filósofo aponta que
saúde, do urbanismo. Se antes as é necessário que se pense a fixação
construções giravam em torno apenas da espacial como uma forma político-
força soberana, divina, a partir desse econômica, a qual merece ser estudada
período elas começaram a levar em detalhadamente.
consideração o espaço como motor para Foucault situa ainda tal negligência
alcançar objetivos econômico-políticos. do estudo do espaço no fim do século
Objetivos que podem ser encontrados XVIII, quando a Física teórica e
também na própria forma em que os experimental destituía a Filosofia de falar
espaços das moradias começaram a ser sobre questões do mundo, do cosmos, do
administrados. Se antes o espaço interno da espaço finito ou infinito. Diz ainda que
casa não passava de um espaço esse duplo assenhoramento do espaço por
uma tecnologia política e por uma prática

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científica lançou a Filosofia numa seria fundamental para garantir a justa


problemática acerca do tempo. E que a relação entre os homens, as disciplinas
partir de Kant, filósofos como Hegel, com suas tecnologias fundamentaram a
Bergson e Heidegger utilizavam a Filosofia utilização dos espaços e de suas redes de
para pensar sobre o tempo e, por outro comunicação como uma das principais
lado, desmereciam o estudo do espaço, formas de gerir a acumulação dos corpos.
visto que seria algo da ordem do morto, do Muitos saberes sobre esses corpos foram
imóvel, do inerte. Para Foucault, Bentham construídos a partir das diversas estratégias
é o complemento de Rousseau, pois tanto que se organizaram em torno de
este quanto outros pensadores da acontecimentos econômicos, políticos,
Revolução Francesa sonhavam com uma históricos e sociais. A dominação se torna
sociedade transparente, ao mesmo tempo uma regra, o espaço um campo de
visível e legível em cada uma de suas possibilidade e a disciplina um
partes; “que não haja nela zonas obscuras, instrumento. A fim de problematizar o
zonas reguladas pelos privilégios do poder espaço nos estudos históricos de Foucault
real, pelas prerrogativas de tal ou tal corpo sobre as relações entre saber, poder e
ou pela desordem; que cada um, do lugar subjetivação, é necessário observá-lo por
que ocupa, possa ver o conjunto da uma óptica não restrita, disciplinada,
sociedade, que os corações se comuniquem sujeita, portanto, a um escopo teórico-
uns com os outros, que os olhares não metodológico, por exemplo da Geografia.
encontrem mais obstáculos, que a opinião Colocar, destarte, a noção de espacialidade
reine, a de cada um sobre cada um” em suspensão para que se obtenha uma
(Foucault, 1979d, p. 118). criticidade do pensamento em proveito de
Em suma, os acontecimentos da um trabalho filosófico que pode contribuir
Revolução Francesa colocavam em jogo para problematizar práticas da Psicologia,
alguns dos preceitos do poder soberano, da Medicina, da Psiquiatra, da Educação,
pois este, com seu excesso de da própria Geografia, entre outras ciências.
demonstração de poder, deixava falhas, Em seu curso inicial no Collège de France,
lacunas a respeito do governo das proferido em 1970, Foucault fala dos
populações, que agora se tornavam vários mecanismos discursivos de controle,
problemáticas, e isso por várias razões. entre os quais no presente trabalho se
Quando os pensadores revolucionários do destaca “as disciplinas”. Não confundi-las,
século XVIII indagavam-se acerca de uma no entanto, com as disciplinas que se
nova justiça, a qual deveria ser a instância objetivará neste estudo (disciplina como
de julgamento, designaram que esta seria a tecnologia de controle do corpo), mas
“opinião”. Portanto, sonhavam com uma disciplina no seguinte caso:
sociedade em que a opinião fosse aquilo
que impediriam os homens de fazer o mal, [...] um domínio de objetos, um conjunto de
e, para tanto, os espaços obscuros, que métodos, um corpus de proposições
consideradas verdadeiras, um jogo de regras
dificultam o acesso e os olhares, deveriam e de definições, de técnicas e de
ser iluminados não só por um poder central instrumentos: tudo isto constitui uma espécie
(como o panóptico designa), mas por tudo de sistema anônimo à disposição de quem
e por todos. Como Foucault (1979d, p. quer ou pôde servir-se dele, sem que seu
280) diz na entrevista, “lirismo de sentido ou sua validade estejam ligados a
quem sucedeu seu inventor. (Foucault, 2013,
Rousseau, obsessão de Bentham”. p. 28).
Ao lado dessas utopias acerca de um
modelo de sociedade, cuja visibilidade

