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M. S.

Neubern 317

Técnicas Hipnóticas, Dor Crônica e a Emergência


do Sujeito
Hypnotic Techniques, Chronic Pain and Subject Emergency

Maurício da Silva Neubern1


Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo
O presente trabalho parte de uma crítica às pesquisas contemporâneas sobre hipnose e dor crônica,
nas quais não é conferida ênfase ao papel do sujeito no processo terapêutico. Procura destacar como
as técnicas hipnóticas favorecem a emergência da condição de sujeito junto a pacientes portadores de
dores crônicas. Partindo de breves ilustrações clínicas, destaca-se como as técnicas promovem uma
condição de protagonismo desse sujeito, que assume uma postura ativa diante do processo, e como
proporcionam visibilidade a experiências e narrativas que possuem considerável potencial terapêutico,
embora comumente sejam marginalizadas pelos discursos dominantes. As técnicas são discutidas em
torno de três eixos: a aceitação e o rapport, o conto de historias e as subversões da linguagem.
Conclui-se considerando que as técnicas favorecem o desencadeamento de recursos e
potencialidades, valorizam o saber e as ações do sujeito e não se mantêm restritas à noção de dor
como fenômeno orgânico.
Palavras-chave: Hipnose; Dor Crônica; Sujeito; Subjetividade

Abstract
This paper has as its starting point a criticism of contemporary research on hypnosis and chronic
pain in which emphasis is not given to the role of the subject in the therapeutic process. It seeks to
demonstrate how hypnosis techniques can contribute to the emergence of the subject in patients
suffering from chronic pain. Using short clinical examples one shows how these techniques enable
the subject to take an active role in the process and how they bring out experiences and narratives
that have considerable therapeutic potential, while still being typically marginalized by mainstream
medical rhetoric. The techniques are addressed in three general categories: acceptance and rapport,
story telling, and language subversions. One concludes considering that the techniques are in favor of
triggering resources and potentials, placing value on knowledge and actions of the subject and not
remaining restricted to the notion that pain is a purely organic phenomenon.
Keywords: Hypnosis; Chronic Pain; Subject; Subjectivity

1 Contato: mneubern@hotmail.com

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A literatura contemporânea sobre as procedimento externo ao sujeito, cujo


pesquisas das relações entre hipnose e dor domínio é exclusivo do profissional e sobre
crônica apresenta uma contradição o qual o paciente nada tem a dizer ou fazer,
incômoda na medida em que se destaca a a não ser acatar as ordens dos profissionais.
eficácia da hipnose como técnica Mais que isso, torna-se uma técnica em si,
terapêutica, mas pouco discute sobre a desvencilhada das relações de seus
forma como ela atua na transformação da protagonistas e do contexto onde ocorrem,
experiência de dor vivida pelo sujeito. deixando de lado importantes momentos
Assim, ela pode se referir a grupos qualitativos do processo terapêutico, como a
populacionais particulares (Jensen & qualidade do vínculo, a singularidade e a
Patterson, 2006), à aplicação de técnicas a participação do sujeito acometido pela dor
problemas específicos (Kandiba & Biniki, crônica (Erickson, 1959). Nessa perspectiva
2003; Liossi, 2006; Nogueira, Lauretti, & clinicamente equivocada, tais pesquisas não
Costa, 2005) e à avaliação de sua eficácia permitem uma explicação, nem mesmo uma
terapêutica (Carli, Huber, & Santarcangelo, discussão mais aprofundada sobre como a
2008; Patterson, 2004; Turk, Swanson, & hipnose atua e se torna uma técnica eficaz,
Tunks, 2008) de modo a destacar e conferir sobre quais dimensões atua, como
visibilidade a importantes padrões que proporciona o envolvimento do sujeito e
podem perpassar demandas cotidianas de que relações ela pode estabelecer com o
pessoas com diferentes demandas que contexto terapêutico. Como já ocorreu
batem à porta dos profissionais de saúde ou historicamente (Neubern, 2009b; Stengers,
esperam pela contemplação de políticas 2001), a contradição em torno da hipnose
públicas. Malgrado a relevância de tais parece permanecer, pois mais uma vez, se
estudos, pode-se considerar que há um torna alvo de interesse dos pesquisadores
enrijecimento conceitual nada desprezível que, de sua parte, não explicam, ou trazem
que leva a uma ótica de considerável uma grande dificuldade em explicar, suas
reducionismo a respeito do tema. Sob a formas de atuação.
ótica do modelo médico dominante, No entanto, se a explicação de um
promovem uma visão sobre a dor restrita ao ponto de vista nomotético e experimental se
biológico, desvencilhada da vivência das torna um grande obstáculo, é possível
pessoas, de suas trajetórias de vida, de suas conceber alternativas qualitativas de reflexão
trocas com o mundo social e cultural que e compreensão muito relevantes sobre o
perpassam seu mundo cotidiano (Neubern, tema a partir de outras óticas e dos estudos
2009a). clínicos de importantes nomes da hipnose
Ao mesmo tempo, a hipnose passa a (Erickson, 1983; Roustang, 1991). Caso se
ser concebida como uma técnica linear, tome o corpo como momento fundamental
como uma intervenção pontual sobre um da subjetividade da pessoa, é possível
sinal clínico objetivo, como um romper com a ótica médica tradicional,

