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TÍTULO: O Poder Supremo 1.

O círculo de Blackburn
AUTOR: BRADLEY, Marion Zimmer
GÊNERO: Romance
CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana – Século XX - Ficção
EDITORA: DIFEL
Lisboa, 1999
COLEÇÃO: Literatura Estrangeira

A Série O Poder Supremo é constituída pelos seguintes títulos:


1. O Círculo de Blackburn
2. As Forças do Oculto
3. A Fonte da Possessão
4. O Coração de Avalon
Nota do digitalizador

Badana da capa

Nos dias irrefletidos dos anos 70, muitas pessoas buscavam a solução para os
problemas da humanidade em religiões antigas e achavam que a sabedoria de então tinha
lugar no mundo moderno. Entre elas encontravam-se os seguidores de Thorne Blackburn. que
procuravam a “verdade”.
Durante a noite culminante da cerimônia mais poderosa da religião de Blackburn, o
caos instalou-se, Thorne desaparece, a companheira de Thorne e mãe de um dos seus filhos
pequenos morre.
Truth Blackburn, filha de Thorne, passados trinta anos, ainda procura a verdade: a
verdade sobre o que se passou naquela noite em Shadow’s Gate, sobre os poderes mágicos
que seu pai alegava ter, sobre o seu meio-irmão e a sua meia-irmã há muito desaparecidos.
O Poder Supremo não é apenas a história de uma mulher à procura de identidade. É
também um romance poderoso sobre a realização do potencial humano e da procura de um
sentido na vida, e onde, tal como em As Brumas de Avalon, Marion Zimmer Bradley
transmite, desta vez à ficção contemporânea e com A mesma imaginação poderosa,
personagens excitantes e uma narrativa dramática.
PODER SUPREMO
CÍRCULO DE BLACKBURN
MARION ZIMMER BRADLEY

Tradução de
MARIA LUÍSA VAZ PINTO

Revisão Literária de JOSÉ VIANA PEREIRA


DIFEL - Difusão Editorial AS
Título original Ghostlight
© 1995 Marion Zimmer Bradley
Publicado de acordo com o autor c/o BAROR INTERNATIONAL INC
Armonk New York USA
Todos os direitos de publicação desta obra em Portugal reservados por:
DIFEL Difusão Editora SA
Denominação Social: DIFEL 82 Difusão Editorial SA
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Contribuinte: n.º 501 378537
Matrícula: n.º 8680 Conservatória do Registo Comercial de Oeiras
Capa: Clementina Cabral
Revisão tipográfica: Manuel Evangelista
Fotocomposição: hspaço 2 Gráfico
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu
Depósito legal: n.º143617/99
ISBN 972 29 0369-1 /novembro 1999
PRÓLOGO
30 de Abril de 1969, Shadowkitt
Nova Iorque
Estranha tempestade primaveril assaltava a velha casa com uma ferocidade contínua,
como se tentasse aperceber-se do que se passava lá dentro. Os relâmpagos destacavam as
figuras presentes na sala com uma intensidade abrupta, iluminando a cena como se fosse o
campo operatório dum cirurgião demoníaco.
As únicas janelas daquela sala circular eram as que rodeavam a cúpula. Por baixo das
janelas, procedia-se a um ritual tão antigo como a terra sobre a qual se erguia a casa. No
intervalo dos relâmpagos, as velas que as pessoas presentes seguravam forneciam a única
iluminação, mas era suficiente.
Uma mulher nua reclinava-se sobre um altar de madeira coberto com um pano; o seu
corpo reluzia de óleo, o cabelo preto derramava-se como um leque nas peles e veludos sobre
os quais estava deitada. Perto da sua cabeça, uma mulher de manto encarnado, com a cabeça
atirada para trás numa comunhão extática com as forças que tinham invocado naquela noite,
apoiava as mãos nas fontes descobertas da mulher e gritava palavras numa língua antiga em
contraponto com a trovoada. Sete homens e uma mulher com mantos verde-escuros
dispunham-se nos pontos cardeais de um círculo marcado no chão. Fora do limite desse
círculo, mais outra figura, também ela coberta com um manto. Cada um segurava nas mãos
uma vela de cera de abelha; o seu canto era uma antífona sonora para os gritos extáticos da
mulher ruiva. A norte e a oeste, braseiras cheias de incenso erguiam colunas brilhantes de
fumo perfumado. A leste e a sul, grandes tigelas de cristal cheias de água e flores zumbiam
baixinho, ressoando com o canto extático e a fúria da tempestade.
Acima do som do vento e das vozes, ouvia-se um martelar à entrada da porta da
câmara.
— Ele vem! Ele vem! Ele vem! — gritava a mulher vestida de encarnado.
Pararam de cantar. As portas abriram-se. Viu-se um homem à entrada da porta. Tinha
olheiras profundas e o seu longo cabelo louro esvoaçava. Vinha coroado com uma armação de
hastes de prata e tinha na testa o disco dourado do sol. Na pele, brilhante de óleo, viam-se-lhe
desenhos escuros pintados. Usava apenas uma pele de animal à volta dos ombros e trazia nas
mãos uma grande espada de prata com a ponta levantada, reluzente à luz das velas.
— Sou a chave para todas as fechaduras — entoou ele numa voz profunda que fazia
lembrar um órgão vibrando em pleno mar. — Sou Aquele que Abre o Caminho!
Avançou devagar, com a espada levantada, até chegar junto da figura que estava no
sul, e muito ao de leve tocou-lhe com a ponta da espada no peito. O homem caiu para trás e
todos os outros começaram a cantar num ritmo mais rápido e premente.
— O Sol! O Sol vem aí! Pelo Carvalho, pelas Cinzas e pelos Espinhos, o Sol! O Sol
chegou!
— O Sol está a nascer do Sul! — gritou a mulher com o manto encarnado. — Eu vos
invoco, Abraxas, Metraton, Urano...
A sua ladainha passou despercebida. O homem com os cornos pousou a espada junto
do altar e debruçou-se sobre a mulher nua. O cheiro a âmbar, algália e ópio que emanava da
pele da mulher distinguia-se de todos os outros perfumes.
Continuava a segurar o copo de vinho vazio.
— Katherine, estás bem? — murmurou ele numa voz mais baixa do que o som dos
cantos.
Sentia o poder a formar-se dentro dele; o ritual prosseguia como ele o tinha escrito,
mas esta noite alguma coisa não estava a correr bem no templo.
Ao ouvir o som da sua voz, ela abriu os olhos. Mesmo à luz da vela ele pôde ver que
ela tinha as pupilas muito dilatadas, devido ao efeito das drogas.
— Venha... Aquele... que Abre o Caminho — disse ela numa voz arrastada e rouca.
Os que tinham mantos vestidos, no perímetro do círculo, cantavam todos juntos,
unindo as vozes num ímpeto poderoso.
— Por Abbadon! Megido! Tufão! Preparem-se! — gritou a mulher com o manto
encarnado. — Abram agora, abram agora o Caminho!
Os olhos reviraram-se-lhe e ela caiu de joelhos; e o homem com os cornos sentiu as
Forças a juntarem-se no templo como um esvoaçar de asas. Respirou profundamente para
dilatar o peito e levantou as mãos para os céus.
— Hierodule e Hierolator! Hierofex e Hierofanto — gritou ele.
A sua voz foi abafada pelo som crescente dos trovões, que se misturavam e rugiam
uns contra os outros, como o troar dum comboio que se aproximasse. As portas, instantes
antes fechadas por um acólito, abriram-se de repente com um ímpeto que fez saltar as
dobradiças; o vento gelado invadiu a sala.
— Não! Não rompam o Círculo — gritou o homem com os cornos, mas em vão.
O pânico espalhou-se como fogo pelos farrapos ensopados de óleo; só se ouviam
gritos, era o caos.
Sob o clarão de um relâmpago, viu a mulher no altar cair ao chão e começar a tremer
com espasmos, como uma boneca nas mãos de um deus vingativo. Um trovão mais forte do
que todos os outros parecia rachar a sala como o machado de um carrasco.
Depois fez-se escuro.
Gritos.
E, algures, uma criança gritava.
CAPÍTULO UM
O QUE É A VERDADE?
Beholding the bright countenance
Of truth in the quiet and still
air of delightful studies.1
JOHN MILTON

Ao norte da cidade de Nova Iorque, ao longo da margem do rio Hudson, existe uma
pequena propriedade que fica entre os trilhos do comboio de Metro North e a vasta extensão
do rio. O edifício principal foi em tempos um lagar de cidra e o lagar bem como os
descendentes do pomar de origem ainda lá está. Caminhos de tijolo atravessam suavemente os
relvados ondulantes, e todos os anos os estudantes e os veados disputam entre si os frutos das
árvores.
Edifícios mais tardios no estilo federalista, exuberantemente clássico, completam o
complexo universitário, mas há mais de um século que não tem havido construções no local.
O seu conservadorismo arquitetônico torna-o de tal forma a imagem perfeita de um colégio do
século XIX que o reitor tem de desencorajar firmemente as tentativas de várias companhias
cinematográficas que todos os anos querem filmar ali; mas o Taghkanic College mantém a
sua privacidade e a dos seus estudantes e da sua faculdade.
O Taghkanic College foi fundado em 1714 para educar os índios da região e a maior
parte pertenciam às tribos Taghkanic e Lenape ou eram negros livres que se tinham instalado
naquela área. Existindo ainda hoje nos termos dos estatutos originais, o Taghkanic College
nunca aceitou um tostão de apoio do Governo para cobrir os seus custos, preferindo
permanecer independente, primeiro da coroa e do governador real, mais tarde dos
representantes dos Estados Unidos, recém-formados.
A aderência a esta política levou, ao longo dos anos, a uma liberalização da sua
política de admissão: em 1762, o Taghkanic College abriu as suas portas a “todos os jovens
senhores de boas famílias”, e em 1816 às mulheres, tornando-se uma das primeiras
instituições de estudo superior nos Estados Unidos a fazê-lo.
Apesar desta política de admissão tão liberal, o Taghkanic College não existiria hoje
em dia se não fosse o empenho de duas pessoas: Margaret Beresford Bidney e Colin
MacLaren.
Bidney formou-se no Taghkanic College no mesmo ano em que a insurreição dos
estados do Sul transformou a fortuna confortável do seu pai numa grande fortuna. Nunca
casou e nos seus últimos anos de vida foi discípula de William Seabrook, um ocultista
notável.
Não admira, por isso, que a fortuna da menina Bidney tivesse servido para fundar, no
colégio em que se tinha matriculado, o que viria a ser o Margaret Beresford Bidney Memorial
Psychic Science Research Laboratory (Laboratório de Pesquisa de Ciências Psíquicas
Margaret Beresford Bidney).
Desde a sua fundação, o laboratório ou o Instituto Bidney, como ficou a ser conhecido
manteve-se independente da universidade, graças aos fundos doados no Legado Bidney. Os
fiduciários da universidade tentaram reivindicar todo o Legado Bidney a favor do Taghkanic
College durante mais de cinquenta anos e estavam prestes a consegui-lo quando Colin
MacLaren aceitou o cargo de diretor do instituto.
1
Vendo o rosto brilhante / De verdade, tranquila e / com ar delicioso de colegial! (N. da T.)
O Dr. MacLaren era conhecido em círculos para psicológicos desde o início dos anos
50, trabalhando muitas vezes na sombra devido à sua vontade de aceitar pelo valor nominal
aquilo que outros rejeitavam e classificavam como delírios de charlatães e idiotas. MacLaren
afirmava que não se deveria separar os campos do ocultismo e da parapsicologia, e que,
quando separados, os ocultistas deviam ter prioridade, uma vez que estudavam o mundo
oculto há séculos, tentando descobrir um método científico para lidar com os seus efeitos. O
campo de estudo de MacLaren era o espiritismo de transe ou mediúnico, e a sua liderança
agressiva era exatamente o que estava a fazer falta ao moribundo Instituto Bidney.
Sob a sua direção, o instituto colocou-se na vanguarda da investigação tanto dos
fenômenos espíritas como dos fenômenos ocultos, e tornou-se uma instituição de reputação
internacional.
O fantasma da sua dissolução desapareceu como ectoplasma gasto e tornou-se claro
para os desapontados fiduciários do Taghkanic College que a sua filha adotada, rica mas não
desejada, continuaria ali até ao dia em que o inferno gelasse; acontecimento que o pessoal do
Margaret Beresford Bidney Psychic Science Research Institute tencionava avaliar, de
qualquer maneira.
Truth Jourdemayne estava sentada, a pensar, no seu pequeno cubículo no Instituto
Bidney, numa letargia de segunda-feira de manhã que ainda não tinha sido reanimada pelo
poder curativo do café. O seu cabelo curto e escuro, com um corte sensato, parecia apenas
levemente em desordem, e a sua bata branca de laboratório, vestida por cima de uma camisola
de algodão e jeans, parecia menos amarrotada do que o habitual. Por baixo do seu cotovelo,
uma pilha de folhas impressas em computador, com 12 cm de espessura: o trabalho de Truth
para o futuro imediato.
Olhou para o relógio na parede, empurrando para a testa os óculos com armação de
tartaruga. Oito e quarenta e cinco; quando chegara, há quinze minutos, Meg estava a encher o
balão de café. Era grande e velho e demorava tempo a ferver; o café ainda ia demorar um
pouco. Truth suspirou e puxou as folhas para si. O melhor era trabalhar um pouco enquanto
esperava.
Davy tinha acabado ontem a última das séries. Fazia parte de uma experiência que
Truth tinha delineado; nada fora do normal, apenas uma tentativa para estabelecer de uma vez
por todas uma base estatística para incidentes de percepção sensitiva.
Juntar os dados para validar a experiência era trabalho necessário, mas entorpecia o
espírito: dez indivíduos com idades entre os vinte e os vinte e cinco anos, em boas condições
físicas, que queriam participar numa série de 100 testes. Truth achou que as suas descobertas
podiam ser postas em causa por se basearem numa pequena amostra estatística. Mas a
experiência teria sido impossível de controlar com mais voluntários, mesmo que os
conseguisse arranjar. Tinha demorado mais de um ano para juntar os dados. E o trabalho
preliminar era suficientemente seguro. A experiência estava de acordo com todas as diretrizes
da Sociedade Internacional de Pesquisa Psíquica: as reações eram gravadas eletronicamente,
os símbolos eram escolhidos ao acaso por uma máquina; não havia qualquer possibilidade de
um pesquisador humano comunicar acidentalmente os símbolos aos indivíduos através da
linguagem corporal.
Ou mesmo através da telepatia. À partida, já era difícil planear uma experiência capaz
de gerar estatísticas de base que permitissem medir a clarividência, quanto mais delinear uma
que excluísse também outras capacidades psíquicas como a telepatia ou a pré-cognição. Ainda
assim, Truth achava que tinha conseguido. Uma vez que o computador já «sabia» a ordem de
todos os símbolos que iria escolher, aquele acontecimento pertencia ao passado no momento
em que a pessoa começava a experiência, de forma que a capacidade de prever o futuro caso
alguma das pessoas a possuísse, coisa que Truth esperava que não acontecesse por causa da
experiência não interferiria no ato de adivinhar os símbolos nas cartas.
“Bem-vindo ao mundo encantado da parapsicologia estatística”, pensou Truth para si,
pegando num lápis.
Tinha-se esquecido completamente do café quando Meg entrou, uma hora mais tarde.
— Olá! Está a hibernar?
Meg Wilson, secretária do Departamento de Parapsicologia, era pequena, bem-
disposta, gorda e eficiente. Entrou com uma braçada de correio e uma chávena de café
fumegante que tentava segurar com três dedos.
“Perdi a noção do tempo” admitiu Truth timidamente.
— Um monte de correio — anunciou Meg decididamente — e um pedaço de pão com
passas que Dyl fez durante o fim-de-semana. Guardei um bocado para si.
Depositando o correio com cuidado em cima da secretária, Meg pousou a chávena e
enfiou a mão dentro do bolso do casaco para tirar pacotes de açúcar e de natas e uma fatia de
pão de passas embrulhada num guardanapo de papel.
— Está a estragar-me com mimos — protestou Truth, rindo.
Este serviço não fazia parte do trabalho de Meg.
— Se não o fizer, vai morrer à fome e ser enterrada numa pilha de estatísticas — disse
Meg rapidamente. — O melhor é eu ir andando; hoje começam as aulas e com certeza vamos
ter uma dúzia de caloiros perdidos a cirandar por aqui antes do meio-dia, se eu não os
impedir. Meg saiu novamente, fechando a porta com cuidado atrás de si, conforme
Truth gostava que ela fizesse.
Como pesquisadora do Instituto Bidney, não pertencente à faculdade, Truth tinha
direito a um escritório com uma porta, tal como se fosse um professor. Mantinha-a fechada,
estivesse no escritório ou não. Os professores cujos escritórios ficavam ao lado do seu
mantinham as portas fechadas, suspeitava Truth, apenas por uma questão de estatuto,
especialmente porque a maior parte deles se levantava e espreitava ao ouvir o mínimo barulho
de passos lá fora.
Mas quando Truth fechava a porta, fazia-o com um sentido. Truth mantinha a porta
fechada, para que as pessoas não entrassem. Especialmente agora. Truth Jourdemayne odiava
setembro com uma paixão muitas vezes reservada à época das férias; odiava os rebanhos de
estudantes que regressavam, os caloiros desorientados, os estudantes finalistas. Não queria
dizer que desgostasse de qualquer estudante em particular, disse ela para si própria sem
grande convicção. Só que todos juntos era demais: barulhentos demais e com demasiada
energia.
“Bem, afinal, eles estão apenas a chegar, enquanto tu estiveste aqui todo o verão, a
trabalhar no campo da análise estatística”, disse Truth para si própria de forma trocista. O
Instituto não seguia o ano acadêmico de Taghkanic uma boa coisa, uma vez que não
conseguiriam trabalhar e assim setembro era apenas mais um mês para ela e não o fim de
umas longas férias.
Suspirou e pegou no café “Meg não devia fazer estas coisas; se os professores
repararem, quererão todos que ela lhes vá buscar e levar coisas e assim não vai conseguir
fazer nada” e só nessa altura reparou como os seus músculos estavam tensos e doridos.
“Tensão. Realmente odeio este lugar em setembro. Um cruzamento entre um asilo
para lunáticos e um circo com três pistas e as inscrições baixaram. Em todo o lado menos no
velho Maggie B.” Não havia muitos outros lugares, quer nos Estados Unidos, quer na Europa,
que oferecessem um curso em parapsicologia e, além disso, os serviços de um laboratório de
pesquisa de primeira qualidade. Se não fosse o Instituto Bidney, Taghkanic já teria fechado há
anos, mais uma universidade de artes liberais apanhada na voragem do dinheiro.
“E se isso acontecesse, onde irias trabalhar?” Truth descansou uns minutos,
massageando o pescoço e os ombros, antes de ver o correio.
A maior parte do que Meg lhe tinha trazido eram grossos periódicos de especialidade e
catálogos. Um livro para fazer uma crítica; um outro livro, com um pedido descabelado do
editor para usar citações; a maior parte eram livros sobre parapsicologia, exceto um sobre
análise estatística que parecia interessante. Vinte e quatro envelopes A4, com um timbre em
relevo que ela conhecia.
E um que ela não conhecia: Rouncival Press.
Franzindo o sobrolho, abriu-o. E continuou a rasgá-lo até que o envelope e três folhas
de papel pesado ficaram sobre a secretária, desfeitos em bocados do tamanho de selos. As
mãos dela tremiam. “Como puderam eles? Como tiveram coragem?”
“...uma vez que você também escolheu uma carreira de ocultismo... serviço valioso...
visões íntimas de um grande pioneiro da magia...”
Queriam que ela escrevesse uma biografia sobre Thorne Blackburn.
As mãos dela ainda tremiam quando atirou os pedaços de papel para o caixote do lixo.
Ela era uma cientista doutorada em Matemática! Escrever uma biografia elogiosa sobre
Thorne Blackburn? Preferia enterrá-lo com um pau cravado no coração e ele já estava morto.
E, o que era pior, era pai dela.
Truth olhou sem ver para um pôster do local histórico de Olana na parede do seu
cubículo. Há trinta anos, Thorne Blackburn tinha estado na vanguarda do renascimento do
ocultismo, que andara a par com o amor livre e os movimentos contra a guerra dos anos 60.
Tão sexy como Morrisson, tão ardente como Jagger e tão doido como Hendrix, Blackburn
afirmava ser um herói no sentido grego, um filho semidivino dos antigos deuses celtas.
Embora tais declarações se tenham tornado mais tarde num lugar-comum, com
pessoas reivindicando serem filhos de tudo desde extraterrestres a anjos na Terra, Thorne
tinha sido o primeiro.
Tinha sido o primeiro a fazer uma série de outras coisas, desde aparecer na televisão
nacional para efetuar um ritual aos seus Antigos Deuses, até fazer digressões com bandas de
rock como número de abertura. Meio herético, meio fraude e todo artista, Blackburn fora uma
das figuras mais brilhantes do retorno do ocultismo durante a sua breve e espalhafatosa
carreira pública.
“E conseguiu ter êxito financeiro”, pensou Truth zangada.
Enquanto dizia publicamente que estava a fundar uma ordem de heróis e a fazer magia
para trazer novamente de volta os Antigos Deuses do Ocidente e inaugurar a “Nova Era”,
Blackburn conseguira juntar dinheiro para comprar uma casa no rio Hudson, onde ele e os
seus seguidores podiam praticar os ritos do chamado Círculo da Verdade numa atmosfera de
amor livre, drogas livres e excesso desenfreado.
Entre estes seguidores encontrava-se Katherine Jourdemayne. Truth sentiu um leve
prenúncio de dor de cabeça ao relembrar a velha traição familiar. A sua mãe tinha sido a
“concubina mística” de Blackburn. Katherine tinha morrido em 1969 durante um ritual e
Blackburn também não teve de pagar por isso.
Truth tinha sido criada por uma irmã gêmea de Katherine Jourdemayne, Caroline, e
sentia que herdara muito da auto-suficiência emocional da mulher taciturna que tão
estoicamente sobrevivera à morte horrível da sua irmã gêmea. A tia Caroline tinha contado a
Truth quem era o pai dela, quando esta atingiu idade suficiente para entender, mas nos anos
70 e 80 não parecia ser muito importante. Quando o primeiro jornalista a contactou, Truth até
tinha ficado surpreendida ao descobrir que alguém ainda se lembrava de Thorne Blackburn;
parecia pertencer ao passado, como o LSD, a aterragem na Lua e os Beatles. Limitara-se
então a responder, com delicadeza lacônica, que não tinha nada a dizer, porque o pai morrera
quando ela tinha dois anos.
Jamais voltaria a ser tão bem educada, porque depois de ter sido descoberta pelos
“senhores da imprensa” a sua vida transformou-se rapidamente num pesadelo de cartas e
telefonemas e pior: visitas de indivíduos bizarros que alegavam serem seguidores e, num caso
terrível, a reencarnação de Thorne Blackburn.
Nas vésperas do Halloween, desde que tinha dezoito anos, Truth tinha de aturar todos
os anos os inúmeros telefonemas dos jornalistas sensacionalistas que queriam uma entrevista
com a filha do notório “satanista” Thorne Blackburn, para condimentar uma história.
Os pedidos da facção literária e lunática para escrever sobre Thorne Blackburn tinham
felizmente vindo a diminuir, embora nunca tivessem parado completamente. Ela até talvez
quisesse escrever um livro, publicar ou morrer, apesar de tudo, até para os que não eram
acadêmicos de carreira, mas todos os editores diziam claramente que não lhes interessava
exatidão, mas sim de um panegírico simples que pudessem fazer passar como uma bíblia para
os seus leitores igualmente confusos.
E a filha de Katherine Jourdemayne não ia dourar a reputação de um embusteiro, de
um impostor, de um vendedor de banha de cobra da Época do Aquário. Por que razão todas
aquelas pessoas não conseguiam ver o mercenário que Thorne Blackburn tinha sido na
realidade?
Era esta, supunha Truth, uma das razões por que tinha escolhido a parapsicologia: para
encontrar um caminho que lhe permitisse derrubar os impostores do seu pedestal, antes que
conseguissem prejudicar alguém. Mas, às vezes, ficava tão envergonhada...
“Mais valia ser filha do Elvis”, pensou Truth tristemente. “A vida seria mais fácil.”
Passou a mão pelos cabelos, ainda a tremer com uma emoção reprimida. Por que razão
não entendiam que a única coisa que ela queria era não ter de pensar nunca mais em Thorne
Blackburn? Ele ensombrava-lhe a vida como o fantasma do medo, pairando no ar para puxá-la
para o seu mundo lunático do absurdo.
— Olá! Está alguém? Ah, a minha estimada colega, a menina Jourdemayne.
Sem lhe dar oportunidade de fingir que nem sequer lá estava, Dylan Palmer entrou no
escritório de Truth e fechou a porta.
Dylan Palmer o Dr. Palmer, era um acadêmico efetivo, professor da Faculdade de
Taghkanic e membro do instituto. Era um professor do tipo Indiana Jones, alto, loiro, bem-
parecido, indolente e ocasionalmente heróico. O objeto de investigação de Dylan na
parapsicologia eram as transferências e sobrevivências de personalidade numa linguagem
mais corrente, os fantasmas.
— Como está o meu computador favorito hoje? — perguntou ele alegremente.
Dylan debruçou-se sobre a secretária de Truth, parecendo mais um estudante do que
um professor, com a sua camisa de flanela e jeans largos. O pequeno brinco de ouro na orelha
brilhava à luz.
— Como correu o teu projeto de verão? — perguntou Truth.
Sentia-se a recuar e sabia que Dylan também o percebia, mas Truth achava o seu gosto
pela vida tão assustador como divertido.
— Maravilhosamente! Se Dylan se sentia magoado pela sua frieza não o mostrava. —
Doze semanas no castelo da Irlanda com mais correntes de ar. Apenas eu, dois alunos
graduados e setenta e cinco mil dólares em máquinas fotográficas, microfones e sensores. Ah,
e o IRA!
— O quê?
— Estou a brincar. Acho que era isso que a população pensava de nós, embora
fizessem tudo menos benzerem-se quando íamos à cidade comprar mantimentos.
Endireitou-se, parecendo satisfeito consigo próprio.
— Isso é mesmo o tipo de coisa que tu achas engraçado — disse Truth. — Isto não é
um jogo, Dylan; a investigação psíquica é um assunto sério, mesmo que tu o trates de forma
leviana.
Ouviu o tom condescendente na sua voz e retraiu-se intimamente, esperando que
Dylan se fosse embora antes que ela se atrapalhasse ainda mais.
— Ah, o Halloween chegou cedo este ano? — perguntou Dylan.
Truth olhou para ele sem expressão.
— Não pude deixar de reparar — disse Dylan, olhando para baixo ostensivamente. —
É novamente a época de Thorne Blackburn?
Truth seguiu a direção do seu olhar e viu uma pequena tempestade de neve de papel
rasgado aos seus pés. Dylan baixou-se graciosamente, apanhando um bocado. Truth tentou
tirar-lho, sem o conseguir. Dylan brandiu-o de forma teatral e começou a declamar:
— “Quando há geada nas abóboras e se avizinha o tempo de Blackburn, / Os espíritos
e duendes saltam com medo / Para a Verdade” (Truth).
— Não tem graça! — gritou Truth furiosa.
Levantou-se e arrancou o bocado da carta de Rouncival da mão de Dylan.
— Achas que eu gosto que me lembrem que Thorne Blackburn é o meu pai? Achas
que me faz feliz?
— Bem, podia ser pior; ele podia estar ainda entre nós.
— Assim, ele é estritamente da minha competência.
— Anima-te, Truth; não é como se Thorne fosse Jack, o Estripador, ou coisa parecida.
O professor MacLaren acha que ele é uma figura bastante interessante e que realmente vale a
pena estudá-lo. Talvez devesses considerar...
Truth sentiu-se injustamente traída. Embora a maior parte das pessoas no instituto
soubesse que ela era filha de Thorne Blackburn, de fato a sua filha bastarda , qualquer pessoa
que a conhecesse bem não mencionava o assunto. Mas era verdade que Dylan o sabia. Ou
deveria saber.
— Bem, eu não tenho a tolerância do teu consagrado professor MacLaren em relação
aos impostores e monstros — interrompeu ela acaloradamente. — Devias pensar nos
sentimentos das pessoas antes de dares os teus bons conselhos.
O sorriso de Dylan esmoreceu ao estudar a cara dela.
— Não queria dizer... — começou ele.
— Nunca queres dizer nada — ripostou Truth maldosamente, consciente apenas do
desejo de agredir alguém. — Tu és apenas uma espécie de super-herói mercenário a brincar
aos caça-fantasmas e não te importas com o que fazes, desde que te dê uma saída dramática e
uma risada fácil. Bem, eu não estou a rir.
Fechou as mãos com força, não querendo chorar.
— Vais ficar muito sozinha em cima do teu pedestal — disse Dylan com suavidade.
Antes que ela conseguisse pensar noutra coisa para dizer já ele se tinha ido embora,
fechando a porta devagar atrás de si.
“Ele matou a minha mãe, ele matou a minha mãe, ele matou a minha mãe.”
Truth sentou-se à sua secretária, fechando os olhos com força para não permitir que as
lágrimas caíssem, pois eram inúteis, porque eram infantis e porque não iam mudar
absolutamente nada. Por que razão ninguém entendia o que Thorne lhe tinha feito? Ele tinha-
lhe tirado tudo, tudo...
Não esperara que Dylan tomasse o partido de Thorne. Mas, afinal, outra coisa não
seria de esperar, pensou. Era óbvio que ele era mais um fã de Thorne e por que não? Eram os
dois da mesma espécie.
Mas mesmo perturbada como estava, Truth sabia que não estava a ser justa. Dylan
estava simplesmente... demasiado feliz, pensou Truth. Dylan Palmer não parecia ter
interiorizado o conhecimento de que a vida era horrível, cheia de surpresas más, e a melhor
coisa que se podia esperar era não ficar demasiado magoada.
Mas como podia ele tomar o partido de Thorne Blackburn pelo valor nominal? O
homem Thorne era uma fraude que ele próprio reconhecia!
Truth esboçou uma careta de mau humor; francamente, por vezes os investigadores
psíquicos eram as pessoas mais ingênuas do mundo. Todos os acontecimentos eram genuínos
até que se tivesse provado o contrário; desde círculos de colheitas até Uri Geller, as pessoas
como Dylan abordavam-nos com uma credulidade sem limites.
Respirou tremulamente, recuperando pouco a pouco o autocontrole. Mais valia que o
fizessem, senão o desencantamento de descobrir apenas fraudes e coincidências ano após ano
acabaria por lhe ser insuportável. Abanou a cabeça. Dylan tinha-se comportado mal, mas a
sua má educação não tinha justificado a reação dela. Tinha que pedir desculpas.
“Preciso dumas férias.” Ao formar as palavras no seu espírito, Truth deu-se conta de
como estava cansada. Tinha passado o verão encaminhando o seu projeto até à sua conclusão,
além de ter o trabalho normal porque não afastar-se de Taghkanic até ao fim da agitação do
período do outono?
Podia voltar quando tudo estivesse sossegado ou relativamente sossegado, como era
costume durante o resto do ano.
O telefone tocou.
Truth olhou para ele com um fascínio culpado. Provavelmente era Dylan, a telefonar
do escritório dele para acabar de repreendê-la. Mas quando olhou para o telefone, percebeu
que era uma das linhas exteriores que estava a tocar. Levantou o telefone.
— Sim?
— Truth?
— Tia Caroline?
Truth sentiu um lento palpitar de alarme. Caroline Jourdemayne era uma pessoa muito
controlada e na verdade as duas não eram muito próximas. Que teria acontecido para levar a
tia Caroline a telefonar-lhe?
— Há algum problema?
— Digamos que sim — respondeu a voz seca e imperturbável.
— Lamento incomodar-te no trabalho, Truth, mas vais ter que vir para casa logo que
possas.
O lar era para ela a pequena casa situada nas terras selvagens do norte do condado de
Amsterdam, a mais de setenta milhas, onde Truth tinha passado a infância e onde começavam
as suas recordações.
— Ir para casa? — repetiu Truth, espantada.
A tia Caroline não era uma mulher muito sociável; desde que Truth tinha arranjado o
seu apartamento nos terrenos da Universidade de Taghkanic, as visitas à tia Caroline tinham-
se tornado pouco freqüentes, tendo lugar habitualmente durante o Natal, uma vez que em
dezembro as estradas à volta do chalé eram muito perigosas, a não ser para veículos com
tração às quatro rodas.
— Espero que ainda te lembres onde fica — disse a tia Caroline.
— Sim, claro. Mas...
— Quando podes vir? — perguntou a tia Caroline.
Truth franziu o sobrolho, tentando recordar-se de todos os seus compromissos
agendados. Felizmente não tinha quaisquer aulas marcadas. Teria de passar um certo tempo
no laboratório a prestar assistência aos projetos dos investigadores, mas nesta altura do ano
acadêmico não havia muito disso; não teria dificuldade em arranjar alguém que a substituísse.
— Amanhã — disse Truth. — Chego amanhã. Tia Caroline, não me pode dizer de que
se trata?
Não conseguia imaginar um segredo que fosse tão chocante que não pudesse ser
mencionado ao telefone e os Jourdemayne ou, pelo menos, o que restava dos Jourdemayne
não eram família para segredos chocantes.
Olhou preguiçosamente para o relógio na parede, enquanto a tia Caroline começava a
explicar a razão do seu telefonema; embalado pela voz distante, o olhar de Truth tornou-se
fixo e, por fim, as lágrimas reprimidas começaram a cair-lhe pela cara abaixo, à medida que a
tia Caroline continuava a falar.
CAPÍTULO DOIS
A VERDADE DA QUESTÃO
This is the truth the poet sings,
That a sorrow’s Crown of sorrow is
remembering happier things.2
ALFRED, LORD TENNYSON