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Entender, assim, que a disciplina é intensificação dos desejos de cada um por


um princípio de controle da produção do seu próprio corpo.
discurso. Trata-se então de Partindo dessa premissa de que se
desdisciplinarizar o conceito de espaço, de pode localizar desde há tempos uma
maneira que ele seja problematizado tentativa de captura e controle do corpo por
historicamente e ampliado em sua variadas instâncias de poder e discursos de
dimensão de saber para que se possa verdade, é que Foucault critica a noção de
aprofundar estudos referentes em torno das que as sociedades burguesas e capitalistas
relações espaciais em seus diversos teriam negado a realidade do corpo em
perpassamentos políticos. proveito da alma, da consciência, da
idealidade, e isso porque para ele não
Espaço corpo-controle existe nada mais material, mais físico e
corporal do que o poder manifestando-se
Na entrevista “Poder-Corpo” em seu exercício. Destarte, uma crítica às
(1979g), Foucault afirma que no século formas tradicionais de análises marxistas
XVII o corpo do rei não era uma metáfora, sobre o poder, e também sobre análise de
mas uma realidade política, na qual sua paramarxistas sobre o poder, pois ao citar o
presença física era necessária ao pensamento de Marcuse sobre o poder
funcionamento da monarquia. Entretanto, repressivo, Foucault diz que o sociólogo
no decorrer do século XIX, é o corpo da alemão compreendia que o poder só teria a
sociedade que se torna o novo princípio, função de reprimir, censurar, excluir,
visto que será necessário protegê-lo de impedir, recalcar (como se fosse um
uma forma quase médica. Ele diz ainda grande superego). Para o filósofo francês,
que em lugar dos rituais referentes à o que torna o poder realmente forte é o fato
integridade do corpo do monarca, ao corpo de ele produzir efeitos positivos em nível
social serão aplicadas receitas terapêuticas, do desejo e em nível do saber, pois só foi
como a eliminação dos doentes, o controle possível constituir um saber sobre o corpo
dos contagiosos e a exclusão dos por meio de um conjunto de disciplinas
delinquentes. Diz-se então sobre uma militares e escolares. Além disso, a partir
materialidade do poder que passa a ser de um poder sobre o corpo, é que foi
exercida sobre os corpos. Foucault possível um saber fisiológico e orgânico.
assevera, sobretudo, que o poder penetrou Foucault ressalta ainda que a noção
no corpo e que se encontra exposto no de poder repressivo que se localiza no
próprio corpo, de maneira que a relação Estado é perigosa, porque ignora os
entre o poder e o corpo é da ordem da processos disciplinares de saber e poder
batalha, da estratégia de uma luta. O poder que perpassaram e continuam a perpassar o
pode recuar, deslocar-se, investir-se em corpo, de maneira que se fazem necessárias
outros lugares. A fim de exemplificar esse análises que versem sobre a série de
jogo de forças em torno do corpo, o ofensivas e contraofensivas, de efeitos e
filósofo fala da preocupação com a contraefeitos do poder para que se possa
masturbação no século XVIII. Diante de chegar ao tão complexo estado atual de
um medo sobre a masturbação dos jovens, forças e ao perfil contemporâneo da
começou-se a se vigiar e controlar os batalha. Enfim, para que se possa analisar a
corpos das crianças. Todavia, uma vez que lógica das estratégias que se opõem umas
a questão da sexualidade começava a se às outras. “É pelo estudo dos mecanismos
tornar um objeto de preocupação e análise, que penetram nos corpos, nos gestos, nos
produzia-se ao mesmo tempo a comportamentos, que é preciso construir a