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posto que esse corpo se torna um espaço de emoções e significados, ela se torna passível
inscrição da cultura, um portador de de influência pela ação humana, o que
significados vividos, um território proporciona perspectivas interessantes para
privilegiado da existência (Csordas, 2002; o estudo da hipnose em suas dimensões
Merleau-Ponty, 2006; 2008). Como a técnicas e relacionais.
experiência do sujeito com seu corpo passa Numa ótica semelhante, torna-se
a significar algo para ele (Gonzalez Rey, possível conceber o papel do sujeito de
2007; Lakoff & Jonhson, 1999; Johnson, outra forma no contexto do tratamento.
2007), torna-se possível integrá-la às tramas Rompendo com uma noção determinista e
da vida social, a suas relações com a cultura passiva, que caracteriza o indivíduo face ao
e o dia a dia da pessoa. Desse modo, discurso médico dominante, a condição de
independente das diferenças entre tais sujeito (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, 2010)
perspectivas, elas apontam para uma implica numa dimensão de protagonismo
qualificação do corpo enquanto processo que o coloca na condição de ator do
vivido, de modo que a experiência de dor processo terapêutico que, malgrado as
passa a ser concebida sob uma nova ótica, determinações sofridas, possui um poder de
(Neubern, 2009a; 2010) na qual, além dos recriá-las e transformá-las em certa medida.
automatismos e aprendizados corporais, Como o contexto não se constitui numa
relaciona-se às questões com as quais o perspectiva ambientalista, formado por
sujeito lida em seu cotidiano. Ela pode variáveis reificadas, mas como um conjunto
configurar elementos da relação da pessoa de registros simbólicos e vividos que
com seu emprego ou a perda dele, com seus perpassam a relação entre as pessoas
papéis e heranças na família, sua dinâmica (Bourdieu, 2000; Morin, 1991), o sujeito é
interativa no casamento, suas rupturas de atravessado por tais influências, mas as
projeto de vida, suas crenças religiosas e as reconstrói de maneira a criar novos
pressões ou distâncias em que é situada em processos e formas de relação nas interações
suas redes sociais. Como a dor, em que toma parte. Desse modo, embora
independente de qual seja sua causalidade, seu poder de ação e construção possua
constituiu-se enquanto subjetividade2, limites, ele estabelece uma relação dialética
configurada em sentidos subjetivos, com o contexto, já que este pode favorecer
sua emergência, ao mesmo tempo em que o
2
Subjetividade, na perspectiva aqui adotada, é a sujeito pode também atuar de modo a
constituição psíquica do sujeito e implica na produção
influenciar o contexto e, talvez, até
de sentidos subjetivos produzidos a partir da dialética
do sujeito com os diferentes momentos de inserção no proporcionar que se transforme em termos
mundo sócio-cultural (Gonzalez Rey, 2007). Ela se
organiza numa ótica configuracional, isto é, sistemas terapêuticos.
subjetivos que integram processos cognitivos e
Tal perspectiva é de grande relevância
emocionais, de onde emergem os sentidos. Nesta
perspectiva, a dor crônica será aqui concebida como para o estudo das relações entre hipnose e
experiência subjetiva, mesmo que possua causalidades
físicas (Neubern, 2009a). dor crônica, pois rompe com o naturalismo

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da relação individuo-ambiente, típico dos médico, permanecem marginalizadas das


discursos e práticas dominantes na pautas interativas, malgrado seu considerável
atualidade dessa área, e abre importantes potencial terapêutico e sua elevada
diretrizes de pesquisa até então pouco capacidade de reconstrução. Concebe-se que
exploradas pelas pesquisas contemporâneas tal gama de experiências possa diversificar as
nesse assunto, como o que poderia possibilidades terapêuticas do processo, em
proporcionar a condição de sujeito, qual o que o sujeito, enquanto artífice de seu
papel da técnica nesse sentido e da relação próprio contexto e trajetória, encontra
que se estabelece com o profissional que se maiores chances de reconstruir sua
dispõe a cuidar do paciente. experiência de dor crônica. Vale, por fim,
Desse modo, o presente trabalho destacar que para se atingir tais objetivos
tem por objetivo mostrar como as técnicas foram utilizadas algumas breves ilustrações
hipnóticas (Erickson & Rossi, 1979; 1980) de sessões clínicas nas quais se demonstra a
podem favorecer a emergência da condição utilização das técnicas hipnóticas e suas
de sujeito (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, relações com os objetivos aqui propostos.
2010) do paciente no processo terapêutico, Tais ilustrações são oriundas de uma
condição que é aqui considerada como pesquisa do autor, da qual os pacientes
momento fundamental para a reconstrução participaram de forma voluntária e as
da experiência subjetiva de dor e do exigências éticas foram rigorosamente
contexto. Basicamente, a abordagem dessa cumpridas3.
relação entre as técnicas e a condição de
sujeito será aqui efetuada em dois focos. Por Aceitação e Rapport
um lado, procura-se destacar como as Quando o terapeuta se coloca
técnicas favorecem uma postura de disponível para compreender o mundo de
protagonismo que faz com que o sujeito saia experiências do sujeito, mostrando um
da condição passiva de indivíduo para se interesse genuíno por sua pessoa, ele tende a
transformar num ator de seu processo transmitir ao paciente um conjunto de
terapêutico, de maneira a se tornar alguém sugestões que conferem importância a seu
capaz de influenciar ativamente sua mundo e a sua própria pessoa, o que pode
experiência de dor crônica e modificar a consistir num convite de grande valia para
relação com ela, rompendo com a seu engajamento emocional a uma proposta
linearidade e o determinismo que terapêutica (Neubern, 2010). Passando a se
geralmente tais experiências impõem às sentir importante e valorizado em suas
pessoas. expressões, o paciente pode se dispor a um
Por outro lado, busca destacar como tais
técnicas podem favorecer o acesso e a 3
Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
visibilidade de experiências e narrativas que, da Universidade de Brasília. Desse modo, os nomes dos
pacientes citados neste artigo são fictícios para proteger
em geral, devido à dominância do discurso a identidade dos mesmos.