Em contraste com a promessa favorável e clara de segunda-feira, terça-feira


apresentou-se escura e exageradamente úmida. De manhã bem cedo, Truth encontrava-se no
Thruway, rumo ao norte, para Stormlakken. Não havia nenhum caminho direto para a cidade;
era uma viagem de várias horas, mesmo nas melhores condições. Devia lá chegar pouco
depois do meio-dia.
Só depois de já estar na estrada, Truth se lembrou de que não tinha suavizado a cena
que tivera com Dylan no dia anterior. Estivera demasiado ocupada a preparar a sua ausência, e
depois se sentira obrigada a trabalhar um pouco no projeto, deixando as linhas sedativas da
estatística varrer tudo o resto da sua cabeça. Sabia que quanto mais tarde pedisse desculpas,
mais difícil seria, mas depois das notícias da tia Caroline, não tinha querido arriscar mais um
encontro que pudesse abrir as suas comportas emocionais. Não iria usar a tia Caroline como
desculpa quando finalmente falasse com ele. Simplesmente iria pedir desculpa. Os
Jourdemayne eram pessoas reservadas, pouco dadas a explicações. Ou a manifestações de
emoção... “Por que não sinto nada?”
A beleza do vale do rio Hudson, quase um lugar-comum vistas dramáticas que tinham
inspirado Frederick Church e toda uma escola de pintores de paisagens americanos, passava
pelas janelas do carro, sem ser apreciada. Dylan gostava de citar uns versos de Coleridge
sobre um lugar selvagem, sagrado e encantado. Truth sempre os achara demasiado dramáticos
e extravagantes como Dylan, mas de fato a região era suficientemente espetacular para ter
inspirado as almas dos seus habitantes holandeses e fleumáticos a escreverem poesia, quando
aí se instalaram, há mais de trezentos anos. Este era o Sleep Hollow Country, lar e lugar de
nascimento de Cavaleiros Sem Cabeça e Rip Van Winkles, de gigantes com pelos, de gnomos
violinistas e de horríveis galeões que percorriam o Hudson.
Truth surpreendeu-se no meio deste sonho prosaico e viu que o seu espírito estava
ocupado, como se estivesse a preparar-se para uma audiência desconhecida, ordenando os
fatos.
Esta sempre tinha sido a sua forma de manter afastado o mundo doloroso. De manter
afastados os seus sentimentos. “Mas eu não sinto nada. E devia sentir.”
Caroline Jourdemayne tinha sido toda a família de Truth desde que ela ficara órfã aos
dois anos. A tia Caroline tinha vindo à comuna sórdida de Blackburn e levado a filha da irmã,
tratando de Truth sem um queixume ou uma palavra de reprovação pelo que deve ter sido a
terrível desorganização provocada na sua organizada vida de solteirona. Mas apesar do fato de
Caroline e Katherine serem gêmeas idênticas, Truth nunca sentira pela sua tia Caroline o afeto
que pensava que teria sentido pela sua própria mãe.
Claro que não havia inimizade entre Truth e a tia Caroline, apenas uma afeição
bastante distante e respeitosa da parte de Truth e uma cortesia escrupulosa da parte da tia
Caroline.
Se alguma das mulheres achava a relação estranha, isso não era coisa que discutissem
e à medida que Truth crescera, ouvindo as histórias dos seus colegas de turma e de quarto,
2
Esta é a verdade que o poeta canta / Que uma tristeza da Coroa é de tristeza / lembrando coisas mais felizes. (N.
da T.)
tornou-se mais grata pela distância cuidadosa que a tia Caroline tinha mantido. Se a tia
Caroline tivesse partilhado o seu desgosto pelo assassínio da irmã, Truth não teria agüentado.
“Mas ela deve ter sentido alguma coisa. Os gémeos, especialmente gémeos idênticos,
são tidos como muito próximos; as experiências de telepatia Linebaugh-Hay provam...”
Truth interrompeu a sua linha de pensamento, um pouco surpreendida pelo seu tom
clínico. Claro que a tia Caroline sentia a falta da irmã, Katherine, tal como Truth sentia a falta
da mãe.
Mas não restava ninguém para culpar, a partir do momento em que Thorne Blackburn
tinha desaparecido. Blackburn. Voltava sempre a ele, o filho dourado do destino; um homem
de origem misteriosa que se distinguia por ser o rei dos charlatães; que contava a toda a gente
histórias incríveis e depois lhes dizia que tinha mentido; um homem que induzia a crença nos
seus acólitos enquanto ele próprio não professava quaisquer crenças. Um homem que fazia
promessas que ninguém podia manter; mas Thorne Blackburn nunca tinha pretendido manter
quaisquer das suas promessas.
Thorne Blackburn era um trapaceiro espiritual que roubava crenças em vez de
dinheiro, e depois roubava também o dinheiro.
Truth carregou nos travões, olhando com um sentimento de culpa para o retrovisor, ao
mesmo tempo em que virava o volante para a direita. Felizmente não vinha ninguém atrás
dela; por pouco falhara a saída. Deixou o Thruway e virou para a estrada secundária cheia de
remendos e buracos que a levaria em direção a Stormlakken. Já faltava pouco para chegar.
“Que podia fazer? Que podia dizer?”
Não havia nada que pudesse fazer a tia Caroline tinha sido muito clara sobre esse
assunto. E era a tia Caroline que tinha coisas a dizer, coisas de que não queria falar ao
telefone.
A estrada secundária dava lugar a outra que mal era uma azinhaga e que só tinha
metade da largura. Agora Truth encontrava-se no sopé das montanhas de Taconic Range e o
terreno fendido e talhado pelos glaciares formava um quadro de ervas crescidas e arbustos
ásperos, de pequenos pinheiros e de algumas bétulas.
Parou na cidade de Stormlakken para meter gasolina; ainda era o mesmo lugar de há
vinte anos atrás, embora a loja de artigos baratos estivesse entaipada. Tudo o que restava da
rua principal era um abrigo de paragem de autocarros e uma loja de peças de automóvel, uma
sucursal do Banco Mid-Hudson e um balcão de restaurante coberto de moscas. A loja rococó
e vitoriana do outro lado da bomba de gasolina estava vazia como sempre, desde que Truth a
conhecera.
Uma cidade sem vida; o contraponto adequado àquele dia triste de setembro. Truth
ficou contente por continuar, subindo a rua principal em direção ao rio. Ou em direção ao que
os populares chamavam o rio, embora já não existisse qualquer rio há mais de três quartos de
século.
Um projeto hidráulico do início dos anos vinte parte do plano para fornecer água
potável à cidade de Nova Iorque, mas que deixou de ter razão de ser quando o reservatório
Croton foi construído tinha drenado o rio que dera à cidade o seu nome, destruindo as tênues
aspirações turísticas de Stormlakken. Depois da construção do Thruway, os últimos resquícios
de vitalidade da cidade esgotaram-se, e agora parecia uma cidade fantasma, demasiado a sul
do florescimento dos três estados de Schenectady, Albany e Troy, demasiado a norte de
Poughkeepsie para ser integrada no desenvolvimento urbano de ambas as áreas.
A casa de Caroline Jourdemayne ficava a poucos quilômetros da cidade, na margem
do que outrora fora o lago. A maior parte dos chalés vitorianos construídos na margem do
lago haviam sido deitados abaixo há já muito tempo; a pequena casa da tia Caroline, isolada
no esplendor da encosta pouco arborizada, dava para os prados viçosos, que cobriam o antigo
leito do rio.
Truth estacionou ao lado do velho Honda da tia Caroline. Saiu do carro. Um vento
úmido e desagradavelmente frio, irritante, sem ser frio ou quente, soprava da cordilheira. Pôs
a carteira ao ombro e subiu as escadas da casa.
A tia Caroline demorou muito tempo a vir à porta e quando o fez, Truth ficou
horrorizada ao ver como ela tinha mudado.
O cabelo preto estava baço, cinzento, a pele flácida e amarelada, e a mulher, em si, de
repente, horrivelmente velha.
— Sim — disse a tia Caroline. O crânio aparecia por baixo da pele, espalhafatosamente
visível. — Estou horrível, não estou? O médico deu-me menos de um mês, e tudo o que eu
consegui foi que ele me dissesse isso. Eles não gostam nada de anunciar fatos.
— Mas quando... como? — gaguejou Truth.
Caroline Jourdemayne virou-se, andando como se os seus ossos fossem de vidro.
Truth seguiu-a, fechando a porta atrás de si.
A sala de estar causava uma leve sensação de viver fora do tempo; a mobília era a que
a tia Caroline tinha comprado na sua juventude, há trinta anos elegantes e modernas estantes
dinamarquesas, mesas e cadeiras com almofadas em tons de verde, laranja e ferrugem, coisas
dos extravagantes anos sessenta, conservadas intactas através do tempo como uma mosca em
âmbar.
— O cancro ataca nas melhores famílias, acho eu — disse a tia Caroline. Sentou-se
cuidadosamente no sofá, estremecendo com o esforço. — Estás com bom aspecto. Como vai o
instituto?
— Vai bem — disse Truth, que não queria falar sobre o trabalho.
Pousou a carteira e o casaco na mesinha baixa com um tampo de azulejos, ao lado de
uma curiosa caixa de cartão do tipo usado para guardar papéis pessoais.
— Quer que lhe vá buscar alguma coisa da cozinha? — perguntou Truth.
— Não, mas faz almoço para ti. Imagino que não tens comido, como de costume.
— O pobre do dr. Vandermeyer está muito embaraçado — disse a tia Caroline quando
Truth voltou da cozinha com a sanduíche e o chá, mas na altura em que fui consultá-lo já era
tarde demais.
Truth sentou-se em frente da tia numa cadeira baixa e pousou a chávena de chá com
cuidado. Agora que o choque já tinha passado, sentia-se mais apta a lidar com esta súbita
catástrofe. Nunca tinha havido muito dinheiro na família Jourdemayne, embora houvesse
algum; Caroline Jourdemayne, a gémea sensata, tinha trabalhado como bibliotecária durante
muitos anos na Biblioteca da Associação em Rock Creek, que ficava perto, mas tinha sido a
herança da avó Jennet que permitira aguentar a casa e o carro.
— Que posso eu fazer? — disse Truth simplesmente.
— Vou ficar aqui enquanto puder. Uma enfermeira vem ver-me três vezes por semana,
mas disseram-me que muito em breve iria precisar de alguém permanente.
— Quer... — começou Truth hesitante.
A tia Caroline sorriu, e a pele dela ficou esticada por cima dos ossos salientes.
— Claro que vou contratar uma enfermeira profissional. Falei com o senhor Branwell
da agência imobiliária e ele acha que posso vender rapidamente a casa logo que... logo que
fique vaga; o lucro deve chegar e sobrar para saldar as dívidas da minha propriedade. O que
sobrar fica para ti, claro, embora tema que não seja muito.
Truth abanou lentamente a cabeça, tentando afastar a brusca eficiência clínica com que
a tia Caroline arrumava a vida dela.
— Não me importo com isso — disse ela.
— Não. Imagino que não te importes — disse a tia Caroline, estudando-a com atenção.
— Mas uma vez que és a minha testamentária, o que vai ser muito em breve, talvez
pudéssemos falar sobre algumas coisas.
Truth teve a sensação dormente de condenação iminente que se sente em pesadelos, à
medida que a tia Caroline examinava com ela o testamento e outras medidas que tinha
tomado. Caroline Jourdemayne seria enterrada no cemitério Amsterdam Rural, ao lado da sua
irmã gémea. O caixão já tinha sido comprado e o serviço fúnebre já tinha sido acordado com a
funerária local. Estava tudo pronto. Tudo o que Caroline Jourdemayne tinha que fazer agora
era morrer.
— ...claro que podíamos ter tratado de todos estes assuntos pelo telefone — continuou
a tia Caroline inexoravelmente. — Mas há outra coisa.
Pela primeira vez a vontade de ferro da tia Caroline pareceu abalada.
— Por favor... se puderes ir buscar um copo de água... as minhas pastilhas...
Truth correu para a cozinha para ir buscar um copo de água e um frasco de
analgésicos, todo ele cheio de etiquetas com conselhos: PODE CAUSAR SONOLÊNCIA -
SUBSTÂNCIA CONTROLADA - NÃO TRABALHAR COM MÁQUINAS PESADAS
DURANTE A MEDICAMENTAÇÃO.
Ao vê-la debater-se com a tampa, Truth abriu-a e a tia Caroline engoliu duas pastilhas.
Truth franziu o sobrolho. Tinha a certeza que a dosagem era apenas um comprimido. A
doença já deve estar muito avançada. E não havia nada que ela pudesse fazer; não conseguia
chegar à intimidade com Caroline Jourdemayne. De repente, Truth apercebeu-se com um
certo pânico de que já não havia tempo para estabelecer ligações emocionais fortes com a tia.
Caroline ia morrer e Truth ficaria com a culpa do egoísmo.
— Bem. Daqui a pouco vou ficar melhor, como o dr. Vandermeyer se tem esforçado
por me explicar. Agora há outro assunto que temos que discutir. A verdadeira razão pela qual
estás aqui.
Truth esperou, mas a tia Caroline não disse mais nada. Truth deixou o seu olhar fugir
em direção à janela e à paisagem severa, que fazia lembrar uma pintura de Andrew Wyeth. O
céu era uma paleta de cinzento que parecia envolver a casa como carne molhada e esponjosa.
— Nunca falamos... sobre o passado — disse a tia Caroline por fim. — É importante
para ti saberes que não és a única.
— A única ? — Truth olhou fixamente para a tia, sentindo-se levemente alarmada e ao
mesmo tempo uma piedade pouco confortável. O que Caroline Jourdemayne tinha dito não
fazia sentido.
— Acho que... — começou Truth.
— Ainda não estou senil... nem drogada — respondeu a tia Caroline com rispidez,
como se lesse o pensamento de Truth. — Mas é duro para mim. Durante muitos anos tentei
esquecer tudo... Thorne e Katherine... mas há coisas sobre a tua família que tens que saber.
— A minha família — repetiu Truth. Mas a tia Caroline era a sua única família, e
Truth achou difícil imaginar alguma coisa que ela precisasse saber sobre a tia Caroline.
— Os teus pais. O teu pai e a tua mãe. E, em especial, sobre Thorne Blackburn. Nunca
tiveste a hipótese de o conhecer e agora...
Outra vez Blackburn! Truth tentou manter uma aparência serena.
— Não acho que haja alguma coisa que precise de me dizer sobre Thorne Blackburn,
tia Caroline — disse Truth com cuidado.
— Como és precipitada ao dizer isso! Talvez eu devesse... Mas agora não há tempo
para arrependimentos vãos. Tu não o conheceste.
“E nunca quis!”, gritou Truth silenciosamente. Havia um tom estranho na voz da tia
Caroline que a assustou.
— Há uma herança... — A voz da tia Caroline era arrastada e por um momento
cabeceou, sob o efeito crescente do narcótico.
— Tia Caroline? — disse Truth ansiosamente.
A velha mulher levantou-se com esforço.
— Hoje em dia canso-me com tanta facilidade! Ainda não estou habituada. E vou
morrer antes disso. Fez uma careta, impaciente com a incapacidade do seu corpo. Há uma
coisa que eu não te dei ainda, alguns dos objetos de Thorne. Sei que não vais perceber porquê;
tinha esperança de poder esperar até que eu pudesse... Mas já não tenho tempo.
“Já não tenho tempo.” Aquela confirmação calma de um fato provocou em Truth um
sentimento de piedade como nenhuma afirmação dramática o conseguiria fazer.
— Tempo para o quê, tia Caroline? — perguntou Truth com suavidade.
— Não queria dar-tos até que... não queria que tu o odiasses — disse a tia Caroline. —
Não agüentava... Mas já não há tempo. Estas coisas não podem ser deixadas por aí ao
abandono, à mercê do primeiro que apareça depois de eu morrer; sejam quais forem os teus
sentimentos, terás que levá-las agora e espero que... mais uma vez... — Caroline Jourdemayne
parou no meio de uma frase, como se ainda existissem coisas que não podiam ser ditas. —
Chama-lhe a herança de Thorne para ti e espero que tu compreendas o que ele... Estão numa
caixa no quarto... vai buscá-las. E depois temos que falar sobre os outros.
“Que outros?”, pensou Truth, levantando-se. Mas os olhos da tia Caroline tinham-se
fechado e Truth não quis incomodá-la mais.
O quarto da tia Caroline ficava na parte de trás da casa. Também estava cheio de
mobília falsamente moderna que parecia pertencer a uma visão de um futuro mais feliz. A
cómoda baixa com o acabamento de teca maciça; naqueles dias felizes, ninguém falava da
floresta tropical em perigo, a casta cama de casal com cabeceira em forma de estante e a
colcha alegre da cama, até os quadros nas paredes poderiam ter vindo diretamente de...
“De 1969”, pensou Truth, sentindo subitamente uma dor aguda. “É como se o tempo
tivesse parado aqui desde que a mãe morreu.” Não queria pensar sobre isso, não queria juntar
mais um crime à lista das vilanias de Blackburn. Antes nunca tinha pensado na aparência da
casa, mas agora não conseguia escapar à imposição dos fatos. Nada tinha mudado aqui desde
que a gémea da tia Caroline morrera. Era como se a tia Caroline e toda a casa estivessem... à
espera. De quê?
Truth aproximou-se da cómoda. Via-se uma fotografia numa moldura de prata; uma
fotografia esbatida da cabeça e dos ombros de uma mulher de cabelo e olhos escuros que era
igual a Caroline Jourdemayne aos vinte anos.
Mas ninguém guardaria assim uma fotografia dela própria em exposição e Caroline
Jourdemayne nunca na vida tinha usado o cabelo comprido e entrançado ou aquelas argolas
aciganadas de prata mexicana que brilhavam nas orelhas. Mexicanas... Blackburn tinha levado
o seu pequeno grupo de bruxas até ao México no verão antes de se mudarem para Shadow’s
Gate; no verão antes de Katherine ter morrido.
Devia ser Katherine Jourdemayne.
Truth nunca tinha visto uma fotografia da mãe. Se tivesse pensado no assunto, teria
concluído que não havia nenhuma. Levantou a moldura, admirada por a tia Caroline nunca ter
partilhado isto com ela.
Ao mexer na fotografia, mais outra fotografia, desta vez solta, deslizou do seu
esconderijo por detrás da moldura, caindo em espiral para o chão. Truth baixou-se para
apanhá-la. Era uma fotografia Polaroid tão antiga como a fotografia emoldurada, mas esta era
de corpo inteiro, de um homem magro, loiro, a rir, com o cabelo comprido e dourado caído
pelas costas abaixo, levantando acima da sua cabeça um bebé de cabelo escuro. Não tinha
camisa e estava descalço, usando apenas jeans à boca de sino e um colar de contas.
O pai dela.
Tinha a certeza, embora existissem poucas fotografias de Thorne hoje em dia e
certamente nada que se parecesse com esta fotografia cândida. Aquela que a maior parte das
pessoas usava era a fotografia publicitária de Blackburn, que o mostrava com os seus trajes
místicos.
Mas não havia dúvida. Era ele. Este estranho com um ar descuidado e a rir era o pai
dela. E a criança devia ser ela.
Uma raiva tão grande que só podia ser ódio avassalou a consciência de Truth com a
força de um comboio em andamento.
Como podia o homem da fotografia ter a coragem de parecer tão normal; qualquer
jovem pai a brincar alegremente com a filha? Ele não sabia o que tinha feito; o que ia fazer?
A pele de Truth arrepiou-se, como se Blackburn estivesse aqui com ela no quarto, e o
fato de ele a ter segurado com carinho nos seus braços parecia imperdoável. Voltou a pô-la na
cómoda cuidadosamente, pousando a fotografia emoldurada da mãe em cima, como se
conseguisse controlar facilmente os pensamentos sobre Blackburn.
“Por que razão teria a tia Caroline guardado uma fotografia como esta?”, pensou
Truth. “Nunca quis que o odiasses”, dissera a tia Caroline. Uma suspeita horrível crescia no
espírito de Truth, com um ímpeto que ia aumentando, esperando pelo momento em que
pudesse entrar na sua consciência, a certeza pré-racional a que os psíquicos chamam
clarividência, a capacidade de saber o que não é possível conhecer; uma percepção que
ultrapassava as restrições do espaço e do tempo.
“Pára lá com isso!”, disse Truth para si própria, furiosa. Mais dez minutos e estaria a
ver fantasmas. “Onde é que está aquela maldita coisa?”
A caixa estava em cima da cama.
Era uma caixa branca de cartão do tipo antigo, pesado e lustroso que as boas lojas
usavam antigamente, com o logótipo da extinta loja Lucky-Platt carimbado na tampa.
Hesitante, Truth levantou a tampa. A caixa estava cheia de um papel branco e
enrugado e mais coisas. Truth tentou imaginar a herança horrível que Thorne Blackburn lhe
teria deixado.
Não! Não Thorne Blackburn!
“Uma coisa que eu tenho escondido de ti; alguns objetos de Thorne... Estas coisas
não podem ser deixadas por aí ao abandono, à mercê do primeiro que apareça, depois de eu
morrer; sejam quais forem os teus sentimentos, terás que levá-las agora... Chama-lhe a
herança de Thorne para ti...”
“Nunca quis que o odiasses.”
“Mas já não há tempo...”
Um anel, um colar e um livro.
Pegou primeiro no anel. Era tão pesado que Truth quase o deixou cair novamente; era
grande de mais para ela, cobrindo-lhe o dedo médio de um nó até ao outro. Tinha uma pedra
oval de lápis-lazúli embutida, do tamanho de um caroço de pêssego, profunda e
intrincadamente cinzelada com um tipo de desenho que Truth não conseguia identificar. A
pedra estava embutida no que parecia ser uma onça de ouro amarelo, suficientemente suave
para ser pura, moldada na forma de uma serpente enrolada, com letras vermelhas esmaltadas
na pele escamosa e pequenos rubis cintilantes nos olhos. Havia outros rubis cravados no
engasto; não eram pedras preciosas polidas, mas esferas vermelhas escuras que pareciam
contas de sangue. O anel tinha uma inscrição grega e uma data na parte interior. Nenhuma
daquelas coisas tinham qualquer significado para Truth.
O colar era uma coisa maravilhosa: contas de âmbar dourado-escuro do tamanho de
nozes e suficientemente comprido para lhe chegar abaixo do busto. “É o que está na
fotografia...”, pensou. Um símbolo pendia dele, um pingente pesado e grosso de ouro
esmaltado num emaranhado de curvas, círculos e símbolos estranhos e espantosos. Tanto o
anel como o colar pareciam teatrais e cerimoniais, como se carregassem o peso de uma vasta
acumulação de propósito e intenção.
O anel de Blackburn. O colar de Blackburn. A herança dele para ela, guardada pela tia
Caroline. Para ela.
Por que teria a tia Caroline guardado estas coisas para ela?
Por que razão a teria chamado aqui para lhas dar agora?
Não era o que esperava da tia Caroline; não, de maneira nenhuma...
Truth compreendeu, com um sentimento de desânimo que se ia revelando, que nunca
tinha conhecido realmente a tia.
Não era o que esperava. Não. Não o que uma mulher, que culpava Thorne Blackburn
pelo assassínio da irmã, teria feito.
“Nunca quis que o odiasses...” Mas o que poderia a tia Caroline ter esperado? Poderia
ter esperado outra coisa?
Truth fechou as mãos com força sobre o colar, tentando fazer força suficiente para
partir as contas de âmbar. Durante todos estes anos, ela pensara que a tia Caroline sentia tanta
repulsa por Blackburn como ela, quando a realidade... Agora, conseguia ver tudo muito
claramente.
A tia Caroline e a casa tinham estado à espera desde que Katherine tinha morrido, em
1969. Congeladas no tempo. À espera...
Como podia ter sido tão cega? Era tão óbvio! Bastava olhar...
À espera.
À espera que Caroline pudesse juntar-se a Katherine na morte.
À espera que Caroline pudesse juntar-se a Thorne Blackburn.
Caroline Jourdemayne tinha amado Thorne Blackburn.
Era como se o mundo tivesse dado uma reviravolta de 180 graus. Todos os fatos não
examinados do passado de Truth, cuidadosamente enterrados e não questionados, surgiram
como se expressassem a vontade de outrem, juntando-se para formar uma história que não era
bem-vinda, mas amargamente plausível.
Caroline Jourdemayne não tinha estado também em Shadow’s Gare na noite em que
Katherine Jourdemayne tinha morrido e Blackburn tinha desaparecido? Sim, e durante todos
estes anos Truth nunca tinha perguntado porquê, mas Caroline Jourdemayne não poderia
saber como a sua presença seria necessária. Ela deve ter lá estado de visita.
A sua irmã e a sua amiga.
O amante dela?
De repente, o passado pareceu real, aqui neste quarto Truth conseguia vê-los todos
juntos; Katherine, confiante e carinhosa; Caroline, cética e adivinhando o perigo, tentando ser
prática mas sem poder para impedir a tragédia que reivindicava para si as duas pessoas de
quem ela mais gostava. E Thorne Blackburn.
Truth fechou os olhos com força. “Não, não, não... Isto não é verdade. Não pode ser
verdade!”
Mas fazia tanto sentido. Por que guardar uma fotografia de um homem que se odiava?
Por que guardar as suas coisas para a sua filha se não se pensasse que valia a pena preservar a
sua memória?
Caroline tinha-o amado.
Truth sentou-se devagar em cima da cama. Os maxilares doíam-lhe com a força da
rejeição que não queria exprimir. Tudo quanto sempre acreditara não passava duma mentira, e
tudo isto, todo o resto da vida de Caroline Jourdemayne, se encobrira por detrás do véu de um
ascetismo que Truth tentara quebrar em vão, como se Caroline Jourdemayne se tivesse
dedicado à adoração casta de Thorne Blackburn durante todos os anos de solidão em que
criara a sua filha.
E pensar que tudo tinha sido feito por amor a Katherine, troçou ela desoladamente.
Errado.
“Ela não me amava. Amava a ele.” Truth ouvia a voz da menina que um dia fora, sem
conseguir reprimi-la. A tia Caroline tinha amado Thorne Blackburn. Ainda o amava agora.
Sempre. Se ela o odiasse não teria estado ali, sempre, especialmente na noite em que as duas...
as três... mais tinham precisado dela.
E quando, adolescente, Truth tinha começado a saber quem ele tinha sido e a falar
contra Thorne Blackburn, a tia Caroline nunca dissera uma palavra.
“Esperava que eu mudasse de opinião? Nem que houvesse uma tempestade de neve
no inferno”, pensou Truth com amargura. O desgosto, que crescia dentro dela, era demasiado
profundo para poder exprimi-lo por palavras.
“Ele levou tudo. Não me deixou nada.”
Nem a mãe, nem o amor da mãe nem mesmo, no fim, o amor da tia. Tudo, mas tudo,
tinha sido para Thorne Blackburn e nada para a filha.
“Nada. Não deixou nada. Não há tempo...”
Havia mais uma coisa na caixa.
Um livro.
Tirou-o com cuidado. Tinha cerca de doze centímetros por vinte, um pouco maior do
que um livro moderno encadernado e com cerca de cinco centímetros de espessura. Não tinha
sobrecapa e estava encadernado em couro preto e macio com o tipo de lombada que Truth
associava aos livros antigos na biblioteca da Universidade de Taghkanic.
Mas este não era um livro antigo nem, como ela descobriu quando o abriu, um livro
impresso.
A página de título estava manuscrita a tinta preta e a letra fora traçada num movimento
contínuo. Dizia: Venus Angustiada: Discurso sobre o Verdadeiro Ritual para Abrir o
Caminho e Outros Assuntos. Thorne Blackburn.
Truth folheou-o rapidamente. As páginas estavam escritas em letra clara e moderna,
ocasionalmente intercaladas com desenhos elaborados feitos pela mesma mão.
“Deve ser uma espécie de livro de magia”, pensou Truth entorpecida. Deixou-o cair
novamente na caixa, esfregando as mãos como se tivesse tocado numa coisa suja. Fomentar
uma crença em magia nos nossos dias parecia demasiado para Truth, representava um
afastamento deliberado do racionalismo, uma viragem para a ignorância tenebrosa do
passado.
Caso se aceitasse a magia, então porque não a cura pela fé e o sacrifício de crianças também?
Thorne Blackburn dedicara a sua vida a anular a única arma que a humanidade tem
contra o universo o poder do espírito, como se fosse um advogado demoníaco da
irracionalidade. E a tia Caroline amara-o. Tinha guardado isto esta coisa durante vinte e cinco
anos, para entregá-la um dia a Truth.
Como se fosse um presente, como se fosse alguma coisa que Truth quisesse. Truth pôs
o anel e o colar novamente na caixa e colocou a tampa. A tremer, passou a mão pelo cabelo,
ajeitando o corte curto e prático. Viu a sua cara lívida e adoentada refletida no espelho da
cómoda.
Como havia de encarar a tia Caroline? Não tinha coragem para parecer pouco bondosa
para com a pessoa que a tinha criado, mas como poderia ter qualquer tipo de discussão
racional se Caroline Jourdemayne achava Thorne Blackburn e a sua sórdida imbecilidade
mística admiráveis?
Não havia maneira.
Truth respirou fundo, sentindo-se subitamente exausta.
Depois de um longo momento, pegou na caixa com relutância e foi novamente para a
sala.
— Tia Caroline?
A velha senhora estava deitada no sofá, com a cabeça atirada para trás e os olhos
fechados. A dormir parecia ainda mais horrenda; olhando para ela, Truth quase podia ver o
progresso da doença terrível que a consumia. Ao ouvir a voz de Truth, a tia Caroline ergueu-
se um pouco.
— Ah, cá estás tu!
Os seus olhos examinaram a cara de Truth com esperança. Truth sabia o que a tia
Caroline esperava ver e fez por esconder os seus verdadeiros sentimentos. Discutir agora
sobre Blackburn não seria bondoso da sua parte.
— Temos que falar... sobre os outros... — disse a tia Caroline. Os seus olhos fecharam-
se; com um grande esforço, forçou-se a abri-los novamente. — Quando... quando Katherine
morreu, houve tanta confusão, tanto caos. Fiz tudo o que achei que podia fazer, mas falhei em
relação aos outros, Truth, por isso... — a sua voz tornou-se mais baixa até deixar de se ouvir.
— Tia Caroline, está tão cansada... — disse Truth rapidamente. — Devia deitar-se e
descansar. Claro que não desapontou ninguém. Tenho a certeza de que tudo vai correr bem.
As palavras apressadas soaram muito falsas na sala. A tia Caroline abanou a cabeça
como se o menor movimento doesse.
— Havia outros — disse ela novamente, com a voz a enfraquecer.
— Podemos falar sobre eles mais tarde — disse Truth, esperando que esse momento
nunca chegasse.
— Tens que encontrar os outros. Os outros precisam de ti. O rapaz... — disse a tia
Caroline, com a voz empastada devido às drogas.
Enquanto Truth olhava para ela, os olhos da velha mulher fecharam-se novamente.
Truth colocou os pés da tia em cima do sofá e cobriu-a com um xaile de lã, instalando-a o
mais confortável possível. Não queria arriscar magoar mais ainda a tia Caroline, levando-a
para o quarto, embora, a avaliar pelo corpo frágil e gasto, Truth soubesse que poderia levantá-
la com facilidade.
Enquanto olhava para ela, a respiração da tia Caroline tornou-se mais lenta e profunda,
até adormecer num sono reparador.
Truth pegou no frasco de comprimidos. DEMEROL, dizia a etiqueta. UM DE SEIS
EM SEIS HORAS, CONFORME A DOR. Mas a tia Caroline tinha tomado dois. Levaria
muitas horas a acordar novamente.
Truth sentiu-se aliviada e reconheceu com um sentimento de culpa que estava grata
por não ter que ouvir o que a tia tinha para dizer sobre os acontecimentos de há vinte e cinco
anos. Não havia ninguém para encontrar; ninguém para ajudar.
Os seguidores de Blackburn, sem rumo, tinham-se espalhado pelos quatro cantos do
mundo, e Truth Jourdemayne não tinha a menor intenção de ajudar qualquer um deles, mesmo
que precisassem. Olhou à volta da sala e, após breve hesitação, pegou no livro de moradas da
tia Caroline, pousado na mesa ao pé do telefone. Procurou o número da enfermeira que viria
ver a tia Caroline. Com um telefonema rápido, marcou uma visita para daí a algumas horas. A
enfermeira já tinha uma chave da casa.
Truth escrevinhou um bilhete e deixou-o em cima da mesa do café, onde a tia Caroline
ou a enfermeira o pudessem ver. Depois, pegando no casaco e na caixa odiosa, saiu
rapidamente da casa onde Caroline Jourdemayne dormia o sono pesadamente drogado dos
doentes terminais e onde as fotografias de Katherine e de Blackburn vigiavam o passado.
“Como pôde ela fazê-lo?” A pergunta ficou por responder enquanto Truth guiava o
Saturn ao longo das esburacadas estradas secundárias de Stormlakken em direção à Thruway.
Parecia-lhe que se deveria ter oferecido para ficar, mas não tinha tomado medidas para estar
fora do instituto mais do que um dia; além disso não queria passar mais tempo do que o
necessário naquela casa que agora lhe surgia impregnada com a presença de arlequim de
Thorne Blackburn.
Para ser totalmente honesta, agora que conhecia os sentimentos de Caroline
Jourdemayne por Thorne Blackburn, não suportava lá ficar, tal como não suportava magoar a
tia com arevelação dos seus próprios sentimentos.
Desde o início, Truth sempre tinha respeitado o espírito da tia Caroline; modelara a
sua personalidade, à medida que ia amadurecendo, apoiada no exemplo da tia Caroline. Como
podia alguém a quem ela sempre achara razão, estar tão errada acerca de Thorne Blackburn?
Truth não tinha dúvidas de que ela estava errada. Mas não era culpa da tia Caroline.
Era culpa dele. De Thorne Blackburn. Tinha conseguido lançar o seu feitiço de charlatão
também sobre Caroline Jourdemayne.
Não era justo! A infelicidade irritou o estômago de Truth e provocou o prenúncio de
uma forte dor de cabeça.
Não. Simplesmente não era justo. Não estava certo.
A vida de Truth, na medida do possível, tinha sido dedicada a apoiar a Razão. Às
vezes era difícil distinguir o certo do errado, mas desta vez não. O encanto feérico que
Blackburn tinha lançado sobre as vidas daqueles que o tinham conhecido, anulando o senso
comum e a decência humana, estava errado. Nem sequer tinha terminado com a sua morte;
ainda persistia, anos depois de Blackburn ter desaparecido, continuando insidiosamente a
causar mal.
Ela tinha que pôr cobro a isso.
Tinha que fazer parar Blackburn, quebrando a ilusão que ele semeara; e a melhor
forma de o fazer era contar a verdade, a verdade total, definitiva e legítima sobre Thorne
Blackburn.
Truth olhou triunfantemente para a caixa branca no assento por detrás dela. “Então
deixou-me um livro, não foi, pai? Bem, estou a pensar num livro que vale dois dos seus.”
— Vais fazer o quê ? — disse Dylan Palmer sem querer acreditar.
— Vou escrever uma biografia sobre Thorne Blackburn — repetiu Truth.
Eram dez e meia da manhã de quinta-feira. Truth estava sentada na beira da secretária
do escritório de Dylan, abanando um pé para a frente e para trás, observando a reação dele à
sua comunicação.
— Que título lhe vais dar? Magus Dearest? Por amor de Deus, Truth!
Dylan olhou para ela como se não tivesse a certeza de ela estar ou não a brincar. O seu
cabelo da cor do trigo caía-lhe rebeldemente sobre a testa. Em contraste com a meticulosidade
eficiente de Truth, o escritório de Dylan, tal como o seu ocupante, apresentava uma
informalidade desordenada e simpática. O espaço de trabalho de Dylan era uma desordem de
recordações e indícios, cartas, papéis e livros. Nas paredes viam-se algumas reproduções de
gárgulas que davam um certo sabor picante ao conjunto. Havia um pôster do filme
Ghostbusters na parte de trás da porta e outro sobre a secretária.
— E eu a pensar que ias ficar contente. És o único que me está sempre a dizer que
Blackburn é uma figura muito influente no ocultismo do século vinte, herdeiro da coroa de
Aleister Crowley. E, no entanto, não há livros sobre ele, sobre a sua vida e trabalho. Bem,
agora vai haver — disse Truth com satisfação.
— E tu vais escrevê-lo — disse Dylan.
Agora que esta decisão fora irrevogavelmente comunicada, Truth sentia-se feliz e
confiante como nunca. Finalmente estava em posição de controlar o quebra-cabeças
desagradável que era Thorne Blackburn.
— Sim, vou escrevê-lo. Pelo menos assim vai ter alguma utilidade... e não estará cheio
de narrativas pseudo-reais sobre viagens a Venus e coisas parecidas — respondeu Truth.
Secretamente estava contente por ter estas notícias para lhe dar, como desculpa para
falar com Dylan novamente; significava que ambos podiam fingir que o incidente na segunda-
feira nunca tinha acontecido.
— Tir na Og — disse Dylan inesperadamente. — A Ilha dos Abençoados. Thorne
afirmava ter lá ido.
Afirmava ter lá ido e a Venus, ter-lhe-ia podido dizer Truth. Desde a sua visita à tia
Caroline, ela tinha dedicado os momentos livres a folhear a Venus Angustiada. O nome, que
fazia lembrar um panfleto de aviso contra uma doença venérea, correspondia na realidade ao
termo, tinha ela descoberto, usado por astrólogos nas cartas astrológicas, quando o planeta
Venus estava a ser indevidamente influenciado por outros planetas. A pessoa que tivesse
Venus angustiada na sua carta seria infeliz nas suas relações com outros.
Truth desaprovava tanto a astrologia como a chamada magia verdadeira, mas tinha de
admitir que a astrologia era um pouco menos inofensiva. Tentou decifrar a razão que teria
levado Blackburn a escolher aquele título, quando eram obviamente os outros que eram
infelizes nas suas relações com Thorne, e não ao contrário. Virou-se para olhar para Dylan.
Este tinha o olhar de um homem que tentava dizer alguma coisa. De repente, Truth
pensou se ele quereria escrever uma biografia sobre Thorne Blackburn. Isto era o mundo
académico, afinal de contas: publicar ou morrer. Mas mesmo que a sua suposição estivesse
certa, não desperdiçou nenhuma compaixão pelo projeto malogrado de Dylan. Ela era muito
mais qualificada e tinha acesso a fontes que Dylan não possuía.
“Talvez devesse chamar-lhe A Voz do Sangue?”, pensou ela com irreverência.
Venus Angustiada teria sido publicada algum dia? Não tinha contado a Dylan que
possuía uma cópia; seria o auge do seu livro; o que asseguraria a sua publicação e o tornaria
também uma peça valiosa de pesquisa e tencionava manter secreta a sua inclusão até o último
minuto.
— Bem, francamente, não quero saber se ele disse que tinha ido a Tir na Og ou a
Cleveland — disse Truth. — Só quero fatos que se possam provar. Tenho uma data de férias
acumuladas e vou tirá-las. Três meses devem chegar para separar a realidade da ficção.
— A verdade raramente é pura e nunca é simples, diz Oscar Wilde — comentou
Dylan. — E o que vais tu fazer com a tua verdade quando a encontrares?
— Vou escrevê-la. Não vejo por que razão as pessoas deveriam exaltar Thorne
Blackburn, quando ficariam horrorizadas se realmente soubessem as coisas que ele fez.
Dylan olhou para ela fixamente.
— Tens a certeza de que vai fazer alguma diferença? Olha para qualquer um dos
Kennedy, para os King, para Elvis. Quanto mais sujeira as pessoas descobrirem sobre eles,
mais a sua imagem se afirmará na imaginação pública. Como podes imaginar que o teu livro
seja diferente?
— Não sei — admitiu Truth. — Mas pelo menos terei toda a verdade. — De repente
sentiu necessidade de o convencer de que estava no caminho certo, de que não se tratava
apenas de um ato mesquinho de vingança. — Se eu esperar muito mais, Dyl, as fontes
primárias (as pessoas que o conheciam) estarão todas mortas.
— Se ele fosse vivo, estaria na casa dos sessenta — concordou Dylan. Mas por onde
vais começar? Na Califórnia? Em Inglaterra?
— Não — disse Truth. — Vou começar mais perto de casa do que isso. Vou começar
onde tudo se passou realmente... ou terminou. — Respirou profundamente e pronunciou as
palavras: — Vou para Shadow’s Gate.

CAPÍTULO TRÊS
O CÍRCULO DA VERDADE
Truth, ppoor child, was nobody’s daughter
She took off her clothes and jumped into the water3
DOROTHY L. SAYERS

Era a segunda semana de outubro. A folhagem do vale do Hudson alcançara um auge


esfuziante de cor. Carvalhos, bordos, bétulas e choupos estampavam o seu espectro de
âmbares e dourados contra um céu tão azul que magoava os olhos. E Truth ia em direção a
Shadow’s Gate.
Tinha ficado levemente surpreendida ao descobrir que Blackburn não era responsável
pelo requintado nome gótico da sua última residência, e que não tinha inventado o nome da
cidade vizinha nos seus ensaios publicados. Shadowkill era mesmo um lugar real, e recebera o
nome do rio assim designado pelo colono holandês Elkanha Sheidow em 1641: Sheidow’s
Kill, kill, termo holandês perfeitamente normal, com o sentido de “rio”, aparece em nomes de
lugares do vale do Hudson, desde Peekskill até Plattekill.
Quando os colonos ingleses substituíram os holandeses nesta área, Scheidow’s Kill foi
anglicizado para Shadowkill, tornou-se o nome da nova cidade inglesa, e Scheidowgehucht
(“Scheidow’s Hamlet”) tornou-se Shadow’s Gate, nome que hoje em dia está ligado apenas à
propriedade fora da pequena aldeia. Assim uma taxionomia aparentemente fantasmagórica e
teatral revelou-se, à luz duma pequena pesquisa, coisa perfeitamente normal e inofensiva.
E muitíssimo ilusória.
Ela tinha descoberto o nome dos advogados que estavam a tratar do património de
Blackburn e da propriedade através das notícias dos jornais que comentaram o seu
desaparecimento em 1969, mas as cartas e telefonemas que enviou a pedir ajuda e
informação, bem como autorização para visitar a casa, não tiveram resposta. Mesmo assim,
Truth achava que não haveria qualquer problema se trepasse por cima da vedação e desse um
passeio por lá. E como filha de Blackburn, mesmo ilegítima, poder-se-ia dizer que tinha
algum direito sobre o lugar.
Este pensamento perturbou-a. Não queria nada de Blackburn, não queria o seu livro
arcano, nem as jóias dos rituais, nem a sua... qual tinha sido a frase que um dos dois idiotas
dos seus correspondentes usara? Ah, sim, nem o seu manto de autoridade mística. Truth
fungou zombeteiramente ao recordá-lo.
Mas queria ver a casa. Nenhuma lembrança lhe ficara da época que tinha passado em
Shadow’s Gate; as recordações da sua infância. Talvez houvesse alguma coisa que ela
pudesse
reivindicar para si mesma nesta viagem: a sua história. Tinha passado quase um mês, desde
que pedira e recebera licença para se ausentar do instituto, seguindo-se o assunto desagradável
de tentar obter informações biográficas sobre Thorne Blackburn. Tinha falado com a tia
Caroline ao telefone algumas vezes, mas a tia Caroline não voltara a Thorne Blackburn ou à
herança e Truth sentiu-se aliviada.
Enquanto esperava autorização para se ausentar, Truth recolheu e reviu o material
sobre Blackburn que tinha lido quando soube da sua existência e concluiu que ainda era mais
insuficiente do que imaginara. Havia apenas uma breve menção em The Occult de Colin
Wilson e Man, Myth and Magic de Richard Cavendish pouco mais tinha. Quando olhou para
as suas notas após uma semana de trabalho, achou-as ridiculamente enigmáticas.