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arqueologia das ciências humanas” consiste num juramento de fidelidade, num


(Foucault, 1979g, p. 86). ato de submissão, um ato firmado entre o
Um dos papeis fundamentais dos soberano que concede privilégios, uma
estudos de Foucault sobre o funcionamento ajuda, uma proteção etc., e alguém que, em
do poder em sua micropolítica, em sua compensação, se empenha, ou tem de
sutileza, ao longo de todo o campo social, haver algo com nascimentos, direitos de
é justamente fazer uma demonstração da sangue (Foucault, 2012, p. 53). Além
diferença entre o poder de soberania e o disso, a soberania é reatualizada por
poder disciplinar, sobre o qual ele gestos, sinais, hábitos, obrigações de
demonstrou, com diversas fontes cumprimento, sinais de respeito, insígnias,
históricas, descontinuidades e brasões etc., que, no entanto, configura
continuidades dessa modalidade de frágeis relações de poder sempre passíveis
exercício de um poder docilizador, de ruptura. E é justamente nesse aspecto
utilitarista, que produz saber, crucial para o frágil da relação que se faz necessário um
desenvolvimento de várias ciências suplemento ou uma ameaça de violência, a
humanas e do aparelho de produção qual se pode evidenciar na tortura do ritual
capitalista, tal qual a atualização no tempo do suplício. Importante ressaltar também
presente de seu processo de sujeição que as relações de caráter soberano não se
durante toda a vida dos indivíduos. dirigem às multiplicidades humanas, ou
Para uma melhor compreensão dessa seja, às características singulares dos
diferença do manejo do corpo na soberania indivíduos, pois é uma relação que tem
e no desenvolvimento do poder disciplinar, como objeto uma terra, uma estrada, um
uma breve explanação sobre a relação do instrumento de produção (um moinho, por
soberano com o corpo, e de como alguns exemplo), os usuários – as pessoas que
instrumentos, tecnologias e mecanismos passam por um pedágio, uma estrada, caem
disciplinares vêm a configurar o que sob a relação de soberania (Foucault, 2012,
algumas ciências, em especial a Psicologia, p. 55). O filósofo francês, ao falar dessa
elencaram como objeto, por meio de uma espécie de distanciamento do poder
série de desdobramentos de saber-poder, a soberano em relação a uma especificidade
dimensão psíquica do indivíduo. A relação do corpo, isto é, de um indivíduo, mostra
de soberania, característica da Idade que o que ele chamou de função-sujeito se
Média, que perpassou com suas diferenças desloca e circula acima e abaixo das
a Idade Moderna até os dias atuais, se singularidades somáticas, ou seja, é essa
distingue de uma relação de poder característica da soberania que deixa
disciplinar, que utiliza o corpo de uma margem para que os corpos circulem,
maneira mais detalhada, mais minuciosa. O desloquem-se, apoiem-se aqui ou ali,
poder na soberania, como Foucault aponta fujam. Nesse caso, a questão da
no curso “O Poder Psiquiátrico” (2012), multiplicidade de corpos é a que faz
vincula soberano e súdito segundo um par referência à continuidade do corpo do rei,
de relações assimétricas, as quais podem isto é, a necessidade da existência física,
ser visualizadas justamente na forma em material do corpo soberano, o qual se
que o corpo era posto à prova do poder real encontra no topo, no qual todas as relações
durante o ritual supliciante. Ainda no convergirão para.
referido curso, Foucault ressalta que a
soberania sempre traz consigo a marca de O indivíduo como “efeito” do panóptico
uma anterioridade fundadora, e isso
implica na assimetria de uma relação que