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processo relacional na condição de sujeito, dentre outros, ligados ao que culturalmente


tanto por atuar de forma ativa a favor do se concebe em torno do termo aceitação,
tratamento, como por vencer a distância que facilitam a criação de laços emocionais que
muitas vezes marca as relações em que toma se situam além da linguagem e atuam de
parte por conta de sua condição de saúde. forma significativa na produção de um
Em suma, a partir de um indivíduo afetado contexto favorável ao processo terapêutico.
unilateralmente pela dor, cria-se um Desse modo, além de otimizar uma
contexto relacional de diálogo e interação postura ativa e engajada dos protagonistas,
em que o paciente se coloca como ator que terapeuta e paciente, que passam a perceber
ocupa uma posição central nesse processo, e sentir possibilidades de atuação concreta
mais importante do que as dores que vive. na dor, essa dimensão emocional do
Apesar de o terapeuta poder intervir e processo envolve uma materialidade das
questionar diretamente sobre sua dor, o expressões (Bachelard, 2004) que é decisiva
foco torna-se falar sobre o sujeito e sua para a transformação da experiência de dor.
vida, procurando saber quem ele é, o que As palavras, os gestos, as expressões faciais,
pensa, gosta, faz e sente, e ainda quem são a pausa entre as falas, a entonação da voz
as pessoas importantes para ele. Há, parecem ganhar uma condição material que
portanto, um processo que vai da toca o corpo vivido do paciente como se o
desconstrução da dor para a reconstrução acariciassem e o envolvessem de maneira a
do sujeito: enquanto aquela deixa de ser uma incutir experiências de leveza, fluidez,
entidade para se tornar uma experiência movimento, envolvimento e calor, que
contextualizada em sua vida, este deixa de comumente se contrapõem à materialidade
ser um indivíduo passivo e controlado por agressiva da dor no corpo do sujeito. Não é
forças externas para se tornar alguém que sem razões que alguns pacientes descrevem
aprende a se posicionar de forma uma espécie de elo energético com seus
participativa e criativa em seu processo terapeutas, um elo que, ao ser ativado, já traz
terapêutico, pois o assunto em pauta torna- uma sensação de segurança e alívio para o
se sua vida cotidiana e seu saber, nesse que vivenciam naquele momento e que pode
sentido, é profundamente valorizado. ser decisivo numa transformação mais
Ao mesmo tempo, a aceitação implica duradoura em suas configurações subjetivas
outras dimensões importantes nesse sobre a dor, sobre si mesmos e sobre
processo. Por um lado, ela facilita a criação importantes momentos e relações de suas
do rapport (Roustang, 2006), uma coreografia vidas.
emocional e corporal em que ocorre uma Por outro lado, ao tecer, durante as
intensa responsividade mútua que pode conversações, uma série de questões a
facilitar em muito o processo de construção respeito de sua dor, o terapeuta não apenas
de vínculo na terapia. As expressões faciais, envolve o paciente numa postura ativa de
a gestualidade, a intensidade e ritmo da voz, mapeamento do que vive e do que o

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atormenta, mas também oferece o espaço de também influenciar a dor. Assim, em um


que possa atribuir significados a tais processo de visualização, por exemplo, em
experiências de modo a concretizá-la de que o paciente consegue simbolizar a dor
forma mais nítida no mundo vivido do como uma torrente avassaladora de águas
sujeito (Neubern, 2009a). Esse tipo de barrentas, ele pode aprender a sair dessa
abordagem, muito próxima das perspectivas torrente e observá-la de fora; neste processo
narrativas (Goolishian & Anderson, 1996; ele percebe que determinadas formas de
White, 2007), tende a estreitar a relação pensar, sentir e se relacionar podem
terapêutica, pois os pacientes comumente se empurrá-lo de volta para a torrente e que
queixam da dificuldade que possuem em outras podem situá-lo numa posição segura
encontrar alguém que tenha disposição e e tranquila, o que lhe faculta assumir uma
paciência para ouvir sobre o que se passa opção – importante indicador da condição
com eles. Ao mesmo tempo, esse tipo de de sujeito e de um processo terapêutico bem
conversação, que também pode ser feita sucedido.
durante a hipnose, possui uma intenção No entanto, a aceitação não se
pragmática de reconstrução da experiência, restringe a focar a dor em si mesma, pois
indo além de um exercício intelectual ou da abre a conversação e as intervenções
busca de insights. hipnóticas às dimensões da vida do sujeito
Logo, por pior que seja, a dor pode que este entende estar relacionadas com sua
passar a ter uma forma e alguns contornos experiência. Daí a importância de que o
que delimitam sua presença na experiência terapeuta possua um sistema teórico flexível
do sujeito, sendo que, de uma entidade (Gonzalez Rey, 2007; Neubern, 2004; 2010),
inefável e onipotente que simplesmente o pois diferentes registros simbólicos podem
toma e o atormenta, ela passa a ser algo estar presentes na produção dos sentidos
delimitado em seus tempo e espaço vividos subjetivos que constituem a experiência de
e com a qual se pode estabelecer outras dor dos pacientes. A exigência do marido
formas de relação. Trata-se de uma forma de que continua cobrando da esposa o
ação possível do sujeito, pois passa não desempenho de seus deveres sexuais, a
apenas a identificar melhor as formas de ameaça de desemprego do pai de família, a
influência da dor (se ela queima, perfura, destruição de um projeto futuro de vida, as
dilacera, aperta), mas também a estabelecer relações abusivas com pessoas próximas, a
uma distância temporal e espacial dessa dor perda considerável de autonomia nos
de modo a perceber que certas atitudes, afazeres diários, a inversão de papéis
posturas e ideias (que implicam em toda familiares para cuidar do paciente, o
uma produção subjetiva de emoções, questionamento da própria fé e o temor da
sentidos e significados) podem ser mais morte são alguns dos temas que podem
interessantes para que ele modifique tais perpassar a produção de sentidos dos
formas de relação e possa, de sua parte, pacientes sobre a dor que vivem e que

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precisam ser considerados como intensidade de suas dores.