3
Verdade, por criança, / era a filha de alguém. / Ela arrancou-lhe a roupa e saltou para a água. (N. da T.)
Thorne Blackburn, provavelmente nascido cerca de 1939, lugar de nascimento
desconhecido, provavelmente Inglaterra; família desconhecida, infância desconhecida
também.
Apareceu primeiro em Nova Orleães no fim dos anos 50, onde fazia falsos rituais
vudu para turistas; uma fase da sua carreira que não tinha durado muito tempo, alegando ser o
conde de Cagliostro, charlatão francês do século XVIII que pretendia ter mil anos. Não
obstante estas pretensões, Thorne deveria ter cerca de trinta anos quando morreu. Dylan tinha
razão; teria cerca de sessenta anos se fosse vivo.
Já era bem estabelecido como ocultista quando apareceu novamente em São
Francisco, no início dos anos sessenta, Blackburn alegava ser filiado tanto na Ordo Templi
Orientis como no Golden Dawn. Tinha causado grande sensação com as suas conferências, os
seus rituais públicos e a publicação do que chamavam naqueles dias inocentes “um jornal
clandestino” dedicado ao culto de Blackburn, claro, e às suas bizarras teorias da Nova Era.
E era tudo. Aí terminava a história da vida e da morte de Blackburn.
Com o pedido na biblioteca de notícias de jornal sobre Blackburn, tinha obtido uma
pasta cheia de recortes de jornal em microfilme, não servindo nenhum deles para muito mais
do que para obter o nome do advogado. A maioria desse material focava o desaparecimento
em abril de 1969. A morte de Katherine Jourdemayne estava registrada como “suspeita de
sobredose”. A Polícia tinha procurado Thorne, mas nunca o tinha encontrado; outros
membros do círculo foram detidos durante algum tempo e depois libertos.
Era uma pista empoeirada com um quarto de século, mas talvez ela pudesse decifrá-la
se visitasse Shadow’s Gate. Truth não percebia de onde vinha a convicção de que as respostas
estariam ali; a propriedade estava deserta, deixada a apodrecer, enquanto o excesso de
burocracia que a envolvia e ao seu proprietário há muito desaparecido, mas não
definitivamente morto, continuava a desenrolar-se como uma batalha legal numa novela de
Dickens. Se não fosse isso, Shadow’s Gate e a floresta de cem acres já teria sido vendida há
muito tempo, achava Truth. Mas tinha de ir lá.
No instituto tinha-lhe parecido mais simples. Desesperada, Truth olhou através do
pára-brisas para o que parecia ser mais uma estrada secundária do condado de Dutchess.
Tinha
viajado toda a manhã, e nesta altura estava prestes a admitir que se perdera.
Talvez Shadow’s Gate não existisse realmente.
“Claro que existe!”, censurou-se ela mentalmente. A pensão em Shadowkill, onde
tinha feito uma reserva para a noite, era suficientemente real para aceitar o cartão Visa. Truth
parou na estrada num lugar mais largo e inspecionou novamente o mapa do condado de
Dutchess. Shadowkill devia ficar por ali. Não era apenas uma invenção de cartógrafo. Com
dificuldade, Truth localizou Shadowkill no mapa e depois (olhando para o sinal na estrada
para se certificar) a estrada n° 43. Na melhor das hipóteses ficavam a 2 cm de distância e não
se cruzavam, ao contrário do que lhe tinham indicado.
“Ah, já percebi. Devia ter virado para trás algures, para a County 13; O treze da
sorte. Mas que apropriado.”
“Ainda bem”, refletiu Truth, que não era uma pessoa supersticiosa.
Mas mesmo uma pessoa supersticiosa ficaria desarmada ao ver a pequena cidade de
Shadowkill, que Truth acabou por encontrar quarenta minutos mais tarde.
Shadowkill era uma cidade típica do rio Hudson, com mansões vitorianas agrupadas
irregularmente à volta de um parque perfeito. Havia um grande monumento à guerra no centro
do desvio e uma rua principal cheia de lojas antigas, mais umas quantas lojecas atraentes e
modernas, fazendo do lugar uma das pequenas aldeias do Sleepy Hollow Country que obtinha
a maior parte do seu rendimento do turismo.
Entretanto, já a tarde ia avançada e seria razoável que Truth pelo menos localizasse e
parasse na pensão para conhecer a dona e aí deixar as malas, mas neste momento já estava tão
perto do seu objetivo que não quis parar. Durante anos Shadow’s Gate tinha existido na sua
imaginação como uma espécie de combinação horrenda entre a Casa do Inferno e o Bates
Motel; não queria esperar para a conhecer como era na realidade e reduzi-la à sua
vulgaridade.
Seguindo as instruções, Truth subiu a Main Street (assim se chamava agora a State
13), passando por lojas que depois davam lugar a chalés limpos e caros. Mais adiante os
chalés deixaram de se ver e durante cerca de uma milha a estrada era bordejada por vedações
e relva. Finalmente, chegou ao local em que a Main Street desembocava na Old Patent Grand
Road.
Shadow’s Gate ficava mesmo em frente, e a vedação de tábuas que cercava Old Patent
Grand Road fora removida do local em frente à casa, de ambos os lados do portão, de maneira
que era possível entrar na propriedade. Truth atravessou a estrada com duas vias e parou num
pequeno largo de gravilha em frente à casa. Um tremor de sobressalto eriçou-lhe os pêlos dos
braços e do pescoço; até o ar parecia eletrizado, como antes de uma tempestade.
“Não sejas melodramática. É apenas uma casa”, ralhou Truth severamente consigo.
Forçou-se a olhar à volta, a recolher dados com o espírito de um estudioso.
Das suas investigações sabia que Shadow’s Gate era uma propriedade que vinha da
época em que ambas as margens do rio Hudson tinham sido enfeitadas com os enclaves
palacianos dos barões ladrões do século XVIII. A casa atual, achava ela, tinha sido construída
algum tempo depois da guerra civil.
A casa junto ao portão, onde se encontrava agora o seu carro, era um acrescento
ulterior um castelo em miniatura, com um enorme mostrador de relógio que fazia lembrar
levemente um edifício público. O edifício junto ao portão formava um arco por cima do
caminho; os portões de ferro do arco permitiam barrar a entrada na propriedade a um intruso
casual.
Truth tinha visto fotografias da casa do portão no livro Cavendish e mentalmente
embelezara o quadro; as redondezas cobertas de ervas daninhas, os portões enferrujados
fechados a cadeado; tudo com uma aura melancólica de decadência.
Mas, muito pelo contrário, as ervas tinham desaparecido, as plantas ornamentais
floriam e os portões pintados de fresco estavam abertos para o caminho recentemente coberto
de saibro.
Shadow’s Gate estava muito longe de ser uma relíquia deserta de um passado vago.
“Alguém está a viver aqui”, pensou Truth, sentindo um eco do ciúme que já a
assaltara em casa da tia Carolina. Shadow’s Gate era dela; quem ousaria...
— Posso ajudá-la?
A voz pertencia a um jovem impetuoso que aparecera por detrás da casa junto aos
portões. Ela abriu a janela e debruçou-se para fora.
— Eu... não tenho a certeza. Vim ver a casa — disse Truth hesitante.
— Não está à venda — disse o jovem, sorrindo ainda. Era alguns anos mais novo do
que Truth, com o cabelo loiro avivado pelo sol e muito bronzeado, mostrando que era dado a
atividades ao ar livre.
— Não quero comprá-la — disse Truth rapidamente. — Só queria olhar para ela. —
Com um impulso de honestidade, acrescentou: — Cresci aqui... bem, durante uns tempos. O
meu nome é Truth Jourdemayne.
Truth já estava habituada a praticamente todas as reações possíveis ao seu nome, que
era manifestamente peculiar. Também era uma herança de Thorne Blackburn, mas na altura
em que se tinha apercebido disso, o nome já fazia parte dela e a antipatia pelo seu doador não
justificava uma mudança.
— É Truth Jourdemayne? A Truth Jourdemayne? Mas isso é ótimo! E está aqui! Como
é que... Ah, bem, acho que devo apresentar-me. Sou Gareth. Gareth Crowther. Bem-vinda a
Shadow’s Gate, senhora Jourdemayne... não consigo lembrar-me de mais ninguém mais
apropriado para estar aqui. Mas que maravilha...! Nenhum de nós estava à sua espera.
De todas as reações possíveis: humor, descrença, confusão, esta era novidade. Era
óbvio que o seu nome significava alguma coisa para este jovem, mas ele estava tão satisfeito
por descobrir quem ela era que não podia sentir-se ofendida.
— Mas, olhe! Tem que vir até a casa e conhecer o Julian — acrescentou Gareth. — Vai
ser ótimo!
— Não acho, senhor... — começou Truth.
Gareth esmoreceu visivelmente perante esta recusa.
— Chame-me Gareth. E... por favor. Não vai causar nenhum incómodo. O Julian não
está a fazer nada neste momento. E a senhora poderia ver a casa. Foi por isso que veio, não
foi? Para ver a sua casa? Julian ficará contente por mostrar.
Olhou para ela com um ar tão esperançoso que Truth começou a sentir-se um pouco
culpada por recusar. Era óbvio que Gareth era um homem franco, afetuoso e imaturo que
nunca esperava dar ou receber indelicadeza. E ela queria ver a casa. Será que se tinha chegado
a um acordo em relação ao património de Blackburn de forma a que a casa pudesse ser
vendida? Afinal, ninguém tinha motivo para a informar.
— Julian é o novo dono? — perguntou.
— Sim — respondeu Gareth. — Mudamos para aqui há alguns meses, em maio.
Truth refletiu sobre esta informação; apesar de conhecer Gareth há tão pouco tempo,
não tinha ar de sócio de alguém que podia dar-se ao luxo de possuir uma propriedade no
valor, fazendo um cálculo muito por baixo, de várias centenas de milhares de dólares.
— Suba disse ele de forma encorajadora. Por favor.
“Já que vieste de tão longe, o melhor é ires. Vá lá. Vai dar só uma olhadela.” A ânsia
silenciosa era tão forte que parecia ter vida própria, mas Truth continuava a hesitar.
Como parapsicóloga, Truth Jourdemayne acreditava no mundo escondido das
percepções para além do normal e na comunicação para além da linguagem. Como cientista,
preferia qualquer explicação normal a uma paranormal. Este pressentimento mesquinho era
provavelmente apenas o seu próprio desejo inconsciente de sossegar fantasmas infantis.
— Está bem, eu vou — disse ela, decidindo-se. — Obrigada Gareth, foi muito
simpático.
— Obrigado, senhora Jourdemayne — disse Gareth, fazendo-lhe uma vénia cómica.
— Truth — disse ela.
O sorriso dele alargou-se. Recuou quando o carro dela passou pelos portões pintados
de fresco. Não se conseguia ver a casa principal da casa do portão, apercebeu-se Truth
enquanto ia guiando. Tinha a sensação estranha de ter acabado de entrar num quadro ou num
filme; num mundo que era real, mas diferente do mundo que acabara de deixar; um mundo
que tinha as suas próprias compensações e perigos.
Dentro daquela propriedade, o século XX desaparecia. Não se via mais nenhuma casa;
nem conseguia ver os cabos de alta tensão que ela sabia que tinham de existir. O caminho de
gravilha virava primeiro à esquerda, depois à direita, cortando através da floresta que
circundava a casa; o acesso tinha profundas valas de ambos os lados, para escoar chuvas de
verão e a neve derretida no inverno; agora cheios de folhas que se amontoavam como dobrões
de ouro roubados a um galeão fantasma.
Truth fez o melhor que pôde para travar a sua fantasia e concentrar-se no encontro que
tinha pela frente. Quem era Julian? Por que tinha ele comprado Shadow’s Gate? Gareth
parecia saber quem ela era; seria o encontro muito embaraçoso?
De repente viu-se uma clareira na floresta e, mesmo em frente, a casa.
Inconscientemente, parou o carro. Shadow’s Gate era um exemplo do gótico do vale do
Hudson no século XIX. Parecia um castelo de fadas construído como uma fortaleza para uma
guerra na Neverland. Em contraste com as outras mansões do rio Hudson, construídas de
madeira nativa ou mármore importado, em Shadow’s Gate tinha sido utilizada a pedra local
cinzento-pálido. Três torres de telhado em cone, com compridas e estreitas janelas, erguiam-
se dos lados da estrutura irregular, e de um dos lados Truth distinguiu a forma geométrica de
uma estufa, ou de um jardim de inverno, que se destacava como se não quisesse ter nada a ver
com as paredes que a segurava. Os cinco acres de terreno à volta da casa estavam
imaculadamente tratados; do outro lado da extensão de relvado verde, um mirante branco e
rendilhado, e arbustos altos que poderiam ser um labirinto.
Para lá destas obras de civilização, a floresta outonal apoderava-se novamente da
paisagem. A propriedade de Shadow’s Gate tinha um pouco mais do que 100 acres.
“A floresta de cem acres. Tal como em Winnie-the-Pooh.”
Ver Shadow’s Gate era como ver uma cena, que ela julgava enterrada num livro para
crianças; entrar em conflito com a vida. Truth sempre tivera a certeza de que não retinha
quaisquer recordações de infância, como era perfeitamente normal; a maior parte das pessoas
diz que não tem recordações da infância anteriores ao sétimo ou oitavo ano, mas agora
parecia-lhe que se tinha enganado.
Ela conhecia este lugar. Entrar pelas suas portas era como chegar vinte anos atrasada a
um encontro marcado.
O coração de Truth batia com força contra as suas costelas, à velocidade do pânico.
Por um instante o mundo, o carro, a simpática floresta outonal tinha desaparecido e ela estava
nua num lugar em que os archotes formavam uma catedral de luz, sustentada por pilares. Ela
deveria vir ao julgamento, mas os que a chamavam mal sabiam que ela viera para enfrentá-
los.
Truth abanou a cabeça, intrigada. A recordação, a fantasia ou o que quer que fosse,
diluiu-se como um sonho, deixando para trás apenas a sensação de um desafio que é preciso
defrontar.
— Que sensação desagradável! — falou em voz alta para varrer de vez a sensação de
sonho.
A casa em frente não era mais do que uma imponente mansão vitoriana, que voltara a
ser alugada depois dum longo abandono.
— Déjà vu, é assim que lhe chamam — disse Truth para si própria, pondo o carro
novamente a trabalhar.
Déjà vu, a sensação de já ter estado num lugar. Muitas vezes citado pelos psíquicos
como prova dos seus poderes, embora raramente se tratasse disso. Um truque complicado do
espírito, nada mais.
Nada mais.
Quando parou em frente da casa, estava um homem à espera dela nas escadas da
frente.
“Gareth deve ter telefonado da casa junto ao portão”, deduziu Truth. Saiu
relutantemente do carro, pondo a carteira ao ombro. O homem desceu as escadas, rodeando o
carro para a cumprimentar.
— Olá — disse ele, estendendo a mão. — Sou Julian Pilgrim. Bem-vinda a Shadow’s
Gate, senhora Jourdemayne.
Truth não deixou de reparar que ele a tinha avaliado rapidamente e de repente ficou
contente por se ter dado ao trabalho de vestir um dos fatos que reservava para conferências
profissionais: uma saia e um casaco a condizer em seda verde que usava com um bolero peau
de soie cor de marfim. Os sapatos leves de salto curto, castanhos e uma enorme carteira
Coach a condizer completavam a imagem de uma pessoa eficiente, formal e normal.
Ao mesmo tempo em que Julian Pilgrim a analisava, Truth fez também a sua
avaliação. Viu um homem alguns anos mais velho do que ela, com espessos e sedosos cabelos
pretos e olhos de gato siamês, de um espantoso azul-topázio. O rosto tinha toda a arrogância
aristocrata daquela raça nobre e o seu corpo exprimia uma elasticidade indubitavelmente
felina. Estava vestido como se fizesse parte da mesma reunião imaginária de Truth; um casaco
de tweed leve e caro, calças escuras, uma camisa de linho, imaculadamente branca, aberta
para mostrar o seu pescoço forte e bronzeado. Não usava anéis e o Rolex no punho esquerdo
era um indício discreto e dourado do privilégio.
Ao olhar para as mãos dele sentiu um arrepio por todo o corpo; antes que conseguisse
parar, imaginou como seria se elas tocassem na sua pele nua.
A única nota destoante na sua perfeição era a pulseira enorme que Julian Pilgrim
usava no pulso direito.
Era de esperar que qualquer jóia que este homem usasse fosse elegante. A pulseira não
era. Tinha o aspecto monótono e poroso do ferro impuro, no qual, inexplicavelmente, tinha
sido embutido um desenho em ouro puro. Observou-a apenas por um instante; seguindo a
direção do seu olhar, Julian puxou os punhos para baixo para a esconder. Usava punhos
franceses; os botões de punho eram pequenos quadrados de esmalte vermelho.
A sua apreciação mútua tinha sido muito breve; Truth sorriu e apertou a mão
estendida.
— Sou Truth Jourdemayne, como sabe — disse ela. — E você é o novo dono de
Shadow’s Gate?
— Acho que sou apenas um administrador. Quando um homem compra uma casa com
trezentos anos, tem que reconhecer que é apenas um episódio efémero na vida da casa. Mas,
por favor, entre. Vem de longe?
Irradiava o fascínio encantador dos grandes felinos... talvez um tigre... e usava a sua
aura de masculinidade carismática como uma coroa de louros, parecendo inconsciente do seu
efeito sobre a população feminina em geral.
— Somos quase vizinhos. Trabalho na Universidade Taghkanic, no condado de
Amsterdam.
Normalmente, teria sido mais específica, uma vez que tecnicamente Truth trabalhava
para o Instituto Bidney e não para a universidade, mas o seu instinto impediu-a de revelar
demasiadas coisas demasiado cedo.
— Não me tinha apercebido que Shadow’s Gate estivesse à venda — acrescentou
Truth.
— Não estava.
Julian fez um gesto para que ela subisse as escadas à sua frente e depois tocou-lhe
levemente ao passar perto dela para abrir a porta da frente.
Truth parou na entrada, olhando à sua volta. As janelas de vidro pintado da galeria
coavam uma luz multicolor, ameaçando transportá-la novamente para aquele estado de
memória alterada. Fechou os olhos e desviou o olhar ao entrar na casa.
— Negociei uma combinação bastante delicada — disse Julian, seguindo-a através da
porta. — A minha proposta para a compra antecipada foi confiada a uma terceira pessoa até o
cumprimento das condições previstas e eu estou a viver aqui com alguns dos meus...
associados... enquanto se trata dos últimos pormenores. Mas estou a dar-lhe más notícias?
Talvez tivesse planeado viver em Shadow’s Gate?
A sua voz profunda era como veludo de camurça, tecendo um encanto que não tinha
nada a ver com a casa.
— Não me parece — respondeu Truth abruptamente.
— Tenho que admitir que me sinto bastante honrado com a visita da filha de Thorne
Blackburn — acrescentou Julian. — Alguma coisa que eu possa fazer para tornar a sua visita
mais agradável...
Então ele sabia quem ela era. Truth sentiu-se tensa, apesar dos encantos de Julian e do
seu aparente desejo de lhe agradar. Perguntou-se a si própria quem seriam os associados não
mencionados deste Julian Pilgrim tão perigosamente atraente e que espécie de associação
seria.
— Vim apenas para ver a casa — disse Truth bruscamente.
— E vai vê-la — disse Julian, pegando-lhe no braço. — Vou mostrá-la.
— Imagino que seja bastante embaraçoso para si ser a filha de Thorne Blackburn —
disse Julian cerca de uma hora mais tarde.
A última paragem na visita guiada tinha sido na sala a que Julian chamara seu
escritório; uma sala surpreendentemente pequena, enfiada por baixo da grande escadaria.
Estava cheia de estantes, que por sua vez estavam repletas de livros dos que se lêem e não dos
que são comprados ao quilo a um decorador para dar bom aspecto. Nos intervalos das estantes
de livros, a parede estava coberta de brocado vermelho, não se percebendo se se tratava do
material original ou de uma cópia a imitar o antigo. No meio da sala, uma secretária ladeada
de confortáveis cadeiras de braços vitorianas. Um bar estilo chinês no canto e um tapete
oriental no chão completavam a decoração. Era estranho que a sala não tivesse nenhuma
janela.
Truth pareceu surpreendida com o comentário compreensivo,
— Vá lá, senhora Jourdemayne... O olhar de horror que vi na sua cara, quando
mencionei de passagem o nome do seu pai, foi um indício claro, mesmo para um intelecto
mais obtuso do que aquele que me orgulho de ter, de que este assunto não lhe agrada.
Truth desviou o olhar, fingindo procurar uma cadeira, para ele não a ver corar. Tinha
sido tão simpático na última hora, mostrara-lhe a casa e a propriedade, discorrera com
sabedoria sobre a sua história e nunca mencionara, nem uma vez, Thorne Blackburn.
Passou em revista todas as possíveis respostas que podia dar.
— Desculpe se pareço malcriada — disse ela por fim, escolhendo a mais inofensiva.
Mas...
— Mas você está cansada de ser tratada como se não fosse uma pessoa, com os seus
desejos e necessidades próprias, mas como uma espécie de linha psíquica para um homem que
você nem pode ter conhecido muito bem — disse Julian. — E cujos interesses você pode nem
sequer partilhar.
Aqui estava uma maneira delicada de o dizer.
— Sim — disse Truth com gratidão.
Sentia que se estava a interessar por Julian a um nível que transcendia a mera atração
física, como se a camaradagem de uma velha amizade já existisse entre eles.
— Eu — disse Julian — não peço aos outros para partilharem os meus interesses...
embora quando o fazem seja uma dádiva inesperada. — Riu-se e Truth sorriu-lhe. — Talvez
um pouco de xerez, senhora Jourdemayne?
— Sim, obrigada. E, por favor, chame-me Truth, senhor Pilgrim.
— E você tem que me chamar Julian — respondeu ele, dirigindo-se ao bar, em cima
do qual uma garrafa de cristal para decantar e copos repousavam num tabuleiro de prata tão
formalmente como no escritório de qualquer professor de Oxford.
— Desculpe falar no assunto — continuou ele depois de ter servido a ambos pequenos
e delicados copos de cristal cheios de vinho doce e vermelho-escuro — mas claro que você
sabe que foi nomeada para o Trabalho de Blackburn?
Feita por Julian, esta pergunta, que teria sido embaraçosa vindo de qualquer outra
pessoa, era apenas uma questão de curiosidade.
— Não conheço o Trabalho de Blackburn muito bem — admitiu Truth com cuidado.
— É raro os filhos conhecerem os pais, ou o que é importante para os pais, e a atenção
constante dos jornais prestada ao Trabalho, devido ao desaparecimento de Blackburn,
também não deve ter ajudado. Os ocultistas, como os parapsicólogos, dão o seu melhor
quando não são perseguidos por uma “caixa” no noticiário das seis horas.
Truth franziu as sobrancelhas e não disse nada. Julian riu-se da surpresa dela.
— “Você conhece os meus métodos, Watson, agora aplique-os” — citou ele todo
contente. — Qualquer pessoa que trabalhe neste campo conhece o Instituto Bidney e não
importa em que prato da balança a sua alma é pesada. De qualquer maneira, como poderia eu
não reconhecer a autora de Some Preliminary Inquines Into a Statistical Basis for Evaluating
Clairaudient Perception? Gostaria de ter ido a bem ouvir a sua conferência; parece que
esperamos demasiado tempo para nos conhecermos.
Desta vez não se podia interpretar o sorriso ou o que ele significava; Truth sentiu-se a
corar agradavelmente.
— Não sabia que se interessava tanto pela parapsicologia, Julian — disse ela. Deu um
gole no xerez. O seu gosto doce e forte era o equivalente físico para a luz de outubro, que
brilhava através das janelas de vidro colorido lá fora, no bali.
— Ah, mas interesso-me, mas não duvide. O meu interesse principal é o Trabalho de
Blackburn do ponto de vista do mágico; mas, como o próprio Thorne diz, temos que nos
familiarizar tanto com o campo da possibilidade científica como com o âmbito de ilusionismo
teatral para podermos distinguir a verdadeira magia, quando esta acontece.
Julian encostou-se para trás na cadeira, e mais uma vez Truth teve de travar uma
especulação íntima de como seria tocar os músculos que se agitavam por baixo da roupa.
— Parece bastante razoável — disse Truth com relutância, forçando-se a concentrar no
assunto.
Ela não queria discutir com um anfitrião tão simpático, mas não conseguiu conter um
pequeno e irónico comentário:
— E você já viu muita “magia verdadeira”, Julian?
— Não. — Sorriu-lhe, como se a convidasse a partilhar um segredo delicioso, e bebeu
o resto do xerez de um gole.
— Mas espero que sim. E o que a traz a Shadow’s Gate, Truth Jourdemayne? Com
certeza não é um interesse pela arquitetura do vale do Hudson?
Debruçou-se para a frente, totalmente à vontade, e Truth lembrou-se mais uma vez de
um preguiçoso felino da selva, com pêlo escuro e olhos brilhantes e quentes. Era
desconcertante ver que estava do lado dos apoiantes de Thorne, mas não eram pessoas como
Julian que o seu livro deveria ajudar?
Além disso, nenhum biógrafo trabalha sem discutir o assunto. Teria de mencionar
Blackburn a alguém além de Dylan, mais cedo ou mais tarde.
— Estou a escrever uma biografia sobre o meu pai — disse Truth.
Julian endireitou-se, com uma expressão de contentamento.
— Mas é perfeito — disse ele. — Veio ter ao lugar certo para começar. Claro que tem
que ficar aqui. Tornará tudo muito mais fácil para si. Claro que você sabia da coleção; ficará à
sua inteira disposição; que espantosa manifestação de sincronia.
— Sincronia... — repetiu Truth, admirada. — Que espécie de coleção, Julian? —
perguntou ela, pondo de lado por enquanto o seu convite para ficar.
— Então... blackburniana... já que não tenho um nome melhor. Quer dizer que não
sabia? Mas que golpe para o meu ego! Há anos que estou a colecionar. É bastante grande:
cartas, cassetes, aparelhos místicos. Mesmo o que você precisa. Vou mostrar-la.
Levantou-se e ofereceu-lhe a mão. Depois de um momento de hesitação Truth deu-lhe
a mão. Os dedos quentes de Julian fecharam-se sobre os seus com uma sensação confiante de
posse, e o poder que fluía através do seu toque fê-la tremer.
— Eu já tinha pensado que tinha de acabar por ser eu próprio a escrevê-la, mas a
verdade é que não tenho qualquer talento literário — dizia Julian. — E não há maneira melhor
de conhecer Thorne Blackburn do que escrever sobre ele.
Truth estava ao lado de Julian numa sala airosa e espaçosa que não fora incluída na
volta anterior. As paredes pintadas de branco e os tetos altos davam-lhe o ar indefinido de
uma escola no campo. Aqui não havia estantes embutidas, mas apenas extensões de gesso
moldado e o chão era assoalhado de tábuas largas de carvalho. A sala também continha duas
longas mesas de biblioteca e várias prateleiras e ficheiros, mas toda ela era dominada pelo
enorme quadro a óleo pendurado por cima da lareira no lado oposto da sala Thorne
Blackburn com as suas vestes mágicas.
— Ajuda quando se têm possibilidades para anunciar em revistas e jornais... e pagar,
claro. É impressionante quantas vezes o dinheiro é preferido à recordação lembrada com
prazer. Mas isso faz-me parecer cínico; na verdade, tive imensa sorte em poder deitar a mão a
muitas coisas destas e sinto-me muito... humilde.
Apesar de conhecê-lo há pouco tempo, Truth sentia que a humildade era coisa que
Julian Pilgrim jamais teria. Era o mesmo que desejar uma águia tímida ou um tigre submisso.
Olhou para o retrato, não fosse Julian apanhá-la a olhar para ele como uma adolescente na sua
primeira paixão a venerar o seu herói.
A figura no retrato estava descalça e usava um manto verde bordado com caracteres
rúnicos e uma pele de lobo ou algo equivalente aos ombros. O manto era cingido na cintura
com um cinto de couro com pedras preciosas e terminava com um tipo de borlas de seda
douradas que Truth associava a cortinas pesadas.
Os braços da figura estavam cruzados sobre o peito; numa mão segurava uma varinha
mágica branca e vermelha às riscas, que tinha no topo uma representação dourada de Ísis
alada e, na outra, uma pequena espada com uma grande estrela de David incrustada no punho
e símbolos elaborados gravados na lâmina. O sistema de crença mágica de Blackburn fosse
ele qual fosse tinha um gosto profundamente católico quanto aos símbolos.
Uma fita dourada, que segurava uma roda solar, mantinha-lhe o cabelo esvoaçante no
lugar e os seus olhos verdes estavam virados para cima. Isso e a auréola que o artista tinha
achado apropriado pintar davam à figura no quadro o ar fortemente sentimental de um
Salvador de fancaria. Mas faltava alguma coisa.
— Onde está o colar? — perguntou Truth? — E o anel?
Julian olhou para ela muito surpreendido.
— Julgava que tinha dito que não conhecia o Trabalho de Blackburn.
Truth não disse nada, maldizendo-se a si própria por ter falado. A última coisa que
queria era que Julian pensasse que ela tinha um conhecimento secreto e íntimo de
“blackburnismo” para ele descobrir.
Após breve pausa, Julian encolheu os ombros.
— Bem, revelei as minhas pequenas fraquezas — disse ele, dando uma gargalhada. —
O anel e o colar deviam lá estar, você tem razão. Sei que são mencionados na literatura, mas,
como deverá notar, este quadro não foi pintado ao vivo. Também não consegui arranjar
fotografias de nenhuma das peças, por isso disse ao artista para omiti-las. Talvez possam ser
acrescentadas um dia destes... se porventura aparecerem. Fez-lhe novamente um sorriso
deslumbrante e Truth sentiu-se a derreter. Certamente que não era amor e talvez nem mesmo
desejo Julian parecia muito mais verdadeiro do que qualquer outra pessoa que Truth tivesse
conhecido. Dominou a vontade de lhe entregar imediatamente o colar e o anel simplesmente
pelo prazer que sabia que dariam a Julian. Quer quisesse ou não e não queria , todo o seu
caráter e experiência tinham criado nela uma profunda desconfiança das primeiras
impressões, por mais sedutoras que fossem.
Esperaria para ver.
— De qualquer maneira, aqui dentro destas quatro paredes está quase tudo o que
pertenceu ao cimo da terra a Thorne Blackburn, Magister Stella Marís: fotografias, artefatos,
cartas pessoais. As prateleiras contêm cópias de todos os livros que o mencionaram, com as
citações enumeradas no frontispício de cada um, bem como todas as reedições vendidas
ilegalmente de material da antiga Voice of Truth.
O gesto largo de Julian incluía as prateleiras ao longo de ambas as paredes. Estavam
cheias de livros, desde livros de bolso esfarrapados a livros que faziam lembrar o esplendor
dourado de uma biblioteca de Direito.
— Sabe, é uma pena que ele tenha desaparecido daquela maneira — continuou Julian.
— A herança está tão desorganizada que alguns dos direitos de autor nunca ficarão
esclarecidos até que o trabalho seja do domínio público no próximo século. Mas, por favor,
esteja à vontade para os folhear... e, por favor, considere a minha oferta. Gostaria muito de ser
o seu anfitrião, Truth. Ficaria lisonjeado por poder ajudá-la... talvez mais do que imagina.
Era impossível interpretar de forma errada a sinceridade da sua oferta e Truth viu-se
novamente a retribuir-lhe o seu sorriso.
— Realmente... não acho — disse Truth atrapalhada, apesar de tudo. Não conhecia
Julian, era partidário do pai, não podia confiar nele. — Esta coleção é espantosa, Julian. Nem
sei por onde começar... é magnífica — disse ela, esperando distraí-lo.
— É sua enquanto precisar. — Julian dobrou a mão dela nas suas. — Vai ficar?
— Eu... — hesitou Truth.
Julian, ao sentir a sua relutância, fez-lhe outra proposta.
— Pelo menos fique para jantar. Os outros vão gostar de conhecê-la e espero ter mais
uma hipótese de convencê-la da nossa causa.
O firme olhar azul de Julian e o sorriso atraente e suplicante não permitiam fugir à
pergunta, embora Truth sentisse que aceitar o convite para jantar seria concordar com muito
mais do que apenas uma refeição. Mais uma vez sentiu uma vaga sensação de desafio.
— Muito bem disse ela, sentindo a sua relutância a desaparecer ao assentir. Com todo
o gosto.
— Então está combinado.
Truth ia perguntar a que horas deveria voltar, mas mais uma vez Julian antecipou-se.
— Posso deixá-la aqui durante uns momentos? Preferia a sua companhia, mas tenho
que fazer alguns telefonemas para a Califórnia. Espero que se divirta aqui.
Truth concordou. Julian continuou a falar, enquanto se dirigia para a porta:
— Estou tão contente por você ficar. Vou dizer à Irene.
Pronunciou o nome à inglesa, dando-lhe três sílabas e um longo “e” no fim: I-ree-nee.
— Ela faz o favor de supervisionar a nossa organização doméstica, e ficaria perdido
sem ela. Volto logo que puder, mas esteja à vontade para pedir à Irene ou a um dos outros
qualquer coisa de que precise.
— Claro — disse Truth, um pouco espantada.
O sol da tarde, que batia contra as altas janelas sem cortinas, banhava Julian num
esplendor oriental, dando-lhe um halo genuíno em contraste com o ar vistoso, mas sem valor
do quadro. Ele parecia o que era: um homem importante e poderoso. Um homem que faria
grandes coisas e que parecia acreditar que ela o ia ajudar a fazê-las. Abriu a porta para sair.
— Julian — perguntou Truth com um súbito ímpeto. — O que acha que lhe
aconteceu? Quero dizer, a Blackburn? Ele não pode simplesmente ter desaparecido. — Pode?,
acrescentou uma parte do seu espírito com uma nova incerteza.
Julian parou.
— Acho... acho que ele encontrou o que procurava, ou quase. Nenhuma fronteira pode
ser explorada sem risco... e a magia não é um jogo para amadores.
Virou-se e saiu da sala, fechando as altas portas duplas atrás de si, como se estivesse a
prender as asas de um anjo.
CAPÍTULO QUATRO
A PROCURA DA VERDADE

We owe respect to the living; to the dead


we owe only the truth.4
VOLTAIRE

Truth sentou-se a uma das compridas mesas de biblioteca.


Depois de Julian ter saído, levando consigo a sua aura de fascínio, Truth sentiu-se
cansada de repente. Tinha sido um longo dia e uma longa viagem, e agora tinha concordado
em jantar numa casa cheia de...
“Que me importa se é magia ou não?” a verdadeira questão deveria ser: “bolo de
frutas ou não?”, pensou Truth com ironia. Em qualquer outra ocasião, o assunto a ser
examinado seria Thorne Blackburn. Hoje seria Julian Pilgrim, que era muito mais urgente.
Julian Pilgrim, indiscutivelmente bonito, encantador e fascinante.
Pegou na carteira que estava no chão, tirando de dentro um bloco de notas grosso e um
pequeno gravador, e preparou-se para tomar apontamentos. Mas neste momento a sua cabeça
estava noutro lado.
“Magia? Ou... não?”
Anteriormente, Truth sentira-se sempre bem com a sua rejeição da magia como um
tipo de truque psíquico intencionalmente fraudulento. Era fácil adotar essa atitude: nunca
tinha encontrado uma pessoa realmente admirável que admitisse acreditar na magia. Mas
agora havia Julian, que falava da magia com a mesma aceitação calma que os colegas de
Truth
na Universidade Taghkanic falavam de Chaucer ou de Física Atómica.
“Claro que ele estava errado”, decidiu Truth, suspirando com tristeza. A fé na magia
tinha influenciado todos os grandes pensadores da Renascença, desde Francis Bacon a Isaac
Newton, mas isso não lhes dava mais razão. Mas pelo menos Julian estava bem acompanhado
nas suas ilusões.
Mas eram apenas isso, sendo também impossíveis de provar, como qualquer outro
assunto baseado na fé. O que, como Mark Twain tinha observado uma vez, consistia em
acreditar “que o que sabemos não é assim”.
Truth suspirou, apoiando o queixo na mão e olhando pela janela como uma ingénua
deslumbrada, deixando o espírito brincar por um momento com a fantasia sedutora de viver
aqui em Shadow’s Gate enquanto fazia investigações para o seu livro... e curava Julian
Pilgrim das suas falácias lógicas.
Com pesar afastou essa ideia. Julian não era problema seu, disse ela para si própria
com firmeza. Era pouco provável que ele abdicasse das suas crenças apenas pelo que ela
pudesse argumentar, e ela devia sentir-se grata por ele as ter; qualquer que fosse a motivação
dele, tinha juntado uma bela coleção; exatamente do que ela precisava e não se importava que
ela a usasse para escrever o seu livro.
Devia parar de sonhar como seria beijar um homem que ela tinha conhecido há menos
de duas horas e fazer alguma coisa para justificar a sua presença aqui.
Levantou-se, levando o gravador, e começou a explorar o tesouro que Julian de forma
tão magnânima lhe tinha mostrado.

4
Nós devemos respeito à vida; / aos mortos ficamos a dever apenas a verdade. (N. da T.)
Aqui, exposta em vitrinas ao longo das paredes, encontrava-se a maior parte dos
objetos que ela tinha visto no quadro, e mais alguns.
“Uma taça baixa, parece... obsidiana? Não foi o Dylan que me mostrou alguma coisa
parecida no ano passado? Uma espécie de bola de cristal,acho que foi o que ele disse.
Gostava que ele estivesse agora aqui. Acho que não vou conseguir entender a maior parte
destas coisas sem ter conhecimentos de magia. Vamos lá ver, algumas coisas que parecem
alfinetes de prata de chapéus, uma pequena foice... de cobre? Parece afiada. Tenho que
arranjar uma máquina fotográfica para fotografar tudo isto. E vários punhais: um deles com
punho preto e uma lâmina com cerca de catorze centímetros...”
Continuou a ditar para o gravador enquanto ia estudando os objetos nas vitrinas por
baixo das janelas; os punhais, com punhos pretos, brancos e encarnados, a coroa solar do
quadro e aqui uma lunar a condizer, tudo em prata branca. Apenas o medo de ofender Julian a
impediu de abrir a vitrina e de pegar nela; a sua testa latejou como se imaginasse o peso da
coroa.
“Foi um dia longo”, repetiu Truth para se tranqüilizar.
Esfregou a testa, tentando afugentar a sensação, e forçou-se a continuar a tirar
apontamentos.
“Quem terá usado estes? Será que existe uma descrição completa do Trabalho de
Blackburn algures? Julian parece achar que é alguma coisa real... bem, tão real quanto a
magia pode sê-lo.”
Era difícil, ao olhar para os instrumentos, lembrar-se de que se tratava apenas de
adereços numa forma de teatro cara e ilusória. Pareciam exprimir um propósito, como se
soubessem que já tinham sido usados, esperando pelo dia em que voltariam a servir.
Truth afastou-se, quase não conseguindo reprimir uma sensação de inquietação. As
coisas que estavam nesta sala não eram nada como os sinais exteriores de Wicca, a religião
excêntrica que tinha estado em voga entre os miúdos de Taghkanic alguns períodos atrás.
Uma das pessoas que Truth tivera de testar tinha sido uma auto proclamada
“sacerdotisa da religião Wicca” e Truth vira-se forçada a aturar muitas conferências e
demonstrações do poder de Wicca para convencer Sally a fazer a série de testes que Truth
queria. Na altura, tinha achado que Wicca era essencialmente inofensiva, embora estúpida e
os resultados de Sally também não tinham sido melhores do que a norma estatística, apesar de
todas as suas pretensões de “fazer magia” para influenciá-los.
Estas coisas eram diferentes. Quando fechava os olhos, continuava a vê-las.
“Estás apenas cansada. E o Dylan podia dar-te uma dezena de explicações para este
fenómeno sem parar para pensar e sem mencionar a magia.”
Resolutamente, Truth virou-se para as estantes. Os Cavendish e os Wilson lá estavam,
bem como uns quantos livros escritos pelo antecessor de Blackburn na tradição de Trickster,
The Great Beast, de Aleister Crowley. Truth franziu levemente o sobrolho. Em princípio tudo
isto devia constituir uma coleção blackburniana e Crowley tinha morrido em 1947; o que
poderia ter ele a dizer sobre Blackburn? Pegou no volume mais próximo, Gems From The
Equinox, e abriu-o.
“Para o meu fiel dente de serpente, Thorne Blackburn”, leu, e viu que estava assinado
com um rabisco enfeitado com símbolos.
“Dente de serpente?”, pensou Truth. Depois lembrou-se: era uma citação da Bíblia:
“Muito mais afiado do que um dente de serpente é um filho ingrato.” Teria Blackburn sido
um filho ingrato? E, se assim fosse, para quem? Não poderia ter mais do que oito anos quando
o livro lhe tinha sido dedicado, partindo do princípio que a assinatura era genuína.
“Parece ter conhecido Aleister Crowley bastante bem, se a inscrição for uma pista”,
disse ela para o gravador. “Mas de onde? Crowley não era inglês?” Um pensamento fê-la rir:
“Seria Blackburn americano?” As suas fontes pareciam indicar que ele poderia ser inglês;
mas, nesse caso, para quê ir à América por causa do Trabalho de Blackburn?
Talvez Julian soubesse.
Verificou rapidamente os outros livros nas prateleiras; parecia que uma boa
quantidade deles tinha vindo da biblioteca pessoal de Blackburn, o que justificava a sua
presença aqui.
Truth debitou os títulos para o gravador, para verificá-los mais tarde: “The Magus,
Francis Barrett; The Sacred-Magic of Abra-Melin the Mage, MacGregor Mathers, editor; The
River Where the Ghosts Walk..”
Algumas caixas grandes e cinzentas continham cópias do jornal de Blackburn, The
Voice of Truth. Truth folheou algumas; a impressão já estava amarela e a desintegrar-se
devido à idade mas achou a combinação do conteúdo esotérico e de composição excêntrica
difícil de entender.
O que transparecia era a aura de esperança que tinham irradiado daqueles anos
encantados mesmo antes dela nascer, quando se pensava que tudo era possível e incluindo o
extermínio definitivo dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (123. 4).
Agora o mundo já estava mais esclarecido. Haveria sempre pragas novas e horríveis,
guerras injustas e terríveis, e pessoas que morriam à fome nas ruas do país mais rico do
mundo.
Truth abanou a cabeça, afastando aqueles pensamentos mórbidos. Não ganharia nada
com filosofias caseiras e apesar de tudo o que ele tinha dito, talvez esta fosse a única hipótese
de ver o tesouro de Julian. Os colecionadores eram notoriamente inconstantes. Se ela não
partilhasse a sua ideia sobre a grandeza de Blackburn e não a partilhava; talvez ele mudasse
de ideias e não lhe permitisse o livre acesso.
Os ficheiros vinham a seguir. Truth abriu a primeira gaveta e percebeu com uma
sensação de derrota que aqui se encontrava demasiada informação para ela verificar e
processar em tão pouco tempo. Fechou a gaveta e abriu outra à sorte.
Era uma confusão de pastas de arquivo de manila vazias, penduradas em ficheiros
verde-escuros e sem etiquetas.
— Meu Deus! — disse Truth desesperada. — Como é que alguém pode encontrar
alguma coisa com um sistema destes?
Parou e rebobinou a fita para apagar o último comentário, depois tirou uma pasta da
confusão da gaveta. Estava cheia com cerca de cinqüenta folhas de papel A4 de várias cores,
todas elas escritas à mão com caneta de feltro vermelha, numa escrita regular spenceriana.
Apesar do estilo antigo da escrita, os materiais em si eram muito modernos não se
tratava de um artefato fabricado na época de Blackburn, mas do ano passado ou assim, achou
Truth. Que ligação poderia ter com Thorne Blackburn, a não ser que fosse uma tentativa de
Julian para começar uma biografia?
Virou-se de forma a que a luz do sol das janelas altas, ao lado da lareira e daquele
quadro ridiculamente hagiográfico, iluminasse as páginas e começou a ler o conteúdo da
pasta, tendo muito cuidado para não as misturar.
Não era uma biografia.
Ao princípio Truth pensou que estava a olhar para uma peça de teatro; se tinham
escrito uma para Evita Perón, por que não para Thorne Blackburn?, com marcações de palco,
entradas e saídas e deixas para o “Hierolator” e o “Hierofex” e uma série de outras coisas que
soavam vagamente católicas.
“O que é um Hierolator?”, pensou Truth. Hieros era a palavra grega para sagrado,
claro e o sufixo lator significava a pessoa que venera. Quanto ao “Hierofex”, seria o “criador
sagrado” ou o “construtor sagrado”.
Adorador sagrado? Construtor sagrado? Parecia não fazer sentido. Truth continuou a
ler, querendo entender. A escrita parava de vez em quando e depois continuava, com as
palavras e as ações numa ordem um pouco diferente, até que Truth percebeu finalmente para
onde estava a olhar.
Não era uma peça de teatro.
Era um rascunho de um dos rituais de Venus Afflicted.
Mas isto era ridículo. Faziam-se os rascunhos e depois o livro acabado. Não se fazia o
livro acabado que estava na mala, dentro do porta-bagagens do carro, neste preciso momento
para começar depois, trinta anos mais tarde, a fazer rascunhos.
A não ser que não fosse um rascunho, mas uma... reconstrução?
Não. Seguramente que Venus Afflicted tinha sido publicada Durante a vida de
Blackburn. Tem que ter sido e, embora a edição pudesse ter sido pequena, Truth tinha a
certeza que Julian teria uma cópia.
Pousou a pasta cuidadosamente na mesa e voltou aos livros nas estantes. Todos os
trabalhos sobre Thorne, dissera Julian, e alguns da sua biblioteca pessoal. Até a versão inglesa
vendida ilegalmente de partes de partes de The Voice of Truth. Mas aqui não havia nada sobre
a Abertura do Caminho, tema de Venus Afflicted,
E se existisse em qualquer parte do mundo, em qualquer outra versão diferente da do
livro que estava na sua posse, Julian tê-la-ia aqui. E ele não a tinha.
Truth sentiu-se subitamente excitada, como se fosse uma estudiosa do assunto; mesmo
que Venus Afflicted fosse um disparate, ela possuía a única cópia. Nunca tinha sido publicada,
mas ela iria fazê-lo: Venus Afflicted, o livro de magia que Blackburn considerava a parte mais
importante do seu trabalho.
— Mas... — disse ela em voz alta.
A parte mais importante do seu trabalho? Ela não sabia isso, como poderia sabê-lo?
Não sabia o que era o Trabalho de Blackburn!
Com uma sensação de vertigem, viu-se regressar àquele lugar frio e sem cardinais,
envolta por pilares de luz, o lugar da Palavra que fazia os mundos...
Truth agarrou-se à mesa, sentindo a necessidade súbita de se apoiar. Uma imobilidade
fria parecia escorregar pela sua pele, tomando conta dos seus sentidos, atraindo-a para outra
realidade. Sem reparar, deixou que a pasta caísse ao chão, e os papéis, zumbindo, espalharam-
se em leque. De repente uma pancada aguda fê-la voltar à realidade: o gravador tinha-lhe
escorregado das mãos para o chão. A pequena gaveta do gravador abriu-se com o impacto e a
cassete deslizou pelo chão.
Resmungando contra si própria, quebrado o encanto, Truth abaixou-se para apanhar o
gravador e todos os papéis. Verificou rapidamente que nada estava estragado, embora os
papéis estivessem fora da ordem. Achou que não tinha muita importância, bem vistas as
coisas.
“É o que acontece a quem toma um copo de xerez em jejum”, ralhou Truth consigo
própria. Quisera parar em Shadowkill para almoçar, mas estava tão ansiosa por ver Shadow’s
Gate que se tinha esquecido até agora.
Olhou para o relógio. Eram quatro horas. Não sabia a que horas serviam o jantar em
Shadow’s Gate, mas tinha a certeza de que ainda faltava um bocado. Pensou em dar uma volta
lá fora; este santuário local do seu querido e defunto pai não só estava a irritá-la, como
também não via maneira de começar a processar todo o material que continha num dia ou
mesmo numa semana. Provavelmente seria o mesmo que entrevistar Julian sobre Thorne
Blackburn; aí estava um pensamento perigosamente atraente.
Estava a guardar na carteira o gravador e o bloco de notas que não tinha usado, quando
ouviu bater nas portas duplas. Antes de lá chegar, uma das portas abriu-se de repente para
dentro, dando entrada a uma alvoroçada mulher de cabelos brancos, envolta num xaile, com
um tabuleiro nas mãos.
A mulher pousou-o com estrondo no sítio mais próximo e livre que encontrou. Truth
viu que o tabuleiro continha um bule de chá azul-escuro e um bolo redondo e dourado coberto
com uma camada de açúcar glacé. Truth sentiu crescer água na boca.
— Ele é um rapaz muito querido, mas, juro pela Cruz, não tem juízo nenhum! Eu
disse-lhe que você devia querer o seu chá por ter chegado a meio do dia e ele achava que você
queria que a deixassem em paz. Mas se neste instante você não ia à procura de uma boa
chávena de chá, eu não me chamo Irene Avalon! — disse a intrusa, sorrindo alegremente para
Truth.
Irene Avalon era uma mulher já com mais de 60 anos. Usava um volumoso cafetã
violeta estampado e um xaile com franjas, com um padrão que não condizia, escorria-lhe dos
cotovelos. Do pescoço, presos por corrente, pendiam-lhe sobre o peito amplo uns óculos
delicados com armação de arame. Usava também um maravilhoso colar de âmbar cereja-
escuro. A idade prateara-lhe o cabelo, enrolado no cocuruto da cabeça e seguro com ganchos,
formando um nó em desalinho.
Não era uma mulher alta; Irene era alguns centímetros mais baixa do que Truth e a sua
figura tinha a suavidade roliça que por vezes acompanha a idade. Resumindo, parecia a figura
típica da tia espírita meio maluca, comum a muitas farsas inglesas.
— Então, minha menina? Admito que já passou muito tempo, mas será que a sua velha
tia Irene não tem direito a uma palavra de saudação? — de fato, Irene tinha vestígios de uma
pronúncia inglesa na sua dicção tão perfeita como a de uma atriz.
Enquanto ia falando, Irene tirou as coisas do tabuleiro e colocou-as na mesa: duas
chávenas delicadas em louça azul e branca e os pires a condizer, açúcar e natas num atraente
açucareiro e num jarro de loiça Staffordshire, guardanapos brancos de linho adamascado,
muito engomadinhos, e colheres de prata.
— Acho... — começou Truth, mas as palavras não saíam. “Acho que deve estar
enganada, eu não a conheço”, ia ela dizer, mas teve a leve sensação de que isso não era
verdade. “Ainda não estou aqui há três horas e este lugar já está a enervar-me”, pensou
Truth com um desespero que pretendia ser divertido.
— Bem, a verdade é que você mal tinha aprendido a andar... como havia de lembrar-se
de mim? E depois... ah, aquela época horrível, horrível... e nem sequer culpo a Caroline por
querer afastar-se totalmente, mas de qualquer maneira... bem, não importa — disse Irene,
repreendendo-se. — Voltou, isso é que importa. Mas eu sabia que viria, quando Julian
recomeçou o Trabalho. Minha querida, lembro-me de estar consigo nesta mesma sala. Nessa
altura usava fraldas e provavelmente não se lembra. Mas beba um pouco de chá — disse Irene,
parando a custo o curso das suas reminiscências.
— Obrigada — disse Truth, uma vez que parecia não haver mais nada a dizer perante
tão efusiva simpatia. O seu desejo de se ir embora esfumara-se; a sala já não parecia
ameaçadora, agora que Irene lá estava.
Truth voltou a sentar-se à mesa e foi recompensada com uma chávena de chá preto e
uma fatia generosa do bolo vermelho-dourado.
Conseguiu dominar-se o suficiente para não se servir generosamente das natas antes
de trincar o bolo. O sabor forte e multifacetado dos mais diversos ingredientes explodiu na
sua boca; doce, ácido e picante, tudo ao mesmo tempo.
— Está ótimo — disse Truth, engolindo à pressa.
— Era o preferido do seu pai — disse Irene com serenidade, sem reparar na reação que
a sua observação simples tinha causado. — Pêra, bergamota, laranjas inteiras e uma pequena
pitada de incenso puro, polvilhado... oh, minha querida, parece-se tanto com a nossa pobre
Katherine, parte-se-me o coração! Agora já é uma rapariga crescida, meu Deus, já devem ter
passado mais de vinte e cinco anos desde que estivemos todos juntos aqui em Shadow’s Gate
pela última vez! Mas voltou, tal como o Mestre tinha profetizado, e finalmente vamos
completar o Trabalho!
Truth sorvia o chá e olhava com pena para o bolo no seu prato: por que razão a
observação simples do bolo favorito de Blackburn o tornava em cinzas na sua boca? Não
podia desistir de todo o mundo material só porque ele aí tinha habitado.
— O trabalho? — perguntou Truth, esperando distrair-se.
— O Trabalho de Blackburn — respondeu Irene, dando mais uma dentada no bolo. —
Mas, minha querida, não está a comer!
Como não queria magoar os sentimentos da mulher mais velha, Truth deu mais uma
dentada no bolo e sentiu que a sua aversão idiota desaparecia, como se fosse o açúcar da
cobertura misturado com limão.
— Claro que estamos a começar novamente o Trabalho do Mestre, agora que temos
tudo o que precisamos. — Irene continuou a conversar logo que Truth começou a comer. —
Estávamos num impasse. Já fui maravilhosa, posso dizê-lo sem falsa modéstia ou orgulho,
mas os do Além acharam que os meus poderes deviam diminuir muito. Sei que acontece a
quase todos nós, cujos poderes são uma dádiva da natureza e não da arte, mas eu estava
convencida que eu, Irene Avalon, seria poupada! — disse Irene com uma gargalhada
depreciativa.
— Num impasse? Por quê? — perguntou Truth. “E o que era realmente o Trabalho
de Blackburn?”, acrescentou ela silenciosamente, querendo uma resposta da mulher que
estava sentada à sua frente.
Irene olhou fixamente para ela, surpreendida, e depois sorriu:
— É tão parecida com Katherine que me esqueço de que é uma principiante no
Caminho! O Trabalho precisa de um médium, minha querida; uma pessoa cuja dádiva é atuar
como ligação entre o outro mundo e este. — Por um momento, uma recordação qualquer
pareceu obscurecer o seu sorriso, depois passou, como uma nuvem que tapa o sol.
Truth conteve-se mesmo no momento em que ia dizer a Irene que sabia muito bem o
que era um médium, uma vez que o Instituto Bidney trabalhava com vários e que certamente
não acreditava nos espíritos que alguns deles afirmavam conjurar.
— Estou a ver — disse ela em vez disso.
— Não, não está — contradisse-a Irene amigavelmente, fazendo-lhe festas nas mãos.
— Mas vai compreender. De qualquer maneira, quando Julian nos voltou a juntar a todos...
bem, quando me foi buscar a mim. Os outros, infelizmente, vieram para o Trabalho depois de
o nosso querido Mestre nos ter deixado por um tempo... esperava começar o trabalho
imediatamente; mas, como eu lhe disse, já não sou a mulher que era quando trabalhei como o
Hierofex de Thorne. Felizmente ele encontrou Light e eu pude treiná-la.
— Julian encontrou a luz? — disse Truth, atrapalhada. Há muito tempo que não ouvia
tantos termos bizarros e pseudo-técnicos ditos de forma tão natural desde a última vez que
tinha ouvido, sem querer, uma conversa entre dois desconstrucionalistas no departamento de
inglês da Universidade de Taghkanic.
— Não, Truth querida. Julian encontrou Light; ela é uma rapariga muito querida, vai
conhecê-la ao jantar; e agora o nosso círculo tem novamente um Hierofex. E temos também
um Hierolator: a Concubina Sagrada, sabe. Os nossos preparativos para continuar o Trabalho
estão quase prontos.
Irene sorriu com orgulho e Truth vacilou intimamente perante a esperança e confiança
daqueles calmos olhos azuis. Ela não queria pronunciar palavras que pudessem dar a
impressão de estar de acordo com as crenças de Irene, mas também não queria contrapor as
suas próprias ideias àquela afeição bondosa.
Truth sentiu uma dor quente na garganta por causa de Blackburn, achava ela,
Blackburn que tinha feito com que pessoas boas o amassem e que depois tinha fugido.
— Fale-me mais sobre o Trabalho — disse Truth, conseguindo manter a voz firme.
— Bem, claro que você pode ler sobre isso — disse Irene, obviamente cheia de vontade
de falar — mas eu podia contar-lhe um pouco, está bem? É o Grande Trabalho: harmonizar-
nos com a Nova Era e depois Abrir o Caminho para a Valquíria: os Espíritos da Nova Era que
cavalgarão para o Mundo dos Homens para guiá-los no Caminho. O que correrá muito bem,
querida Truth; o problema é que a minha memória que já não é o que era, sabe, e eu só assisti
uma vez ao ritual inteiro — afirmou Irene amavelmente. — Como sabe, o Hierofex não está
realmente presente durante o ritual, mas está num estado de transe.
— Ah, sim? — disse Truth.
Não sabia nada disso, mas sabia como obter mais informação. O bolo já tinha acabado
há muito e agora Truth bebeu o chá de um gole. Irene sorriu com aprovação e encheu-a
novamente. Truth juntou mais natas, prometendo fazer dieta mais tarde.
A sensação estranha de duplicidade de ser ela própria, mas também uma outra pessoa
que sabia coisas que Truth Jourdemayne não podia saber tinha desaparecido por completo:
nada de mau podia sobrevir na presença maternal e terra-a-terra de Irene. Mas Truth tinha que
admitir que Irene tinha feito mais perguntas do que dado respostas.
— Por isso, estando... ausente... não vai poder ajudar Julian a reconstruir... — Truth
deixou a frase em suspenso de forma convidativa.
— A Abertura do Caminho — confirmou Irene sem hesitação. — Estou a fazer o
melhor que posso e claro que as primeiras nove estações são do domínio público. Mas sem
Venus Afflicted não sei se alguma vez teremos de novo todo o ritual.
O relógio no pulso de Truth marcava cinco e meia. Estava sozinha num quarto do
andar superior de Shadow’s Gate. Era um quarto muito bonito, antigo e forrado com papel
azul, que dava para o terraço de trás, o relvado e a floresta que se estendia mais além ao
crepúsculo. Candeeiros antigos de vidro Tiffany, nas paredes, difundiam uma bonita luz
pastel e davam ao quarto um brilho dourado fin de siècle, como se em qualquer momento
fosse desaparecer, tal como Brigadoon.
Irene tinha ficado terrivelmente excitada com o tratamento cavalheiresco que Julian
tinha dado à sua hóspede, mostrando uma indignação maternal que fez Truth sorrir
intimamente.
Quando Truth lhe tinha contado que andara na estrada desde as seis da manhã e sem
almoço, Irene obrigara Truth a dar-lhe as chaves do Saturno, mandando Gareth buscar a sua
mala. Depois tinha-a levado para este quarto, para que Truth se pudesse refrescar e descansar
antes do jantar, que seria por volta das sete e trinta. Truth agarrara a possibilidade de trocar o
fato de viagem amarrotado por alguma coisa um pouco mais adequada ao que prometia vir a
ser um jantar bastante extravagante, pesado e formal.
Passou a mão pelo cabelo curto e preto até o pôr em desalinho; depois se sentou de
repente na cama e olhou para o seu reflexo no espelho do toucador que se encontrava num
canto. Uma mulher de cabelos escuros com cerca de trinta anos, vestida com umas calcinhas
cor da pele e meias pretas, de olhar beligerante.
Tinha tirado o fato de viagem e pendurara-o atrás da porta, que dava para a casa de
banho anexa, servindo-se de uns cabides que estavam no armário, na esperança de que
algumas das rugas desaparecessem: em princípio a seda devia compor-se por si própria. A
mala e o necessaire tudo o que ela achava que iria precisar para a curta estada em Shadowkill,
Nova Iorque, continuavam como sentinelas silenciosas de plástico grená ao lado da cama,
esperando pelo seu alvitre.
“Que estou eu a fazer aqui?”, perguntou-se Truth, sentindo-se desamparada. Viu-se
no mesmo constrangimento que sentiria se fosse apanhada a espreitar para dentro de uma
mesquita.
Irene Avalon era uma crente sincera...
“E sinceramente iludida...”, corrigiu-a uma pequena e malvada voz interior. “...em
Thorne Blackburn e no que quer que fosse Julian Pilgrim...”
Sentiu um calor traiçoeiro nas faces ao pensar em Julian. Julian era excitante, como
nada na sua vida cuidadosamente regrada e medida tinha sido ou iria ser. Envolvia-se numa
aura de romance e perigo como num manto de mágico.
“É verdade”, admitiu a voz interior de má vontade. Mas não quis ver o que também
era quase de certeza verdade.
Não queria pensar em Julian como um mágico dedicado ao Trabalho de Blackburn.
“... Embora ele esteja obviamente a investir nisso, Truth minha querida racionalista?
Que tal um pouco de verdade, pequena homónima? Está certo que uma velha senhora
acredite em magia, mas gostarias muito mais que este deslumbrante cavaleiro surgido das
sombras fosse moralmente impecável...”
Truth expeliu a sua respiração contida num acesso de mau humor. Não queria saber
das crenças de Julian, porque Julian não tinha importância para ela.
“Mentirosa.”
— Está bem! — disse Truth em voz baixa.
Julian era tão atraente como um personagem de romance espirituoso, bonito,
deliciosamente misterioso, inatingível ou quase... E ele não ia conseguir Venus Afflicted, se
isso dependesse dela, jurou Truth.
Depois de tomar a decisão definitiva que era quase um juramento, Truth sentiu um
grande alívio, como se alguma coisa estivesse estado à espera de ouvir a sua decisão. Era uma
sorte não ter mencionado a sua presença a Julian quando tinham conversado; é bastante fácil
esconder uma coisa que ninguém procura, e ela tencionava esconder a única cópia do livro
mágico de Blackburn a todo o custo. O novo e melhorado Círculo não ia deitar as mãos a...
quê?
Bem, o que quer que Venus Afflicted fosse, eles não iam obtê-lo.
O alívio que Truth sentiu convenceu-a de que era o que devia fazer. Ela não conhecia
todos os detalhes de como e porquê e quem, mas sabia que Julian Pilgrim não podia deitar as
mãos ao ritual final para “abrir o caminho”, qualquer que fosse o seu significado.
“Por que não?” perguntou uma voz interior dissimulada. “Se é tudo uma estupidez e
uma palhaçada, o que interessa o ritual que ele faz aqui? Nem sequer tens que lhe dar o
original leva-o até a cidade, faze uma cópia e dá-la. Ele ficaria grato. Ele talvez até ficasse
muito grato...”
Esta nova direção furtiva dos seus pensamentos era demais. Truth pôs-se de pé de um
salto, correu para a mala e abriu-a em cima da cama, afastando esta linha singular de
introspecção. Viu a sua imagem no vidro da janela e interrompeu o seu vaivém para puxar a
veneziana e fechar as compridas cortinas de renda, impedindo a luz do crepúsculo de entrar.
O que poderia vestir para o jantar? Olhou para as camisolas discretas, o pijama prático
de algodão, as calças de algodão, as blusas e saias práticas que tinha posto na mala e curvou-
se desesperada. Nada daquilo lhe daria o aspecto de fazer parte do mundo de Julian nem
mesmo como visita. Nada, a não ser...
Pegou na peça de roupa e abanou-a, segurando-a bem alto para que não tocasse no
chão.
Não sabia bem por que razão a trouxera; quando fizera a mala não tinha pensado em
nenhuma ocasião para a qual fosse adequada. De fato, para ser completamente honesta, não
era o tipo de coisa que ela costumasse comprar; não sabia sequer porque a tinha.
“Comprada pela minha gémea má, obviamente”, pensou Truth com um sorriso
divertido.
Era um vestido linha princesa de lã azul-escura, simples, elegante e régio. De mangas
compridas e decote rendilhado, era demasiado invulgar e formal para qualquer ocasião em
que Truth Jourdemayne, que fazia estatísticas sobre pesquisa psíquica, pudesse participar.
Mas estava mesmo adequado ao jantar em Shadow’s Gate.
Lavou-se rapidamente com a esponja, perfumou-se com a sua água-de-colónia de
lavanda preferida, e estava pronta para se vestir. Enfiou o vestido pela cabeça, maldizendo o
longo fecho atrás. “Por que razão as roupas de mulher não eram desenhadas de forma a que
se pudessem vestir sozinhas?” perguntou-se pela centésima vez e olhou-se no espelho do
toucador.
Viu o reflexo de uma estranha, uma luz zombeteira de desafio nos olhos escuros. Era
verdade que se parecia assim tanto com a mãe?
“Seria este o aspecto de Katherine Jourdemayne?”, pensou Truth, embora a pergunta
tocasse num ponto fraco, onde todas as perguntas sem resposta sobre a mãe, que nunca tinha
conhecido, tinham apodrecido. Truth olhou fixamente e com curiosidade para o reflexo,
desejando que este mostrasse os segredos do passado de outra mulher. Katherine
Jourdemayne? Era o que Irene Avalon dizia, mas a verdade é que já não via Katherine há
muitos anos, desde que ambas eram mulheres jovens; seria fácil deixar-se levar pela emoção
do momento.
Mas Irene Avalon não tinha sido a única amiga de Katherine.
Tinha sido amiga do pai e da mãe de Truth, e Truth finalmente rendeu-se à
necessidade de saber coisas sobre eles sobre a mãe dela, e, sim, até sobre o pai. Se não fizesse
as perguntas rapidamente, as pessoas a quem as poderia fazer desapareceriam deste mundo e
as suas perguntas ficariam eternamente sem resposta.
Não deixaria que isso acontecesse.
Truth inclinou graciosamente a cabeça para a estranha no espelho, e depois enfiou os
pés nos sapatos pretos de salto baixo. Alguns toques rápidos no cabelo e na maquiagem e
estava pronta.
Ou quase. Agora o vestido parecia extremamente severo. Precisava de uma jóia para
dar vida ao conjunto, mas não tinha muitos acessórios modernos, caros e frívolos. Além de
um par de brincos dourados e uma corrente pequena de ouro, Truth não possuía outras jóias.
Quando andara à procura de alguma coisa para vestir, quase esvaziara a mala. Restava
o roupão e o manuscrito à volta do qual estava enrolado: Venus Afflicted. Voltou-se para o
necessaire aquele artigo quadrado que antigamente levava a toilette esmerada de uma
senhora e que nos dias de hoje era tão útil para transporte de artigos frágeis que uma mulher
ainda usava em viagens.
Abriu-o e tirou para fora o tabuleiro de cima. Aí, enfiado num estojo de jóias,
encontrava-se o colar e o anel que a tia Caroline lhe tinha dado: o colar e o anel de Thorne
Blackburn. Talvez...?
Era impossível usar o anel: escorregava em todos os dedos e, mesmo que lhe servisse,
pesar-lhe-ia tanto na mão como se estivesse a usar um peso. Não era apropriado para um
jantar. Deixou-o cair novamente na pequena bolsa de cetim e pegou no colar.
Mesmo um amador de joalharia como Truth percebia que as contas de âmbar eram de
uma qualidade muito superior às do colar de Irene. O colar estava em suas mãos, leve como
uma bolha de sabão. Os antigos gregos tinham chamado a esta substância electrum e diziam
que eram os raios fossilizados que Zeus, por descuido, deixava cair do céu. Tinham-lhe dado
esse nome porque o âmbar verdadeiro possui uma carga elétrica; devidamente magnetizadas,
as contas atraem fios e pedaços de papel e até têm um estranho brilho azul no escuro.
Ao passarem pelas suas mãos, as contas pareciam brilhar sem eletricidade, absorvendo
toda a luz do quarto para a refletirem com um brilho intenso e amarelado.
Pôs o colar pela cabeça: o elaborado pingente dourado e esmaltado balouçou
livremente, depois voltou ao lugar por baixo do seu coração, com a gravidade suave de uma
carícia. Ao pé do tecido escuro, as pedras, que tinham sido a seiva duma árvore, brilhavam
ainda mais esfuziantes, dando-lhe um ar de sacerdotisa que se prepara para a batalha.
Não, decidiu Truth com relutância, olhando para o seu reflexo. Era maravilhoso, mas
não seria nada apropriado, sem falar das questões que levantaria. Com pena tirou o colar de
Blackburn e voltou a guardá-lo no necessaire juntamente com o anel. Um comprido lenço de
seda, com um nó solto à volta do pescoço, seria substituto pobre mas adequado.
“Acho que terão de me aceitar como sou.” Truth olhou para o relógio. Sete horas.
Faltavam trinta minutos para a hora a que, segundo Irene dissera, todos se juntavam para
jantar, e era de prever que a noite não acabasse antes das dez ou mais tarde ainda. Truth
estava satisfeita por ter pedido a Irene que telefonasse para a pensão a dizer que ela já estava
na cidade e que chegaria mais tarde odiaria lá chegar e descobrir que algum estranho tinha
ocupado a sua cama.
De qualquer forma, já podia descer.
Deu um passo em direção à porta e hesitou, depois se virou. Tinha deixado o conteúdo
da mala espalhado por cima da cama, incluindo Venus Afflicted. E se alguém entrasse?
Franziu o sobrolho, debruçando-se sobre a mala com um punhado de camisolas. E se
alguém realmente entrasse... não que o devessem fazer... e revistasse a mala, o que
ultrapassava de longe as boas maneiras, mas podia acontecer? Não tinha a chave da mala e
achava que a fechadura não impediria ninguém que estivesse realmente determinado.
Franziu o sobrolho, refletiu por um instante e depois tirou Venus Afflicted, que estava
embrulhada no roupão. Devia pô-lo num lugar seguro. Onde?
Depois de breve reflexão, Truth enfiou o livro entre o colchão e as molas, junto da
cabeceira da cama, onde uma elevação adicional do colchão não chamaria a atenção. Arranjou
a colcha de algodão e atirou as roupas novamente para a mala.
Junto à porta parou de novo e inspecionou o quarto pela última vez. Tudo tinha um ar
perfeitamente inocente.
“A tia Caroline dizia sempre: Se alguma coisa parece demasiado boa para ser
verdadeira, é porque provavelmente o é.” Truth sorriu, pôs os ombros direitos e desceu as
escadas.
CAPÍTULO CINCO
A VERDADE ENTRE AS SOMBRAS?