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Se de um lado a soberania se indivíduo faz. É o que ele chama de


direciona especialmente aos produtos pelo princípio de onivisibilidade da disciplina, a
sistema de coleta-despesa, outra qual passou a ser utilizada em oficinas,
modalidade de poder que surge em escolas, no exército, em registros policiais.
localizações dispersas, e que visam à Ele diz ainda que a relação da escrita com
apropriação do corpo e do tempo em sua o corpo tem por efeito uma
totalidade, entra em ação: a disciplina. individualização esquemática e
Foucault explicita essa diferença na centralizada. Essa é a função panóptica no
questão na disciplinarização do exército no poder disciplinar, a qual “organiza uma
século XVIII. O filósofo utiliza como polaridade genética do tempo; procede a
exemplo a Guerra dos Trinta Anos, que uma individualização centralizada que tem
ocorreu no século XVII, na qual não havia por suporte e por instrumento a escrita;
exércitos disciplinados, apenas uma enfim, implica uma ação punitiva e
perpétua passagem da vagabundagem ao contínua sobre as virtualidades do
exército, o qual era formado por grupos de comportamento, que projeta atrás do
pessoas que iam lutar pela possibilidade de próprio corpo algo como uma psiquê”
saque de comida e até pela ocupação dos (Foucault, 2012, p. 65).
locais que se conseguia encontrar. Depois de explicar sobre o caráter
Quando a disciplina passa a ser isotópico dos sistemas disciplinares, ou
utilizada em espaços militares, vai haver seja, pela possibilidade de os elementos na
um confisco geral do corpo, do tempo, da disciplina serem intercambiáveis mediante
vida. E Foucault crê que todo sistema o desempenho ou por um desvio da norma,
disciplinar ocupa-se do tempo, da vida e do Foucault fala que existem pontos-limite na
corpo do indivíduo. O controle do corpo é disciplina, o que quer dizer que haverá
fundamental na lógica do poder disciplinar. situações em que um corpo será
Em vez de se manifestar apenas no corpo considerado desviante, um resíduo,
mediante uma violência que marca inclassificável perante os padrões impostos
simbolicamente alguém torturado pelo por uma disciplina. O militar que deserta, a
suplício, ou quando multiplicidade criança que não acompanha o processo
somática se refere apenas à necessidade de considerado normal pelo padrão de
se assegurar a continuidade da aprendizagem, o delinquente que escapa da
anterioridade fundadora materializada no disciplina policial são todos considerados
corpo do rei, o poder disciplinar opera pelo elementos residuais no sistema disciplinar
exercício progressivo dos detalhes ao qual estão submetidos, porém, Foucault
corporais, almeja um crescimento, um assevera que o doente mental é aquele
aperfeiçoamento das habilidades, que visa inassimilável por todas as disciplinas,
a um fim determinado ou a um estado sejam elas escolares, militares, sejam
ótimo, por meio de procedimentos de policiais etc., e por ser considerado o mais
vigilâncias constantes e de brandas residual de que todos os outros, será
punições, as quais permitem que o poder necessário a implementação de sistemas
disciplinar atue antes mesmo que um ato disciplinares residuais para dar conta dele.
considerado desviante possa vir a se tornar Foucault (2012) então conclui que o
realidade. maior efeito do poder disciplinar é o de
Para Foucault, no poder disciplinar o remanejar em profundidade as relações
caráter de vigilância e visibilidade entre a singularidade somática, o sujeito e
contínuas também se realiza por meio de o indivíduo, pois, ao contrário do poder
escritas, de registros, de tudo o que o soberano, no topo dos sistemas

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disciplinares, a função individual caso do parricida Damiens no século


