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Palavra-chave: recado.

Às trabalhadoras, meu recado:

é difícil continuar, eu sei muito bem. Não porque alguém me contou, mas porque várias
vezes servi como meio para palavras tristes, quase sempre corridas, feito rasura de
médico. Poucas eram as que, felizes, terminavam com uma carinha sorrindo no fim ou
um coração sustentando uma exclamação. A maior parte delas dizia “Chego às 23:00.
Tem comida na geladeira, é só esquentar. Tem carne na panela ou é só fritar alguma
coisa”. Só. Nem mesmo um “eu te amo” ou um “até logo”, apesar de que um até logo
lhe seria impossível. Eu tinha sido escrito às cinco da manhã. E quem as pode culpar,
vocês, trabalhadoras, pelo ponto final, apenas? Já eram cinco da manhã.

Às vezes eu me sentia meio culpado, difícil dizer. Era uma menininha quem me tirava
fora, de mim mesmo ou de minhas outras cem partes (isso varia de marca para marca,
ou do meu tamanho, ou tipo). Sempre me olhava com desconfiança, embora eu sempre
fosse o mesmo: “Chego às 23:00. Tem comida na geladeira, é só esquentar. Tem carne
na panela ou é só fritar alguma coisa”. O dia parecia fechar depois que eu ganhava
forma, como se a tinta que me desenhasse fosse ao mesmo tempo o vento forte que
acumula bulcões, precedendo as tempestades.

Queria que a menininha tivesse raiva de mim, que me amassasse com toda a extensão de
sua pequena força, e me arremessasse à cesta de lixo, como se toda aquela situação
fosse simplesmente culpa minha. Não que a culpa me gerasse conforto, grande óbulo da
salvação. É que culpando a mim, não haveria tempo para culpar as trabalhadoras. Quem
me dera fosse pela minha ausência que ela chorasse toda noite, rodeada pelos seus
irmãos mais novos a embalá-los com sua triste canção de ninar:

(...) mamãe foi pra roça

papai foi trabalhar...

Mamãe foi para os seus dois empregos: de dia, funcionária de uma cafeteria; à noite, de
uma lanchonete. Papai? Foi formar outra família...
E eu sei que vocês queriam estar no meu lugar, ter o meu ofício, ser a módica lembrança
de uma ausência comovente, e que, mesmo descartadas depois de pouco tempo após a
concepção, mesmo que na lata de lixo, ainda sim estariam em casa, como eu estou
agora. Só. Eu e as crianças. E vocês na rua. E, no entanto, mais do que isso, eu sei que o
que fazem, não o fazem por mal, paridas à força, era isso ou a morte:

cobram soluções celestes para um mundo sem pureza

exigem milagres gratuitos

demonstrações populistas de poder e magia

Como se fosse tudo tão fácil – pessoas humildes, simples problemas, fáceis soluções.
Até o milagre mais chão exige árduos sacrifícios...

Este seria o meu recado a elas, às mulheres, às trabalhadoras, principalmente àquelas


que, mães solteiras, dedicam toda a sua vida a um tempo superexplorado. Não é um dia
ou dois que define suas realidades, infelizmente. Este seria o meu recado a elas se eu, já
recado trabalhado, não fosse: “Chego às 23:00. Tem comida na geladeira, é só
esquentar. Tem carne na panela ou é só fritar alguma coisa”.

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