Through the unheeding many be did move,


A splendour among shadows, a bright blot:
Upon this gloomy scene, a Spirit that strove
For truth, and like the Preacherfound it not.5
PERCY BYSSHE SHELLEY

Quando chegou ao topo das escadas, Truth viu que Julian estava à espera dela no
patamar. Ao vê-lo, Truth ficou contente por ter cedido ao impulso de se vestir para o jantar;
Julian tinha trocado o seu fato de tweed da província pelo que parecia ser um fato de seda
Armani.
— Truth, vim apenas ver se estava pronta. Estamos reunidos na sala de estar para
tomar um aperitivo. Não que normalmente sejamos tão formais... é em sua honra, por assim
dizer.
Observou-a com óbvia aprovação masculina e Truth sentiu o calor subir-lhe às faces.
O que tinha o dono de Shadow’s Gate que a perturbava assim tanto? Nem parecia ela, sempre
tão fria e tão controlada, uma criatura intelectual, sempre regida e precavida pelo intelecto
contra ciladas emocionais. Não era nenhuma heroína romanesca volúvel!
Desceu os últimos degraus e Julian ofereceu-lhe o braço.
Com relutância, Truth obrigou o seu cérebro preguiçoso a funcionar.
— Quem vou conhecer esta noite, Julian?
Sentiu um leve tremor de nervosismo na sua voz e retraiu-se, mas não conseguiu
evitá-lo. Só a ideia de conhecer um grande grupo de pessoas especialmente pessoas
obcecadas com Thorne Blackburn já a enchia de medo.
Tomou o braço de Julian. O leve e indefinível perfume masculino chegou-lhe às
narinas, e por um momento, antes que pudesse afastar o pensamento frívolo, Truth imaginou
que sentia um pulsar elétrico a formigar nos dedos que apoiava na solidez quente do braço do
seu anfitrião.
— Não vou atirá-la para a jaula do leão sozinha, Truth — disse Julian com um leve tom
irónico de censura. — Mas vai conhecer o resto do nosso Círculo esta noite, pelo menos
aqueles que consegui reunir até agora. O Trabalho precisa de um Círculo de treze para ser
feito como deve ser, mas também pode funcionar com menos.
“E está a conseguir?”, queria perguntar Truth, mas já tinham chegado.
Como a maior parte das casas vitorianas, Shadow’s Gate tinha uma certa simetria
geminada, incluindo salas iguais de ambos os lados do hall de entrada. Truth tinha estado hoje
numa delas o museu Blackburn durante várias horas. Estava agora a entrar na correspondente
contrária.
Nada podia ser mais diferente. Embora muitas das salas de Shadow’s Gate
mantivessem o mobiliário de origem, era claro que Julian não tinha criado uma casa museu,
em que o tempo tivesse parado em 1895. As paredes desta casa eram de um tom escuro de
verde, cor que era retomada nas cortinas de brocado e nos maravilhosos tapetes. Mas o
comprido sofá era totalmente moderno, com as suas linhas italianas simples, forrado de couro
cor de ostra, e as mesas modernas eram de bronze e cobertas com vidro.

5
Através de todos os que estavam distraídos fez circular / Um esplendor entre sombras, um borrão luminoso: /
Diante deste cenário sombrio, um Espírito que atentou / Pela verdade, e ele não gosta do Pregador. (N. da T.)
Truth não era nenhuma simplória, ninguém que estivesse ligada à procura incessante
de dinheiro por parte de uma universidade podia ser tão inocente no que diz respeito ao
funcionamento das coisas e a quantia de dinheiro que uma sala mobiliada desta maneira
representava era como um sinal de aviso. Os ricos, como Scott Fitzgerald uma vez dissera,
são diferentes das pessoas comuns, e Truth sabia que essa diferença significava o desrespeito
implacável pelas conseqüências que as suas ações, apenas possíveis graças ao poder da
riqueza, poderiam ter nas outras pessoas.
Captou uma imagem confusa de meia dúzia de pessoas que pareciam estar à espera
dela, antes que a mão de Julian na sua cintura a empurrasse levemente para dentro da sala.
“Atirada para os leões...”
— Senhores e senhoras disse Julian , é com muita honra que lhes apresento a filha de
Thorne Blackburn, Truth Jourdemayne.
Truth corou exasperadamente. Por que tinha Julian...?
— Deveríamos aplaudir? — perguntou uma voz masculina, arrastada.
O seu dono aproximou-se com o copo na mão. Usava colete escuro com casaco de
tweed e uma velha gravata de colégio e Truth, instantânea embora inconscientemente, viu nele
um professor pobremente vestido; o homem era pálido e tinha olheiras, o que sugeria que
passava horas de vigília dentro de casa, em arquivos poeirentos, debruçando-se sobre textos
obscuros. Parecia ter cerca de quarenta anos, O cabelo era escuro e precisava ser cortado. Os
olhos eram cinzentos e davam-lhe um ar de falcão irritado.
— Sem ofensa, minha querida senhora — acrescentou ele, dirigindo-lhe uma vénia
trocista.
Truth começou a sorrir, totalmente aliviada pela familiaridade; era tal e qual um
enfadonho chá na faculdade, pelo menos por enquanto.
— Por amor de Deus, Ellis! — murmurou Julian. — Truth, permita-me que lhe
apresente Ellis Gardner, embora neste momento não me apeteça fazê-lo. Normalmente ele não
é tão mau. Ellis, você não pode...
— Meu querido Hierodule, eu só me torno tolerável à custa de xerez — disse Gardner
troçando.
Pegou em Truth pela mão, afastando-a de Julian. Embora cheirasse fortemente a xerez
e provavelmente bebesse demasiado com freqüência, segundo os comentários de Julian,
falava e andava com firmeza enquanto conduzia Truth pela sala, apresentando-a à comitiva.
— Permita-me que lhe apresente o resto do nosso alegre grupo à procura da verdade.
Já conhece o organizador da festa — disse-o baixando ironicamente a cabeça em direção a
Julian, que se mantinha sisudo e a nossa querida senhora Avalon, que merece melhor.
Irene estava espantosa num cafetã de lamé dourado-vivo e vários colares e pulseiras
com pingentes. De olhos muito maquiados, num estilo egípcio extremamente teatral, com
longos riscos pretos prolongados nas fontes e a área da pálpebra até à sobrancelha pintada em
tom azul-turquesa, a sua cara parecia uma máscara pintada, da qual a mulher maternal e
sensata que Truth tinha conhecido à tarde espreitava.
— Ellis, por favor, porte-se bem — pediu ela. — E este é Gareth Crowther, que já teve
o prazer duvidoso de conhecer.
— Gareth é o nosso rude mecânico — disse Ellis.
— Pare com isso, Ellis — disse Gareth friamente. — Usava uma camisa de ganga com
botões pérola e via-se que tinha penado para limpar as mãos do óleo que as enegrecia quando
Truth o vira pela primeira vez, junto à casa do portão.
— Ainda bem que fica, Truth — disse ele.
Truth abriu a boca para corrigir o mal-entendido, esperando que Julian não o
partilhasse, quando Ellis voltou a falar, virando-se para fazer um movimento em direção a
alguém que se encontrava no outro lado da sala.
— O senhor Crowther venera de longe este santuário — disse Ellis num tom de voz
claro de guia turístico. — O nosso soi-disant Hierolator, a bonita e atraentemente vestida
Fiona, Miss Cabot para os amigos...
O olhar de Truth seguiu o gesto de Ellis para o local onde se encontrava uma jovem
muito pintada e cujo cabelo ruivo descia em cascata pelas costas, envolta num pequeno lago
de iluminação a halogéneo como se fosse um refletor do teatro.
Fiona Cabot usava um vestido de mangas compridas de veludo tingido, curto e justo,
apertando o seu corpo elegante, mas opulento como um fato de malha. Um bocado de renda
espreitava do grande decote e uma larga fita de veludo cingia-lhe o pescoço. Sorriu friamente
para Truth, a saudação de iguais numa arena.
— Não ousamos aproximar-nos — continuou Ellis suavemente, uma vez que
Hamadryad orientalis (a cobra-rei) consegue cuspir veneno a uma distância de vários metros.
Fiona levantou o queixo e olhou com ar de assassina para Ellis, momentos antes de
pousar bruscamente o copo na superfície lisa mais próxima que encontrou. Quando ela
atravessou a sala em passo rápido e furioso, em direção a Julian, Truth pensou
indelicadamente que se aquela mulher fosse de fato o felino selvagem que parecia ser, teria
nesse momento o rabo esticado e a chicotear.
— Querido Julian — disse Fiona, pronunciando o nome entre dentes cerrados,
enfiando o seu braço no dele e encostando-se nele de forma coquette , temos de continuar a
aturar isto? Os saltos de estilete tornavam-na quase tão alta como ele.
Truth sentiu um espasmo de ciúmes pouco razoáveis, mas baseando-se na
apresentação de Ellis olhou furtivamente para Gareth e viu os seus próprios ciúmes, refinados
ao cúmulo, ardendo nos olhos dele.
“Gardner tem razão numa coisa: Gareth está apaixonado por Fiona. E aposto que
ela sabe, a cabra”, pensou Truth para si própria. O seu desagrado pela situação em que se
encontrava aumentou.
— Ellis, chega! disse Julian bruscamente.
Algum poder devia vibrar através de linhas invisíveis de comando. Truth sentiu Ellis
resistir por um momento e depois sucumbir.
— Muito bem — disse o homem mais velho. — Passemos então ao resto do nosso
jardim de ursos... com brevidade.
Agarrou Truth com mais firmeza pelo braço, “quase como se quisesse apoiar-se”,
pensou ela, embora pouco antes não tivesse precisado desse apoio. Donner Murray. Um
homem de cabelos e olhos castanhos aproximadamente da mesma idade de Truth, que usava
um casaco cinzento de veludo côtelé, em gravata. Sorriu para Truth civilizadamente, um
pouco distante e levantou o copo numa saudação silenciosa.
— Caradoc Buckland.
— Muito prazer em conhecê-lo.
Caradoc tinha cabelos castanhos escuros e um corte moderno. Numa das orelhas
brilhava um grande anel de ouro e usava um anel de brasão de ouro maciço na mão
direita.Estava vestido mais à moda do que Donner, com um fato claro feito por medida e
camisa escura e sem colarinhos.
— Hereward Farrar.
Nesta altura Truth já sentia a cabeça a girar com tal amostra de pessoas peculiares,
tendo também de fixar os nomes correspondentes, igualmente estranhos, mas Farrar era um
que não teria dificuldade em recordar. Os seus olhos cinzentos eram tão pálidos que pareciam
prateados, e o seu cabelo ruivo mais escuro do que o de Fiona era comprido como se usara há
uma geração. Fez-lhe um sorriso tímido de lobo, tão impessoal como o de um predador da
floresta. Aqui estava alguém que se mantinha à margem e que não prestava vassalagem de
ânimo leve. Ela apercebeu-se da sua rápida avaliação, que retribuía a sua antes de sorrir.
— Já está pronta para correr pela noite dentro a gritar, Truth? — perguntou Hereward.
— Ainda não — respondeu Truth.
— O seu xerez, Truth — disse Julian, afastando-se de Fiona e controlando a situação
novamente com firmeza.
Entregou a Truth o pequeno copo com um pé delicado e aproveitou a oportunidade
para a afastar de Ellis. Fiona hesitou e depois decidiu aproveitar o melhor possível, virando-se
para falar com Donner.
— Infelizmente Ellis tem um sentido de humor difícil — disse Julian, puxando Truth
para um lado.
Era imaginação dela ou o sorriso que Julian lhe dirigia era mais afetuoso do que
aquele que reservava para Fiona?
Truth deu um golo na bebida antes de responder. Era um xerez excelente. Se os gostos
do grupo incluíam desportos violentos antes do jantar, pelo menos havia compensações.
— Não se pode dizer propriamente que eu seja feita de algodão-doce — respondeu ela.
E de resto nenhum daqueles comentários espirituosos era dirigido a mim.
— Só não quero que pense mal de nós — disse Julian simplesmente.
Ia dizer mais, mas Irene interrompeu-o, dirigindo-se a ele da entrada da porta com um
ar preocupado.
—Julian — Truth lembrou-se que Irene tinha saído da sala logo depois de ter sido
apresentada por Ellis — viu a Light?
— No quarto dela? — perguntou Julian.
— Acabei de vir de lá; ela não está lá. Julian, se ela desapareceu outra vez...
Truth leu no rosto de Irene uma preocupação urgente e inquieta. Anteriormente, Irene
tinha falado de Light como sendo uma sócia no Trabalho de Blackburn, mas agora agia como
se Light fosse uma criança instável.
— Vou mandar alguém procurar — disse Julian. — Pode ter saído sem que ninguém
visse. Gareth?
— Não é preciso. Ela está aqui — respondeu uma voz profunda.
Um homem e uma mulher estavam à porta.
“Aquela deve ser Light”, pensou Truth.
A mulher era esbelta, quase frágil. Usava uma túnica e calças largas, de um tecido
sedoso e claro. Truth estava demasiado longe para poder ver os seus olhos, mas a luz mais
forte do hall formava um halo à volta do cabelo comprido e prateado da rapariga, dando-lhe
um brilho quase irreal.
“Irreal. É isso. Parece quase a versão hollywoodesca de um psíquico.”
O contacto de Truth com médiuns era limitado, uma vez que o que o instituto chamava
a brincar “o seu cuidado e alimentação” pertencia mais ao campo de Dylan ou mesmo do
professor MacLaren. O que Truth sabia era mais ou menos o que toda a gente sabia: um
médium é um psíquico natural, sensível às emanações do que alguns dos mais antiquados
entre eles ainda designam por “mundo do espírito”; uma pessoa que, estando em transe, serve
de ligação a outras entidades para comunicar com o mundo dos vivos.
“Ou parece fazê-lo”, lembrou-se Truth, habituada a ser uma céptica profissional.
Os espíritas de Dylan localizavam fantasmas em casas assombradas, os seus projetos
favoritos, mas Light um nome estranho, mas não mais estranho do que o de Truth, ou do que
qualquer das outras pessoas ali presentes; parecia ser um espírito em si.
— Julian! — Light correu para ele com desprendimento infantil e abraçou-o com força.
— Desculpa ter saído, mas vi-os novamente, o veado vermelho e a égua branca, e eu...
— E agora tens que cumprimentar os nossos hóspedes, Light — disse Julian com uma
firmeza carinhosa. Colocou uma mão na cabeça de Light e olhou para Truth: — Light é a
nossa médium, e por vezes distrai-se... com facilidade. Não é, minha pequenina? — disse ele
com indulgência.
Light abanou a cabeça violentamente. A sua voz e gestos eram os de uma pessoa
muito mais nova e Truth sentiu de repente uma enorme vontade de protegê-la. Não achava
que Light fosse mentalmente diminuída, mas era óbvio que não conseguia lidar com o mundo
moderno sem ajuda.
— Não estava distraída! — protestou Light, não prestando atenção a Truth. — Estava a
seguir o veado vermelho. O veado vermelho e a égua branca; o lobo cinzento e o cão preto;
vermelho e cinzento e branco e preto, os quatro guardas do Portão — cantarolou ela, em
grande excitação.
— Mas não deves segui-los até ao bosque, criança. Embora não te façam mal, há
outros perigos na floresta — disse o homem que entrara com ela.
Era cerca de cinco centímetros mais alto que Julian, tinha cabelos pretos
encaracolados, com reflexos azeviche. A voz profunda era vagamente estrangeira, com
vestígios de uma pronúncia que Truth não conseguia identificar. Olhou para cima, para os
seus olhos.
“Caiu, e a escuridão e fogo eternos tomaram o lugar da Luz e da Palavra...”
A custo, Truth libertou-se de... do quê?
— Olá, sou Truth Jourdemayne — disse ela, como se o incitasse a contradizê-la.
Sentindo-se estranhamente formal, estendeu a mão.
Ele pegou nela, dobrando-se de forma igualmente formal. Truth forçou-se a não recuar
ao ser tocada. O poder irradiava da sua pele; a mão dela latejou bruscamente e imagens
surrealistas explodiram por trás dos seus olhos como fogo-de-artifício. Por que estava ele aqui
e o que estava ele a fazer disfarçado? Estas não eram as suas roupas; não era este o seu lugar!
— E eis o último do nosso grupo, Truth: este é o Michael...
— ...Archangel — continuou o homem alto, largando a mão dela e olhando-a
novamente nos olhos.
A breve alucinação desaparecera e Truth viu que os olhos de Michael Archangel eram
pretos, sendo a divisão entre a íris e a pupila quase invisível, e que a sua pele era da cor verde-
clara de um ícone da Renascença.
— Seria menos invulgar se o dissesse na minha língua nativa, o grego — continuou
ele, mas foi anglicizado há tanto tempo que não vale a pena mudá-lo novamente.
Truth olhou fixamente para ele e depois para os seus próprios dedos. Pareciam
normais; porque tinham latejado com aquele fogo tão ascético? E de onde tinha vindo aquela
certeza estranha? Nunca tinha visto este homem na vida!
— O Arcanjo Michael, capitão dos exércitos de Deus — troçou Julian. Parecia haver
um certo tom de irritação no seu gracejo, que Truth não se lembrava de ouvir antes.
— Que matará a Serpente nos últimos dias e a lançará definitivamente para o Abismo
por todos os tempos dos tempos — concordou Michael, como se concluísse uma citação de
catecismo.
— Mas, entretanto, está a fazer uma pesquisa na nossa coleção — disse Julian
suavemente. Desembaraçou-se de Light e deu-lhe um pequeno empurrão na direção de Irene.
— Vai lá ter com Irene, querida. Ela arranja-te uma bebida.
— Com licença — disse Michael, seguindo Light.
Julian observou-os com uma leve preocupação estampada no rosto.
“Ele não gosta de ver Michael e Light juntos”, pensou Truth, com aquela nova certeza
inexplicável. Por quê? Forçou-se a pôr de lado esta intuição; seria muito fácil convencer-se
que esta voz interior estava sempre certa... e era daí que podiam vir grandes ilusões de
poderes ocultos.
— Quem é ele, Julian? — interrogou Truth, sabendo que a pergunta parecia infantil,
mas não sendo capaz de evitá-la.
— Um antigo colega de escola, na verdade. Não se lhe pode chamar propriamente um
crente; acontece é que ele se serve da minha coleção para fazer os seus trabalhos de pesquisa
— disse Julian. Mas também não é um céptico. Michael não compromete a sua lealdade...
Truth e Julian ainda estavam mais ou menos no meio da sala de estar. Os outros
tinham-se espalhado. Hereward estava sentado no sofá cor de ostra a falar com Fiona, que
estava empoleirada no braço do sofá com a bainha a subir-lhe perigosamente. Ellis, como era
de esperar, mantinha-se perto da garrafa de xerez, com o copo novamente cheio.
Gareth, contra todas as expectativas, tinha-se juntado a Michael e a Light. Um dos
outros homens, Donner ou Caradoc, ela já não tinha a certeza, explicava qualquer coisa a
Irene com gestos expansivos; o outro estava sentado no lado oposto do sofá.
“Uma reunião de família normal... se fosse o caso de se tratar da Família Adams”,
pensou Truth maldosamente. Procurava imaginar quem seriam todas estas pessoas, no fundo,
e como Julian as teria juntado. Com certeza que não era normal as pessoas chamarem-se
“Hereward” e “Caradoc” nos dias de hoje.
“Se eu praticasse magia, talvez preferisse também usar um pseudônimo”, pensou
Truth, e voltou a concentrar-se em Julian.
— O que acha da coleção Blackburn, agora que teve a hipótese de olhar para ela?
— Mal comecei — protestou Truth — mas já percebi que vou demorar semanas para
conseguir ter uma ideia do que lá tem. — “E vou precisar de um guia nativo”, pensou. — O
que vale a sua coleção sem Venus Afflicted? — perguntou ela com audácia. — Irene falou-me
sobre ele esta tarde — acrescentou Truth, ao notar o olhar surpreendido de Julian.
Ele levou um momento para escolher as suas palavras, antes de falar.
— Uma coleção completa é sempre mais valiosa do que uma incompleta, claro. A
minha coleção é razoavelmente representativa, tendo em conta o fato de que os registros e
artefatos mágicos sempre foram considerados profundamente confidenciais e ao mesmo
tempo muito efémeros, por isso a maior parte das coleções desaparecem com a morte do
colecionador.
— Mas...? — continuou Truth, que sabia que ainda não tinha uma resposta.
— Eu daria a minha alma para ter Venus Afflicted nas minhas mãos — respondeu-lhe
Julian de forma direta. — Partindo do princípio que acredito possuir uma — acrescentou ele
para tornar o momento mais leve.
Felizmente Truth foi salva da necessidade de responder, quando soou uma pequena
campainha.
— Jantar — disse Gareth, a sua voz fazendo eco do sentimento de alívio de Truth.
A sala de jantar de Shadow’s Gate estava mais do que à altura do resto da opulência da
casa, característica da era Rockefeller.
Embora houvesse área suficiente para uma mesa com o dobro do comprimento, a que
lá estava, coberta com damasco branco, permitia que os onze convidados se sentassem muito
à vontade.
Por cima da mesa, dois enormes candelabros de cristal Waterford enchiam a sala com
uma luz brilhante. O parquet magnífico estava coberto com um enorme tapete de Aubusson
em tons creme e no aparador de ébano com tampo de mármore via-se um par de
deslumbrantes candelabros de prata prontos para serem utilizados, ao lado de castiçais de
prata.
A sala era apainelada até meio, à moda antiga, e do lambril até ao teto as paredes
estavam cobertas por brocado de seda dourada. Um conjunto de portas duplas em arco dava
para o espaço central da casa, e duas portas menores davam para a cozinha e a copa do
mordomo.
Julian dirigiu-se para o topo da mesa e indicou o lugar da ponta.
— Como nossa convidada de honra, o lugar de honra é seu — disse Julian a Truth,
fazendo um gesto para a ponta da mesa.
— Não, não posso. Realmente — disse Truth, hesitando à entrada da porta.
— Julian! — murmurou Fiona num tom de voz falsamente doce. — Vai fazer com que
ela se sinta pouco à vontade.
Fiona deslizou para o lugar na ponta da mesa com uma alacridade que sugeria que não
era o seu lugar habitual e devolveu a Truth um olhar de triunfo.
Truth sentiu uma súbita tensão na sala, como se fosse o ribombar de uma trovoada
distante, mas Julian não disse nada; limitou-se apenas a puxar a cadeira à sua direita.
— Então, sente-se aqui — disse ele a sorrir. — Para que eu possa monopolizar a sua
conversa durante a refeição.
Os outros se sentaram todos em novos lugares à volta da mesa. Truth divertiu-se ao
ver que Ellis Gardner se tinha sentado à sua direita, obviamente contente por ter uma ouvinte
nova para a sua tagarelice. Interrogou-se se seria boa idéia cultivar a sua amizade: por um
lado, sabia-se os segredos de toda a gente, pelo menos uma versão, mas por outro lado as
pessoas não falariam livremente se soubessem que tinha por companheiro um difamador.
“Um difamador. Aqui está uma palavra antiquada! Donde terá ela vindo?”
Michael permitiu graciosamente a Irene que se sentasse à esquerda de Julian, antes de
se sentar ao lado dela, tendo Light do outro lado. Truth, olhando para os olhos escuros de
Michael, do outro lado da mesa, tinha a sensação que se passava mais qualquer coisa do que
um jogo de dança de cadeiras, mas afastou esse pensamento. Não era nada com ela, ao fim e
ao cabo.
Tinham acabado o prato de sopa e Truth lembrou-se com saudade do seu quarto na
pensão em Shadowkill, longe de todas estas paixões e partidarismos e agendas de trabalho
agitadas e escondidas. Quando lá chegasse, não voltariam a apanhá-la em Shadow’s Gate!
“Mas terás que vir. O teu trabalho ainda não está acabado”, lembrou-lhe uma voz
interior.
Este pensamento fê-la parar de repente como se tivesse levantado uma barreira física.
Era verdade. Ela mal tinha começado a delinear a sua biografia sobre Thorne Blackburn, e já
sabia que a maior parte do material de que precisava se encontrava na coleção de Julian. A
coleção de Julian, as recordações de Irene...
Olhou furtivamente para onde Light estava sentada entre Michael e Gareth. Light
levantou os olhos quando sentiu o olhar de Truth e sorriu timidamente antes de baixar
novamente a cabeça. Truth retribuiu-lhe o sorriso. E já que ali estava, o melhor era perguntar
a Irene qual a posição de Light nesta estranha família e se Light estava a ser... explorada de
alguma forma.
— Um pouco de vinho, Truth?
Foi acordada do seu devaneio pela pergunta de Julian.
Acenou com a cabeça e ele encheu-lhe o copo com um vinho cor de palha de
excelente colheita.
— Não sou daqueles que acreditam que o caminho para o poder está na abnegação e no
ascetismo — disse ele, sorrindo. — Certamente que há ocasiões em que o jejum e a prece são
apropriados, e nessa altura também os utilizo, mas parece-me muito mais importante
compreender em toda a sua dimensão a informação que os nossos sentidos podem fornecer,
se os queremos dominar por completo.
— Sabe que entendo muito pouco das vossas... práticas — disse Truth com franqueza.
Depois do xerez, não tinha a certeza de querer imediatamente mais um copo de vinho,
mas todas as outras pessoas à mesa, incluindo Light, estavam a beber e além do mais ia ter
uma refeição completa para anular os seus efeitos.
— Era nisso que Blackburn acreditava? — Ergueu o copo e bebeu um pouco.
— Nisso, como em todas as coisas, vê em mim o seu discípulo — disse Julian a rir.
— Eu também queria um pouco de vinho — disse Fiona, levantando o copo
significativamente. Hereward, com os olhos sorridentes, mas com um ar tão inexpressivo
como o de um mordomo, pegou na segunda garrafa ao fundo da mesa e encheu-lhe o copo.
— Não que Julian não tenha encontrado alguns melhoramentos a fazer no Trabalho do
Mestre — disse Irene alegremente, interrompendo Fiona como se não a tivesse ouvido.
— Para que o Trabalho seja bem sucedido, não podemos olhá-lo como uma espécie de
verdade recebida, que usamos com leviandade, por nossa conta e risco. A Roda gira — disse
Julian.
— E, Julian — disse Ellis sotto voce ao ouvido de Truth — tenciona estar em cima
dela, não se importando com a velocidade a que ela gira.
Truth olhou para ele, com um sorriso automático e social.
Era uma impressão de Julian que já recolhera por si, mas esta confirmação parecia
torná-lo ainda mais excitante.
O que estava Shadow’s Gate a fazer dela?
O jantar foi longo e abundante, embora os aprestos não estivessem ao nível do que a
sala de jantar parecia sugerir, no que diz respeito às hordas de criados em libré. A comida
estava muito bem preparada e a sua apresentação era digna de um restaurante de cinco
estrelas, mas, nos dias modernos, as multidões de criados que povoavam a novela romântica
não eram fáceis de arranjar. O cozinheiro e um assistente colocavam a comida na mesa e
depois os convidados serviam-se eles próprios.
A conversa e o vinho corriam livremente, abordando-se assuntos que iam desde
tópicos caseiros como a previsão de dificuldades com o poço da propriedade, até aos últimos
filmes. Era uma camaradagem fácil e cordial que fez com que Truth se sentisse um membro
aceite do grupo.
A única nota levemente amarga era o desagrado contínuo de Fiona, mas isso era
facilmente compreensível. Era óbvio que Fiona se sentia atraída por Julian, embora não
parecesse ser correspondida.
“Era tal como uma comédia de Shakespeare”, cogitou Truth. Acabariam as afeições
complicadas em Shadow’s Gate por se destrinçar de forma tão clara como no final duma peça
isabelina, com todos estes grupos diferentes de amantes mal emparceirados a encontrarem os
seus companheiros certos?
Entretanto, Gareth amava Fiona e Fiona amava Julian... E de quem gostava Julian? De
Light?
“Não,” decidiu Truth depois de pensar cuidadosamente. Os sentimentos de Julian por
Light não eram os de um futuro amante. Olhou para o outro lado da mesa, onde se encontrava
Michael, que conversava em voz baixa e profunda com a rapariga de cabelos prateados.
Talvez fosse Michael que gostava de Light. Estranhamente, Truth tinha a sensação de que
Julian não aprovava o seu relacionamento. Por que, se ele não queria tomar o lugar de
Michael? Certamente que, se antipatizasse assim tanto com Michael Archangel, não o teria
como convidado na sua casa.
O cozinheiro e o seu assistente entraram novamente, no momento em que os últimos
convidados tinham acabado de jantar. Truth, que estivera a observar, viu Julian a premir sub-
repticiamente um botão com o pé, e começaram a levantar a mesa. Quando Truth viu Gareth e
Donner levantarem-se para ajudar, também começou a levantar-se, mas foi impedida de fazê-
lo pela mão de Julian no seu braço.
— Os convidados de honra têm os seus privilégios — disse ele. — Hoskins gosta de
sair logo que a sobremesa está pronta, por isso costumamos ajudá-lo. Mas está fora de questão
pedir a um hóspede ilustre para trabalhar.
— Sobremesa? — disse Truth em voz fraca.
Não se lembrava da última vez que tinha comido tanto: sopa, rosbife e batatas assadas,
vegetais cobertos com ovo batido, escalfados e grelhados, e meia dúzia de diferentes tipos de
pão quente tinham sido apenas o início.
Num instante a mesa fora levantada e o assistente de Hoskins entrou empurrando um
carrinho que tinha copos, pratos e talheres limpos. Atrás de Davies vinha Hoskins, carregando
um tabuleiro enorme que continha vários tipos de pastelaria.
Irene disse-me que tinha feito uma reserva na cidade.
— Agora que teve uma hipótese de avaliar a coleção acha que consigo persuadi-la a
ficar aqui? — perguntou Julian, enquanto o tabuleiro era servido à volta da mesa.
Truth hesitou. A sua experiência dizia-lhe que uma oferta tão generosa raramente era
feita sem condições, embora ainda não se tivesse apercebido de nenhumas. E apesar da
conveniência de tal combinação e da proximidade persuasória de Julian,
Truth ainda sentia que Shadow’s Gate era uma espécie de desafio que ela queria
avaliar antes de aceitar. Seria mais fácil pensar no assunto longe da presença avassaladora da
casa.
— Embora eu ache que não consigo escrever o meu livro sem recorrer à sua coleção...
começou ela cheia de tato.
— Então está combinado — disse Julian. — Você...
O que quer que ele fosse dizer foi abafado pelo ribombar de um trovão. As luzes
piscaram.
— Lá vamos nós outra vez — disse Gareth, sentando-se novamente.
— O que ele quer dizer — disse Hereward, servindo-se de sobremesa quando o
tabuleiro passou por ele — é que, estando perto do Storm King, tem que se suportar uma
tempestade de vez em quando.
— Só queria que fosse de vez em quando — disse Caradoc. — Bem, pelo menos os
cortes de corrente acabam por criar o hábito de nos juntarmos à luz da vela.
O tabuleiro foi apresentado a Truth. Incitada por Julian, escolheu uma pêra cozida, que
parecia ter menos calorias.
— Ficam muitas vezes sem eletricidade? — perguntou Truth. Lembrava-se que Storm
King era o nome duma montanha da região.
— Normalmente, só temos de ligar um interruptor — disse Caradoc, o que é da
competência do nosso técnico residente. — Gareth fez uma vénia do lugar onde estava sentado
— mas por vezes toda esta região fica às escuras.
— Se não se conseguir ver as luzes em Shadowkill, olhando pelas janelas do terceiro
andar, não há nada a fazer — disse Gareth. — Significa que há um corte de corrente em todo o
município de Shadowkill e provavelmente também no distrito.
Light deu uma risadinha, um som prateado, de fada.
— Eu gosto de tempestades — confessou ela timidamente.
Truth sorriu para ela.
— Eu... — começou ela, mas calou-se quando as luzes tremeram novamente.
Truth pousou o garfo.
— Gostei muito da noite, mas acho que, se vai haver uma tempestade, é melhor eu ir-
me embora — disse Truth com firmeza.
Iria ter suficientes dificuldades a encontrar a pensão na escuridão e pior seria se
tivesse de procurá-la durante uma tempestade.
— Mas, Truth! Certamente que vais ficar — disse Irene sem querer acreditar.
— Temos muito espaço — acrescentou Gareth.
— Estava à espera que aceitasse o meu convite para escrever o seu livro aqui — disse
Julian. — Mas mesmo que não o faça, seguramente que uma noite de hospitalidade não seria
demais? Odiava mandar alguém encontrar um destino desconhecido com um tempo destes.
— Ele tem razão. Não enviaria nem um cavaleiro numa noite destas — disse Caradoc
com o seu sorriso de esguelha.
Naquele momento as luzes apagaram-se por completo e ouviu-se um barulho
ensurdecedor de trovoada, seguido do tamborilar de gotas de chuva atiradas como pedrinhas
contra as janelas da sala de jantar. Passado um momento, ouviram-se gargalhadas e aplausos
comandados por Julian.
— Está a ver, Truth, os velhos deuses favorecem o nosso desejo de que fique — disse
Julian na escuridão.
Ouviu-se barulho de pés que se arrastavam e depois Truth ouviu o som do acender de
um fósforo.
Com a luz de ambos os candelabros com cerca de duas dúzias de velas, a sala de jantar
ficou surpreendentemente iluminada.
— As luzes estão todas apagadas — disse Light maravilhada.
— Quem quer ir verificar? — perguntou Gareth.
— Vá você — disse Donner, dirigindo-se ao aparador e entregando a Gareth um
castiçal.
Aceitando a derrota com boa disposição, Gareth acendeu a vela de um dos candelabros
e saiu, protegendo a chama com a mão livre.
— Mais vinho? — perguntou Ellis, enchendo o copo.
Truth abanou a cabeça e ele encolheu os ombros.
— Por que razão não usa uma lanterna? — perguntou Truth a Julian.
— As pilhas em Shadow’s Gate não funcionam — disse Julian. — É mais fácil usar
velas do que lutar contra as pilhas. Acho que a pilha do seu relógio vai precisar ser substituída
muito em breve.
“Bem, isso é uma coisa que eu posso verificar”, pensou Truth com determinação.
— Acho que seria sensato da sua parte se aceitasse o convite de Julian — disse
Michael a Truth. — A sua bagagem já está cá dentro, não está?
— Sim. Com certeza — disse Truth.
Era uma pergunta estranha (por que razão acharia Michael que ela tinha vindo sem
bagagem?), e Michael tinha sido um dos últimos a aparecer na sala de estar nessa noite. Será
que durante a sua ausência tinha revistado o quarto dela?
“Se continuas com estas paranóias daqui a pouco acreditas nos ovnis e também em
conspirações assassinas”, ralhou Truth consigo própria.
— Então está combinado — disse Julian com firmeza. — Não posso deixá-la ir-se
embora hoje; seria perigoso demais. Querida Irene, acho que o café deve estar pronto, mas o
melhor é usar um termo em vez da garrafa de prata, para mantê-lo quente.
— Tal como nos velhos tempos — disse Irene feliz, saindo para a cozinha num rodopio
de lantejoulas iluminadas pelas velas.
— Eu vou ajudar — disse Truth, levantando-se desta vez de um salto antes que Julian
conseguisse impedi-la.
Irene tinha levado apenas um castiçal para a cozinha e, nas sombras da sua chama
tremelicante, a cozinha era um lugar fantasmagórico. A tempestade tinha piorado no espaço
de tempo que Truth tinha levado para atravessar a sala e o vento uivante atirava chuva contra
as janelas da cozinha com tal força que os vidros chocalhavam nos caixilhos. O som fez Truth
pensar melhor sobre a sua determinação em ir-se embora. Julian tinha razão: não era a noite
ideal para tentar encontrar um lugar onde nunca tinha estado, e tinha sido um longo dia.
— Está uma noite selvagem — disse Irene feliz. — Thorne costumava fazer o seu
melhor trabalho em noites como esta. Atarefava-se na cozinha com a facilidade do hábito,
tirando duas garrafas termo do armário e vertendo o café do jarro cromado para dentro delas.
— Sim, sinto saudades dele. E não está uma noite para andar sozinha pela estrada se não é
preciso — acrescentou ela, mudando de conversa e começando a falar de assuntos práticos
com a rapidez habitual, que Truth ia aprendendo a conhecer.
— Irene — disse Truth — aquela rapariga, Light, de onde veio?
— Foi o Julian que a encontrou. Quando no ano passado readquiriu Shadow’s Gate
(faz quase um ano este mês que ele me mandou buscar), fez um dos seus trabalhos menores e
ela apareceu.
“Bolas para o ocultismo desfocado de Irene, que arranja uma explicação mágica
para tudo!”, pensou Truth aborrecida.
— Sim — disse ela pacientemente. — Mas de onde é que ela veio?
— Acho que ela devia estar num hospital algures — respondeu Irene vagamente,
empilhando chávenas e pires num outro tabuleiro. — Ela não tem família, pobrezinha, e às
vezes os mais dotados são os menos aptos a lidarem com Malkut, a Esfera da Manifestação.
“E também com o mundo real”, acrescentou Truth mentalmente.
Era estranho; se realmente Light não tinha família, como é que Julian a tinha tirado da
instituição?
“Se é que ela estava realmente numa”, acrescentou Truth, metodicamente.
‘ — Mas agora que vai cá ficar, vamos ter muito tempo para conversar — acrescentou
Irene com o seu forte sotaque inglês. — Por favor, leve isto para a sala de jantar, minha
querida — disse ela, entregando a Truth um tabuleiro cheio de chávenas de café.
— Está tudo escuro até ao rio e os telefones também não funcionam — anunciou
Gareth com satisfação, quando Truth chegou à sala de jantar. — Fui espreitar lá fora —
acrescentou ele sem necessidade, uma vez que tinha o cabelo e a camisa colados à pele como
se acabasse de sair debaixo do chuveiro. — Está realmente uma tempestade. Uma boa noite
para... coisas... — acabou ele tenso, olhando para Truth.
Truth pousou o tabuleiro com cuidado e Michael levantou-se para ajudá-la a distribuir
as chávenas. Parecia que tinha estado a estudá-la, como se procurasse uma resposta para uma
pergunta. Truth sorriu automaticamente. Irene saiu da cozinha, sem castiçal, para colocar as
garrafas na mesa.
— Há mais na cozinha — disse ela — a esfriar.
— Nós vamos querer — disse Hereward. — Mesmo que esteja frio. Uma longa noite
hoje, não é Julian?
Julian sorriu em antecipação.
— Terei muito gosto em que se junte a nós, Truth — disse ele. — Como observadora,
ou... como quiser.
Truth retraiu-se intimamente, percebendo finalmente o que eram as alusões e os
olhares de lado. Julian queria fazer magia hoje à noite; da sua leitura de Venus Afflicted tinha
ficado com uma leve impressão de que Blackburn preferia fazer os seus rituais durante
tempestades.
Como cientista e investigadora psíquica, Truth sentia que deveria ser capaz de
presenciar qualquer manifestação estranha com uma calma total, e, claro está, não acreditava
em magia, mas só o pensamento de estar perto de um ritual mágico no estilo de Blackburn a
enchia com um pânico sufocante.
“Ele matou a minha mãe. Aqui, nesta casa, numa noite como esta. Ele matou-a...”
— Truth?
Julian tocou-lhe no braço e ela assustou-se, respirando pesadamente. Entornou café
nas mãos e na toalha e depois se retraiu ao sentir o toque do líquido quente. Olhou para ele
com os olhos muito abertos e o coração aos pulos.
— Está bem? perguntou ele.
Ela pousou a chávena no pires e limpou as mãos. Felizmente não parecia estar muito
queimada. A maior parte do café tinha caído na toalha.
— Desculpe, Julian. Espero que as nódoas saiam. Não sei o que se passou...
— Não tem importância — disse ele para a acalmar. — Esta casa pode ter esse tipo de
efeito nas pessoas, especialmente durante uma tempestade.
— Obrigada — disse Truth, não sabendo exatamente o que estava a agradecer.
Mais ninguém parecia prestar atenção ao pequeno incidente.
Ela ia bebendo o café que restava na chávena. Tinha-lhe posto imensas natas e açúcar
na esperança de que a cafeína e o açúcar a mantivessem acordada. Os acontecimentos do dia,
somados à grande viagem, tinham-na abatido, e a obscuridade da sala iluminada por velas
ainda mais salientava o seu cansaço.
— Há um conjunto de práticas, designadas Preparação do Caminho, que precedem a
Abertura do Caminho — explicou Julian — esta noite é-lhes propícia. É uma ocasião em que
a interferência psíquica, tanto da luz do sol como dos espíritos guardiães, é minimizada.
Tuth viu-se a acenar com a cabeça concordando com relutância. A maior parte dos
seus espíritas “profissionais” aqueles que acreditam e reconhecem os seus poderes psíquicos
sentia que o seu sexto sentido era mais forte durante a noite.
Mas participar num dos rituais de Blackburn...?
Julian observava-a, obviamente à espera da resposta.
“Não!”, gritava uma parte interior do seu espírito.
— Realmente acho que não... estou bastante cansada. Talvez outro dia — disse ela
atrapalhada.
— Terei muito prazer — disse Julian, sorrindo significativamente.
— Só vou ver se está tudo pronto para Truth no quarto dela e depois vou até ao
templo, está bem? — disse Irene.
— Boa-noite, querida.
Irene levantou-se do seu lugar e deu a volta até onde Truth estava sentada, curvando-
se para lhe dar um beijo na cara. Truth esticou-se e fez uma festa na mão com anéis que
pousava no seu ombro, esforçando-se por conter um súbito ataque de lágrimas. Estava
cansada, era só isso. Explicava tudo. Tudo.
— Boa-noite, tia Irene — disse ela em voz alta.
Irene Avalon saiu da sala levando um castiçal à sua frente, como se fosse uma espada
flamejante.
— Sentes-te suficientemente forte para trabalhar esta noite, querida? — perguntou
Julian a Light.
— Sim! — respondeu Light.
Truth olhou para ela. Não havia dúvida quanto à sinceridade de Light. Os olhos dela
brilhavam à luz da vela e o seu sorriso encantado era totalmente genuíno.
— Mas não vem também, Michael? — perguntou Light numa voz queixosa, virando-se
para ele. — Nunca vem.
— E nunca irei — disse-lhe Michael Archangel com bondade. — Cada pé com sua
forma. — Pôs-se de pé.
— E cada gato com seu rato — disse Julian. — Deixemos Michael encontrar a verdade
à sua maneira e esperemos conseguir encorajar Truth a juntar-se a nós — terminou ele em
tom de brincadeira.
Michael agradeceu a observação com uma vénia e um leve sorriso e saiu da sala. Não
se deu ao trabalho de levar uma vela.
“Bem, já cá deve estar há tempo suficiente para conhecer a casa.” Truth bebeu o café
até o fim e levantou-se. Apercebeu-se de um sentimento de expectativa entre as pessoas que
continuavam à mesa, uma vontade de tratarem dos seus assuntos, ou seja, dos assuntos de
Thorne Blackburn.
— Então boa-noite — disse ela. — Foi um prazer conhecê-los a todos. “Mas um deles
nem por isso”, pensou ela.
— Eu ilumino-lhe o caminho — disse Ellis, dirigindo-se ao aparador para pegar noutro
castiçal e acendeu-o num dos que ardiam em cima da mesa.
Afinal, o que Truth classificara de início como meros adereços teatrais eram mesmo
objetos úteis.
Não sentindo uma aversão suficientemente forte em relação a Ellis para fazer uma
cena, Truth seguiu-o para fora da sala. Ao sair da sala, pôde ver os outros cinco a juntarem-se
para uma conferência secreta.
“Tal como num clube de jovens com palavras de passe e anéis com símbolos de
sociedades secretas”, zombou Truth com um pouco de ciúmes. Nunca era agradável ser
excluída de coisa alguma, mesmo tratando-se de alguma coisa a que não queríamos pertencer.
Truth refreou a sua imaginação ao subir com Ellis a larga escadaria. A chama da vela
parecia animar formas de animais dançantes a cada canto, e embora soubesse que eram apenas
ilusões, retraía-se de cada vez que um parecia saltar.
Também Ellis estava atento, andando como se estes perigos imaginários fossem reais,
aumentando assim o desconforto de Truth. Ficou muito contente quando chegou à porta do
quarto que Irene lhe tinha reservado para descansar. A porta girou para dentro quando lhe
tocou e Truth percebeu que Irene tinha de fato estado ali, abrira a cama e deixara uma vela
acesa num castiçal, na mesa de cabeceira.
Ellis recuou para ela entrar. A luz da vela moldava em relevo as curvas e depressões
da cara dele, tornando-a uma máscara mefistofélica. Ellis ia virar-se para se retirar, mas
hesitou.
— Esta casa é velha e por isso parece-me melhor dar-lhe um conselho. Acredite apenas
em metade do que vir e em nada do que ouvir.
Antes que Truth conseguisse formular uma resposta adequada, ele virou-se e deixou-a
ali parada.
Logo que a porta se fechou, Truth levantou o colchão. Venus Afflicted continuava lá,
tal como a tinha deixado. Sentiu-se muito aliviada, como se houvesse à sua volta um perigo
ao qual estivesse a escapar por mera sorte. Depois de um momento de hesitação, baixou
novamente o colchão, deixando o livro no lugar.
Uma rajada de chuva bateu na janela com um leve tamborilar, seguida do clarão de
dois relâmpagos que caíram quase um a seguir ao outro.
Truth estremeceu, esperando que a tempestade não a mantivesse acordada toda a noite.
Embora o vale do rio Hudson tivesse a fama de ser a fonte das tempestades, havia
mais no verão do que no outono. Este ano ia haver muito pouca cor outonal, se a tempestade
arrancasse as folhas das árvores.
À luz da única vela, Truth preparou-se para ir para a cama, pendurando o vestido azul
cuidadosamente no armário vazio. Tentou rever os acontecimentos do dia e dar-lhes uma certa
ordem mental, mas de cada vez que tentava, fugiam-lhe ao controle. Deveria ficar em
Shadow’s Gate, como Julian pretendia?
Tornaria a investigação mais fácil e embora desejasse nunca ter posto a hipótese de
escrever um livro sobre Thorne Blackburn, tinha falado a tantas pessoas sobre os seus planos
que pareceria muito tonta se recuasse agora.
Odiava parecer uma tonta, embora repetisse para si inúmeras vezes que a opinião das
outras pessoas não interessava. E certamente não ia desistir do seu projeto, apenas por causa
dum ataque de ansiedade!
Tais considerações eram muito acertadas, mas deveria aliar-se estreitamente a este
novo Círculo da Verdade? Ao fazê-lo poderia destruir a sua credibilidade como investigadora
isenta. Mas, por outro lado, a informação sobre eles seria um ponto de vista valioso para a
biografia de Blackburn; mas também...
Um bocejo lembrou Truth que não estava em condições de considerar estes. Tudo
ficaria mais claro depois de uma boa noite de sono.
Truth enfiou-se na cama emprestada e apagou a vela.
Algum tempo depois Truth esforçava-se por acordar de um sonho real com água. Que
subia da terra, que caía do céu... Bocados de conversas sonhadas soavam no seu espírito:
“Que venha o príncipe elementar, Ondina, criatura da água: Tu... que existias antes do
mundo ser criado...”
Mas não fora o sonho que a acordara. Truth olhou fixamente para a escuridão, com
todos os sentidos bem alerta, para descobrir o que a tinha acordado. A chuva tinha parado e
um perfume forte e ao mesmo tempo enjoativo enchia o quarto silencioso, secando-lhe a
garganta, e provocando-lhe cócegas.
“Incenso”, percebeu Truth. “Deve vir através de uma fenda nalgum sítio da casa.”
Irene não tinha dito que havia um templo na propriedade?
O fato de sentir o incenso no quarto significava que devia haver uma passagem a ligar
ambos em algum lugar.
Talvez pudesse fechar a abertura aqui antes que o incenso penetrasse em todas as
peças de vestuário que tinha trazido.
Tateou à procura dos fósforos, que deveriam estar ao lado da vela, mas não os
encontrou. Mas nessa altura os seus olhos já se tinham adaptado para distinguir um leve brilho
que vinha da parede, perto do chão: a abertura que procurava.
Agora era fechá-la. Truth saiu da cama e dirigiu-se para lá. Tal como previra, o cheiro
a incenso era mais forte aqui, ao ponto de fazê-la lacrimejar. Agachou-se, passando as mãos
pelo metal para ver se conseguia fechá-lo.
“Saia!” A voz era forte: masculina, zangada e apenas a alguns centímetros da sua
cara.
Truth atirou-se para trás, abafando o grito que ameaçava sair-lhe por entre os dentes
cerrados. Gatinhou para longe da parede, consciente do desejo de se afastar o mais possível da
voz.
Deu uma forte pancada com a cabeça na armação da cama e a dor súbita trouxe-a
novamente à realidade, embora não lhe aliviasse o batimento desenfreado do coração. Não
havia ninguém atrás da grade. A voz não tinha falado com ela.
Era apenas uma singularidade da acústica da casa, que trouxera uma voz de outro lado
até aos seus ouvidos.
Não havia ninguém ali; ninguém!
Ela acreditava nisso, disse Truth para si. Mas depois de se ter arrastado até à cama e
puxado os cobertores até ao queixo, ficou acordada, tensa e a tremer na escuridão, até que o
céu se tornou cinzento, anunciando a alvorada.
CAPÍTULO SEIS
O ESPELHO DA VERDADE
Most true U is that I have looked on truth
Askance and strangely; but, by all above,
These blenches gave my heart anotheryouth,
And worse essaysprov’d thee my best of love.6
WILLIAM SHAKESPEARE