desaparece, já que no primeiro caso o XVIII, o qual foi condenado à morte
corpo que se torna objeto do mediante um ritual de suplício público.
assujeitamento é passível de classificação, Essa forma de castigar corresponde a uma
registro e vigilância contínua pelos espaços produção diferenciada de sofrimentos por
responsáveis por sua captura. O filósofo intermédio de um ritual que manifestava
discute que a função-sujeito vem a se no corpo do supliciado a manifestação do
superpor e a se ajustar exatamente à poder soberano. Nessa perspectiva, como
singularidade somática, o que significa que aponta Foucault (2014), há de se
o poder disciplinar é individualizante pelo compreender o suplício em sua forma-
fato de que, a partir dessa relação, o corpo ritual como um procedimento judiciário no
é assujeitado. Ele é individualizante, pois qual se busca não só a verdade, que pode
assegura a função-sujeito à singularidade ser obtida com a confissão durante a
somática por meio de um sistema de tortura, mas também como uma maneira de
vigilância escrita ou pelo panoptismo de mostrar ao supliciado e ao público um
caráter pangráfico, responsável por projetar exemplo do que seria o inferno, além de
um núcleo de virtualidades, ou uma psiquê expurgar o pecado causado pelo crime
sobre um determinado indivíduo, para cometido. Crime esse que, além de sua
sintetizar essa discussão sobre a relação vítima imediata, ataca o soberano, o qual
entre o poder político dos sistemas representa Deus. A violência utilizada
disciplinares e a fabricação de indivíduos. contra o corpo do criminoso não tinha
Observa-se na descrição desse como função estabelecer a justiça, mas
processo a forma como os corpos, a partir reativar o poder real.
da difusão dos sistemas disciplinares com E mesmo diante de uma prática
sua capacidade de assujeitamento, puderam punitiva característica da supremacia do
ser “subjetivizados”, exatamente porque a poder real, outros discursos eram postos
função-sujeito presente nessa modalidade em discussão no mesmo período.
de poder garante a psicologização do corpo Discursos esses que traçavam projetos de
mediante procedimentos normalizadores, reformas, novas teorias da lei e do crime, e
os quais fazem emergir uma virtualidade novas justificações morais ou políticas do
que se poderia chamar então de psiquismo. direito de punir. A repressão penal não
Ainda sobre o detalhamento do corpo pela seria voltada objetivamente ao corpo. A
disciplina, pela minúcia, por suas execução das penas deixava de ser um
constantes e por vezes imperceptíveis papel da justiça. A punição vai deixando o
punições, Foucault, em Vigiar e Punir campo da percepção quase diária e
(2014), estabelece que tais coerções e entrando cada vez mais no da percepção
correções dos corpos pelos aparelhos abstrata. Portanto, a certeza da punição é
disciplinares foram fundamentais para que deveria desviar o homem do crime e
outro exercício de penalidade na não o suplício que demonstra publicamente
modernidade, isto é, as reformas penais a falta cometida, a qual também deveria
funcionando sob ópticas que se baseiam na servir também como um exemplo aos
virtualidade, na normalização, no espectadores. “É a própria condenação que
entendimento de que o exercício de poder marcará o delinquente com sinal negativo e
sobre o corpo é que permite atingir a alma unívoco: publicidade, portanto, dos debates
dos indivíduos. e da sentença” (Foucault, 2014, p. 15).
No início do livro Vigiar e Punir Nessa nova modalidade de punição,
(2014), Foucault descreve com detalhes o na qual se separava, de um lado, a função

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de julgamento da justiça, e de outro, a fazer, o que são capazes de fazer, o que