constituintes do processo terapêutico.
Uma vez que a dor, independente de sua Conto de Histórias
causalidade, passa a ser concebida como O conto de histórias consiste numa
uma experiência subjetiva (Erickson, 1983; dimensão central do processo hipnótico
Neubern, 2009a; 2009c; 2010), ela sai da (Erickson, 1954), principalmente por
condição de uma entidade encapsulada em ocorrer numa relação terapêutica,
si, acessível apenas ao saber médico, para afetivamente implicada e com alto potencial
um processo que possui múltiplas relações de simbolização que possui considerável
com os contextos de vida do sujeito, o que impacto de transformação nas influências
oferece alternativas de ação terapêutica do contexto. Nesse sentido, o uso da
muito significativas para o processo. Isto linguagem vai além de uma prescrição direta
porque, malgrado a importância do arsenal que deve ser seguida por uma ou mais
médico para lidar com a dor, o processo respostas do sujeito, como ocorre nas
passa a vislumbrar outras opções de ação técnicas hipnóticas de inspiração clássica
que se referem a dimensões que possuem (Neubern, 2009b). Quando o terapeuta
uma relação altamente significativa com as conta uma história ao paciente em transe,
dores do paciente. É assim que uma esposa ele oferece uma estrutura complexa de
pode perceber que sua submissão significados que poderão proporcionar
incondicional aos desmandos do marido novas construções de sentidos subjetivos
exige dela uma postura mais assertiva com sobre a experiência de sua dor crônica.
outras possibilidades de negociação; que sua Como nem sempre a história possui uma
ansiedade quanto à vinda da dor a antecipa, ligação explícita com sua situação, nem é
o que requer um desligamento dessa forma apresentada como uma ordem, o paciente
de pensar; que a ruminação sobre a perda tende a não se sentir pressionado para
financeira a intensifica e ela aprende, então, responder de tal ou qual forma, mas se sente
a focar suas atenções em outros temas e de convidado a participar despretensiosamente
outras formas; que o excessivo cuidado que do processo, criando suas próprias
presta aos outros lhe traz uma sensação de associações, metáforas (Lakoff & Johnson,
peso que pode ser em muito reduzida 2003), experiências (Csordas, 2002) e
quando integra a noção de autonomia à imagens (Casey, 2000) sobre aquele conto.
possibilidade de cuidar. É curioso notar Dito de outro modo, ele cria, de forma
como o trabalho hipnótico dessas espontânea, diversas formas de experiências
dimensões costuma redundar em mudanças que podem abrir novas perspectivas quanto
concretas e de grande pertinência para o à forma como seus problemas estão
sujeito, não só em termos dos modos de se configurados e quanto a possíveis
inserir nos cenários sociais e na produção de alternativas para lidar com eles. Recursos e
novos sentidos subjetivos, mas também na aprendizados antigos podem ser evocados,

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novas relações estabelecidas, ligações entre pressa e enxergar a melhor forma de


processos e percepções que geram abordá-la, isolando seus espinhos e
sofrimento podem ser desfeitas de modo apreciando seu perfume e suas cores. Como
que o paciente pode, gradativamente, se estava num transe agradável e relaxante, ela
apropriar dessas ferramentas e estabelecer poderia fazer isso várias vezes, inclusive
novas formas de gerar significados e percebendo que poderia estar ali, repousada
emoções nas dores crônicas que o afetam. naquela poltrona do consultório, e, ao
Ao se contar uma história ao paciente, ela mesmo tempo, junto à bela rosa que tanto
não precisa possuir uma semelhança lhe chamou a atenção.
explícita com a situação por ele vivida, mas Neste relato, que contribuiu para que a
uma proximidade com sua temática paciente estabelecesse mudanças muito
simbólica que, geralmente, não é percebida significativas em suas dores e em seu círculo
conscientemente por ele. As dores de social, é possível perceber a semelhança
fibromialgia de Dona Felícia, 50 anos, implícita entre uma série de referências
pareciam muito ligadas a um papel de simbólicas da história e de sua situação
cuidado acentuado e unilateral, em que seus familiar (Peirce, 1998). A paciente, que
familiares exigiam suas atenções sem aparece no relato como protagonista (como
oferecerem colaboração ou contrapartida de também em sua família), possui interesse
qualquer espécie. Diante da crise psiquiátrica num objeto muito especial que a chama e
de sua irmã, ela temia intervir e arcar encanta (a rosa), que em muito se aproxima
sozinha com muitas responsabilidades de sua relação com outro objeto de atenção
pessoais e financeiras que em muito – sua irmã. Tal semelhança também ocorre
aumentariam a sensação de peso em suas na forma de influência ambígua que os
costas, o que, em sua experiência, objetos exercem sobre a protagonista: ao
desencadeava dores acentuadas. O terapeuta, mesmo tempo em que encantam (pela
então, seguindo uma série de dispositivos beleza das pétalas e pelos laços afetivos
técnicos (Erickson, 1983), contou-lhe uma familiares), também exigem prudência (seja
história em que ela poderia ver uma bela pelos espinhos, seja pelas dores da
rosa, visualizar suas grandes e vistosas fibromialgia), o que coloca a paciente em
pétalas, como também seus espinhos grande e conflituosa dúvida quanto a como
pontudos e afiados. Ela poderia ficar ali, se posicionar diante desse dilema. No
numa posição mais distante, bem entanto, diante de tantas semelhanças, a
confortável e relaxada, apenas apreciando a história busca acrescentar uma pequena
rosa até que percebesse que poderia se diferença tocando num tema central de seu
aproximar dela sem ter problemas com os conflito – a distância vivida (Merleau-Ponty,
espinhos. Então, ao perceber que seu corpo 2008) – como forma de inspirar algumas
permitia que ela se aproximasse de uma possibilidades distintas de relação com tal
forma segura, ela poderia ir até a rosa sem objeto.