Quando Truth voltou a acordar, o sol já ia alto. Espreguiçou-se e sentiu as articulações


a estalar; perguntou-se por que razão estaria tão tensa. De repente, as recordações dos
acontecimentos da noite anterior tornaram-se claras; olhou à volta e localizou a abertura junto
da qual se tinha agachado. Na luz da manhã parecia inofensiva; a grelha pintada de branco era
apenas a cobertura de uma conduta do tipo das que existem nas casas antigas. Inofensiva.
Teria sido apenas a sua imaginação? Talvez um sonho, provocado pela comida pesada
e o ambiente estranho? Truth levantou-se da cama e foi até a janela, para olhar lá para fora. O
dia estava cristalino, azul e tranqüilo, e o único vestígio da tempestade da noite anterior era o
novo padrão de folhas de outono molhadas, atiradas em direção ao relvado.
Olhou para o relógio no pulso e resmungou. Dez e meia. Esperava encontrar Julian
esta manhã ao pequeno almoço, para resolver alguns assuntos com ele. Embora ainda não
tivesse decidido aceitar a oferta dele para ficar em Shadow’s Gate, pelo menos podia ter
arranjado uma espécie de horário para utilizar a coleção.
Por outro lado, um dos outros talvez lhe pudesse dizer onde ele se encontrava e se
estaria ocupado. Vestiu-se à pressa, enfiando uma camisola de algodão verde-azeitona e uma
saia de caqui e olhou com desalento para a desarrumação do quarto. Parecia que cada artigo
das malas tinha sido tirado e espalhado pelo quarto. Como podia ter arranjado uma tal
trapalhada apenas numa noite?
Bem, podia ocupar-se disso mais tarde. Depois de ter visto Julian.
Saiu para o hall e dirigiu-se lá para baixo. Durante a visita à casa, na tarde de véspera,
não tinha visto qualquer outra sala adequada, por isso calculou que o pequeno almoço seria
servido na sala de jantar. Pelo menos seria o local indicado para começar a procurar.
Estranhou que Irene e Ellis não tivessem mencionado uma hora para o pequeno
almoço, na noite anterior; podia ter posto o despertador; devia tê-lo feito de qualquer maneira.
Alguns minutos depois, Truth olhava espantada para um corredor que não conhecia. O
papel da parede era creme-escuro com um motivo de flores a azul, totalmente diferente das
riscas azuis e brancas no hall que ficava à entrada do quarto dela. Também não se lembrava
de tê-lo visto durante a volta que tinha dado na véspera. Passou os dedos pela parede: o
revestimento por baixo dos seus dedos deslocou-se rangendo como se fosse velho e estivesse
seco; negligenciado como mais nada em Shadow’s Gate.
Como teria chegado até aqui? O caminho do quarto dela até às escadas era muito
direto: em frente até ao fim do corredor, virar à direita e as escadas ficavam ao fundo. A
imagem dos pilares do corrimão em carvalho escuro talhados com folhas de acanto estava
bem nítida no seu espírito.
As escadas deviam ser por aqui.

6
A maior parte da verdade é que eu vi, na verdade, / De soslaio e estranhamente. Mas, acima de tudo, Em vez de
esquivar-me, dei o meu coração, / Uma outra juventude / E pior, avaliando o melhor de ti, meu amor. (N. da T.)
Voltou para trás, tendo a certeza de que pelo menos encontraria novamente o seu
quarto e em vez disso viu-se em frente a um lance de estreitas escadas para cima que ela não
conhecia.
“Isto é ridículo! Eu subi e desci aquelas escadas duas vezes ontem à noite e esta
manhã não utilizei nenhuma escada.” Truth franziu o sobrolho. Julian tinha dado a entender
que Shadow’s Gate estava assombrada, e este tipo de desorientação no espaço era um
“sintoma” comum do tipo de fenómenos paranormais inerentes às chamadas casas
assombradas.
Claro que perder-se também pode ser o resultado de uma combinação de noites mal
dormidas e incenso a mais, se é que não tinha sonhado tudo. Mas não, o quarto dela ainda
tinha um leve cheiro a incenso quando acordara de manhã.
Por um breve momento o pensamento de Truth voltou-se para aquela voz incorpórea
da noite anterior. Teria acontecido realmente e, se assim fosse, quereria isso dizer que a casa
estava assombrada?
Mesmo admitindo que a voz fosse natural em vez de sobrenatural, punha-se um
problema engraçado. Quem teria falado e quem estava a ser mandado embora? Ela achava que
o orador não tinha sido nem Julian nem Michael, e não ouvira os outros homens falarem o
suficiente para que pudesse identificar as suas vozes.
Contando sistematicamente os passos e vezes que tinha virado, Truth chegou primeiro
ao papel de parede com o motivo que lhe era familiar e depois à porta do seu próprio quarto.
Olhou para trás. O hall parecia normal até à esquina e naquele momento Truth não
queria ir verificar o que poderia haver a seguir. Ficou de costas viradas para a porta durante
uns momentos, fixando cuidadosamente o caminho até as escadas antes de partir novamente.
Desta vez encontrou-as com facilidade o único mistério era como se poderia ter enganado da
primeira vez.
Quando começou a descer, olhou novamente para o relógio e sentiu uma pontada de
aflição.
Os ponteiros do relógio marcavam onze horas e o movimento certo do ponteiro dos
segundos testemunhava o fato de que pelo menos a pilha ainda estava a trabalhar. Só que
tinha deixado o quarto cerca das onze horas, e tinha andado perdida pelos halls à procura das
escadas pelo menos durante os últimos vinte minutos.
Como poderiam ser ainda onze horas?
Na altura em que chegou à sala de jantar, Truth deixara de pensar neste último e
perturbante acréscimo à lista de perguntas, que ia aumentando. Ela não podia descobrir
sozinha as respostas para estes problemas e estava a tornar-se perturbadoramente evidente que
ninguém em Shadow’s Gate teria quaisquer respostas para ela que não envolvessem a
intercessão de Thorne Blackburn.
Era estranho que não houvesse qualquer cheiro a incenso no andar de baixo, embora
quase de certeza o templo ficasse aqui. Imaginou onde ficaria exatamente e pensou com um
nervosismo que lhe aguilhoou a boca do estômago que não devia ser nada difícil fazer com
que Julian o mostrasse.
As portas para a sala de jantar estavam abertas. Quando olhou através delas ficou
surpreendida por ver Ellis Gardner presidindo a mesa deserta como um monarca reinante.
Sorriu quando a viu.
— Minha querida, você levantou-se cedo. Venha tomar café; a corrente voltou durante
as primeiras horas da madrugada e o senhor Hoskins já nos arranjou o pequeno almoço.
Somos menos formais do que ao jantar, como poderá ver.
Fez um gesto para o cesto com pães e para a garrafa termo em cima da mesa. No
aparador os candelabros de prata da noite anterior tinham sido substituídos por chávenas
empilhadas, como é costume fazer nos hotéis.
— Não há necessidade de ser tão agressivo — disse Truth escolhendo uma chávena do
aparador. — Já sei que são onze horas, mas adormeci.
“Nem sei como”, comentou a pequena voz interior.
Os olhos de Ellis abriram-se espantados:
— Minha querida menina (ou deveria dizer “senhora” nestes dias decadentes?), eu
falei com toda a sinceridade — protestou ele. — Não esperava ver ninguém a pé nas
próximas horas. Entre os rituais de Julian que duram a noite inteira e as orações de Michael
que também se prolongam pela noite dentro, normalmente não se vê ninguém antes das duas
horas.
— Orações? — perguntou Truth, sentando-se perto do café. Rezar parecia uma
ocupação estranha para um mágico.
— Sim, claro — disse Ellis com prazer. — O nosso arcanjo caído não é o que parece...
mas o colarinho romano é um pouco arcaico no que diz respeito à moda, e normalmente tem
tendência a afastar as pessoas, por isso a sua omissão não deveria ser surpreendente.
Ellis empurrou o termo na direção dela.
— Está a dizer que ele é um padre? — disse Truth.
Ela pegou na cafeteira, serviu-se e a fragrância rica de café Jamaican Blue Mountain
acabado de moer e de fazer envolveu-a. Inalou profundamente.
— Apenas um leigo — disse Ellis com uma cortesia maliciosa — servindo com uma
posição humilde a Congregação para a Doutrina da Fé... ou, como era conhecida antigamente,
o Santo Ofício da Inquisição.
— Michael faz parte da Inquisição? — perguntou Truth sem querer acreditar, depois
de ter percebido o que Ellis queria dizer. — Deve estar a brincar. Nunca tinha visto ninguém
que parecesse menos um padre... ou um inquisidor.
— Então está bem — respondeu Ellis, pondo de lado a questão. — Mas talvez lhe
possa perguntar quem ele é e o que está a fazer na biblioteca de Julian. Ah, e também pode
perguntar por que razão ele e Julian inventaram aquela estúpida história entre eles.
Ellis parecia querer que lhe extorquissem os segredos um a um, e embora Truth não
tivesse a certeza de ter a força necessária esta manhã, decidiu experimentar, sob a influência
estimulante do café.
— Está bem, Ellis, eu acredito. Que história é essa?
Ellis fez uma pausa para beber um pouco de café ou, a julgar pelo cheiro, café e
brandy. Lembrou-se do que Julian tinha dito na noite anterior sobre o fato de Ellis beber.
Aparentemente era crónico.
— Que Michael e Julian são velhos amigos. Não são, sabe? Já conheço Julian a mais
tempo do que qualquer outra pessoa aqui presente e posso jurar que não são — disse Ellis. —
E por que razão me está a dizer tudo isto, um músico viajante? — perguntou Truth citando
muito a propósito W. S. Gilbert.
— Passo o meu tempo andando pelo mundo, a ver que maldades posso fazer
respondeu Ellis — rematando com uma citação sua. — E como você é a filha de Thorne, achei
que não devia trabalhar com uma desvantagem tão grande.
Embora não estivesse resignada com essa relação, Truth estava certamente menos
sensível a ela devido aos lembretes constantes de toda a gente que ela conhecia.
— Conheceu Thorne Blackburn? — perguntou ela.
Perguntou-se que espírito perverso a tinha possuído para que ela agisse contra os seus
desejos mais profundos. Certamente que não queria ouvir nada sobre Blackburn durante o
café da manhã.
E tinha a certeza de que a resposta seria não, de qualquer maneira. Ellis parecia ter
cerca de quarenta anos, não tinha idade suficiente para ter conhecido um homem que tinha
morrido há vinte e seis anos.
—Vi-o uma vez — respondeu Ellis, surpreendentemente. — Em 1967. Eu tinha
dezessete anos. A Glass Key abriu-se para ele durante a Universal Mystery Tour à costa leste.
A Universal Mystery Tour era a mistura de música e magia de Thorne Blackburn; seis
semanas de um caos quase descontrolado; a última grande exibição pública de Blackburn
antes de desaparecer no deserto do norte do estado de Nova Iorque.
— Então você é uma ex-estrela do rock’n’roll? — perguntou Truth, tentando dar um
ar mais leve à conversa. Era coisa difícil de imaginar, olhando para o porte doutoral de Ellis.
— Todos os homens e mulheres são estrelas — disse Ellis. — Como Nietzsche não o
disse. Eu era o baterista deles. Acho que há algumas fotografias de Glass Key na coleção...
Thorne costumava fotografar tudo e Julian encontrou vários álbuns cheios de fotografias
antigas quando nos mudamos para cá.
A expressão de Ellis era triste, recordando uma época mais alegre e significativa do
que a presente.
— Ellis, por que razão está aqui? — perguntou Truth vivamente.
Ele piscou os olhos, olhando novamente para ela.
— Onde mais poderia estar? O coração tem as suas razões. — Fez um gesto para
afastar a pergunta. — Mas você deve querer ir tratar do assunto do seu pai. Mas antes, um
conselho, se me der licença.
Truth, que ficara fascinada por aquela mudança de comportamento, concordou.
— Primeiro, lembre-se de que o velho ditado “O inimigo do meu inimigo é meu
amigo” nem sempre é verdadeiro. Tenha cuidado com o nosso amigo Michael. A bondade
suprema tem tão pouco em comum com a humanidade que pode muito bem ser o seu
contrário.
— E em segundo lugar? — perguntou Truth com uma compostura que achou
admirável.
— Quando tiver de lidar com aquilo que não entende, seja verdadeira consigo própria.
A honestidade é a melhor política, por isso lembre-se que é humana, querida Truth... ou
quase.
Ellis mexia-se com a graciosidade hábil de um ator veterano e começou a atravessar a
sala, antes que Truth se apercebesse disso. O fechar da porta da sala de jantar concluiu de
forma tão nítida a sua última tirada, que Truth levou um bom momento a perceber o que ele
tinha dito.
“Lembre-se de que é humana, ou quase?” Que diabo significa isso?
Era, supôs ela irritada, mais uma peça do grande enigma Blackburn. Toda a gente aqui
devia ter alguma ligação com Blackburn, embora Julian, Gareth, Donner, Caradoc e Hereward
e, para ser justa, Fiona só pudessem ter sido crianças quando Blackburn era vivo.
E, bolas, não tinha tido hipótese de lhe fazer perguntas sobre Julian.
Continuou a pensar enquanto ia comendo um pão e uma segunda chávena de café
quente, arquivando as revelações crípticas e inacreditáveis e os avisos sobre Michael no
mesmo ficheiro mental, juntamente com todas as coisas estranhas que lhe tinham acontecido
desde que chegara.
Se realmente aconteceram. Se é que não estava a ter um colapso sem causa aparente.
Continuou ali o mais que pôde agüentar, mas não apareceu ninguém para lhe fazer
companhia. Os únicos sons eram leves tinidos e pancadas surdas na preparação da comida
vindos da cozinha, e foi forçada a chegar à conclusão de que Ellis tinha razão pelo menos
quanto aos hábitos noturnos das pessoas da casa. Julian ainda devia estar na cama.
O hall de entrada e as escadas por cima estavam silenciosos quando Truth se
encaminhou cuidadosamente da sala de jantar para a sala onde se encontrava a coleção
Blackburn.
A sala larga e espaçosa parecia convidativa, com o sol do fim da manhã a entrar
através das janelas altas e sem cortinas. Truth pousou com cuidado a sua chávena de café,
longe de qualquer coisa feita de papel, e continuou a explorar o material.
“Estranho. Tanto Julian como Ellis disseram que Michael estava a fazer
investigações aqui em Shadow’s Gate, mas esta coleção não é exaustiva a não ser em relação
a Thorne Blackburn e não parece que Michael esteja a fazer pesquisas sobre ele. Se Ellis
tivesse dito a verdade sobre o fato de Michael ser um “leigo”, Michael teria acesso à
biblioteca do Vaticano, não era? E o Vaticano tem a maior coleção de livros sobre feitiçaria
no Mundo.”
Arquivou mais uma coisa para pensar nela mais tarde; de momento pretendia
descobrir pistas sobre Thorne Blackburn. Ellis tinha dito que havia fotografias e Truth
esperava que lhe dissessem mais do que os papéis confusos em que tinha tropeçado na
véspera. Afinal de contas, diz-se que uma fotografia vale mais do que mil palavras.
O coração dela batia depressa ante a expectativa de ir confrontar por fim o espírito
enigmático que tinha ensombrado a sua jovem maioridade. Sentia-se repugnada por tudo o
que Thorne Blackburn parecia representar, mas ao abordá-lo com a sua disciplina de
investigadora, sentiu que podia encarar o assunto Thorne Blackburn com algum
desprendimento.
A coleção que Julian juntara era ainda mais completa do que lhe parecera no dia
anterior. Ao examinar as prateleiras e as gavetas, anotando mentalmente as áreas que deveria
aprofundar primeiro, encontrou inúmeras provas da exatidão enciclopédica de Julian.
Havia alguns discos não sendo óbvia a razão da sua inclusão, a não ser um de Glass
Key que tinha uma fotografia de Ellis Gardner, muito jovem ainda, atrás de uma bateria
pintada de forma psicodélica.
Várias cassetes de vídeo cuidadosamente etiquetadas como cópias de apresentações de
Blackburn nos meios de comunicação, incluindo a sua infame filmagem de Johnny Carson
como convidado, e a parte de The Ed Sullivan Show que apenas o público no estúdio tinha
conseguido ver. Dizia-se que Blackburn também tinha entrado no Dating Game.
Havia um aparelho de vídeo que lhe permitiria ver estes filmes, se assim desejasse, e
apesar do seu auto-controle e das suas melhores intenções, Truth sentiu os pêlos dos braços e
do pescoço a eriçarem-se só de pensar em confrontar com uma imagem de Thorne Blackburn
a falar e a andar.
“Cresce!”, ralhou Truth consigo própria. Uma imagem não podia fazer-lhe mal e teria
de investigar a vida de Blackburn mais profundamente do que isto, se a sua intenção era
desacreditá-lo totalmente. Mais tarde veria as cassetes, só para arrumar o assunto. Agora tinha
um outro objetivo em mente.
Depois de procurar um pouco mais os encontrou: cinco álbuns de fotografias
antiquados, um pouco estragados e com uma aura psíquica empoeirada, embora tivessem sido
limpos há pouco tempo.
Estavam guardados como num arquivo, deitados de lado numa larga prateleira do
fundo, e Truth pegou neles um a um, levando-os até a mesa. Colocados uns ao lado dos
outros, os cinco volumes ocupavam quase a superfície total da mesa comprida. Puxou o mais
próximo para si e abriu-o.
As páginas do álbum tinham o cheiro doce e bafiento dos livros guardados há muito
tempo. Estes deviam ser os álbuns originais que Julian encontrara no sótão; estas fotografias
deviam ser retiradas, catalogadas, copiadas e devidamente protegidas.
Cuidadosamente levantou a capa. As páginas eram de papel rugoso e creme, e as
fotografias, algumas a preto e branco, outras a cores, estavam seguras com pequenos cantos
de papel e noutros casos com fita adesiva amarelada e prestes a desintegrar-se. Algumas das
fotografias tinham legendas da mesma época escritas por baixo, com uma letra apressada e
desconhecida. A de Blackburn?
“Kate in the Hashbury”, era uma das anotações misteriosas por baixo de uma
desbotada fotografia a cores de uma rapariga sorridente e de cabelos escuros, com um vestido
de cintura subida que lhe dava pelos tornozelos e uma fita entrelaçada na cabeça. Truth
distinguiu, no fundo, um bocado de uma casa branca vitoriana e uma bandeira americana
pendurada numa das janelas de cima. A rapariga usava pequenos óculos quadrados com
armação de arame e as lentes eram cor-de-rosa. À volta do pescoço via-se um símbolo da paz
a brilhar entre o colar de contas. Através de um quarto de século sorria para a lente de um
fotógrafo desconhecido, fazendo com uma mão levantada um “V”. Era um sinal de paz,
lembrou-se Truth, indo buscar o fato a uma fonte de informações triviais e antigas. “Kate in
the Hashbury. Haight-Ashbury. San Francisco.”
Kate. Katherine.
“Mãe.” Os lábios de Truth pronunciaram a palavra sem um som. Tocou
cuidadosamente na imagem com a ponta de um dedo.
Esta era Katherine Jourdemayne e se Truth conseguisse entrar na fotografia, estaria
frente a frente com uma rapariga mais nova do que ela, uma rapariga que acreditava que o
amor e a magia podiam alterar o mundo.
Olhou para as outras fotografias na página. Todas elas pareciam ter sido tiradas em
São Francisco, em meados dos anos 60. Uma delas parecia ser Irene como ela era nessa altura,
as rugas da idade apagadas, o cabelo branco de um tom vermelho flamejante.
Outra fotografia que lhe chamou a atenção era a de um homem e de uma mulher,
surpreendentemente cordatos, em comparação com as outras fotografias. Se Blackburn as
tinha tirado, devia conhecê-los, mas quem eram? Estudou a fotografia mais de perto,
parecendo-lhe ver alguma coisa vagamente familiar na imagem. O homem estava no início da
meia-idade, adivinhou Truth, e usava um casaco desportivo levemente antigo e calças. Parecia
vagamente escocês, de testa alta e quadrada e queixo firme. Mesmo na fotografia desbotada
os
seus olhos eram de um azul forte e a sua teimosia parecia ser parte essencial da sua
personalidade.
A mulher a seu lado era quase tão alta como ele, invulgarmente alta para uma
mulher, com olhos cinzentos e cabelo encaracolado e claro. Fazia lembrar Truth, embora as
duas mulheres não fossem nada parecidas, e a mulher na fotografia tivesse o tipo de cara que
é bondosa e não bonita. Usava um vestido asseado e um chapéu, em contraponto com as
roupas respeitáveis do homem. Ao fim de algum tempo, Truth conseguiu decifrar uma
legenda, escrita a lápis: “Colin e Claire, a oposição leal, Golden Gate Park, 1966.”
Colin MacLaren e Claire Moffat. Truth tinha vontade de retirar a fotografia e de levá-
la consigo, mas os seus instintos de investigadora impediram-na de fazê-lo. Aqui estava uma
prova de que o professor MacLaren tinha conhecido Thorne Blackburn.
“Mas também não é exatamente um crime de morte, pois não?”, pensou Truth, cada
vez mais excitada. “Será que Julian me deixa copiar algumas destas fotografias? Um livro
fica
melhor com fotografias. E se eu conseguisse uma entrevista com o professor MacLaren? Sei
que ele se reformou do instituto há vários anos. Onde estará ele agora? O Dylan deve
saber.”
Pensar em Dylan fê-la sentir estranhamente culpada, como se lhe tivesse causado
muito mal. Truth examinou a sua consciência escrupulosamente e não se lembrou de nada; era
verdade que não se tinham separado da melhor maneira, mas também não havia razão para
este peso na consciência.
“Transferência. É assim que os psiquiatras lhe chamam. Estamos preocupados com
alguma coisa e por isso fingimos que estamos preocupados com outra. Simples.”
Truth mordeu o lábio, pensando se deveria telefonar a Dylan de qualquer maneira.
“E dizer-lhe o quê?”
Suspirando, Truth voltou às fotografias. A maior parte das fotografias neste primeiro
livro estavam legendadas, mas nem todas. Havia uma fotografia de um autocarro de colégio,
com as palavras MYSTERY SCHOOLBUS pintadas no lado e um grupo de pessoas à frente,
entre elas Irene e Katherine. Katherine usava jeans à boca de sino e uma camisa de cambraia
atada por baixo dos seios e sorria radiosa para o fotógrafo. Thorne Blackburn. Sempre o
fotógrafo, nunca a imagem, como se ele escondesse os seus segredos até da película.
Folheou o álbum mais depressa, procurando sem sucesso uma fotografia de
Blackburn. Perto do fim, reparou no retrato de um homem com um fato de cowboy que
poderia vir diretamente de um show do Wild West se não fossem os símbolos alquimistas
bordados na sua camisa e as estrelas e luas pintadas nas suas Stetson pretas.
A nota por baixo da fotografia dizia apenas Tex Arcana, deixando Truth a pensar
quem ou o que seria. Ou teria sido.
Mas o passado guardava os seus segredos... Empurrou o primeiro álbum para o lado e
puxou outro para si.
Finalmente Blackburn.
Na primeira página havia uma fotografia de Katherine, cuja gravidez já ia adiantada,
ao lado de Thorne Blackburn, numa sala de estar anónima em qualquer lugar. Parecia quase
tímido, baixando a cabeça e virando-se como se não quisesse ser fotografado. E jovem neste
momento imortal, como apenas os que tinham comido as maçãs de Avalon o podiam ser.
Jovens para sempre.
Truth esperou pela indignação justificada que a visão de Blackburn lhe provocava
sempre, mas neste momento sentiu apenas uma dor cansativa. As pessoas naquelas fotografias
eram tão inocentes. Nunca ninguém fizera nada parecido com o que estavam a fazer; como
poderiam saber como iria terminar: em ruínas, em chamas, em mentiras e promessas
quebradas?
O próprio Blackburn teria realmente sabido?
Virou a página.
Truth teve de sorrir ao ver as fotografias dos acólitos de Blackburn com os seus fatos
sombrios; pareciam um cruzamento entre uma convenção de Odd Fellows e uma mostra de
The Rocky Horror Picture Show. Se queriam mostrar-se inspiradores ou intimidantes tinham
falhado miseravelmente. Tentou imaginar que aspecto pretendiam eles ter com aquelas
roupas.
Truth chegou ao fim do álbum e procurou nos outros três até encontrar um com
fotografias do tempo passado no México. O álbum tinha várias páginas em branco, vários
sítios onde tinham sido tiradas fotografias, deixando marcas de retângulos mais escuros. Por
que e quando?
Muitas fotografias tinham desbotado com o tempo, algumas delas já eram
indecifráveis, muitas eram criptogramas, imagens sem legenda de pessoas que ela não
conhecia. Mas outras eram mais acessíveis, contando a sua história através dos anos.
O MYSTERY SCHOOLBUS, agora danificado, servindo de pano de fundo a um
acampamento. Fotografias do México rural, tal como qualquer turista as poderia ter tirado.
Fotografias de Katherine e da tia Caroline com o cabelo escuro, de corte discreto, ao lado da
irmã gémea. Ambas as mulheres seguravam a mão de uma criança com fraldas com cerca de
um ano, apoiando os seus primeiros passos pouco firmes.
Apoiando a ela!
Truth tentou invocar uma reação interior às imagens que estava a ver. Algo no seu
íntimo lhe garantia que a criança nas fotografias era ela e que estas experiências faziam parte
da sua vida. Mas não sentia qualquer emoção; não podia haver fé, apenas convicção
intelectual. Tinha a sensação louca de uma adivinha cuja solução explicaria a sua vida e lhe
daria significado, mas a solução estava fora do seu alcance.
Truth abanou a cabeça. Não havia respostas no passado. A tia Caroline tinha-lhe dito
isso vezes sem conta. Mas a tia Caroline tinha-lhe dito isso por razões dela, percebeu Truth de
repente.
Há um período instável na vida da maior parte das crianças, quando têm que
reconhecer que aqueles que as educaram são humanos, falíveis e mortais como eles próprios.
Pela primeira vez Truth pensou, pensou realmente na tia Caroline como uma mulher da sua
idade ou mesmo mais nova e procurou imaginar como teria sido essa mulher. Tinha sido
amiga de Thorne Blackburn; as fotografias eram a prova final e talvez fizesse parte do seu
Círculo.
Tinha estado aqui em Shadow’s Gate na noite em que a irmã morrera e Blackburn
desaparecera. Desaparecera. Todas as notícias nos jornais tinham dito isso; a Polícia tinha-o
procurado durante semanas depois da morte de Katherine. Mas Blackburn tinha morrido. E
ido para onde?
Truth abanou a cabeça, como se a imaginação fosse um cavalo teimoso que se tivesse
recusado a saltar. Ela não sabia para onde ele tinha ido. E, ao mesmo tempo, lembrou-se do
que a tia Caroline tinha dito da última vez que Truth a vira.
“Os outros. Tens que procurar os outros.”
Virou as páginas devagar, franzindo o sobrolho, pensativa.
Que outros?
Tinha pensado na altura que a tia Caroline se referira aos outros membros do Círculo
da Verdade ou pelo menos às suas famílias. As histórias nos jornais chamavam a Shadow’s
Gate uma “comuna hippie” e referiam a presença de crianças, sem no entanto mencionarem
os seus nomes. E quaisquer “crianças” que tivessem estado aqui em 1969 teriam hoje a sua
idade ou seriam mais velhas; não precisariam ser encontradas.
Mas mesmo que fosse isso que a tia Caroline queria dizer, Julian parecia estar a tratar
disso ao juntar as pessoas aqui.
“É importante que saibas que não és a única. Desapontei os outros...”
A tia Caroline era uma mulher doente, estava a morrer, e muito medicada...
Truth deteve-se numa fotografia que tinha sido ampliada para cobrir a página inteira.
Ao contrário das outras, parecia estar colada, e os cantos estavam levantados. O cenário de
fundo era familiar: a fotografia tinha sido tirada no relvado da frente de Shadow’s Gate e
devia ter sido um profissional a fazê-lo, pois também se via Blackburn.
Vinte pessoas, que pareciam estranhamente uma classe de feiticeiros diplomados, com
os seus compridos mantos. O Círculo da Verdade de Blackburn. Descobriu Blackburn e Irene;
e ela própria, que com uma das mãos segurava a de Irene e com a outra agarrava um macaco
empalhado contra o peito; Katherine com um manto branco e Caroline ao lado com roupas
citadinas, segurando um bebé. Não era o bebé dela. Caroline nunca tinha tido filhos. E
também não era o da irmã. Truth estava noutro lado na fotografia.
Não apenas outros filhos; outros filhos de Blackburn. Era isso que a tia Caroline
queria dizer: que Truth Jourdemayne não era a única filha de Thorne Blackburn. Havia outros.
O lado direito da fotografia tinha sido rasgado, a extremidade ainda estava afiada e
branca. “Como se tivesse sido rasgada recentemente. Por que”
Embora Truth estudasse ansiosamente a imagem, não conseguiu localizar mais
crianças, além dela própria com dois anos e de um bebé com meses, mas a tia Caroline tinha
falado em “filhos”. Não apenas os filhos dos seguidores de Blackburn mencionados pelos
jornais, mas os meios-irmãos e meias-irmãs de Truth...
“Os outros. Tens que encontrar os outros.”
Era forte a tentação de imaginar filhos perdidos, mas esta fotografia tinha sido tirada
há vinte e seis anos; até o bebé seria agora uma jovem adulta.
“Ou um homem. Por que razão penso eu que é uma rapariguinha? Podia ser ambas
as coisas.”
Caroline Jourdemayne saberia.
Truth levantou-se, fechando o álbum. Havia um telefone no escritório de Julian. Ia
telefonar imediatamente à tia e fazer-lhe as perguntas e ouvir as respostas que temia. Tinha-
se afastado da mesa quando a porta se abriu.
— Bem. Calculei que havia de encontrá-la aqui — disse Fiona Cabot triunfantemente.
Mesmo à luz imperdoável do meio-dia Fiona Cabot não parecia velha, mas a luz do
sol mostrava as marcas da libertinagem e dos excessos por baixo da maquiagem
cuidadosamente aplicada. O seu cabelo, que devia mais à henna do que à natureza, caía-lhe
pelos ombros nus. O body que lhe punha os ombros a descoberto e os jeans de marca não
deixavam muito lugar à imaginação.
— Bom dia — respondeu Truth, desconfortavelmente consciente da figura
convencional e monótona que tinha ao lado da extravagância de Fiona.
— Descobriu alguns mexericos ultimamente? — ronronou Fiona, aproximando-se mais
da mesa sobre a qual estavam pousados os álbuns.
De uma forma irracional, Truth sentiu vontade de proteger as fotografias, embora
fosse verdade que Fiona tinha tanto direito como Truth, ou talvez mais, a utilizá-las. Fiona
abriu o livro mais próximo.
— Você era um bebé tão bonito — murmurou ela, querendo com isso inferir que Truth
não tinha correspondido ao que se esperava dela.
— Queria alguma coisa? — perguntou Truth com uma cortesia fria. Cada palavra era
pronunciada como o estalar gelado de um ramo a partir-se no inverno.
Fiona fechou o álbum com força e com um descuido que fez com que Truth se
retraísse intimamente.
— Só queria dizer-lhe uma coisa. Você pode chegar aqui ostentando o seu ilustre
parentesco e a pensar que Julian e o Círculo inteiro cairão em suas mãos, mas tal não
acontecerá.
Fiona tinha-se aproximado de Truth à medida que ia pronunciando cada palavra e
agora estava demasiado perto. Truth recuou, tendo uma visão inconsciente de qualquer coisa
magra e parecida com uma ratazana com compridos e afiados dentes.
— Sim, é isso mesmo — sussurrou Fiona. — Chegou tarde demais... os meus poderes
estão bem afinados e nunca terá tempo para saber aquilo que precisa. Julian merece uma
companheira verdadeira... e você nunca o será!
Os olhos verdes e flamejantes de Fiona olhavam para os de Truth e esta teve medo que
Fiona quisesse atacá-la fisicamente.
— Claro que também não acho que ela será uma torradeira, mas não penso que ela se
incomode muito com isso — disse uma voz masculina.
Truth contraiu-se, involuntariamente surpreendida, e Fiona deu um salto para trás,
voltando-se em direção ao som. Hereward Farrar estava encostado à porta, sorrindo
perigosamente para Fiona.
— Não tem importância — disse-lhe ele com uma compaixão falsa. — As ruivas
costumam ser ciumentas. É uma pena que a sua cor não seja natural — disse Hereward.
Fiona olhou para ele furiosa e depois para Truth, que observava o seu inadvertido
salvador com alívio. Fiona saiu da sala, abrindo a outra parte da porta com força e passando
por Hereward como se ele não estivesse lá.
— Tem tanto poder oculto como um filtro de café — confessou Hereward a Truth —
por isso não se preocupe. É difícil arranjar mulheres para o Trabalho, embora num certo
sentido nos tenhamos que conformar com o que temos — acrescentou ele. — A maior parte
das que se mostram interessadas não o faz por convicção, infelizmente.
— Suponho que não se passa o mesmo com os homens — comentou Truth
causticamente, ainda irritada com a conversa com Ellis naquela manhã. — Obrigada pela
intervenção oportuna, Hereward; Fiona parece ter algumas idéias erradas.
— Ela acha que tem uma espécie de direito sobre Julian. Ela é o seu Hierolator e isso é
tudo. A monogamia e a escravidão das mulheres através do casamento são coisas que não têm
lugar no Trabalho de Blackburn — acrescentou Hereward.
“De cada vez que começo a pensar que estas pessoas vão falar com sensatez, desatam
a dizer disparates.”
— Bem, obrigada, de qualquer maneira — disse Truth atrapalhada.
Depois do que se tinha passado com Ellis, de ter encontrado as fotografias e do
encontro com Fiona, Truth só queria ir-se embora e pensar.
— De nada — disse Hereward.
Houve outra pausa, como se Hereward estivesse à espera que ela lhe dissesse mais
alguma coisa. Mas não disse e ele encolheu os ombros, virou-se e saiu.
Truth resistiu à tentação de ver se as portas da biblioteca se podiam fechar à chave.
Acabou por encostar-se a elas durante um momento e sentiu o coração a bater como se
estivesse estado a correr.
“Controla-te. Eles não conseguem matar-te. Nem sequer te conseguem magoar”,
ralhou Truth consigo própria. Mas, de repente, sentiu uma necessidade súbita de se afastar,
uma necessidade que a forçou a sair da biblioteca, depois de ter espreitado através da porta
meia aberta para ver se não havia outros membros do Círculo de Julian à espera.
Chegou ao quarto sem dificuldade, lembrando-se apenas depois de ter chegado ao seu
refúgio que Shadow’s Gate podia pregar partidas desagradáveis a quem tentasse andar pelos
seus corredores. Fechou a porta e virou-se. Alguém tinha lá estado. A ansiedade que Truth
sentira láem baixo agravou-se. Correu até à cama e puxou o colchão para cima.
Venus Afflicted ainda lá estava.
Truth olhou para ele, percebendo que o clichê “tonta de alívio” era descrição realista.
Respirou fundo e empurrou o livro de magia mais para dentro, baixando depois o colchão. O
volume do livro quase não se notava quando Truth alisou a colcha de algodão com motivos
em relevo. O contrário do método de A Carta Roubada; enquanto ninguém se lembrasse de
procurá-lo estava seguro aqui.
Olhou à sua volta. O quarto não estava como o deixara. Agora a mala dela estava em
cima de um estrado e as roupas que deixara espalhadas estavam arrumadas lá dentro. Irene.
Devia ter sido. Não conseguia imaginar Fiona a fazer alguma coisa tão atenciosa e também
não achava, por outras razões, que fosse trabalho de qualquer dos homens que tinha
conhecido na noite passada.
Havia uma folha de papel dobrada em cima da coberta macia da cama, que tinha sido
feita. Truth pegou nela; era uma folha de bom papel, escrita a tinta preta em letra firme e
itálica.
Minha querida Truth, espero que tenha tido tempo para meditar sobre a coleção e a
companhia e para decidir que a primeira é valiosa e a segunda inofensiva. Não a encontrei
esta manhã e achei melhor deixar-lhe um bilhete do que interromper os seus estudos. Se
precisar de mim, estarei provavelmente no meu escritório. Espero falar consigo em breve.
Julian.
Truth mordeu o lábio, indecisa. Precisava falar com Julian sobre a utilização da
coleção. Precisava decidir se ia ficar aqui ou na cidade. Mas o pensamento de ficar aqui o
tempo suficiente para decidir ambas as coisas fez as suas mãos tremerem com a necessidade
de sair.
Mal conseguiu abafar um grito quando ouviu bater à porta.
— Truth? — chamou uma voz baixa. Michael.
Truth retraiu-se, com a recordação viva da última noite a percorrer-lhe a pele. Sentia-
se atraída por Michael, mas tal como a traça se sente atraída pela chama da vela e depois do
que Ellis lhe tinha contado esta manhã, não tinha a certeza de poder encará-lo sem deixar
escapar uma data de acusações malucas. Por isso não conseguia encarar ninguém neste
momento.
Ouviu-se novamente bater e ela ficou gelada no meio do quarto, rezando para que ele
não tentasse abrir a porta, que não estava fechada. Mas Michael Archangel era um cavalheiro,
e passado um momento ouviu os seus passos a afastarem-se.
Quando teve a certeza de que ele não ouvia, correu até à porta e fechou-a. Sentindo-se
mais segura; mas como podia Michael ameaçá-la? Truth respirou profundamente.
Precisava sair desta casa, onde todas estas personalidades fortes a abafavam. O que
parecera tão razoável na biblioteca iluminada pelo sol, parecia mais impossível neste
momento, porque não conseguia pensar em nenhuma razão explícita para o seu medo.
A voz na noite passada? Um sonho ou talvez um eco de qualquer lugar na casa. Fosse
uma coisa ou outra, não eram uma ameaça imediata.
Perder-se quando ia tomar o pequeno almoço? Mais interessante do que qualquer outra
coisa, na verdade. Sabia o suficiente, pelas conversas de Dylan, para saber que os “fantasmas”
se alimentavam das emoções das suas vítimas; se as pessoas não se envolvessem, um
fantasma não podia fazer mal.
Michael? Seria a expectativa de voltar a ver Michael que a fazia entrar em pânico?
Não. Sim. Não sabia. Tudo o que sabia era que precisava sair daqui desta casa antes
que alguma coisa horrível acontecesse.
Tinha que ir a Shadowkill.
Tinha que telefonar à tia.
Tinha que manter Venus Afflicted bem guardada.
Agarrando a carteira contra si como se fosse um bebé, Truth abriu a porta do quarto
com cuidado e olhou para fora ansiosamente.
CAPÍTULO SETE
A CANTIGA DA VERDADE
held it truth, with him who sings
To one clear harp in divers tones,
That men may rise on stepping-stones
Of their dead selves to higher things.7
ALFRED, LORD TENNYSON