execução da pena (cuja função seria a de estão sujeitos a fazer, o que estão na
corrigir, reeducar, curar o criminoso), o iminência de fazer” (Foucault, 2013, p.
corpo submetido às sanções penais será 86).
perpassado por um aspecto distinto de
outrora. Como mencionado, a função de Considerações finais
execução das penas, que não visava à dor
corporal, por ser um caráter reformador, Nessa nova sociedade punitiva que
ortopédico, será garantida por psiquiatras, começa a se esboçar, todo um aparato
psicólogos, médicos, pedagogos, sem tecnológico e institucional começa a se
deixar de mencionar o uso de desenvolver paralelamente à lei. Um
psicofármacos responsáveis por aliviar ou conjunto de poderes e saberes responsáveis
suprimir a dor mediante o cumprimento da por controlar e evitar que problemas
pena. Faz parte também dessa relacionados a transgressões, desvios, da
racionalidade o uso da guilhotina como população ou de um indivíduo, venha a se
forma de promover uma morte instantânea, tornar uma injustiça contra a sociedade.
livrando o autor do crime das sensações Para tanto, não só é estabelecido o
dolorosas da pena capital. Já no século aparelho policial, com suas redes de
XIX, quando os suplícios desaparecem instituições de vigilância e correção (de um
quase por completo, o poder sobre o corpo lado a polícia na vigilância e de outro
vai se manifestar de outra forma, uma vez saberes psicológicos, psiquiátricos,
que a pena toma como objeto a perda de médicos e pedagógicos para a correção),
um bem ou de um direito. Desde o século mas também uma série de instituições que
XVIII, diversos teóricos estabeleciam que vão enquadrar os indivíduos ao longo de
a punição deveria ser dirigida à alma, e sua existência: escola, hospital, asilo etc.
uma vez que a punição incidia sobre o Pode-se dizer então que essa rede de
corpo, ela deveria atingir sobre o coração, instituições de vigilância e de correção que
o intelecto, a vontade, as disposições. perpassa toda a sociedade tem como alvo
Como dito anteriormente, em volta principal as virtualidades de um indivíduo,
das discussões que se realizavam no século seja impedindo-o de realizar transgressões,
XVII em relação ao crime, filósofos como seja agindo para que ele não volte a
Beccaria e Rousseau pensavam-no como cometê-las. Essa sociedade, a que Foucault
um dano à sociedade, portanto, o chama de sociedade disciplinar, vive na
criminoso deveria de alguma forma reparar idade da ortopedia social, pois essa
esse dano. Foucault, em “A Verdade e as virtualidade a que se fez referência
Formas Jurídicas” (2013), sobre tal caminha conjuntamente com determinadas
questão, mostra-nos que a penalidade formas de controle, visto que a lei por si só
naquele período começa a se configurar de não é capaz de evitar problemas
uma forma diferente do que pretendiam relacionados à multiplicidade das
tais filósofos. A forma penal que foi aglomerações de indivíduos nos espaços,
adotada girava em torno de uma reforma principalmente nos espaços urbanos. O
psicológica dos indivíduos que controle social que perpassa
transgrediram a lei. Ou seja, “toda a constantemente a todos encontrará no
penalidade do século XIX passa a ser um modelo do Panopticon a sua via necessária
controle, não tanto sobre se o que fizeram de realização. A vigilância proveniente
os indivíduos está em conformidade, ou desse modelo coage incessantemente os
não, com a lei, mas sobre o que podem corpos por seus mecanismos de observação

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verdadeiro controle do corpo em todas as no século XVIII. In M. Foucault.
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registros acompanham os corpos Foucault, M. (1979i). O nascimento do
cotidianamente, e aqueles corpos cujas hospital. In M. Foucault. Microfísica do
virtualidades desviem da norma, do poder (R. Machado, Trad.). Rio de
esperado, poderão ser sujeitos a ações e Janeiro: Graal.
mecanismos que têm como função colocá- Foucault, M. (1979j). Sobre a prisão. In M.
los de volta a ela. Para tanto, uma série de Foucault. Microfísica do poder (R.
estratégias, de políticas medicalizantes, Machado, Trad.). Rio de Janeiro: Graal.
psicologizantes, ressocializantes, muitas Foucault, M. (1982). Espaço, saber e
vezes higienistas, entram em cena. E estas poder. Skyline. Recuperado de
podem surgir nos mais diversos espaços, https://www.revistapunkto.com/2015/04
escolares, hospitalares, prisionais, em meio /espaco-saber-e-poder-michel-
aberto, nos próprios lares. Efeitos foucault_88.html.
disciplinares-normalizadores de um Foucault, M. (1984). Heterotopias: de
paradoxo entre liberdade e assujeitamento Espaços Outros..
que encontramos frequentemente nos dias Foucault, M. (2012). O poder psiquiátrico.
atuais. São Paulo: Martins Fontes.
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Recebido em: 16/7/2018


Aprovado em: 3/2/2021

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