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É neste ponto que há uma ênfase numa (Erickson & Rossi, 1979). Trata-se de uma
posição relaxada e confortável, em que ela apropriação que implica a geração de
pode apreciar a rosa (e refletir a situação de processos emocionais, redes de significados
outro ângulo), como na possibilidade de se e sentidos subjetivos que conferem o teor
mover até a rosa (ir até a irmã), isolar seus pessoal do paciente a tal produção e
espinhos (proteger-se dos perigos de estabelecem uma relação dialógica com suas
assumir sozinha as responsabilidades) e ações no cenário social, de modo a influir
apreciar aquele momento (isto é, exercendo em suas formas de relacionar e
o papel de cuidadora da família, tão compreender o mundo e os outros. Isso
importante para ela). Assim, em contraste permite que a experiência de dor possa se
com a rigidez com que se via nas relações transformar, assumindo novos contornos,
familiares, o conto a situou numa posição relações e formas para o paciente, uma vez
flexível em que há a possibilidade do que passa a integrar novos processos de
movimento, da reflexão e da leveza, sem que produção subjetiva.
precisasse abrir mão de responsabilidades e
tarefas importantes para ela. Não foi sem Subversões da Linguagem e
razões que, embora tivesse assumido a Inconsciente
frente dos cuidados da irmã, ela reuniu a Outra dimensão importante da linguagem
família, e conseguiu propor uma negociação hipnótica, que ocorre embutida na
produtiva com seus membros que puderam coreografia corporal do rapport e atua como
dividir as responsabilidades de cuidado com modelador de grande valia do contexto, é
sua irmã, reduzindo em muito a ansiedade e um uso de linguagem específico que parece,
a intensidade de suas dores. em larga medida, contar com uma forma
No entanto, ao mesmo tempo em que interessante de subversão da linguagem: as
essa linguagem oferece várias alternativas de referências indiretas ao inconsciente. Seja
reconfiguração da experiência de dor, não pelo uso excessivo de palavras e pronomes
há qualquer apelo para que o paciente indefinidos, que parecem funcionar como
produza um insight, principalmente diante índices (Peirce, 1998), seja pelas repetições e
do terapeuta que, numa perspectiva redundâncias, seja pela atribuição de
tradicional, espera por associações intenção e poder a outras partes do sujeito,
específicas que comprovem a pertinência de o processo de construção das sugestões se
suas intervenções e teorias (Neubern, 2004). passa com referências a uma instância além
O que importa é que a história se das deliberações conscientes do sujeito que
transforme numa produção legítima do é situada na condição de quem possui
paciente, de maneira a se tornar um sabedoria e poderes capazes de criar algum
processo apropriado por ele que, mesmo tipo de solução para atender as demandas
permanecendo inconsciente, pode ser do sujeito. Em certas circunstâncias, as
acionado e utilizado no dia a dia a seu favor referências a tal dimensão ou instância

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ocorrem por meio da técnica do conhece esse sofrimento ... e pode senti-lo ... e
respirar fundo, ouvindo seu inconsciente ... e aí em
entremeamento (Erickson, 1966), ou seja, a seu corpo ... fluindo o ar ... perceber como está essa
repetição e a quebra da sequência das dor ... que forma tem ... e como seu inconsciente ...
respirado com suavidade ... pode chegar e ajudar a
expressões de sofrimento do sujeito por transformar essa dor ....
meio da interpolação de outras experiências
Essa técnica consiste na ênfase
presentes no acervo de aprendizados e
(geralmente num tom de voz diferenciado)
experiências da subjetividade do paciente.
conferida a determinados trechos da fala
Esse tipo de técnica é particularmente útil
(daí o itálico) que são interpolados entre
em situações de crise na qual o paciente
trechos que espelham ou repetem as falas e
parece se encontrar tão profundamente
expressões do paciente, passando as
paralisado pelo sofrimento que se sente
sugestões, de forma indireta, de que existe
arrastado pela sequência de expressões, de
uma sequência paralela de experiências
modo a não lograr uma solução para tal
àquela expressada pelo paciente. Essa
situação. Tal experiência assemelha-se a uma
sequência aponta para uma dimensão de
sensação de arrastamento, em que o sujeito
corporeidade ou sabedoria além do
parece ser tomado por torrentes emocionais
pensamento deliberado do sujeito –
de modo a não conseguir pensar ou agir de
portanto, inconsciente – mas que, ao mesmo
outra forma.
tempo, não se constitui como algo externo a
Assim, ao se remeter à traição do marido,
ele, já que se encontra em sua subjetividade
que fez com que contraísse uma doença
e pode se tornar acessível ao sujeito. Como
venérea, Dona Clara, 50 anos, expressava-se
ilustrado no trecho acima, isso pode ser
entre gritos e choros que a induziram a um
notado quando as sugestões se referem a sua
transe espontâneo e muito sofrido: “...
própria respiração e ao seu inconsciente, que
(choros e gritos)... ele é um monstro
se afigura como instâncias que podem
(choros)... um monstro... depois de tantos
chegar e ajudar a transformar essa dor.
anos (choros)... olha só o que me fez...
Nesse ponto, o entremeamento pode
como isso dói... que ódio! Que ódio!...”. Tais
oferecer algumas possibilidades
expressões, emitidas repetidamente,
interessantes, sendo que a primeira delas
passaram a ser acompanhadas por socos e
parte da responsividade que caracteriza o
arranhões dirigidos contra o próprio corpo,
rapport entre terapeuta e paciente. Uma vez
de maneira que o terapeuta se colocou a
que se encontram vinculados por essa forma
segurar suas mãos de forma suave e firme,
de relação, ao repetir as expressões do
estabelecendo uma continência para
paciente, o terapeuta passa a acatá-las, mas
protegê-la. Simultaneamente, ele utilizou as
também a emiti-las como sugestões, o que
seguintes palavras:
consiste num convite um tanto bizarro à
... sim, ... um monstro ... um monstro ... respire ...
um ódio grande .... suavemente ... um ódio grande primeira vista, de que o paciente reproduza
... suavemente respirando ... que te fez sofrer muito novamente as experiências que tanto o
... respire suavemente ... sofrer muito ... e você