Tais terrores tão assustadores pareciam pertencer a outro universo quando Truth
começou a descer o caminho de carro.
O sol do meio-dia brilhava nos bosques molhados pela chuva, e Shadow’s Gate
parecia tão inofensivo e sonolento como o castelo da Bela Adormecida num parque de
diversões da Califórnia.
Não tinha encontrado ninguém ao sair de casa. Ninguém a obrigou a parar junto da
casa do portão e de fato os portões de ferro estavam abertos, por isso nem sequer teve de parar
para os abrir. Depois de ter atravessado Old Patent Grand Road, tomando a County 13 em
direção a Shadowkill, a ansiedade foi desaparecendo como um sonho mau.
Ainda não sabia porque achava que era tão necessário esconder o livro de magia, mas
era a única coisa de que tinha a certeza. Possivelmente, Blackburn não tinha sido inteiramente
uma fraude criminal Truth não queria comprometer-se quanto a isso, mas mesmo que se
acreditasse que todas as suas pretensões eram verdadeiras, deveria dar-se aos simples mortais
o poder de atacar os portões celestiais? Ou pensar que o poderiam fazer?
Tentou imaginar Gareth a usar as roupas fantásticas dos rituais que ela tinha visto nas
fotografias, mas aí a imaginação falhou. Gareth parecia demasiado normal.
“Mas aí é que está. As pessoas normais sentem-se apanhadas neste mundo de sonho
mágico. Por que?” Não encontrou resposta para esta pergunta e entretanto chegou à aldeia de
Shadowkill. A pequena cidade do rio Hudson brilhava no ar claro de outono e Truth, já calma,
decidiu tratar das suas tarefas por ordem, dirigindo-se à pensão onde deveria ter ficado na
véspera.
— Ah... olá. Você é dos seguros? — A mulher que tinha vindo à porta usava uma
sweatshirt com nódoas e calças igualmente imundas e trazia numa mão um esfregão e uma
esponja na outra. Parecia aflita.
— Não. Eu sou Truth Jourdemayne. Senhora Lindholm?
— Oh, meu Deus! — disse Mary Lindholm. Hesitou, mordendo o lábio. — Bem,
entre. Mantivera a porta aberta.
Truth entrou para o foyer e percebeu instantaneamente o que estava por trás da
relutância da senhora Lindholm.
— O que... aconteceu? — disse ela admirada.

7
Realizou-o na verdade, com quem ele canta / Para tocar uma harpa em tons profundos / Que os homens no0
poder sobem os degraus de pedra, / De seus mortos, salvos para coisas maiores. (N. da T.)
— Diga antes: o que não aconteceu? — disse a senhora Lindholm amargamente. —
Uma parte do telhado voou, a caldeira da água explodiu, os canos rebentaram... só Deus sabe
porque, nesta altura do ano... e... bem, veja por si. — Fez um gesto largo. — Foi bom não ter
estado cá ontem à noite. Podia ter-se afogado.
As paredes tinham marcas de água como se tivesse havido uma grande inundação. O
papel da parede estava amarrotado e dobrado, obviamente encharcado, e o teto molhado tinha
rachadelas e parecia preste a ceder.
— Por isso, se quiser o seu quarto... — disse a senhora Lindholm desamparadamente.
— Não — disse Truth. — De fato vim para pedir desculpa por não ter aparecido, mas
uns amigos convidaram-me para lá ficar e...
Ouviu-se a ela própria a dizer em voz alta esta meia verdade plausível com uma
espécie de espanto desinteressado. Não tinha vindo aqui para dizer nada daquilo. E embora,
depois de ver os estragos causados pela água em casa de Mary Lindholm, soubesse que não
podia ficar ali, talvez fosse possível encontrar outra pensão na região ou mesmo um hotel.
A senhora Lindholm sorriu-lhe cansada.
— Bem vistas as coisas, ainda bem que não apareceu ontem à noite. E se por acaso
encontrar um mediador de seguros, mande-o até cá, está bem?
— Com certeza — disse Truth, — despedindo-se da senhora Lindholm com gratidão.
Só depois de estar no carro e de se afastar é que se lembrou do sonho na noite anterior:
“Venha Ondina, criatura da água e príncipe dos elementos...”
“Coincidência”, disse Truth para consigo com firmeza. “Estava a chover lá fora; por
que razão não sonhar com a chuva?” O sentimento, levemente maçador, de que tinha que
haver uma ligação entre o sonho dela e as circunstâncias na pensão de Mary Lindholm foi
fácil de afastar. A ciência acredita nas coincidências.
Parou o carro num parque público no centro da cidade e partiu a pé. Sentiu com
agrado o sol do outubro, exageradamente forte, nos seus ombros e as lojas de ambos os lados,
alegremente enfeitadas, eram um repouso bem-vindo para os problemas que a afligiam.
Um roncar no seu estômago lembrou-a de que o café e o pão às onze horas não tinham
sido pequeno almoço suficiente.
Truth parou num restaurante de comida pronta e comprou uma salada e um café.
Sentada numa das mesas da esplanada, viu um sinal verde e branco que lhe indicou qual teria
que ser o passo seguinte.
A biblioteca pública de Shadowkill ficava num edifício construído na viragem do
século e que tinha grandiosos ornamentos arquitetónicos, comuns a edifícios públicos daquele
período. Uma vez que Shadowkill era um município rico, a sua biblioteca não sofreu a
mesquinhez de espaço e conteúdo vulgares noutras bibliotecas; via-se uma ala moderna em
pedra calcária lá para trás e o interior do edifício mais antigo estava muito bem mantido.
— Desculpe, há um telefone público aqui? — perguntou Truth à bibliotecária no
balcão de informações.
A bibliotecária indicou-o e Truth dirigiu-se para uma saleta onde se via um conjunto
de telefones públicos. Demorou vários minutos a entender-se com a carteira, o porta-moedas e
o cartão antes que conseguisse fazer a chamada.
— Olá, daqui fala a Janine — disse uma voz alegre que não conhecia.
— Desculpe, devo ter marcado o número errado — disse Truth.
— Queria falar com Caroline Jourdemayne? — perguntou a voz cuidadosamente.
Truth teve a sensação de estar a cair.
— Sim.
— Ela está a dormir agora — disse Janine. Truth respirou aliviada. — Se quiser voltar
a telefonar depois das quatro, ela já deve estar acordada. Sou Janine Vaughan, a enfermeira da
senhora Jourdemayne.
— Sou Truth Jourdemayne — disse Truth. — Ela está...
— Ah, é a sobrinha! — disse Janine excitada.
Truth sentiu que não era normal uma pessoa ficar tão contente com tudo, mas
provavelmente era um mecanismo de defesa por estar a trabalhar sempre com doentes
terminais.
— Como está ela? — perguntou Truth.
— Na mesma — disse Janine, baixando o tom de voz. — Ela ainda está bastante ativa.
O dr. Vandermeyer acha que por enquanto não é preciso mudá-la para o hospital.
— Isso é bom — disse Truth. Que mais havia para dizer? — Eu telefono mais tarde.
— Digo-lhe que falou? — perguntou Janine animada.
— Não — disse Truth. — Não quero que ela se preocupe quando está tudo a correr
bem. Eu telefono-lhe outra vez.
— Depois das quatro — disse Janine.
Truth pousou o telefone e encaminhou-se devagar para o balcão de informações.
O seu primeiro impulso tinha sido correr até à tia Caroline e pedir-lhe informações,
mas agora via que tinha que pensar cuidadosamente antes de agir sob impulso. A tia Caroline
estava frágil, a morrer; o seu cérebro provavelmente estava confuso devido às drogas. Truth
teria que formular quaisquer perguntas que quisesse fazer de forma a não perturbar a tia
Caroline.
“Como, não sabia”, pensou Truth com um certo humor negro. Qual seria a maneira
hábil de falar sobre o número e lugar onde se encontravam agora os filhos bastardos de
Thorne Blackburn?
— Desculpe — disse Truth, dirigindo-se novamente à mulher simpática na secretária.
— Existe alguma coleção sobre a história local?
Minutos mais tarde, Truth estava sentada a uma pequena mesa, numa grande sala no
segundo andar da biblioteca. A seu lado, uma pilha de pastas cheias de recortes de jornais
poeirentos.
— É tudo o que temos nas pastas de recortes sobre Thorne Blackburn e Shadow’s
Gate. Não misture as pastas — disse-lhe a bibliotecária de história local, Laurel Villanova.
— Não o farei — prometeu Truth. — Só mais uma coisa. Será que tem alguma coisa
sobre... — puxou pela memória para se lembrar do nome — sobre a antiga concessão de
patente a Elkanah Sheidow?
— Ah, você quer material sobre a história antiga! — Laurel desfranziu a testa. — Acho
que há alguns livros na coleção que está guardada. Deixe-me ir verificar.
Laurel saiu. Truth folheou o ficheiro sobre a vida de Blackburn, como tinha sido
relatada por The Shadowkill Times-Reporter, The Poughkeepsie Journal, The Albany Times e
outros jornais locais. Não havia muita coisa que não tivesse visto antes: Blackburn tinha
vivido em Shadowkill durante cerca de dezoito meses, lutando constantemente com a junta
administrativa da cidade e tendo escaramuças menores com o departamento do xerife de
Dutchess County.
Colocou o maço de recortes sobre a morte da sua mãe novamente na pasta, sem os ler.
Talvez encontrasse aí mais coisas sobre os filhos de Blackburn, mas teria tempo suficiente
para encará-los mais tarde. Afinal de contas, já esperara mais de um quarto de século.
A segunda pasta, sobre Shadow’s Gate em si, era mais interessante. Os recortes mais
antigos eram castanho-escuros e quase se desfaziam quando lhes tocou. O jornal chamara-se
The Shadowkill Times Eagle e o primeiro recorte na pasta datava de 1934.
— Aqui tem — disse Laurel, voltando com três livros.
— Acho que encontrará aqui o que precisa.
— Obrigada — disse Truth, entregando-lhe a pasta sobre Blackburn.
Instalou-se com a pasta que sobrara e os livros e começou a ler, tomando notas.
Algumas horas depois, Truth parou de tomar notas, tentando aliviar as cãibras nos
ombros tensos e nas costas. Tinha encontrado o que esperava subconscientemente e pensou no
que deveria fazer a seguir. A casa chamada Shadow’s Gate, na qual tinha ficado na noite
anterior, tinha sido construída, tal como imaginara, num estilo vitoriano excessivamente
gótico, em 1882 o mesmo ano do tiroteio no O.K. Corral, o que significava o fim do Wild
West. Era o quarto edifício a ser construído no local, sendo o primeiro a própria casa e posto
de comércio de Sheidow (1648), do qual havia apenas gravuras, que mostravam uma típica
casa fronteiriça holandesa do século XVII, construída com argamassa e pedra local e de
pequena dimensão, com um telhado baixo e janelas estreitas.
A segunda casa no local do gehucht de Sheidow, ou aldeia, tinha sido construída em
1714 e sobrevivera apenas em fotografias os ingleses tinham-na queimado durante a Guerra
de Independência, cerca de 1770.
Não encontrou nenhum registro do edifício que deve ter ocupado o local durante parte
dos cem anos seguintes.
Teria sido fácil rejeitar as fontes que falavam do presente edifício como a quarta casa e
não a terceira, mas havia tantas... e se realmente não tivesse existido aqui nenhuma casa há
mais de um século, porque seria que cada fonte sobre a casa de 1882 falava dela como uma
reconstrução de Shadow’s Gate? Seguramente o nome não teria sobrevivido durante tanto
tempo, ligado a um campo vazio?
E, por falar nisso, quando teria o nome da antiga cidade sido anglicizado e transferido
para a casa? Os Sheidow, nome que se escrevia de várias maneiras tinham certamente ficado
na região. De fato, os Schydows, Skydoes, Cheidows, Cheddowes, Shaddows e Shatterses
nomes escolhidos da genealogia de Sheidowkill que a bibliotecária tinha trazido ainda
enchiam várias colunas da lista telefônica local e continuavam a ter presença ativa nos
negócios regionais.
Truth extraíra a maior parte das informações de um livro: A History of the Early Days
of Scheidow’s Kill, escrito por Matthew Cheddow. um descendente; tratava-se duma edição
de autor, de 1923. Naquela altura Matthew vivia em Shadow’s Gate e, num estilo incoerente
de historiador amador, tinha incluído um capítulo sobre a sua casa. Voltou atrás e olhou para
ele novamente. Sim, lá estava:
Incorporando o que podia dos alicerces primitivos, o construtor começou a trabalhar
neste edifício, a quarta casa a enfeitar o bonito lugar rural do Antepassado Sheidow em
1878.
Examinou cuidadosamente mais alguns parágrafos e encontrou mais uma coisa:
O rio subterrâneo, cuja nascente tinha sido tão benéfica para os primeiros
colonosmas cujas águas ctonianas se tinham mostrado tão problemáticas para os
construtores anteriores, foi isolado cuidadosamente por uma cave antes que se começasse
novamente a construir no local primitivo de Elkanah Scheidow. A nascente foi incorporada
no desenho da casa.
“Como?”, pensou Truth. Voltou a consultar a sua outra fonte: Hudson Colonial Days,
With a Brief History on the Scheidow and von Rosenroth Patent Grants, olhando novamente
para o mapa primitivo daquela área. Sim, havia uma nascente indicada, quase no local onde se
encontrava a casa moderna. Cada casa tinha sido construída perto ou por cima daquela
nascente.
O que significava que Shadow’s Gate fora construída sobre um rio subterrâneo. Ora os
investigadores parapsicológicos tinham começado recentemente a descobrir que a maior parte
das manifestações psíquicas envolviam fenómenos magnéticos, desde a procura da água com
uma varinha, que parecia estar relacionada com a capacidade de sentir alterações mínimas no
campo magnético da Terra, à atividade psicocinética, ou poltergeist, que gerava um campo
magnético suficientemente forte para fazer parar relógios e desgravar cassetes, ou mesmo
atirar cadeiras e pratos ao ar. Dylan até dizia que se podia magnetizar fantasmas, embora
Truth não fizesse nenhuma ideia de como testar semelhante hipótese.
Mas sabia que, numa proporção significativa de todos os casos de casas assombradas,
veio a descobrir-se que as casas tinham sido construídas sobre rios subterrâneos, nascentes ou
poços cobertos. Havia qualquer coisa na água que, ou libertava as forças do sexto sentido ou
enlouquecia as pessoas. Truth não tinha a certeza. Mas achava que tinha a resposta para uma
parte do mistério de Thorne Blackburn.
Não se tratava de ele ser um grande mágico com os poderes ocultos que afirmava ter.
Tratava-se de ter comprado uma casa assombrada. Não era hipótese que se recomendasse a
toda a gente, pensou Truth, mas a parapsicologia era o seu campo e ela preferia passar o
tempo a analisar atividades paranormais do que...
“Invocar Ondinas, os génios da água?”
Truth afastou este pensamento. Talvez Julian estivesse a fazer exatamente isso; em
Venus Afflicted, como ela sabia, os primeiros quatro dos dez rituais eram chamados
“Coroação dos Génios dos Elementos”, mas mesmo que ele tivesse feito esse ritual, isso não
significava que um génio tivesse realmente destruído a casa de Mary Lindholm.
“Mas foi muitíssimo conveniente, não foi? Porque agora vais ter de aceitar a
generosa oferta de Julian e ficar em Shadow’s Gate.”
Era ridículo.
Não tinha que fazê-lo.
Queria fazê-lo.
Truth separou as notas dos livros e recortes e foi ao encontro da bibliotecária.
Laurel Villanova folheava cuidadosamente uma edição do Times Eagle quando Truth
se aproximou.
— Já acabou? — perguntou ela.
— Por hoje — disse Truth. — Talvez queira este material novamente durante a
semana.
— Então eu guardo-o — prometeu a bibliotecária. — Precisa de mais alguma coisa?
— Eu informo-a — disse Truth. — Na verdade, nem eu própria sei.
— Bem, se puder ser-lhe útil nalguma coisa, peça-me — disse Laurel, levantando-se
para acompanhar Truth até à porta do escritório.
Truth percebeu que só tinha uma vaga ideia das horas, enquanto estava nas escadas da
biblioteca. Embora faltasse muito para o pôr do sol, o ar tinha um claro e cristalino prenúncio
de crepúsculo. Indecisa, enfiou na carteira os seus apontamentos e dirigiu-se para o carro num
passo rápido, tão desejosa de voltar para Shadow’s Gate como anteriormente sentira vontade
de sair de lá. Julian devia pensar que ela tinha desaparecido da face da terra.
Recuperou o carro sem muito trabalho; era estúpido realmente ir de carro quando o
centro da cidade ficava a duas milhas, no máximo, da casa. Da próxima vez já sabia.
Passou pela casa dos portões Gareth acenou-lhe e subiu até à casa. Estacionou o carro
junto a uma carrinha Volvo branca e a um BMW preto, que suspeitou pertencer a Julian, e
fechou o Saturno cuidadosamente antes de subir as escadas a correr. Num impulso, tentou
abrir a porta antes de tocar a campainha e viu que não estava fechada. Entrou.
— Truth, queria dar-lhe uma palavra!
Michael. Com o som da voz dele, todo o peso psíquico da casa se abateu novamente
sobre ela e a serenidade que a tarde em Shadowkill lhe tinha dado desapareceu num acesso
nervoso de apreensão.
Voltou-se. Michael Archangel estava no hall, grave e frio e tão formal como ela
sempre o tinha visto, mas mais uma vez teve uma rápida e terrível visão de uma pantera
acorrentada por relâmpagos.
— Certamente. — Que mais poderia dizer? “Por falar nisso, ouvi dizer que você é um
membro da Inquisição. Tem utilizado ultimamente aquele instrumento de tortura para
apertar os polegares?” Ele pensaria que ela tinha perdido o juízo.
— Por que não vamos até ao jardim? — perguntou Michael.
Fê-la sair por uma porta lateral que dava para um terraço minúsculo enfiado num
canto da casa. Tinha um banco, uma mesa e cadeiras e parecia ser um lugar maravilhoso para
se estar quando o tempo estivesse mais quente, mas agora estava à sombra e Truth tremeu um
pouco.
— Ao sol estará mais quente — prometeu Michael, guiando-a pelas escadas.
Aqui, mesmo atrás da casa, alguma coisa restava dos antigos jardins que cercavam o
quarto Shadow’s Gate no seu apogeu. Caminhos pavimentados com lajes, ladeados por
arbustos de rosas e canteiros de flores que se preparavam para dormir o seu sono anual. À
direita, do outro lado de um relvado perfeito, limpo dos detritos da tempestade, a severa forma
geométrica que Truth sabia, graças às suas pesquisas, ser um labirinto, com buxos a formarem
uma parede suave e verde-escura. Um dos caminhos ia nessa direção e Michael seguiu-o.
— Parece estar mais reconciliada conosco do que ontem à noite — disse Michael.
— Ah, sim? — disse Truth. “É possível que a intimidade acabe por dar lugar ao
desprezo”, pensou ela.
— Julian diz que você é uma cientista. Uma parapsicóloga. — Michael enrolou a
palavra na boca como se nunca a tivesse ouvido antes.
— Sou especializada em parapsicologia estatística; poder-se-ia dizer que me
especializei em aprender a ver o que lá está. E nada mais.
— E no entanto aqueles que são mais rigorosos no seu exame ao mundo físico perdem
muito: a beleza de um poema, a cantiga de uma cotovia...
— Se eu conseguir arquivar o poema e gravar a cotovia, contento-me em não os
apreciar — disse Truth friamente. — O meu campo são fatos. Há quanto tempo conhece
Julian? — perguntou ela, preparando o ataque.
— Há uns tempos — disse Michael tranquilamente. — Ele conseguiu muita coisa em
muito pouco tempo; e quer fazer mais. É um homem de grande poder.
— Poder oculto? — perguntou Truth, buscando um caminho para dirigir as perguntas
a Michael.
— Por que deveria eu louvá-lo de acordo com os padrões de um sistema em que você
não acredita? — disse Michael a sorrir.
— Mas no qual você acredita? — perguntou Truth.
Michael sorriu.
— Se eu dissesse que sim, você não levaria em conta nada do que eu tenho a dizer.
— Que é? — A pergunta quase chegou a ser malcriada e Truth arrependeu-se de a ter
feito, pois a última coisa que queria era mais uma rodada de mantos rituais e de punhais
sagrados.
— Muitas vezes sentimo-nos determinados a saber coisas, quando não saber nada seria
o curso mais sensato e mais feliz... não para nós próprios, mas para os que nos rodeiam —
começou Michael. — Não é que aprender em si seja errado, mas...
— Mas há coisas que o homem não deve saber? — perguntou Truth.
— Você daria uma arma carregada a um bebé? — disse Michael calmamente.
Truth ficou a matutar nessa imagem e Michael continuou.
— Não. Ninguém daria. Mas um adulto pode manejar uma arma com segurança,
embora o potencial para o abuso e desgraça ainda seja enorme. Se eu lhe disser que há coisas
que existem, que existiram desde a criação do mundo, coisas que o homem poderá um dia
dominar, mas para as quais ainda não possui sabedoria suficiente...
— Não acho que você, ou qualquer outra pessoa, tenha o direito de definir aquilo que
pode ser estudado e o que não pode. Não há nada que não possa ser estudado.
Michael sorriu.
— Fala a voz da Ciência.
Tinham chegado perto do labirinto. Truth parou e olhou para trás em direção à casa,
mas se alguém os estava a observar de uma das janelas, ela não conseguia vê-lo.
— Não acho que a felicidade seja mais importante do que o conhecimento. E eu não
acredito na magia — disse Truth de uma forma direta.
— Se você não acredita em magia, no sobrenatural, como pode acreditar no mal? —
perguntou Michael, que estava atrás dela.
Shadow’s Gate lançava longas faixas oblíquas de sombra através do relvado. Truth
respirou fundo e contou até dez antes de falar. Como podia uma viagem de cinco quilômetros
no carro dela alterar-lhe tanto a maneira de sentir? Em breve estaria a ver fantasmas e fadas.
— Eu não quero menosprezar as suas crenças — disse ela, virando-se para encarar
Michael — mas pela minha cartilha, a única maldade no mundo é a que as pessoas fazem a
outras pessoas e não há nada de sobrenatural nisso. Não existe essa coisa da magia, existem
apenas leis naturais que nós ainda não entendemos bem.
— E se eu lhe dissesse que tal coisa, a magia, existe fora das suas leis?
— Então, desculpe, mas teria que lhe dizer “passe muito bem”. Não partilho as suas
crenças.
— Então você vai ficar para aprender o que seria melhor ignorar. Pois digo-lhe isto
com verdade: se a magia é maldade, existe maldade aqui. E sofrimento.
Truth abriu a boca e fechou-a com firmeza.
— Agora tenho que ir. Espero vê-lo ao jantar, Michael? — disse ela com uma
diplomacia propositada.
— Claro — disse ele com grave amabilidade.
Ela virou-se para voltar para casa.
— Truth?
Ela parou.
— Tenha um bom dia — disse Michael sem ponta de humor.
Truth chegou a casa alguns minutos mais tarde num estado de fúria que os seus
colegas no Instituto Bidney tinham há muito tempo aprendido a reconhecer e a evitar. Como
se atrevia ele a fazer troça dela? Convencê-la, forçá-la a ouvir uma conversa estúpida sobre
mística psíquica, um chorrilho de clichês demasiado vulgares até para filmes de série B e
depois, quando ela tinha tentado ser simpática, alterara as suas próprias palavras e usara-as
para zombar dela! Ela não permitiria isso; como ousava ele...
Subiu as escadas com ímpeto e girou furiosa o puxador da porta do terraço. Esta abriu-
se e ela entrou em casa, pouco faltando para atirar com a porta atrás dela.
Ele ia arrepender-se. Estaria ele a tentar que ela saísse de Shadow’s Gate? Pois ela ia
ficar por muito tempo. Havia coisas que o homem não devia saber? Pois era isso mesmo que
ela ia investigar. Então não se devia dar a um bebé uma pistola carregada? Ela dar-lhe-ia uma
bazuca. Ela...
— Truth, então está aí — disse Julian cordialmente. Atravessou o foyer e segurou-lhe
ambas as mãos. — Está tão corada.
— Esteve a correr?
A sua arrogância encolerizada desfez-se como uma bola de sabão ao sentir o toque
quente das mãos de Julian e, por um momento, ficou tonta com a rapidez da mudança. O que
tinha estado a pensar?
Ou a pergunta seria, antes, quem tinha estado a pensar?
— Andei apenas às voltas — disse ela a Julian com um sorriso espontâneo. — Tenho
pena de não o ter encontrado mais cedo, mas tive que ir à cidade e acabei de chegar.
— Então vai cá ficar? — perguntou Julian. Ele ainda estava a segurar as mãos dela,
mexendo levemente os dedos, acariciando-lhe os pulsos.
“Não!”gritou Truth mentalmente. Não quando alguma coisa nesta casa parecia torná-
la uma louca de cada vez que passava a soleira da porta!
— Bem, de fato, ia perguntar-lhe se podia... se a oferta ainda estava de pé — disse
Truth. — Sei que é...
— Maravilhoso — terminou Julian com firmeza. — Os outros ficarão encantados...
especialmente Fiona. Ela disse-me há pouco que gostava muito de si.
“Imagino”, pensou Truth. Mas tinha tomado uma decisão. E mesmo que não fosse a
que ela queria, agora se sentia curiosamente relutante em mudar de ideias.
— Então é ótimo! Vou passar a próxima semana, provavelmente o próximo mês... a
ver o que você tem sobre Blackburn e a ordenar as minhas notas. Bolas, devia ter trazido o
meu computador.
— Lamento, mas acho que aqui não funcionaria muito bem — disse Julian. — O
fornecimento de energia, como eu lhe disse, é muito irregular, e as pilhas são inúteis porque
perdem muito rapidamente a carga. Posso emprestar-lhe uma máquina de escrever manual, se
quiser, e temos uma fotocopiadora; pode fazer cópias do que quiser, desde que haja
eletricidade.
Ele ainda estava a segurar as mãos dela e uma tensão de um outro tipo crescia dentro
dela, afastando a confusão e raiva para dar lugar a uma emoção mais quente e terra-a-terra.
Os seus dedos dobraram-se nos de Julian e de repente sentiu-se tímida.
— Ótimo — disse Truth.
Tinha tomado notas à mão na escola e não seria muito difícil fazê-lo novamente por
uns tempos. Pediria a Meg para lhe mandar o computador na mesma.
— E fique o tempo que quiser — continuou Julian afetuosamente. — Você não deve
ter deixado de reparar que os meus... recursos... são inestimáveis. Teria muito gosto em ajudá-
la no seu trabalho.
— Obrigada — disse Truth. Hesitou, libertando com relutância a suas mãos das dele.
— Julian, você sabe que eu não sou... que eu não acredito nas coisas que você faz sobre a
natureza da realidade. Não tenciono fazer cedências na minha coerência. Vou escrever sobre o
que eu descobrir sobre Blackburn... mesmo que não seja muito lisonjeador.
O sorriso de Julian tornou-se ainda mais afetuoso. Pôs um braço à volta dos ombros de
Truth e começou a andar em direção às escadas.
— Publique e maldita seja, como disse Wellington. Ou será que “diga a verdade e
envergonhe o diabo” seria mais apropriado? Nem Thorne nem eu temos a temer da pura
verdade. E nunca acreditei que a cura para os males do mundo fosse esconder as suas falhas.
Truth respirou, profundamente aliviada. Embora Julian fosse um crente sincero,
parecia que estava disposto a deixar os outros terem as suas próprias crenças.
— Há alguma coisa que lhe possa ir buscar neste momento? — perguntou ele.
Um pouco tarde, Truth lembrou-se da sua intenção de falar à tia Caroline.
— Há algum telefone que eu possa usar? — perguntou ela.
— Por aqui. Infelizmente, o único telefone está aqui. Já pedi à companhia extensões ou
linhas adicionais, mas, tanto quanto consegui entender, teriam de levantar o chão e furar as
paredes para as colocarem — disse Julian, precedendo-a até ao escritório. Dirigiu-se à
secretária, levantou o auscultador e escutou. — E, como pode ver, quase não vale a pena —
disse ele com tristeza, oferecendo-lhe o auscultador.
Truth pegou no auscultador e colocou-o junto ao ouvido. Nada. Aproximou-se e
mexeu no botão de ligação. Nada.
— Está desligado — disse ela, meia desconfiada.
— Acontece muitas vezes depois de uma tempestade — disse Julian. — Vou mandar
Caradoc a Shadowkill amanhã de manhã, se ainda não estiver ligado, mas a companhia dos
telefones é bastante eficiente a consertar as avarias. — Encolheu os ombros. — Posso levá-la
até lá agora, se quiser. Era um telefonema importante?
— Não, não era — disse Truth, hesitando. Colocou o auscultador novamente no lugar.
— Tentarei amanhã.
— Então está bem. Olhe, Truth...
Truth olhou para ele, alertada pelo som da sua voz.
— Sei que não acredita no Trabalho de Blackburn (e, acredite em mim, não tenho
qualquer intenção de converter pessoas), mas sei que você deve ser uma observadora treinada.
Já alguma vez teve uma experiência a trabalhar com médiuns? — perguntou Julian.
— Um pouco — admitiu Truth.
— Bem, esta noite os outros estarão ocupados com exercícios de meditação. É um dia
de jejum para os practicuses (as pessoas ao nível de principiantes, digamos assim), mas
qualquer um na posição de adeptus minor ou acima está isento, o que de momento apenas se
aplica a mim, a Irene e a Light e, claro, a si e ao Michael, que não aderem aos nossos
preceitos. De qualquer maneira, pensei em hipnotizar Light e experimentá-la com um pouco
de psicometria. Teria muito prazer se você quisesse assistir.
— Hipnose? — perguntou Truth, duvidosa.
A psicometria era a tentativa de descobrir informações sobre um objeto, ou o seu
dono, através de meios psíquicos, mas o instituto nunca tinha conseguido desenvolver um
teste que não excluísse a possibilidade de simples telepatia em vez disso.
Julian sorriu-lhe afetadamente.
— Não se preocupe. Sou um hipnoterapeuta licenciado. O hipnotismo pode ser, se não
perigoso, pelo menos duvidoso nas mãos erradas, mas eu nunca faria nada que pudesse
prejudicar Light.
— Não, sei que não — disse Truth. — E eu... eu gostaria de assistir ao seu ritual —
acrescentou ela timidamente.
— Não é um ritual, Truth — corrigiu-a Julian com suavidade. — Os nossos rituais
envolvem magia e não gostaria de a expor a eles sem estar preparada, tal como não pediria a
um idiota da aldeia para hipnotizar Light. Hoje à noite trata-se apenas de um exercício,
digamos assim. Do tipo experimental.
O jantar foi muito menos elaborado e formal do que o da noite anterior e, estando
apenas Light, Michael, Julian e Irene presentes, Truth teve a hipótese de passar mais tempo
com Light.
Na noite anterior a rapariga parecia quase pobre de espírito, falando sobre visões no
bosque. Hoje parecia apenas tímida, comendo a sopa e pondo manteiga no pão com a destreza
dos cegos, embora Truth soubesse que ela via muito bem. Era quase como se visse o que não
estava presente ou talvez, para ser mais precisa, mais do que o que estava ali.
— Deve ser muito interessante ir para a universidade e conhecer pessoas vindas de
todos os lados — disse Light a Truth com suavidade.
— Não freqüentou a universidade? — perguntou Truth surpreendida.
Para seu desgosto, Light corou, e o rosado marcou visivelmente a sua face pálida.
— Não — disse Light com mais brandura ainda. — Nunca andei na escola.
— Mas... — disse Truth hesitante.
— Há outras formas de aprender sem ir à escola — disse Michael, discordando da
leve repreensão. — Se se souber ler, não há sabedoria que não se possa apreender através das
páginas de um livro.
Light apelou para Truth com um olhar e Truth pensou naquele momento se Light
saberia ler.
— E se não se souber ler — disse Truth, certificando-se de que estava a dizer uma
graça — pode-se começar por aprender e estudar tudo o resto através do correio.
Light pareceu aliviada, mas foi o sorriso caloroso de aprovação de Julian que Truth
mais apreciou. Durante o êxodo a seguir ao jantar, puxou Julian de lado para lhe fazer
perguntas.
— Light sabe ler? — perguntou Truth sem preâmbulos.
— Na realidade — respondeu Julian — não tenho certeza. No entanto, tem uma
memória auditiva espantosa. Lembrar-se-á sempre de qualquer coisa que tenha ouvido uma
vez. Mas não reage nada bem a perguntas diretas... como tenho a certeza que descobrirá.
— Onde a encontrou? — atreveu-se Truth a perguntar.
— Num lugar do qual é melhor estar afastada. Chame-lhe sensibilidade psíquica se
quiser ou disfarce-o com a complicada linguagem psiquiátrica: o fato é que Light é... frágil.
Há seis meses atrás não conseguia estar na companhia de tantas pessoas como ontem à noite,
mas acho que ela também se sente sozinha. Claro, isso também se deve ao fato de ver o
mundo de uma maneira diferente das outras pessoas. Ela parece gostar de si e espero que seja
gentil com ela.
— É fácil ser-se simpática com Light — disse Truth com honestidade; e era verdade,
embora achasse a sua simpatia pela espírita de cabelos prateados um tanto perturbadora.
Lenta a amar e lenta a confiar, Truth tinha sido sempre muito controlada. Sempre
tentara não precisar de ninguém, na incerteza de não ser capaz de retribuir o afeto dos outros.
Agora que isso parecia estar a mudar, Truth sentiu que tudo na sua vida estava a mudar ao
mesmo tempo.
— Bom — disse Julian. — Agora, se quiser vir comigo, vou-lhe mostrar uma coisa que
poucos viram. Em 1969, depois da morte de Katherine Jourdemayne e do desaparecimento de
Thorne Blackburn, as excentricidades de Blackburn foram mais publicitadas do que teria
desejado. Houve fotografias de Shadow’s Gate por todas as primeiras páginas dos jornais
norte-americanos e o Times chegou a publicar um artigo, nessa semana. Mas apesar de toda
essa publicidade, o local exato do homicídio nunca tinha sido fotografado; pelo menos não
havia fotografias que tivessem sobrevivido.
Julian levou Truth através de um corredor estreito, com muitas escadas para cima e
para baixo, até que pararam frente a um par de altas portas de carvalho pelas quais Truth se
lembrava de terem passado durante a volta à casa no dia anterior.
Ornamentadas no estilo da época, ambas as portas e as respectivas ombreiras tinham
motivos de folhas de acanto e tanto as ferragens da fechadura como os puxadores tinham um
sol com raios ondulados em relevo.
— Onde estamos nós? — perguntou Truth, confusa.
— Este é o verdadeiro centro da casa. De fora não se vê; é uma astúcia de arquitetura
trompe l’oeil, mas Shadow’s Gate foi construída num quadrado oco. À volta disto.
Deu um passo em frente e abriu a porta. Truth passou por ele e olhou para cima.
Este edifício estranho e central de Shadow’s Gate era uma sala circular com cerca de 9
metros de largura e o dobro em altura. Havia três arcos estreitos frente às portas, cada um
deles um pouco mais alto do que as portas que tinham acabado de passar, com cortinas de um
grosso veludo preto. O teto em si era uma cúpula em arco com nervuras, pintada com uma
representação do Zodíaco, sendo as estrelas das figuras alegóricas das constelações
representadas por jóias. Por baixo da cúpula, um friso de janelas circundava a sala. Cada
janela podia ser aberta em separado e, no centro de cada uma, via-se um vidro colorido com a
forma de um escudo, gravado com uma imagem que não se conseguia distinguir.
Painéis de carvalho gravados com ornamentos estendiam-se das janelas até ao chão.
Truth ficou surpreendida ao ver bicos de gás, mas deduziu da antiguidade ornamental, que a
primeira iluminação desta sala tinha sido o gás.
Entre os pontos de luz havia enormes estátuas egípcias; na realidade eram painéis
pintados, como percebeu Truth passado um bocado, mas à primeira vista as figuras com três
metros e meio de altura pareciam reais. Não sabia o suficiente sobre o Egito para reconhecê-
las, mas havia uma mulher com cabeça de leão e uma com cabeça de vaca; um homem com
cabeça de íbis e um com cabeça de cão ou de chacal. No meio estavam penduradas bandeiras
vermelhas, brancas, pretas e cinzentas. Havia figuras nas bandeiras, mas Truth não conseguia
distingui-las bem.
O que tinha dito Light na noite anterior? “O veado vermelho e a égua branca; o lobo
cinzento e o cão preto; vermelho e cinzento e preto e branco, os quatro guardiães do
Portão.”
Mais uma vez Truth teve a sensação levemente embaraçosa de ser apanhada a escutar
conversas, como uma criança que entrasse numa conversa de adultos.
Como se os seus olhos fossem atraídos para baixo pelas bandeiras ondulantes, Truth
pôs-se a olhar para o chão. Era uma obra de arte, embora um pouco ofuscante. Ladrilhos de
mármore preto e branco, cada um com 30 cm, cobriam o chão como se fosse um tabuleiro de
xadrez perfeito. A sua geometria era coberta por um desenho elaborado de círculos e sinais de
mármore dourado; entre o círculo interno e o externo viam-se ladrilhos circulares de pedra
vermelha, cada um contendo um símbolo que brilhava intensamente.
Os olhos de Truth foram novamente atraídos para a forma de estrela que enchia o
círculo interior. Tinha sete pontas não nove...
— Thorne mandou refazer o chão quando comprou Shadow’s Gate. Foi a única
alteração que fez a esta sala, além das decorações nas paredes.
Truth deu um salto. Quase se tinha esquecido de que Julian estava com ela.
— Quer dizer que o primitivo construtor a construiu assim? — disse ela levemente
admirada.
— Por que não? — perguntou Julian encolhendo os ombros. — As coisas eram todas
mais baratas naquela altura. O espiritualismo estava em voga. Talvez tenham tido sessões
aqui. Pode ter sido o salão de baile da casa. Quem sabe?
Blackburn teria sabido. Truth tinha a certeza.
— Bem — disse Truth. — O que fazemos agora?
— Primeiro — disse Julian , componho o cenário.
Havia mobília na sala era difícil de notar devido ao impacto da sala gótica central de
Shadow’s Gate. Julian dirigiu-se a um canto da sala e voltou com duas cadeiras simples de
madeira, um banco e um candeeiro de pé moderno que não condizia com o resto.
— Claro que quando fazemos o ritual, isto fica diferente. Poderá ver como fica numa
altura qualquer antes de começarmos a trabalhar. Durante o resto do tempo, o altar e todas as
armas são guardados. Uma das vantagens de uma casa velha é o fato de haver sempre
armários suficientes. Sabe que esta casa tem trinta e sete quartos? E você senta-se aqui —
terminou ele, pondo uma cadeira ao lado de Truth.
Ela sentou-se, sentindo-se invulgarmente obediente. Julian ligou o candeeiro de pé a
extensão a que foi ligada enrolava-se pelo chão como um chicote abandonado, antes de
desaparecer por baixo das cortinas de uma das alcovas e depois dirigiu-se para o painel de
interruptores junto à porta. Carregou nos botões pretos um a um até que todos os candeeiros
se apagaram, sendo a única iluminação a pequena lâmpada a halogéneo do candeeiro no chão.
Truth sentia-se como se tivesse sido atirada para uma cave ou para o fundo do mar. De
repente sentiu uma pressão, como se os grandes volumes de espaço vazio à sua volta tivessem
um peso palpável. A escuridão estava a oprimi-la, como varas de veludo negro. O seu coração
batia mais depressa.
Respirou profundamente e começou a contar as pulsações, procurando acalmar-se. A
um nível inconsciente, sabia que Julian estava perfeitamente à vontade aqui, mas esse fato não
lhe trouxe qualquer conforto.
Ouviu-se um barulho na escuridão e uma figura pálida avançou, mas antes que alguma
coisa como o medo conseguisse penetrar na opressão que a afligia, Truth viu que era Light.
A jovem médium usava um simples vestido branco até ao chão. As mangas eram
direitas e estreitas e cobriam-lhe as mãos. Não tinha cinto, nem qualquer fecho, entrando pela
cabeça dela através de um corte no pescoço. Estava calma e composta ao sentar-se na cadeira,
e Truth viu pela primeira vez que o candeeiro estava ajustado de forma a que a luz não lhe
batesse na cara.
— Sabes o que vou fazer aqui esta noite? — perguntou-lhe Julian, com a voz baixa e
calma.
— Vai hipnotizar-me, como já o fez — respondeu Light.
— Tens razão. E depois de tê-lo feito, vou-te dar algumas coisas para segurares. Quero
que me contes histórias sobre elas.
— Que tipo de histórias? — a voz de Light era sonolenta, já remota, embora Julian
ainda não tivesse começado a induzi-la em estado de transe.
— Do tipo que quiseres.
Julian tirou um objeto do bolso: Truth viu uma peça de quartzo com a forma de um
ovo presa com um cadeado e uma fita de prata no meio. Também devia ser facetada. Brilhava
quando ele a segurou à luz. Truth conseguiu ver a fita de ferro da pulseira que ele usava
quando a manga do seu casaco escuro deslizou para trás.
— Olha para a luz — disse Julian com suavidade. — Estás numa sala com umas
escadas que vão para baixo...
Com os dedos pôs o pêndulo na mão a girar e a brilhar. Truth afastou o olhar, para que
não fosse hipnotizada ou, mais provavelmente, para que não adormecesse. Gostaria que
houvesse mais luz, mas cada hipnotizador, tal como a médium Light, precisava de um
ambiente diferente e familiar para entrar no profundo estado alfa de transe. Alguns
trabalhavam apenas de noite. Conhecia uma, Dylan usava os seus talentos freqüentemente,
que apenas entrava em transe ao som da música mais barulhenta de rock.
A voz de Julian ficou reduzida a um sussurro grave e agora que se estava a habituar ao
silêncio, Truth conseguia ouvir outros sons: um tamborilar rítmico que devia ter a ver com o
esquentador, arranhadelas de ramos em janelas distantes.
Olhou para baixo. Dentro do quadrado de mármore preto por baixo dos seus pés via-se
uma centelha do tamanho de uma moeda de meio dólar, como se uma lágrima celestial tivesse
caído do céu. Olhou para cima, mas a abóbada da câmara estava às escuras. Mal conseguia
distinguir uma área menos escura, que deveria ser onde as janelas refletiam a luz de outras
salas. Não era para admirar que passasse a manhã a perder-se, uma vez que a casa estava
construída em torno dum quadrado oco. Pensou se poderia ver os projetos de arquitetura.
Deviam estar arquivados na câmara.
Truth olhou novamente para baixo, para a estrela que brilhava entre os seus pés.
“Aqui deve ser o centro da sala”, pensou Truth com um arrepio interior.
Não sabia porque esse fato a perturbara imediatamente. Olhou para Julian, que ainda
estava a pôr Light em estado de transe, com o pêndulo nas mãos a girar e a cintilar, a girar e a
cintilar...
“Cobrir a cama dela com ramos de ervas selvagens e deitar em cima a pele de cada
animal que ande por estes bosques. Assim é o altar da Hierolator, a concubina celestial. O
sol será trazido até à sua cama e o seu êxtase mostrará o caminho.”
Teria ela lido isso? Ou tê-lo-ia imaginado?
Parecia diferente quando era preparada para rituais, tinha dito Julian. Claro. O altar
deveria ser colocado aqui no meio, mesmo por cima do local onde ela estava sentada. Como
tinha sido em 1969.
Truth sentiu uma náusea gelada a crescer dentro de si.
Katherine Jourdemayne tinha morrido aqui.
A mãe tinha morrido nesta sala; aqui mesmo. O sangue apela ao sangue e apenas um
fino véu separava aquele momento deste.
Como se os seus pensamentos horrorizados os tivessem chamado, Truth viu-os com a
visão brilhante da imaginação:
Katherine e Irene aqui no centro, os outros num círculo, as chamas das suas velas
como diamantes numa corrente. Ouviu o ribombar da trovoada como artilharia distante; de
cada vez que trovejava, as pequeninas chamas diluíam-se por um instante na luz do
relâmpago.
E a mãe estava a morrer, morta, quase a morrer, inocente e sem defesas, sem saber;
estava a morrer aqui, a sua vida sugada pelos poderes que Blackburn tinha invocado e Truth
não conseguia salvá-la.
Tentou libertar-se da visão, ofegando, e viu Julian e Light bem à sua frente. Light,
num transe profundo, olhava fixamente para a cara de Julian com olhos confiantes e
desfocados.
Tal como Katherine tinha olhado para Blackburn.
Ela confiara nele.
Ele tinha-a morto.
“Ele vai matá-la!” gritou Truth para si e não sabia a que par se referia. Um terror cego
abateu-se sobre os seus sentidos como uma onda no oceano: a história repetir-se-ia aqui em
Shadow’s Gate e Julian mataria Light, a gentil e confiante Light, e Truth não podia fazer
nada.
Tal como Caroline.
Tal...
Truth não ouviu o barulho surdo que a cadeira fez ao cair. Já não via os outros
ocupantes da sala. Sabia apenas que tinha que sair daqui agora.
Abriu a porta com força e correu. O hall era curvo, mas não havia viragens falsas.
Correu por ali fora, tropeçando e afastando-se das paredes até chegar novamente ao foyer.
Respirando com dificuldade, mas não querendo parar, começou a subir as escadas a correr.
Tropeçou no último degrau e caiu, andando de gatas durante um bocado, até que se levantou.
Caiu em vez de entrar pela porta do seu quarto e aí ficou a tremer, respirando
ofegante.
Havia alguém no quarto.
Ele estava ao pé da janela. A luz do candeeiro da mesa de cabeceira só iluminava
metade da sua figura.
— És uma idiota — disse ele asperamente.
Truth lutou para poupar ar para uma resposta e depois se engasgou, começando a
tossir.
Ela sabia quem ele era.
— Você é... — disse ela a gaguejar.
Mas não estava lá ninguém. Apenas as cortinas a esvoaçarem na brisa à frente de uma
janela aberta.
Completamente entorpecida, Truth deu três passos a cambalear, chegando à beira da
cama. Sentou-se, olhando desconfiada para a janela, mas não viu mais aparições.
Tinha acabado de ver Thorne Blackburn.
Impossível.
E tinha-o ouvido.
Ridículo.
— Uma alucinação em situação de vigília, provocada pelo stress, num estado próximo
da hipnose — murmurou Truth a tremer. — Conheces o exercício. Ele não estava lá.
Que com certeza ele tinha lá estado, durante aquele ano de 1969, que cada vez
ocupava mais a sua imaginação, também era verdade, mas a única coisa que Truth
Jourdemayne sabia era que não era uma espírita.
— Estás maluca! — disse Truth em voz alta.
— Importa-se de me explicar o que foi aquela pequena cena? — perguntou Julian da
porta, extremamente zangado.
Truth virou-se para ele. Como se o seu movimento lhe tivesse dado autorização, Julian
avançou com uma fúria felina.
— Achei que você era uma profissional. Sabe o que aquele seu pequeno acesso de
raiva poderia ter provocado? Mas suponho que você...
— Julian, a minha mãe morreu ali quando eu tinha dois anos e realmente acho que não
tenho que ouvir os seus sermões — ripostou Truth, pronta para o ataque.
Ela ouviu a raiva na sua voz e engoliu-a, obrigando-se a ficar fria e calma.
— Achei que conseguia lidar com aquilo. Estava enganada. Desculpe.
— Oh, meu Deus. — A raiva de Julian desapareceu no mesmo instante. — Sou tão
idiota... aqui estava eu, todo convencido, exibindo o meu théâtre sacré, e sem perceber que
recordações evocaria para si. Desculpe.
Sentou-se ao seu lado e pôs um braço à volta dos seus ombros.
O seu calor e força pareciam procurar todos os lugares gelados dentro dela. Ela queria
pegar na cara dele entre as suas mãos, beijar os seus lábios, sentir o seu corpo duro contra o
dela, apagando a escuridão...
— Fui estúpida. Deixei a minha imaginação tomar conta de mim — disse Truth
bruscamente, afastando a imagem constrangedora. — Light está bem? — acrescentou ela em
voz baixa.
— Felizmente já adormeceu. Acordei-a simplesmente do transe através de uma rotina
que já tinha implantado nela para emergências como esta. Agora está a descansar. Mas mais
uma vez peço desculpa por tê-la sujeitado a uma experiência tão má. Eu podia ter trabalhado
com ela em qualquer sítio. Nós usamos simplesmente o théâtre sacré para estabelecer uma
reação no inconsciente.
— Foi culpa minha. Não se preocupe — disse Truth.
“Algum dia tenho que me habituar”, matutou ela desolada, pensando nas últimas
palavras de Julian.
Théâtre sacré. Teatro sagrado. Mais uma frase de Blackburn: “O primeiro dever do
mágico é fazer teatro sagrado.”
— Julian, você... quer dizer, tem a certeza... — gaguejou ela.
— Se eu acredito no Trabalho? — sorriu Julian. — Claro que sim, mas isso não
significa que eu o ache perfeito, ou que o possa realizar à toa. A magia é ao mesmo tempo arte
e ciência. Embora seja verdade que a reputação de Thorne afasta muitas pessoas e até eu
tenho que admitir que ele teve uma carreira pública bastante lúgubre.
Truth sorriu debilmente. Julian tirou o braço dos seus ombros e virou-se para ela, com
a cara a brilhar intensamente.
— O que temos que recordar de Thorne Blackburn é que ele foi um rapaz muito
prendado. Ainda não tinha trinta anos quando morreu e já era internacionalmente conhecido
em círculos de magia há mais de uma década. Os seus erros foram os de juventude e excesso
de confiança, e eu aprendi com eles, espero eu.
— Então não vai fazer os erros dele? — disse Truth com um sorriso forçado e
melancólico. “Como pode alguém ter semelhante certeza?”
— Há um que eu não vou fazer — disse Julian com segurança. — Desculpe se eu for
muito direto, Truth, mas Katherine Jourdemayne (a sua mãe) morreu devido a uma overdose
inexplicável. Não houve nada de misterioso na forma como morreu. Se chegar a estudar o
trabalho de Thorne, verá que o seu estilo mágico foi influenciado profundamente pela
utilização ilegal e promíscua de drogas que caracterizavam a contracultura americana nos
anos sessenta. Ópio, haxixe, psilocibina, até LSD, uma droga que certamente não era
conhecida dos
Chefes Sagrados, fizeram parte de todos os rituais do seu pai, e eu retirei tudo isso do
Trabalho. Não sem ser criticado por isso, asseguro-lhe, mas é a disciplina, e não as drogas,
que coloca Aquele Que Procura no Caminho. A utilização da droga que matou a sua mãe era
um sinal de excesso típico daquela época; não tem lugar na nossa época.
Truth só conseguia assentir com a cabeça, grata por ele estar a falar de uma forma tão
simples.
— E nada vai acontecer a Light — acrescentou Julian com uma voz persuasora. —
Mesmo que você acredite em coincidências (o que não se passa comigo), Light é a nossa
Hierofex e não a nossa Hierolator.
Truth olhou para ele sem expressão.
— Katherine Jourdemayne era a Hierolator de Thorne, a sua Concubina Sagrada. Light
ocupa a posição no nosso ritual que Irene ocupava no de Thorne, ou seja a de Hierofex, o
Orador Sagrado.
— Ele queria que fosse a Caroline. — “Santo Deus, por que razão dissera aquilo?”,
pensou Truth.
— Claro que é melhor quando a Hierofex e a Hierolator são irmãs. — Julian não
pareceu surpreendido pela afirmação dela e até pareceu pensar que era verdadeira. — Mas a
Caroline recusou e Thorne respeitou a sua recusa.
Então a tia Caroline tinha sido espírita; pelo menos Julian dissera que Blackburn era
dessa opinião.
— Mas você parece cansada e eu tenho de ir ver como está Light — disse Julian. —
Quer que eu mande a Irene trazer-lhe uma bebida estimulante? Prometo que não será nada que
lhe faça mal, ou ilegal.
— Não, Julian, eu... — disse ela a gaguejar, sentindo as forças a fugirem-lhe como a
água da banheira. — Seria muito agradável, se não der muito trabalho — disse ela
debilmente.
— Então vou tratar disso — prometeu Julian. — Durma bem, Truth.
E antes que Truth pudesse impedi-lo ou protestar, Julian beijara-lhe a testa ao de leve
e saíra.
“Muita coisa está a acontecer demasiado depressa”, pensou Truth. Ela não conseguia
concentrar-se em nada. As suas mãos tremiam violentamente ao levantá-las e no rescaldo da
reação não conseguia parar de tremer. Abraçou-se com força, embalando-se para a frente e
para trás como já não o fazia desde pequena.
“Estou a ficar maluca; sei que estou.”
Tinha conseguido recuperar o suficiente para se sentar calmamente, olhando para o
vazio, quando Irene Avalon bateu à porta alguns minutos depois. A tempestade emocional
tinha passado, deixando-a entorpecida.
— Minha querida, o que tem? Quando Julian me contou que você tinha colidido com
os Guardiães, nunca imaginei... — Irene pousou o tabuleiro que trazia no toucador e veio até
ela. — E tem as mãos geladas! — exclamou ela, envolvendo-as com as suas.
— Eu vi... — começou Truth, engolindo o resto das palavras.
Se dissesse a Irene Avalon que tinha visto o pai, iria parecer uma louca ou pior, pior
ainda, perfeitamente racional pelos padrões distorcidos de Irene.
— Bem, minha querida, não interessa o que viu. Acredito que algumas vezes os
Guardiães se esquecem de como somos frágeis, nós os mortais; um aviso deles tanto pode
deixar-nos arrasados como dizer-nos qualquer coisa que precisamos saber. É sempre assim
com todos os Poderes — acrescentou ela num tom de leve censura.
Truth teve de sorrir ao ver a imagem, Irene a ralhar severamente com uma das
hieráticas figuras egípcias do templo.
— Bem — disse Irene num tom estimulante. — Vou arranjar-lhe um bom banho
quente. Isso e uma chávena quente da minha bebida não alcoólica vai pô-la boa!
Irene dirigiu-se energicamente até à casa de banho ligada ao quarto de Truth e pouco
depois ouvia-se no quarto a água a correr.
— Vou num instante buscar alguns dos meus sais especiais para o banho e água
quente para você beber — disse Irene.
Truth assentiu. Era mais fácil do que discutir. De repente, estava cansada demais para
lutar.
Quando Irene saiu, Truth foi até à casa de banho que era do início dos anos cinqüenta
e observou o vapor que saía da banheira umedecendo as paredes de ladrilhos brancos e os
acessórios cromados. Estava tudo limpo, branco e anti-séptico, imutável e perfeito, tal como
gostaria que a sua vida fosse, sem qualquer incerteza ou dúvida.
— Trouxe-lhe... Onde está, querida? Ah, está aí. — A voz de Irene anunciou a sua
chegada muito antes de ela aparecer. — Trouxe-lhe um roupão quente para se embrulhar —
disse ela, e depois debruçou-se à frente de Truth para deitar cristais de um frasco de louça na
água cheia de espuma por baixo da torneira.
No mesmo instante, a água na banheira tornou-se de um intenso azul esverdeado, e um
cheiro estimulante a oceano e a floresta encheu o ar.
Truth inalou, espirrou e pestanejou. O cheiro aqueceu o seu espírito tal como o vapor
aqueceu o seu corpo, e sentiu-se melhor quase imediatamente.
— O que é isto? — perguntou ela a Irene.
— Uma receita minha — disse a mulher mais velha. — E esta também é. — Entregou a
Truth uma caneca branca cheia de um líquido vermelho fumegante.
Truth pegou nela e inalou profundamente. Cheiros intensos a laranjas, flores e mel
atacaram as suas narinas.
— É apenas a minha bebida não alcoólica misturada com um pouco de água quente. E
quanto a isso, não há nada que lhe possa fazer mal, apenas um pouco de mel, ervas e uísque.
Não encontrará nenhum filho de clérigo em toda a Inglaterra que não jure pela virtude de uma
pequena gota de vez em quando.
Truth sorriu, sorvendo debilmente, enquanto a banheira ia enchendo. A bebida quente
descia como seda ardente, alisando e suavizando tudo o que tocava.
Quando a banheira estava cheia e a caneca vazia, Irene fechou as torneiras e tirou a
caneca das mãos de Truth.
— Agora um bom banho e depois para a cama. Amanhã vai sentir-se muito melhor.
— Obrigada — disse Truth.
Impulsivamente, abraçou a mulher mais velha.
— É tão boa — disse ela.
Havia lágrimas nos olhos de Irene quando ela respondeu:
— Ah, minha querida, não é mais do que eu lhe devo e a ele.
O descontraído banho de ervas completou o restabelecimento da tranqüilidade de
Truth. Quando saiu, embrulhando-se no roupão grosso de flanela forrada que Irene lhe tinha
deixado, sentia-se cansada, mas pronta para olhar para as coisas de uma forma calma e
racional.
Mas não fechou a porta à chave, antes de ir buscar o seu bloco de notas e de se instalar
para reunir os seus pensamentos.
Alguns minutos mais tarde, tinha acabado de escrever sobre os acontecimentos do dia,
desde os avisos enigmáticos de Ellis ao pequeno almoço, aos misteriosos avisos de Michael
antes do jantar. A lista de pessoas que não a tinham avisado ou ameaçado em Shadow’s Gate
estava a ficar cada vez menor e, no fim, a única pessoa que ainda continuaria nela seria Light.
Truth sentia-se profundamente culpada pelo seu comportamento à frente de Light no
início da tarde, mas Julian tinha dito que a rapariga não tinha reparado, o que, tanto quanto
Truth sabia sobre o psiquismo de transe, era muito provavelmente verdade. No entanto,
amanhã procurá-la-ia para pedir desculpa. Truth tinha uma sensação levemente perturbadora
de que aqui em Shadow’s Gate não podia dar-se ao luxo de se comportar de forma mesquinha
ou pouco cortês.
“Que pena que ninguém tenha dito a Fiona a mesma coisa”, pensou Truth com um
sorriso interior.
Antes de se meter na cama, Truth verificou mais uma vez a segurança de Venus
Afflicted e desta vez tirou o livro do seu esconderijo. Aqui, na mesma casa onde
provavelmente teria sido escrito, os seus estranhos arcaísmos pareciam mais acessíveis do que
anteriormente. Talvez, se estudasse o suficiente, pudesse perceber o propósito subjacente do
que parecia estar mais próximo duma mistura entre um livro de receitas e uma cópia do ponto
de uma peça de teatro louca.
Truth folheou Venus Afflicted, escolhendo um bocado aqui e outro acolá como se
estivesse a roubar flores numa estufa. Títulos gregos e invocações latinas, costumes egípcios e
deuses escandinavos. Blackburn tinha certamente construído o seu culto com pena sincrética e
livre e depois teve a ousadia de embrulhar tudo numa espécie de crepúsculo celta e afirmar
que procurava a vinda dos Velhos Deuses de Tir na Og, o País da Juventude, e que ele era
filho de sidhe, a raça das fadas.
“Humano, ou quase”, dissera Ellis.
O pequeno almoço parecia ter sido há mil anos, mas as suas palavras voltaram
novamente a perturbá-la. Se Blackburn fosse meio elfo, o que era ela?
“Idiotice!”, resmungou.
Mas há dois dias, este pensamento não a teria inquietado tanto.
CAPÍTULO OITO
A VERDADE REVELADA

It takes two to speak the truth one


to speak, and another to hear.8
HENRY DAVID THOREAU

O dia seguinte, o terceiro dia de Truth em Shadow’s Gate, contando o dia da chegada
também estava limpo, embora menos luminoso, mas em outubro qualquer espécie de bom
tempo era bem-vindo.
Como anteriormente, a casa parecia quase adormecida quando ela saiu do quarto.
Gostaria de ter encontrado Light, talvez até de ter falado com ela sem um dos homens
presentes, mas não a viu em lado nenhum. Era necessário descobrir o quarto de Light, desde
que o conseguisse fazer discretamente.
Em vez de se arriscar a tomar o pequeno almoço com Ellis ou a ter outro encontro
com Fiona ou Michael, Truth optou por tomar o pequeno almoço na cidade, no pequeno
restaurante com paredes de alumínio na rua principal, que tinha visto no dia anterior. Levou o
carro, primeiro porque não lhe estava a agradar a ideia de andar duas milhas antes do café da
manhã e segundo porque achou que seria mais difícil alguém pará-la de carro.
“Mas isso é ridículo!”, insistia uma parte do seu espírito. Tanta preocupação andava
perigosamente perto da paranóia. Ninguém ia impedi-la.
“Ridículo? Ter visões de Thorne Blackburn também o é.”
Por mais estranho que parecesse, se Truth tivesse um temperamento mais místico,
mais sonhador, seria mais fácil afastar a visão e o som de Thorne Blackburn como mero
resultado do estado nervoso em que andava. Mas Truth pelo menos era assim que costumava
pensar tinha nervos de aço e não começava a arranjar explicações para os fenómenos antes de
ter acabado de senti-los, E certamente não era necessário ter Thorne Blackburn na conta de rei
dos magos para admitir que o tinha visto sobretudo depois de ter descoberto na véspera que
Shadow’s Gate estava provavelmente assombrada.
E apostava como também sabia onde estava a nascente escondida.
Por que outra razão construir aquela bizarra sala redonda tirada de uma história de
Richard Matheson no centro da casa?
A nascente tapada devia estar diretamente por baixo.
Como anteriormente, o seu ânimo tornou-se mais leve e os seus pensamentos mais
claros, quando saiu da propriedade, tornando mais difícil levar os acontecimentos da véspera a
sério. Truth percebeu que, se as coisas continuassem por este caminho, teria de reconsiderar
muito seriamente a sua permanência em Shadow’s Gate. A decisão final poderia esperar até
que tivesse mais informações, e os sentimentos estranhos e perturbadores talvez
desaparecessem por si.
Pelo menos, assim o esperava. Porque, embora tentasse, não conseguia afastar a
convicção de que tinha assuntos inacabados em Shadow’s Gate.
O pequeno almoço deu-lhe a hipótese de fazer algumas perguntas sobre os residentes
locais e depois seguiu até Hyde Park, para os escritórios da Companhia de Telefones
Celulares