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atormentam. Entretanto, à medida que o processos de reconfiguração são


faz, ele passa a exercer certo controle sobre acompanhados por um alívio nada
essas experiências, o que parece tirá-lo, ao desprezível das dores crônicas do sujeito.
menos em partes, da posição submissa em Outro tipo comum de subversão da
que o sofrimento o colocou. Tudo se passa linguagem na hipnose ocorre quando se
como se, aos poucos, as rédeas da influência modificam os objetos designados4 pelas
fossem colocadas em suas mãos, de maneira sentenças ou ainda quando se conferem
que o paciente assuma seu protagonismo intencionalidade e poder a partes do corpo e
diante de sua dor, aliviando-a, da psique do paciente como se pudessem
principalmente por meio da produção de influir sobre as demandas trabalhadas na
determinados fenômenos hipnóticos, como terapia. As sugestões utilizadas com Dona
anestesia, deslocamento, dissociação, Marina, 56 anos, que padecia de intensas
regressão de idade, dentre outros (Erickson dores de fibromialgia, são muito ilustrativas
& Rossi, 1980). Assim, é o próprio sujeito nesse sentido. Esta senhora teve seus
quem aprende a romper com a sequência de sofrimentos desencadeados pelo luto
experiências dolorosas porque passa a ocorrido em função da morte de sua irmã, o
interpolá-la com outros tipos de que lhe trazia uma perda de gosto pela vida,
experiências de seu próprio repertório que, como pelos alimentos, um cansaço
muitas vezes, já se encontram ativados num infindável, e um afastamento sistemático de
nível inconsciente para lidar com a dor, mas vários papéis que ocupava no cenário social
parecem ainda ser ignorados pelo paciente. e familiar. A seguir, alguns exemplos de
É interessante notar que semelhante sugestões que foram usados com frequência
processo, talvez pela própria ausência de em suas sessões hipnóticas:
coerência ou lógica habituais, é muito mais ... e quando somos crianças, aprendemos a sentir o
gosto das coisas ... cada criança costuma ter um
um convite ao fazer do que ao pensar, um doce preferido ... e ela vai aprendendo sobre ele ...
processo no qual o sujeito se desvencilha da sobre as nuances de seus gostos ... e possui rituais
para comer esse doce ... às vezes em grupo, em meio
busca de conteúdos para se entregar à às conversas e histórias da família, ... às vezes
escondida embaixo da escada ... e cada uma tem o
transformação de formas e sequência de seu jeito de aprender sobre esse doce ... e isso fica
experiências. Curiosamente, entregando-se a gravado no corpo, na memória do corpo ... que sabe
que essas lembranças estão lá ... mesmo que
esse jogo, aparentemente fora da lógica, o esquecidas, estão guardadas e esperando ...
sujeito mergulha numa interação com esse
É interessante destacar que, após esse
universo do não pensado (daí a noção de
conjunto de sugestões, a paciente relatou se
inconsciente), em que há uma
predominância da reação e assume uma 4
De acordo com Peirce (1998) o signo designa o
postura que acaba por proporcionar novas objeto, aquele outro além dele mesmo, e implica
também no interpretante, isto é, a interpretação, o
configurações de sentido a suas experiências,
significado que evoca no sujeito. Numa perspectiva
em que há o império do simbólico (Peirce, similar, Merleau-Ponty (2006) destaca um nível corporal
(de matéria e vida) e outro espiritual como distintas
1998). Vale considerar que, geralmente, tais ordens de significação.

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Técnicas Hipnóticas, Dor Crônica e a Emergência do Sujeito 328

lembrar de alguns momentos de sua infância luto, e uma experiência de vida e aquisição
em que, junto com sua irmã, comia arroz de prazer que se contrapõe à sua vivência de
doce e tomava café ao pé do fogão de lenha falta de gosto pela comida e pelas coisas da
de sua casa na roça, o que era muito vida em geral.
prazeroso para ambas. Tal relato é Desse modo, a própria figura da irmã, no
importante para a compreensão deste presente configurada em sua subjetividade à
processo, uma vez que, explicitamente, ele dor, à perda pela morte e ao desgosto, é
tem a criança como objeto, é a ela que se resgatada por ela mesma em termos desses
refere em seus diferentes momentos de aprendizados que remetem a uma infância
aprendizado sobre o doce. Porém, em sua prazerosa, cheia de aprendizados, de bons
vivência durante o transe hipnótico (ou seja, momentos e rica em trocas afetivas. Assim,
no interpretante) a paciente toma essa figura o objeto designado aparece nas sentenças
geral – a criança – e a traduz em suas ligado a uma série de outras experiências e,
próprias experiências, relembrando em suas vivências imaginárias, relaciona
momentos de grande importância de sua essas experiências positivas à figura de sua
infância muito ligados à figura principal de irmã, que é resgatada em novas
sua demanda clínica (a irmã). Há aqui, possibilidades de configuração. Esse
portanto, uma subversão interessante conjunto de sugestões permitiu a evocação
promovida pela experiência subjetiva da de experiências da própria história de Dona
paciente que transforma o objeto da Marina que puderam retomar maior espaço
sentença em sua própria figura, quando em seu mundo vivido de modo a favorecer
ainda menina, e o faz por um movimento o início de um processo de reconfiguração
próprio sem qualquer ordem expressa do da experiência quanto à figura de sua irmã.
terapeuta. Já o seguinte conjunto de sugestões
No entanto, é importante destacar um remete a essa alteração do sujeito das
aspecto de grande valia nesse momento do sentenças, que se tornam potências ativas,
processo que obedece a uma estrutura de além da atenção e das deliberações
conto de histórias. O objeto designado com conscientes do paciente, que podem atuar
o qual ela se identifica – a criança – aparece sobre ele de maneira a auxiliá-lo na
ligado a experiências de aprendizado (o que modificação de sua experiência de dor
remete a um movimento progressivo da crônica.
experiência subjetiva) e de prazer (o que é E você está aqui e minha voz chega até você... e
uma parte sua talvez possa ir para outro lugar,
situado como um aprendizado importante como quando olhamos para o horizonte e nos
da constituição subjetiva de uma pessoa). projetamos em nossas lembranças... vemos cenas...
imagens... e sentimos como se nossos pensamentos
Assim, ao se identificar com tal objeto, ela fossem embalados por uma leveza... e podemos ficar
ali... vivendo um tempo que parece não passar... e a
acaba evocando em seus próprios recursos outra parte sua fica aqui e trabalha a minha voz...
uma experiência dinâmica e crescente, que do jeito que ela sabe... e fico pensando o que seu
inconsciente já pôde mostrar pra você... cada vez
se contrapõe à vivência de paralisação do que você pensa numa parte de seu corpo, você pode

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M. S. Neubern 329

perceber o que acontece com ela... agora... se você situaram na condição de quem, numa
pensa em sua mão... você pode perceber os músculos
que se soltam... talvez os batimentos cardíacos... o posição confortável e relaxada, pode exercer
sangue correndo por dentro e esperar... o que seu algum tipo de ação sobre seu corpo,
inconsciente vai mostrar e fazer com sua mão... seus
braços... pensando em cada parte dele, e aguardando

Nesse conjunto de sugestões, a paciente alguma expressão do inconsciente, Marina

se vê transportada a outro lugar e contempla saiu de uma relação passiva e unilateral, em

imagens e processos, embora não saiba nem que apenas sofria a ação da dor, para uma

cogite saber por quem ou pelo o quê, nem posição em que alguma ação, mesmo que

como essa força, que age sobre ela, pequena, se tornasse possível. É dessa

proporcionou tal processo dissociativo. Essa forma que a dor sai da condição de uma

mesma força ou instância, que aparece na entidade, como no discurso biológico, para

primeira parte de forma implícita e se concretizar como uma espécie de

posteriormente é designada como experiência sobre a qual é possível algum

inconsciente, é situada como uma cuidadora tipo de mapeamento, de conhecimento de

eficaz capaz de proporcionar alterações de suas formas de interação com o sujeito, em

grande relevância em sua relação com o suma, de uma influência capaz de

mundo (Merleau-Ponty, 2008): alterou sua transformá-la, principalmente devido às

vivência de tempo, proporcionando uma novas formas de produção simbólica

temporalidade que parece não passar, mas (White, 2007).

numa vivência que, ao contrário da dor, é Por outro lado, essa nova pauta interativa

bastante agradável. Modificou sua relação instaurada pelas sugestões proporcionou

com a espacialidade, conduzindo-a a lugares uma possibilidade criativa também ligada a

diferentes de sua experiência habitual, onde essa dimensão designado como

pôde se sentir leve e livre, desvencilhando-se inconsciente. O inconsciente, após uma

do peso da experiência dominante em seu sequência de sugestões óbvias e acessíveis à

cotidiano. E proporcionou mudanças em ação do sujeito, isto é, de pequenas ações

sua corporeidade, à medida que lhe permitiu que ele poderia realizar facilmente, foi

se desvencilhar do corpo (onde a dor é associado a uma perspectiva de surpresa, de

hegemônica) para transitar por um mundo expectativa de algo desconhecido e benéfico

distinto, onde seu corpo pôde resgatar que estaria prestes a acontecer. Tal sequência

outras experiências vividas. entre aquilo que é facilmente realizado

No entanto, o jogo interativo que se (como poder pensar numa parte do corpo) e

estabeleceu, por meio desse conjunto de aquilo que é colocado de forma indefinida

sugestões, entre a paciente, seu corpo e seu (aquilo que será feito pelo inconsciente)

inconsciente também merece ser destacado favorece o desencadeamento de

em termos do potencial de mudanças que experiências, aprendizados e recursos já

proporcionou. À medida que as sugestões a desenvolvidos em sua subjetividade ao


longo da trajetória do sujeito (Erickson,

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Técnicas Hipnóticas, Dor Crônica e a Emergência do Sujeito 330

1983). Assim, apesar de o termo “dor” não humana dos sujeitos, nela implicados como
aparecer explícito em nenhum momento protagonistas. Sustenta-se que a
desta sequência de sugestões, foi ela quem consideração dessa dimensão é fundamental
justificou o acontecimento daquela relação para a modificação terapêutica eficaz do
terapêutica, constituindo-se como um dos contexto e das experiências de dores
principais elementos da configuração de seu crônicas dos pacientes, tanto pela
sofrimento. Ela se tornou, desse modo, o complexidade dos registros simbólicos nelas
alvo ou o objeto implícito das sentenças implicados, como pela necessidade do
para o qual deveriam ser voltados todos os protagonismo dos sujeitos no processo
recursos mobilizados pelas sugestões, mas terapêutico (Neubern, 2009a; 2010). Daí
que, possivelmente, não eram de decorre que a produção das técnicas
conhecimento da paciente que também hipnóticas e a emergência da condição de
esperava curiosamente por eles. Cumprindo sujeito não são originárias de fenômenos
com a profecia inerente a tais sugestões, extraordinários, nem da inspiração em
Marina se surpreendeu ao perceber que seus metáforas distantes da realidade das pessoas,
braços haviam desenvolvido uma analgesia como o computador ou o laboratório
que aliviou consideravelmente suas dores (Goolishian & Anderson, 1996), mas de
naquela região e o fato de poder repetir tal atividades tipicamente humanas, como
procedimento em casa foi um indicador entrar em relação empática com o outro,
significativo de mudanças em suas relações contar histórias e brincar com a linguagem
com tais dores. de modo a poder explorá-la, torná-la um
jogo e até subvertê-la.
Considerações Finais Desse modo, a aceitação e o rapport
Uma conclusão central possível para a tornam-se importantes instrumentos
presente discussão é a de que a terapêuticos uma vez que situam a relação
transformação do contexto para as pessoas entre terapeuta e pacientes de acordo com
que padecem de dores crônicas consiste, uma pauta muito distinta do modelo médico
sobretudo, numa retomada da subjetividade habitualmente destacado nas pesquisas
humana, seja na consideração com relação correntes sobre dores crônicas (Jensen &
às suas experiências, seja na forma de se Patterson, 2006). Implicam,
engajar nas relações terapêuticas com as fundamentalmente, na existência de um
mesmas. Na compreensão aqui interesse legítimo sobre a pessoa do paciente
desenvolvida, as técnicas hipnóticas e sua experiência de dor crônica – ponto
rompem com algumas noções tradicionais que jamais pode ser menosprezado, sob o
que associam as sugestões ao engano, à farsa risco de um abalo irreparável nas
e à ilusão (Neubern, 2009b; Stengers, 2001), possibilidades de intervenção – que resulta
para serem situadas como elementos que se em duas consequências de grande relevância
constroem e são qualificados pela condição terapêutica. Primeiramente, ao demonstrar

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M. S. Neubern 331

interesse pelo paciente e colocar a processo que o induz a modificar sua


conversação em pauta sobre a vida e não experiência a partir de seu repertório
sobre a dor numa perspectiva técnica, o particular de vivências e recursos subjetivos
terapeuta o convida a uma relação marcada (Erickson, 1954). Daí a sensação de
por maior horizontalidade, uma vez que o espontaneidade com que muitos sujeitos
paciente pode se colocar, com propriedade, relatam tanto a produção de processos
a respeito de temas e questões de seu automáticos de corporeidade (Casey, 2000;
cotidiano em que seu saber e suas Csordas, 2002), de onde podem surgir
potencialidades também são valorizados e muitos fenômenos hipnóticos, como a
reconhecidos. Daí a possibilidade de que criação de metáforas (Lakoff & Johnson,
assuma um papel de protagonista, típico da 2003), e a alteração de referências eu-mundo
condição de sujeito. Essa forma de relação o (Merleau-Ponty, 2006; 2008) em termos de
motiva ainda mais quando o paciente tempo, corpo e espaço vividos. Pode-se
percebe que ele mesmo pode influenciar considerar que a reconfiguração da
ativamente sua experiência, como quando experiência acontece, em grande parte,
consegue modificar determinadas crenças devido a um contexto em que contar
ou formas de relação que amplificam sua histórias se torna uma prática possível, ou
dor. seja, uma prática social que possui um teor
Por outro lado, esse convite relacional lúdico e leve que rompe com a tensão
consiste também numa mudança de foco de habitual do contexto de tratamento e incute
grande importância para busca de soluções, uma série de possibilidades de caminhos
uma vez que a dor sai da condição de uma para a mudança. É curioso notar como o
entidade hermética e exclusiva do saber conto de histórias, ao mesmo tempo em que
médico para uma experiência cotidiana evoca o protagonismo do sujeito, parece
perpassada por temas e processos vividos incutir uma materialidade (Bachelard, 2004)
pelo sujeito, em que outras formas de agir e que faz considerável diferença no contexto
pensar se tornam possíveis. Paralelamente terapêutico, sendo mesmo capaz, como
ao que as intervenções médicas estejam ilustrado aqui nos casos clínicos, de resgatar
realizando, a conversação avança de maneira experiências e aprendizados (como o prazer,
a moldar a relação com temas e narrativas, o gosto, a alegria) que se contrapõem ao que
auxiliando o sujeito a se movimentar de os pacientes estão comumente habituados
outras formas por entre tais processos e, quando padecem de dores crônicas.
consequentemente, a produzir novos Na mesma linha de reflexão, é possível
sentidos subjetivos sobre eles. conceber que as subversões de linguagem
Já o conto de histórias torna-se um contribuem para a fabricação do contexto
recurso técnico da mais alta relevância por terapêutico à medida que proporcionam o
consistir numa forma graciosa e sutil de resgate da noção de inconsciente (Erickson,
participação do sujeito em seu próprio 1966), não apenas como conceito, mas

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Técnicas Hipnóticas, Dor Crônica e a Emergência do Sujeito 332

como potência viva e embutida nas trocas surgem, mas também pela chance que se
relacionais. O entremeamento, a princípio, confere aos protagonistas (terapeuta e
costuma causar estranhamento nas pessoas, paciente) de acessar o que não foi pensado
uma vez que rompe com as formas lineares ou buscado como caminho terapêutico
e corriqueiras de pensar e se expressar sobre possível. Mais que isso, no fundo parecem
uma dada situação. A repetição da sequência transmitir a mensagem de que existe algo
de expressões do paciente intercalada por especial no sujeito que, mesmo que ele
sugestões que remetem à outra ordem de pareça desconhecer, pode ser acessado de
experiências pode incutir uma sensação de modo a fazer com que adquira uma nova
espanto ou estranheza, mas, ao mesmo condição de poder sobre a experiência que o
tempo, evocar recursos e potencialidades paralisa, machuca e tanto o faz sofrer. Em
além daquilo que o sujeito havia pensado e suma, tal tipo de relação com o inconsciente
concebido de forma deliberada sobre seu parece implicar o curioso paradoxo de
problema. De modo similar, quando se mergulhar o paciente numa fonte
inverte o sujeito das frases na construção da desconhecida (e, de certa forma, mágica)
sugestão, existe o espaço para a emergência que, apesar de estranha a ele e ao terapeuta,
do desconhecido, de algo que parece vir de pode proporcionar elementos para que ele
fora, se apossar de partes do corpo ou da se constitua como sujeito de seu próprio
mente e possuir um poder de influência processo.
capaz de alterar a experiência vivida pelo
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