8
São precisos dois para falar a verdade / Um para falar e outro para ouvir. (N. da T.)
Mid-Hudson.
— Quero comprar um telefone — disse ela a um jovem e simpático rapaz que se
aproximou dela esperançosamente, e essa foi a última parte da conversa que demorou uma
hora e que foi simples e direta.
Tanto quanto Truth sabia, um telefone celular era um aparelho portátil sem fios, que
funcionava com baterias recarregáveis e que usava ondas curtas para estabelecer uma ligação
entre a pessoa e o interlocutor. Ficou aliviada por saber que, depois de ter pago o custo inicial
de cada impulso, as contas de ligação e de serviço chegariam da mesma maneira que as contas
de telefone, enquanto ela mantivesse o contrato.
Uma vez que o telefone em Shadow’s Gate era tão incerto e limitado, como Julian
tinha dito, queria uma coisa mais segura e de mais fácil acesso, e também não sabia durante
quanto tempo ia precisar dele.
Uma hora mais tarde tinha um leasing por três meses, o mais curto que havia de um
telefone portátil dentro de um estojo que podia pendurar ao ombro, um grosso livro de
instruções e a informação de que não lhe serviria para nada pelo menos durante as próximas
vinte e quatro horas.
— Na verdade, preferimos dizer que são setenta e duas horas — advertiu-a o vendedor
— pois uma vez enviado aviso de ligação para a central, já não controlamos o que se passa.
Há um número que pode experimentar (está indicado na parte da frente do seu livrinho) para
onde pode telefonar para saber se já está a funcionar.
— Obrigada — disse Truth com uma voz resignada.
Pôs o telefone, dentro do respectivo estojo, ao ombro. Gritar com o vendedor não ia
adiantar nada, mas esperava poder vir a utilizar o telefone ainda nesse dia para telefonar à tia
Caroline.
A lista de perguntas que tinha para fazer continuava a aumentar:
Saberia Blackburn que Shadow’s Gate estava assombrada?
Que sabia a tia Caroline sobre Julian Pilgrim, o novo dono de Shadow’s Gate?
Bem, pensou Truth filosoficamente. Se não conseguisse utilizar a sua nova aquisição,
poderia sempre usar o telefone da biblioteca para falar para Stormlakken. Mas quando
regressou à biblioteca pública de Shadowkill, percebeu que tinha passado o momento de fazer
a chamada.
— Lamento, menina Jourdemayne. — A voz de Janine era monótona e automática. —
A senhora Jourdemayne morreu esta manhã cedo.
Truth agarrou o auscultador com força para não o deixar cair. Um peso enorme
abateu-se sobre ela; nem sequer era culpa, mas a sensação sufocante de ter cometido um erro
fatal e irreparável.
— Acha que devo ir até aí? — perguntou Truth entorpecida.
— Realmente não vejo nenhuma razão para vir — admitiu Janine relutantemente. —
Ela tinha tudo planeado. A casa funerária veio e levou o corpo esta manhã e a senhora
Jourdemayne deixou a uma amiga da biblioteca uma lista de pessoas a quem telefonar. Estou
só à espera que ela chegue para lhe entregar as chaves. Tinha tudo planeado — disse Janine
com um certo respeito. — Não há mais nada a fazer.
Truth ouviu-se a si própria a dizer coisas simpáticas, mas sem significado, e por fim
pousou o auscultador e foi-se embora.
Andou sem destino, não reparando em mais nada a não ser no passeio por baixo dos
seus pés. Não sabia quanto tempo tinha andado, mas finalmente parou e, ao olhar para cima,
viu o arco gótico de uma porta de igreja à sua frente. Olhou para a indicação do lado de fora.
Era uma igreja episcopal. Lembrava-se de a tia Caroline a levar à catequese quando ela era
uma criança, embora nunca tivesse tido muitas certezas sobre a religiosidade da tia Caroline.
A porta estava aberta. De um impulso, Truth subiu as escadas e entrou. O interior era
escuro. Escuro em contraste com a rua iluminada pelo sol. Havia uma rosácea por detrás do
altar e altas e antiquadas janelas de vidro colorido de ambos os lados da igreja. Era um
ambiente tranqüilo; o oposto da sala circular em Shadow’s Gate. Logo que os seus olhos se
adaptaram, Truth viu um banco de igreja e sentou-se.
Passado um momento começou a torcer-se desconfortavelmente no lugar. Tinha
entrado em intenção da tia Caroline; era uma reação formal à sua morte, mas não conseguia.
O
banco de madeira parecia insuportavelmente desconfortável e o silêncio desabitado gritava
aos seus ouvidos.
“Por que estás à procura de sabedoria no templo do deus morto, Filha da Terra? Tu
não tens nada a ver com ele!”
Claro que as palavras que ecoavam ao seu ouvido eram obra da sua imaginação
hiperativa; mas eram também o tipo de afirmação mística e eloqüente que Thorne Blackburn
teria feito.
“Filha da Terra, Filha de sidhe...”
Agora, quando já era tarde demais, Truth odiou-se a si própria por todas as
oportunidades que tinha perdido, por cada pergunta que não tinha feito à tia. Agora a única
fonte de informação em que podia confiar tinha desaparecido; a mulher que a podia ter
ajudado a fazer uma ponte entre o que ela era e o que se tinha tornado ou o que se estava a
tornar.
“Pára de ter pena de ti própria!”, ralhou Truth consigo própria. Ela sabia que a tia
Caroline estava a morrer; devia estar contente por a mulher que a tinha criado ter sido
poupada à indignidade final de hospitais impessoais e cuidados clínicos.
Caroline Jourdemayne tinha morrido na sua própria cama, o que era motivo de alegria.
Desde a morte da sua gêmea Katherine, a vida de Caroline tinha sido um peso e uma
responsabilidade, não uma alegria, e agora estava livre.
Truth devia estar contente por ela. Então por que tinha tanto medo...?
Com a leve sensação de se defrontar com mais um beco sem saída, Truth levantou-se e
saiu da igreja.
— Encontrei mais um livro para si — disse Laurel Villanova triunfantemente.
Passava um pouco da uma hora da tarde e Truth tinha voltado à biblioteca para
enterrar o seu tumulto emocional na busca da história local de Shadow’s Gate. O trabalho
sempre fora o seu escape, pensou Truth, um escape tão salutar que poucas pessoas o viam tal
como ele era: fuga da realidade, que não continha mais nada a não ser a dor e um mundo ao
qual não pertencia.
Sempre tinha dado resultado. Agora também daria. Sentiu-se feliz por poder afastar
toda a tristeza do dia. Iria resolver o mistério de Shadow’s Gate e de Thorne Blackburn.
Com um sorriso grato, Truth pegou no volume poeirento e encadernado a verde que
Laurel lhe estendia e levou-o até a mesa.
The River Where The Ghosts Walk: A Haunted History of the Hudson Vattey era o
título. Truth abriu-o, franzindo o sobrolho. Blackburn também tinha uma cópia deste livro
Truth tinha-a visto na coleção de Julian. Copyright 1938. Folheou-o até chegar ao índice.
— Há um capítulo sobre Shadow’s Gate — disse Laurel com esperança. — Marquei-o
para si.
Truth viu o marcador de papel colorido e passou ao capítulo indicado. Na primeira
página via-se uma fotografia brilhante de uma casa federalista baixa, construída
irregularmente no sentido do comprimento no estilo da arquitetura colonial do século XVIII e
de um branco monótono. Por baixo via-se a legenda: “Shadow’s Gate, construída em 1780.
Fotografia de 1869.”
Estava a olhar para a fotografia da terceira casa.
Truth Jourdemayne perdeu a noção do tempo, enquanto fazia o que tinha sido treinada
a fazer: procurar os fatos e encontrar a verdade. Os livros que tinha usado no dia anterior
ainda estavam à mão na comprida mesa na sala de História Local, e Truth também tinha as
notas para ajudá-la.
Conforme o tempo ia passando e embora devagar, com referências cruzadas e muitos
pontos de interrogação, a história começou a tomar forma.
Em 1780, nos primeiros anos da Nova República, foi construído um terceiro edifício
“e vamos chamar-lhe Shadowgate, à maneira de Elkanah Scheidow, que primeiro se
estabeleceu aqui” no local do primeiro ponto de comércio de Scheidow, que Truth sabia ficar
situado ao lado da nascente que era a fonte do kill local, ou rio. Não era para admirar que lhe
chamassem Scheidow kill, uma vez que ele tinha construído o seu negócio mesmo ao lado.
A casa de 1780, que desapareceria dos registros da história local menos de um século
depois, foi construída por um dos descendentes do proprietário das terras. Durante o século e
meio que decorreu depois da chegada de Elkanah Scheidow ao que era na altura uma selva
viçosa e ameaçadora, a fortuna da família tinha prosperado. Cada geração aumentava a
riqueza da última e, através de todas as mudanças políticas e reviravoltas do destino, a família
Sheidow tinha conseguido manter uma grande parte da terra que lhe tinha sido dada
primitivamente e que lhe fora novamente concedida pelo governo britânico e pelo novo
governo americano. As janelas tinham vindo da Holanda, e os pedreiros de New York City.
Era quase o suficiente para compensar a linhagem dos Sheidow.
Um século e meio antes, Elkanah Scheidow tinha expropriado um dos locais sagrados
de uma das tribos índias da região para aí fazer o seu negócio. Possivelmente a sua primeira
intenção teria sido apenas construir o ponto de comércio em terreno neutro para minimizar as
guerras feudais, mas teve como conseqüência fazer dele um embaixador dos manitou, os
guardiões do mundo espiritual da América nativa. Com tanta autoridade invisível a apoiá-lo, o
negócio de Elkanah tinha prosperado, mas havia um preço a pagar.
Os manitou, segundo as bisbilhotices da época, estavam bastante satisfeitos com a
presença do intruso desde que fossem servidos como sempre. Já em 1780 havia uma aura de
infortúnio a pairar sobre o que seria mais tarde conhecido por Shadow’s Gate.
Truth conseguiu reconstruir, a partir dos registros genealógicos, uma história de
infortúnio que feria e que ocorria periodicamente: uma criança morta durante a infância, outra
na meninice. Tantas tinham morrido afogadas na nascente que era a fonte do rio e da cidade,
que em 1684 o neto de Scheidow, depois do seu irmão mais novo ter morrido afogado, a
mandou revestir e tapar, como se fosse um poço, construindo por cima uma casa com uma
porta da qual ele tinha a única chave. Morreu pouco tempo depois; as fontes que Truth tinha
ao seu alcance não explicavam como, mas era fácil imaginá-lo a sair de casa uma noite
durante uma tempestade, a abrir a casa do poço, a entrar, a abrir a tampa do poço, a descê-lo e
a colocar a tampa novamente no lugar pelo lado de dentro.
Truth esforçou-se por não pensar mais no assunto, lembrando-se de que não sabia e
nunca iria saber como Tobias Sheidow tinha morrido. O que ela sabia era que, na altura da
construção da terceira casa, o poço tinha sido incorporado no edifício em si e todos os
vestígios da sua localização destruídos para sempre.
Depois de a fonte ter sido tapada em 1684, as histórias de afogamentos desapareciam
dos registros locais, mas o outro problema parecia não ter diminuído e, uma vez em cada
geração, um membro da família pura e simplesmente desaparecia.
Havia diversas explicações possíveis para esses desaparecimentos súbitos: casamento,
morte não registrada, escândalo na família. Truth irritou-se com a sua incapacidade para
provar, mas de fato não tinha os recursos necessários para explicar o mistério de cada um
desses desaparecimentos. Mas a verdade é que os descendentes de Sheidow desapareciam e
não eram as crianças: uma vez em cada vinte e cinco anos, um membro adulto da família...
desaparecia simplesmente de Shadow’s Gate.
A família tinha-se tornado importante no Dutchess County, tanto financeira como
politicamente; naqueles dias a palavra dos Sheidow era lei e os escândalos graves deveriam
ser evitados a todo o custo. Não havia nos jornais locais ou histórias da família, que Truth
consultou, qualquer alusão a desaparecimentos chocantes e ou fugas vergonhosas. Mas em
contraste com os jornais e as histórias, as genealogias de Scheidow tinham sido escritas com
um cuidado escrupuloso no que diz respeito à verdade, e uma vez que se começava a procurar
o padrão era certo encontrar a sua repetição: um adulto em cada geração desaparecia sem
obituário que registrasse a sua morte, num jornal que anotava escrupulosamente os
nascimentos, as mortes e os casamentos dos descendentes do fundador da cidade.
As outras coisas que Truth descobriu, verificando o melhor que pôde as afirmações
não documentadas de The River Where The Ghosts Walk, pareciam estar de acordo com o
padrão que se ia desenvolvendo; quase se lhe podia chamar a “síndrome Amityville” que ela
tinha descoberto quando procurava provas de assombração.
Havia várias histórias de um cão que atravessava paredes, de luzes em lugares e horas
estranhas, um frio que não desaparecia, a fuga inexplicável dos hóspedes da casa. Cerca de
1800, segundo The River Where The Ghosts Walk, constava até em Nova Iorque que a casa
dos Scheidow estava assombrada.
Quanto ao acontecimento que o livro relatava, Truth ia demorar anos a confirmar ou
infirmar a sua totalidade. Parecia ser assunto de ficção sensacional e da imprensa dos
supermercados, apesar de ter sido escrito uns sessenta anos depois do incidente; o autor
afirmava ser uma criança a viver em Shadowkill na altura.
Em suma, os “fatos”, se é que existiam, eram os seguintes: em abril de 1872, Elijah
Cheddow, ex-capitão das forças da União na insurreição dos Estados do Sul, matou à
machadada a mulher, duas gémeas, um filho, bem como todos os criados que viviam na casa e
depois pegou fogo ao edifício, queimando-o totalmente.
As datas das suas mortes, registradas na genealogia, condiziam. Era certo que tinha
havido um incêndio, de acordo com o jornal, mas a história era quase incongruentemente
discreta, limitando-se a relatar o fato básico de que tinha havido um incêndio que, todavia,
não tinha alastrado. Nem sequer mencionava quaisquer mortes; no entanto, consultando
novamente a genealogia dos Cheddow, Truth confirmou que as datas das mortes de Sarah,
Elisabeth, Amy e da criança Cheddow coincidiam.
Não havia registro da morte de Elijah.
Quanto ao resto da história horrível, obteve um veredicto “não provado” muito
conveniente e que sobrevivia apenas na jurisprudência escocesa, sendo enterrada nas lendas
locais.
Um fim excelente de uma família que talvez fosse muito desagradável, só que não foi
o fim, uma vez que um primo distante, Nathaniel Cheddow, apareceu e, impelido sabe Deus
por que razões, construiu mais uma casa naquele local infeliz...
— Senhora Jourdemayne? São seis e meia, vamos fechar.
Truth olhou pasmada para Laurel, só então reparando na obscuridade da sala na qual
trabalhava. Depois percebeu as palavras da bibliotecária.
— Seis e meia! — resmungou ela.
Estava atrasada, isso sabia ela, mesmo que não soubesse para o quê. Truth juntou as
notas e desenhos e levantou-se com dificuldade. Pondo a carteira ao ombro, pegou nos livros
com ar de posse.
— Posso levá-los?
Laurel hesitou:
— Bem, habitualmente não gostamos que circulem, mas como você é da Faculdade de
Taghkanic... acho que pode.
Truth não corrigiu o mal-entendido de Laurel, uma vez que queria os livros. E de
qualquer maneira, trabalhava em Taghkanic, mesmo que não fosse para a faculdade.
Apresentou o cartão da biblioteca, assinou no livro de protocolo de história local e saiu da
biblioteca, só lhe faltando correr, abençoando o impulso de ter trazido o carro. Em poucos
momentos estava a caminho de Shadow’s Gate...
...Que era uma casa assombrada, e de primeira classe de assombração, à altura de
qualquer castelo irlandês que se prezasse. E isso explicava tudo o que Truth precisava saber
sobre Blackburn.
Os portões da casa estavam fechados quando atravessou a estrada e passou por baixo
do arco. Ia sair do carro e tentar abri-los ela própria, quando Gareth saiu de uma das salas da
casa dos portões, piscando os olhos devido à luz dos faróis. Por detrás das grades, parecia
uma espécie de coisa selvagem numa jaula.
Quando viu quem era, fez qualquer coisa ao fecho, que ela não pôde ver, depois abriu
um dos lados do portão de ferro ornamentado, passando por ele para falar com ela.
— Ainda bem que apareceu, Truth. Ia mesmo fechar os portões. Teria que telefonar
para a casa ou então deixar o carro aqui e ir a pé.
Gareth indicou-lhe uma cabina na parede do caminho, o que fez Truth lembrar-se do
telefone celular que tinha alugado naquela manhã. Sentiu uma secreta onda de triunfo: possuía
recursos que Shadow’s Gate desconhecia. Shadow’s Gate ou Julian?
— Obrigada por estar aqui. Espero que ninguém estivesse preocupado. Estava a fazer
umas investigações e não dei por o tempo passar.
Sentia que Gareth tinha direito a uma explicação. E Julian merecia uma desculpa. Ela
estava a fazer de Shadow’s Gate um hotel!
Gareth sorriu afetadamente.
— Essa é uma explicação que Julian consegue entender. Às vezes ele vai para a
biblioteca e perde-se durante semanas. Eu vou telefonar a dizer-lhe que já chegou, para que
você possa ir arranjar-se. O jantar é às sete e meia.
— Hoje janta? — perguntou-lhe Truth a brincar. No mesmo instante arrependeu-se, ao
ver a expressão de Gareth; um olhar levemente impenetrável e furtivo que não condizia com
as feições abertas e generosas.
— Sim. Hum. Bem... vemo-nos mais tarde.
Abriu a outra metade do portão e recuou, dizendo-lhe adeus.
Ela passou devagar por ele. Os faróis do carro desenhavam arcos brilhantes na mata,
que se debruçava de cada lado do caminho. Em meados de outubro as folhas nos ramos eram
amarelas ou laranjas ou vermelhas e os montes que formavam tornavam o piso escorregadio.
Foi forçada a lembrar-se disto, quando de repente o veado apareceu, ficando
paralisado pelos faróis. Era enorme; o pêlo era da cor encarniçada da raposa e a sua armação
esplêndida brilhava como um carvalho dourado e polido. Era o maior veado que alguma vez
tinha visto.
Tentou parar, mas imediatamente percebeu que não conseguia; o carro começou a
derrapar, a traseira a guinar para a frente, até que lhe pareceu que em vez de evitar o veado ia
atingi-lo de lado matando-o e provavelmente capotando o carro, se nada de pior acontecesse.
Freneticamente, Truth lutou contra as leis da física, torcendo o volante para não
derrapar enquanto travava. Finalmente o carro acabou por parar
Olhou à sua volta. O veado que tinha criado toda esta confusão não se via em lado
nenhum.
Truth baixou a janela e procurou-o no horizonte, embora soubesse que naquele
momento já estaria a léguas dali; de certeza que ela não lhe tinha batido! Não o viu, mas
enquanto estava a olhar, uma mancha branca à sua esquerda chamou-lhe a atenção. Branco e
com quatro patas... Olhou para ele, pensando se seria um veado branco, mas percebeu que era
um cavalo branco. Os olhos dele pareciam encarnados à luz dos faróis quando se virou e
fugiu, tornando-se primeiro um tremeluzir na floresta e depois uma mancha, até que
desapareceu.
Truth não viu nenhum cavaleiro. Escutou o som do seu tropel a diminuir gradualmente
até deixar de se ouvir por completo, e a acumulação de adrenalina passou, deixando-a fria e
enjoada.
“Tens sorte em não teres morrido!”, disse Truth para si própria, sentindo-se insegura.
Agora que o susto tinha passado, percebeu que tivera muita sorte; não ia assim tão depressa,
mas podia ter esbarrado naquele veado...
Truth franziu o sobrolho, pondo novamente o carro a trabalhar. O veado que aparecia
na universidade todos os outonos para roubar as maçãs não era nada parecido com aquele.
Este era duas vezes maior do que os outros e o seu pêlo vermelho diferia muito da cor
cinzento-acastanhada do dos veados de Taghkanic.
“Não era nada um veado. Era um veado macho adulto.”
O que ela distinguira à luz dos faróis era a imagem viva daquele quadro de Landseer,
muitas vezes copiado, Monarch of the Glen: um veado adulto enorme e de pêlo vermelho;
senhor da Escócia e dos planaltos da Irlanda.
E o cavalo branco...
— O veado vermelho e o cavalo branco — disse Truth em voz alta, pensando no que
tinha visto e lembrando-se novamente das palavras de Light.
Mas não tinham sido conjuradas pelas visões de Light. Longe disso; eram
provavelmente a sua causa: nesta região muitas pessoas tinham animais de casta pura ou
exóticos, desde avestruzes a bois selvagens, e Shadowkill ficava a poucas milhas de distância
do famoso Millbrook Hunt Country, com as suas coudelarias famosas em todo o mundo. Era
fácil encontrar um veado adulto vermelho e um cavalo branco no meio disto tudo;
provavelmente tinham-se habituado a vaguear pela propriedade quando esta estivera
desocupada. Talvez até pertencessem a Julian.
“Desde que ele não apareça como um lobo cinzento, acho que não vou ter problema
em enfrentar o cão preto”, pensou Truth com um certo sentido de humor.
E tinha chegado.
A porta da casa estava, como na noite anterior, aberta.
Truth pensou se seria sempre deixada aberta ou se Gareth a fechava todas as noites
quando voltava da casa junto aos portões.
Truth achou que era pouco justo que Gareth tivesse aquele exílio forçado, e pôs-se a
pensar no que ele faria o dia todo, mas teve que admitir que provavelmente era necessário um
guarda junto aos portões. Apesar de Shadow’s Gate se situar no meio do campo, era um fato
da vida moderna de que nenhum lugar era seguro.
Quando entrou, Truth ouviu vozes baixas vindas da sala para a qual tinha sido levada
na primeira noite. Verificou o seu relógio e franziu o sobrolho. Eram sete horas. Tinha levado
mais de quinze minutos a fazer um caminho de apenas cinco minutos.
“Perfeitamente razoável, dadas as circunstâncias. Estás a começar a falar como um
personagem daqueles livros de Whiüey Streiber; daqui a pouco estás a ver seres estranhos e
pequenos com olhos enormes” escarneceu Truth. Pelo menos ainda tinha tempo para se lavar
antes do jantar.
Tinha sido um dia tão cheio que acontecimentos que noutras circunstâncias ocupariam
lugar de destaque pareciam insignificantes. A “visão” dela de Thorne, os outros filhos, a sua
reconstrução da história de Shadow’s Gate e as hipóteses acerca da sua verdadeira natureza, o
veado vermelho e o cavalo branco, todos eles queriam ocupar um lugar de destaque e todos
eles foram preteridos pelo fato de Caroline Jourdemayne ter morrido.
Mas mesmo isso se varreu do seu pensamento pelo que encontrou ao abrir a porta do
quarto.
Exceto quando estava doente ou exausta, como na noite passada, Truth Jourdemayne
era meticulosamente arrumada no que diz respeito à sua pessoa e às suas coisas.
Esta manhã, antes de ter saído de casa, tinha arrumado tudo que trouxera nas
prateleiras e gavetas apropriadas, até o quarto parecer quase desabitado.
Mas quando entrou no quarto não o encontrou assim.
As gavetas da cómoda antiga estavam abertas e o seu conteúdo todo desarrumado
espreitava, vendo-se as roupas amontoadas e o espelho tinha sido derrubado. O roupão que
Irene lhe tinha emprestado estava no chão, mas Truth deixara-o cuidadosamente pendurado
num armário, de manhã.
Tudo no quarto demonstrava que tinha havido uma busca rápida mas implacável.
“O livro!” O coração dela batia doentiamente quando caiu de joelhos junto à cama,
esgravatando entre o colchão e o colchão de molas, procurando... Tinha desaparecido, ela
tinha a certeza, e isso ultrapassava tudo quanto ela pudesse agüentar.
Deixou escapar um gemido de alívio quando os seus dedos agarraram a lombada e as
suas mãos tremiam quando tirou o livro do seu esconderijo e verificou que não estava
danificado. Truth fechou os olhos com força, com lágrimas a picarem-lhe nos olhos,
agarrando Venus Afflicted junto ao peito, o corpo a tremer da tensão que parecia ser um
presente de Shadow’s Gate para ela.
“Isto não pode voltar a acontecer”, pensou Truth com veemência.
Precisava encontrar um lugar mais seguro para guardar o livro de magia inestimável
de Blackburn; um lugar que não pudesse ser arrombado por capricho.
“Nem pareço eu”, pensou Truth com um discernimento desesperante. Por que seria
que esta casa a tornava insanamente histérica e porque razão voltava sempre?
“Não é histeria. É lucidez”, assegurou-lhe aquela estranha voz interior. “Tens um
trabalho a fazer aqui.”
Abanou a cabeça, tentando controlar as suas emoções confusas. Pareciam centrar-se
todas no livro; talvez, se conseguisse colocá-lo num lugar seguro, estes ataques de pânico
desaparecessem. Num frenesi, ainda agarrada ao livro, Truth despejou o conteúdo da carteira
em cima da cama. Gravador, cassetes suplementares, livros de apontamentos; a carteira que
Truth usava era suficientemente grande para guardar Venus Afflicted e a maior parte do seu
conteúdo anterior.
Enfiou o livro lá dentro e dobrou a aba da carteira por cima para escondê-lo. Pronto.
Iria fechá-lo dentro do carro e depois voltaria para descobrir quem diabo tinha tido a ousadia
de remexer nas suas posses como se estivesse numa loja em saldos!
Pôs a carteira, novamente pesada, ao ombro e parou. Talvez devesse levar também as
jóias para baixo.
Mas quando foi à procura delas, não as encontrou.
Truth, ansiosa e zangada, cada vez mais zangada, remexeu nas duas gavetas de cima
da cómoda de forma tão brutal como um ladrão. O anel e o colar tinham desaparecido.
Roubados.
“Quem?” A pergunta fê-la rir alto e o som era nervoso e exausto. Quem não era
suspeito? Normalmente teria suspeitado de Fiona Cabot, que não parecia ter muitos
escrúpulos, mas considerando o que faltava: jóias que pertenciam a Thorne Blackburn e mais
nada , todas as pessoas eram suspeitas:
Ellis, o cínico, Michael, o místico, Julian, que fingia uma indiferença que não podia
ter, Irene...
“Odeio estas pessoas! Odeio este lugar! Só quero ir-me embora!”, gritava uma voz
baixa e furiosa dentro de Truth. Mas já não era verdade, se é que alguma vez o tinha sido.
Tinha que pensar em Light. Light, que até podia ser sua irmã.
Ajeitou a alça da carteira, puxando-a mais para cima no ombro, e saiu da sala.
A única intenção de Truth era ir ao carro, esconder o livro e apressar-se a entrar em
casa antes que alguém notasse; a não ser que entrasse no carro e guiasse que nem uma doida
dali para fora. De fato, poderia ser a coisa mais sensata a fazer; podia telefonar a Julian mais
tarde e dizer-lhe que a tia Caroline tinha morrido. Seria uma boa razão para qualquer pessoa...
“Vai agora embora e os outros ficam com o que é teu.”
Infelizmente para os seus planos, foi perder-se ao fundo das escadas, dando por si a
passar pela porta da sala que continha a coleção de Blackburn, caminho que a levava na
direção oposta ao seu objetivo, que era a porta da frente.
A porta da sala estava aberta.
Truth pôs a mão no puxador, tencionando apenas fechar a porta, e recuou em
sobressalto. O puxador estava gelado; tão frio como se estivesse enterrado num banco de neve
em pleno inverno. Mesmo com um contacto tão breve, os seus dedos ficaram a latejar e
dormentes.
Anormalmente frios...
Cuidadosamente, Truth abriu mais a porta. Estava escuro lá dentro e as janelas ao lado
da lareira deixavam passar a luz crepuscular. A lareira estava acesa, apenas com uma brasa
incandescente.
Por puro automatismo, e mesmo convencida de que não iria funcionar, Truth accionou
o interruptor da luz. Sentiu uma sensação de puro triunfo científico ao ver que as luzes se
acendiam normalmente, perdendo logo de seguida um pouco do seu brilho normal, como se a
energia necessária fosse dirigida para outro propósito por um agente desconhecido.
Depois viu Light.
A rapariga usava o vestido branco que Truth tinha visto na noite anterior. Estava
enrolada numa posição fetal à frente das brasas da lareira, que se iam apagando, com o cabelo
espalhado à sua volta como a teia prateada duma aranha.
Truth não sabia se ela estava a respirar ou não. Se a sala estivesse tão fria como o
puxador da porta parecia indicar, Light não poderia sobreviver muito tempo.
Truth não hesitou. Com a carteira ao ombro, entrou na sala. No momento em que
atravessou a soleira da porta, ficou gelada até os ossos. No quadro de Thorne Blackburn via-
se o colar de âmbar e o anel de brasão.
— Ah, mas que interessante! — pensou ela com uma indiferença entorpecida.
Não tinha muito tempo para se maravilhar com mensagens irrelevantes de fantasmas
ou para pensar no que significariam tais presságios. Apenas o comprimento da sala pouco
iluminada a separava de Light, mas atravessá-la foi um esforço equivalente a escalar a
fachada dum edifício.
Conforme ia avançando, o soalho de tábuas largas parecia mover-se e inclinar-se
debaixo dos seus pés, como se fosse o cenário duma casa de loucos de feira. À sua volta, a
sala parecia distorcida e brilhante como que vista através de água. Já não conseguia ver Light,
e só podia rezar para que estivesse a ir na direção certa.
Era isto que Elijah Cheddow tinha visto na noite em que tinha tentado pôr termo à
maldição de Shadow’s Gate, destruindo toda a sua família?
O frio era mais gelado do que em qualquer inverno de que se lembrava,
enfraquecendo-a como se estivesse a sangrar de uma ferida aberta. À medida que Truth ia
forçando caminho pela sala dentro, ocorreu-lhe pela primeira vez que a salvação que tinha
empreendido de forma tão temerária talvez não fosse possível; que ela e Light poderiam
morrer aqui, assassinadas pelo irreal.
Parecia terrivelmente absurdo estar a lutar pela vida contra uma ameaça paranormal,
quando não muito longe dali havia pessoas a falar, a rir e a pensar nos seus jantares e que
viviam...
O tempo perdeu todo o significado, como no mais profundo dos delírios.
Inexplicavelmente, ao fim de algum tempo pareceu-lhe melhor gatinhar, e assim Truth estava
de gatas quando chegou ao pé de Light.
O corpo da rapariga parecia rígido e sem vida; a sua carne branca dura e fria, mas
Truth, determinada, envolveu as mãos dormentes e geladas no vestido da rapariga e puxou. O
corpo de Light deslocou-se e começou a escorregar na direção em que ela puxava. Truth
parou uma vez, apoiando-se na mesa para se pôr de pé, e depois retomou a sua tarefa penosa.
O sangue pulsava-lhe com um barulho doentio na cabeça e o ar sem oxigénio não lhe
dava vida. Parar era morrer, mas Truth sabia que não tinha força para continuar. Mas, embora
pudesse estar muito perto da morte, nem sequer lhe passou pela cabeça abandonar Light.
De repente, braços fortes, braços do Primeiro Mundo, do mundo da vida agarram-na
pela cintura, devolvendo-lhe a força e puxando-a para trás. Durante um momento, que
pareceu exasperantemente eterno, Truth achou que nem assim conseguiria sobreviver à força
que a sugava para dentro daquela sala, mas depois o equilíbrio dos poderes alterou-se e
ficaram livres. Truth saiu a cambalear pela porta, sustendo nos braços a fragilidade gelada e
frouxa de Light.
O frio parou instantaneamente.
— Julian! — suspirou Truth, vendo finalmente o seu salvador. — Oh, meu Deus...!
A tranqüilidade normal de Julian tinha sido violentamente posta à prova. As suas
feições bonitas estavam cansadas e havia quase uma expressão de medo por baixo de uma
calma que ele se tinha imposto.
— O que foi? — disse ele, olhando à sua volta como se estivesse espantado.
Depois ajoelhou-se ao lado de Light, pegando nos seus dedos gelados, e todo o seu
comportamento se alterou. Embalou a rapariga inconsciente contra o peito e depois pareceu
perceber que isso não ia ajudar.
— Está bem, Truth? — perguntou ele, olhando para ela. — Temos de aquecê-la; ela
está gelada.
Truth assentiu, tremendo. Tremia de frio, batendo os dentes, mas o perigo mais
imediato de Light era mais importante do que o dela.
Julian pôs-se de pé, erguendo Light nos braços, e dirigiu-se às escadas. Truth foi a
cambalear atrás dele, olhando para trás.
Na biblioteca de Blackburn as luzes brilhavam intensamente e na lareira saltavam
chamas de um fogo fremente. Por cima, a figura no quadro pomposo não tinha nem o colar,
nem o anel.
Seguiu Julian e Light até lá cima, os músculos a doerem do calor que voltava a sentir.
O quarto da rapariga ficava dois andares acima do de Truth, onde antigamente eram os
quartos
dos criados. A única coisa que deveria existir por cima eram os sótãos da frente e das
traseiras, bem como os quatro quartos das torres; embora Truth tivesse visto luz que indicava
estarem ocupados, não sabia como chegar até lá.
A porta que abriu a pedido de Julian dava para um pequeno quarto confortável, com
teto esconso. Na janela havia cortinas de renda branca e quando Truth as fechou, conseguiu
ver, mais abaixo, muitos dos ângulos do telhado de Shadows Gate e um bocado da cúpula
central. Virou-se quando Julian estava a deitar Light na cama. Começou a despi-la com a
impessoalidade clínica de um médico.
— As camisas de noite dela estão na cómoda. Procure uma, por favor.
Ela encontrou-as sem dificuldade. Julian estendeu a mão para a camisa quando Truth
voltava, mas Truth segurou-a contra si, olhando para o corpo frágil e estranhamente imaturo
de Light.
Pequenas cicatrizes brancas marcavam as costas dela e as coxas, e aqui e ali se via o
buraco roxo-escuro de uma queimadela de cigarro.
Julian arrancou a camisa das mãos de Truth.
— Para o que está a olhar? Eu disse-lhe que ela tinha estado numa instituição — disse
ele rudemente.
Com suavidade expedita, enfiou a camisa no corpo esguio de Light. Os olhos da
rapariga permaneceram fechados, não dando qualquer sinal de estar consciente.
— Ela foi torturada! — disse Truth, escandalizada.
— O que não passa duma forma prepotente de argumentação por parte daqueles que
acham que os outros deviam ver o mundo à sua maneira — disse Julian com rancor exausto.
— Acha que fui eu que a torturei? Acenda a chama da lamparina, para eu poder aquecer um
pouco de brandy — acrescentou ele prosaicamente.
Julian cobriu Light gentilmente, enquanto Truth procurava acender a lamparina com
uma grande caixa de fósforos que estava em cima de um armário baixo de madeira. Acendeu
um, encostando-o ao pavio chamuscado da pequena vela, e depois estendeu as mãos para o
calor. Sentia-se melhor agora, embora lhe parecesse que nunca mais voltaria a sentir-se
quente; e Light permanecera naquela sala muito mais tempo do que ela.
— Julian, não acha melhor chamarmos um médico? Quero dizer...
Julian virou-se para ela, esforçando-se por suavizar a sua expressão.
— E dizer-lhe o quê? Que ela quase morreu gelada em frente duma lareira bem
espevitada, numa sala fechada, em outubro? Mesmo que eu conseguisse inventar uma mentira
adequada, Light tem pavor de estranhos. Não quero sujeitá-la a isso.
Dirigiu-se ao armário e abriu as suas portas. Truth ficou surpreendida ao ver que
estava cheio de uma grande variedade de snacks doces, desde fruta seca a rebuçados feitos
com mel cristalizado e açúcar, como se fosse o armazém de gulodices duma criança travessa.
No entanto, algumas daquelas coisas não eram nada infantis. Julian retirou uma
garrafa de brandy e o pacote de mel cristalizado.
— Dá-se açúcar para tratar o estado de choque, e todas as formas de poder espírita
constituem uma espécie de choque para o sistema — explicou ele — um esgotamento das
energias vitais, que têm de ser restabelecidas.
Encheu uma caneca de louça branca até meio com brandy e colocou-a por cima da
chama que Truth acendera, depois juntou bocados de coisas que pareceram a Truth mel seco,
até que a chávena ficou cheia. O álcool é uma das maneiras mais rápidas de fechar as
chakras, os centros do poder espírita que estão dentro do corpo humano, junto da espinha
dorsal. É fácil abusar e essa é a razão pela qual muitos dos nossos começam como adeptos e
acabam como alcoólicos.
— Como Ellis? — perguntou Truth.
Sentou-se num banco ao lado da cama de Light e enfiou a mão por baixo do cobertor
aquecido para segurar uma das mãos geladas de Light nas suas, que estavam mais quentes.
— Se quiser. O Abismo é o maior desafio para o desenvolvimento de qualquer mágico.
A maior parte deles falha o teste, de uma maneira ou de outra... como Ellis. Quem sabe o que
teria acontecido a Thorne Blackburn? — disse Julian distraído, mexendo a mistura
extremamente doce com uma colher de chá. — Mais alguns minutos — disse ele, olhando para
ela.
Truth olhou ansiosamente para a cara sossegada de Light. Estava a respirar
normalmente, embora não profundamente, mas o rosto mantinha-se tão quieto, tão pálido...
Lembrou-se novamente do que ambas tinham vivido na biblioteca e logo lhe acudiu ao
espírito uma negação instintiva.
“O quadro de Thorne não tinha mudado. Imaginaste-o.” Embora disposta a admitir
que o frio, a desorientação e a escuridão tinham sido objetivamente reais, parecia-lhe que a
mudança na imagem pintada só podia ser alucinação. Teria medo de que alguma coisa de
Thorne Blackburn tivesse sobrevivido em Shadow’s Gate, ao fim de todos estes anos?
Sobrevivido, mexido e agido?
— Julian, temos que falar.
— De acordo. Acho que já está suficientemente quente. Levante-a, está bem?
— Shadow’s Gate está assombrada — continuou Truth obstinadamente, fazendo o que
ele pedira.
Retraiu-se ao sentir a pele fria de Light, mesmo através da flanela, desejando que
houvesse outra maneira de aquecê-la mais depressa. Mas nem sequer tinha a certeza do que
tinha acontecido, quanto mais de como tratá-la.
— Shadow’s Gate — disse Julian com firmeza — é uma ponte para os poderes
evocados pelo Trabalho de Blackburn, que queremos realizar aqui.
Falava num tom didático, como quem procura acalmar os medos de uma criança. Com
a chávena numa mão e a colher noutra, aproximou-se da cama.
— Era um foco de atividade paranormal muito antes de Thorne Blackburn ter nascido;
comprou-a pela sua reputação como casa assombrada! — argumentou Truth...
— Ai era? — perguntou Julian com indiferença.
Cuidadosamente meteu a colher entre os lábios frouxos de Light, deixando pingar a
mistura de mel e brandy por cima da língua dela.
— Não vai dizer-me que o que aconteceu hoje à noite era uma manifestação de Thorne
Blackburn! — disse Truth, tentando sem sucesso apagar a recordação da transformação da
fotografia e a visita da noite anterior.
— Curvo-me perante o seu conhecimento superior do Trabalho de Blackburn — disse
Julian friamente, enfiando mais uma colher na boca de Truth.
Era imaginação de Truth ou as cores estavam a voltar à face pálida da rapariga?
— Mas se realmente houver alguma coisa a discutir, podemos fazê-lo logo que Light
esteja livre de perigo.
Colher a colher, Julian deu a mistura a Light; quando a caneca ficou vazia as faces da
rapariga já tinham ganho uma ligeira cor. A sua pele parecia mais quente e a respiração
demonstrava que dormia um sono normal. Delicadamente, Truth deitou-a e aconchegou os
cobertores à sua volta.
— Muito bem — disse Julian, pondo de lado a colher e a caneca. — Agora vamos
conversar. Venha comigo.
O quarto de Julian ficava no mesmo andar do de Truth, no lado oposto do quadrado
oco que formava o segundo andar de Shadow’s Gate. Tinha ocupado, como seria de prever, a
suíte principal da casa, os aposentos que Thorne Blackburn teria tido há vinte e cinco anos.
Levou Truth para uma sala decorada a cinzento e azul-escuro, mobiliada com uma
modernidade opulenta que era símbolo da sua posse de Shadow’s Gate. Truth sentou-se num
sofá de veludo cinzento-escuro que lhe envolveu o corpo como uma mão protetora.
— Uma bebida; estamos ambos a precisar.
Julian dirigiu-se ao bar de pau-rosa, elegante e moderno, e deitou dois dedos de
amberfire num copo baixo e pesado, que levou a Truth. Ela bebeu um gole e sentiu o seu
calor revigorante a descer pela garganta e a entrar no sangue.
— O que vai dizer aos outros? — perguntou Truth, passado um momento.
— A verdade... como eu a entendo. Thorne indicou no seu diário mágico que, depois
do Trabalho ter começado, seriam de esperar manifestações deste tipo. Claro que Light é
especialmente vulnerável, sendo uma médium sintonizada com o Trabalho. Eu vou avisá-la e
velar para que Irene fique com ela, porque conhece os perigos melhor do que ninguém.
Julian deu um gole na bebida, encostando-se ao bar, as linhas elegantes, angulares e
masculinas do seu corpo levemente iluminadas pela luz do candeeiro. Uma aura de perigo
pairava sobre ele, como se fosse um grande gato da selva, mas, ao contrário dos tigres no
jardim zoológico, Julian Pilgrim não estava enjaulado.
— E se a causa não for o Trabalho de Blackburn? — disse Truth, achando que estava
a dominar-se admiravelmente.
— As precauções também deveriam funcionar — disse Julian laconicamente. — Mas
desculpe, estou cansado e parece que não estou a falar a sério. Não quero minimizar o seu
envolvimento... e a sua coragem. Seja qual for a causa em que você acredite, pelo menos
concordamos que o perigo hoje à noite foi mortal. Você portou-se maravilhosamente.
Foi um pouco perturbante para Truth perceber como se tinha sentido feliz com o
louvor dele; como se sentia apreciada, como se nada fosse bom ou mau, valesse a pena ou não
tivesse valor, até Julian ter dado a sua opinião e lhe ter dito o que achava. Algures, dentro
dela, Truth reconheceu a insídia desta nova ratoeira e começou instintivamente a lutar contra
ela. Respirou fundo antes de falar.
— Descobri algumas coisas sobre Shadow’s Gate que me levaram a acreditar que é um
centro de energia paranormal; ou, como dizem os leigos, que está assombrada. Descobri o
suficiente sobre a sua história para achar que conheço o centro da fonte primária do
fenómeno. No entanto gostaria de juntar mais provas; por isso, se eu pudesse telefonar para o
instituto, eles podiam mandar uma equipe no fim-de-semana, o mais tardar na segunda-feira.
Eles não o incomodarão...
— Não. — Julian sorriu para retirar a ferroada, mas a sua recusa era incondicional.
— Mas... Por favor, veja as coisas do meu ponto de vista, Julian; uma oportunidade
desta importância, com um potencial tão grande para a documentação...
— Quer você dizer com tanto potencial para o sensacionalismo: “Os Fantasmas
Passeiam-se na Casa Homicida”; “Blackburn Assombra Shadow’s Gate”. Estou surpreendido
por você se tornar vítima de uma superstição tão material; a única coisa que assombra
Shadow’s Gate, Truth, são as suas recordações, e eu não quero ver a minha casa invadida por
estudantes graduados e borbulhentos com T-shirts dos Ghostbusters num período tão crítico
do meu trabalho.
Mas era precisamente durante este período crítico que era preciso investigar os
fantasmas. As manifestações podiam alimentar-se de talentos espíritas; a equipe de Dylan
“alimentava” muitas vezes um fantasma para obrigá-lo a aparecer. Investigadores
experimentados podiam desencadear fenômenos psíquicos em lugares sensíveis e até, de
acordo com alguns investigadores, criá-los do nada, a não ser através da vontade humana.
Seria isto assim tão diferente da magia?
Fosse ou não fosse, a necessidade de estudar e, baseando-se na sua experiência desta
noite, fazer desaparecer a energia psíquica em Shadow’s Gate era vital. Tinha que encontrar
um meio de persuadir Julian que tinha razão, mas Truth sabia que enfrentá-lo não era o
caminho a seguir. Tinha que mudar de assunto e voltar a falar nele numa altura mais propícia.
— Tenho que saber uma coisa sobre Blackburn — disse Truth rapidamente. — Acho
que você sabe a resposta. Em 1969 havia mais filhos de Blackburn em Shadow’s Gate?
— Bem, havia — disse Julian, quase pesaroso. — Havia Light.
Truth olhou para ele, achando que isto era quase oportuno.
Julian fez-lhe uma saúde com o copo, indicando que ia fazer um discurso.
— Como você já reparou, Thorne agradava às mulheres. Sabemos de pelo menos duas
dúzias de mulheres que tiveram, digamos, relações com ele durante a sua carreira, para não
falar sequer das aventuras de uma noite. Havia cerca de catorze mulheres entre as pessoas que
viviam em Shadow’s Gate em 1969, e é bastante óbvio que Thorne dormiu com todas elas
numa altura ou noutra. Tendo isto em conta, é na realidade surpreendente que não tivesse tido
mais filhos, além daqueles de que temos conhecimento.
— Alguns. Não tenho a certeza. Nenhuma das pessoas que faziam parte do Círculo de
Blackburn parece ter achado muito importante legalizar o parentesco das crianças em
Shadow’s Gate.
— Mas com certeza que Irene...? — disse Truth.
— Irene não tem uma noção exata do que se lembra. Fazer-lhe perguntas para as quais
não sabe a resposta só vai perturbá-la — disse Julian.
Era a segunda vez que Julian avisava Truth para não fazer perguntas aos residentes em
Shadow’s Gate. Por quê?
— Por que razão não me pode falar sobre as crianças? — disse ela.
Julian sorriu, contemporizador.
— Está a ser muito paciente comigo. Lamento não saber muito sobre o assunto. Os
filhos de Blackburn não têm sido felizes... excetuando você, claro. Houve mais um que
Blackburn reconheceu, mas com certeza já morreu.
Houve uma pausa.
— Quem? — disse Truth, quando se tornou óbvio que Julian não ia dizer mais nada.
Mas, quando ele falou, foi tão acessível que Truth decidiu que a relutância que lhe notara era
apenas imaginação sua.
— O seu meio-irmão e o de Light, nascido em 60; tanto quanto sei, de mãe
desconhecida; mais uma vez. Thorne parece ter tido um interesse normal pelos seus filhos,
mantendo-os consigo e cuidando deles. Quase que compensa o seu sentido bastante original
para os nomes.
— Truth e Light — disse Truth com um sorriso magoado. — E o rapaz?
— Pilgrim — admitiu Julian. — Foi um choque para mim encontrar o meu apelido
num dos diários mágicos de Thorne, mas no entanto é uma coincidência bastante intrigante,
nada mais. Thorne deu esse nome ao rapaz por achar que ele próprio era um peregrino no
mundo dos homens, um emissário do sidhe.
— Estou a ver — disse Truth.
De repente lembrou-se, com uma certa preocupação, que a sua carteira, com Venus
Afflicted lá dentro estava lá em baixo, onde a tinha deixado cair, provavelmente na biblioteca
de Blackburn. Queria levantar-se de um salto e ir buscá-la imediatamente, mas isso seria
demasiado suspeito. A carteira estava fechada. Ninguém tinha razão para a revistar.
Mas, ao pensar nisso, lembrou-se de que havia uma forma de obter o que queria.
— Espero que mude de opinião em relação a mandar investigar a sua casa, mas
certamente que terá de ser uma decisão sua — começou Truth com astúcia. Julian franziu o
sobrolho, mas ela ignorou-o. — E, por falar nisso, esqueci-me de falar no assunto no meio da
confusão, alguém esteve no meu quarto. Algumas peças de joalharia, extremamente valiosas,
desapareceram.
O olhar azul-turquesa de Julian fixou-se nela com intensidade.
— Acha que devo chamar a Polícia? — perguntou Truth, tentando manter um tom de
inocência.
Os seus olhares prenderam-se e fixaram-se. Truth não recuou: não sentiu nem medo
nem vergonha apenas a alegria de esgrimir com um adversário à sua altura, usando armas que
ambos entendiam. O seu coração batia mais depressa, e a dor e o cansaço desapareceram, sob
a vaga exaltante de conflito.
Não interessava o fato de um ser homem e outro mulher, de um ser rico e outro pobre.
Era assim que lutavam pessoas iguais, em termos iguais, para ver quem ganharia a coroa de
louros.
E assim, evitando a cilada que era o lado escuro da confiança, a abdicação de toda a
responsabilidade, caiu na armadilha oposta, embora só se apercebesse disso passado algum
tempo.
Por fim, Julian riu-se e desviou o olhar.
— Você deve perceber que não quero estranhos aqui; mas não vejo razão para que não
cace todos os fantasmas que queira, desde que o faça você mesma. Claro que ajudaremos; de
fato, pensando bem no assunto, talvez seja uma experiência valiosa para Donner e os outros
verificarem a forma como a ciência lida com o Mundo Escondido. Mais ninguém, Truth.
Os termos eram claros.
— Obrigada — disse Truth calorosamente. Fazer com que Julian fizesse o que ela
queria era excitante, como se os ligasse intimamente; o que poderia ser um prelúdio para
outras intimidades posteriores. — Amanhã telefono para o instituto e vejo se eles me podem
enviar os meus brinquedos — acrescentou ela com leveza. Ao fim e ao cabo tinha ganho e
podia dar-se ao luxo de ser generosa.
Julian aproximou-se dela, tirou-lhe o copo vazio das mãos, dando por finda a
entrevista.
— O melhor é descermos para o jantar. Devem tê-lo guardado para nós, por isso não
precisamos de nos apressar, mas eu disse à Irene para esperar pela sobremesa; quero
comunicar uma coisa. Vá andando; eu desço dentro de minutos.
Truth, concentrada em ir buscar a carteira, ficou contente por poder ir. Tendo presente
os acontecimentos anteriores, entrou cautelosamente na biblioteca; mas estava tudo normal,
até o retrato hagiográfico de Blackburn por cima da lareira. Era estranho pensar que um
acontecimento de tal importância tinha ocorrido há menos de uma hora, não incomodando
ninguém; mas Shadow’s Gate era uma casa grande e bem construída provavelmente os outros
não tinham ouvido nada.
“Podemos esquecer as afirmações de grande poder psíquico de uma certa pessoa! Se
Fiona fosse tão sensível aos fenómenos paranormais como diz, teria estado aqui!”
Truth tentou arrepender-se da opinião que tinha de Fiona; ao fim e ao cabo mal
conhecia a mulher, mas não conseguiu. Fiona Cabot era um tipo de pessoa que Truth tinha
encontrado muitas vezes quando trabalhava no Instituto Margaret Beresford: pessoas que
usavam a justificação de grandes capacidades espíritas para desculparem uma completa
incapacidade de acatarem as regras mais básicas da urbanidade. E os piores, achava Truth,
eram os menos espíritas, como se a posse desse dom aumentasse na proporção inversa da
grosseria.
Encontrou a carteira exatamente onde a tinha deixado cair no chão da biblioteca. Uma
rápida olhadela revelou que ninguém tinha mexido no seu conteúdo. Truth agradeceu de
coração; a quem, não tinha a certeza, e colocou-a ao ombro.
Um movimento na parte da frente da sala chamou-lhe a atenção. Fê-la dar um salto,
mas logo de seguida viu o que era e descontraiu-se. Apenas cinzas de papel a esvoaçarem pelo
chão, empurradas pelo sopro do ar quente.
Mas que papéis foram queimados aqui?
Relutantemente, Truth passou para a parte da frente da sala. Que papéis tinham sido
queimados era óbvio. A grelha estava cheia deles, ao ponto de páginas e páginas, apenas
meias queimadas, encherem o fogão de sala de cada lado da grelha. Como era possível que
não as tivesse visto antes, se até daqui conseguia distinguir as linhas de rabiscos púrpura que
as cobriam, tornando-se pretos em oposição ao castanho na periferia queimada?
Ela sabia o que eram. Tinha-os visto na sua primeira tarde aqui.
Por que e quem estaria a queimar as várias tentativas de Irene de reconstruir o ritual da
Abertura do Caminho de Venus Afflicted?
Teria sido Light e, se assim fosse, por que? Seria o ato de queimar as páginas que
tinha provocado o acontecimento que quase a vitimara?
Mais perguntas por responder. Levantando um pouco mais a carteira, Truth dirigiu-se
ao carro.
Regressou a casa depois de ter guardado a carteira e o livro na mala do carro. As jóias
faziam-lhe falta, mas, fosse como fosse que tivessem desaparecido, amanhã iria procurá-las.
Agora ia ver se conseguia encontrar a sala de jantar sem um guia. Shadow’s Gate dava
mostras de certa instabilidade sobrenatural quando se tratava da localização das salas.
Apesar dos seus receios, a casa não parecia tencionar pregar mais partidas nessa noite,
e através de uma porta entreaberta Truth viu uma sala familiar.
Entrou.
— Mais tempo. Não pode esperar os resultados que quer no tempo concedido.
Irene.
Truth ficou à entrada da sala, onde ela e os outros se tinham reunido para tomarem um
aperitivo, duas noites antes. Através das portas de correr ao fundo da sala, que agora estavam
fechadas, chegava-se à sala de jantar.
— Eu preciso dos resultados que você diz que eu pedi. Sem eles não tenho escolha, a
não ser agir ou tolerar o mal onde ele cresce e assim destruir-me também a mim. Todo o
tempo do mundo não consegue destruir isso, ou a minha natureza ou a natureza daquilo que
combato. E não acho que haja mais tempo, Irene — disse Michael com o seu sotaque
levemente estrangeiro.
As vozes vinham de uma pequena alcova o que tinha sido a sala dos telefones no
tempo áureo da casa. Truth recuou um passo, para não ser vista. Eles não a tinham ouvido.
— Tem que ser! — disse Irene e Truth reparou no tom desesperado da sua voz. — Tem
que ser! Não é justo que você faça uma crítica... ainda não. Tive tão pouco tempo para... —
de repente Irene baixou a voz e Truth teve que se conter para não entrar e ouvir melhor.
Passado um momento, conseguia novamente ouvir a voz de Irene. —... semente do pai. Acho
que já há uma mudança; sei que dentro de algumas semanas estará tudo bem. Trabalhei tanto,
Michael, toda a minha vida; não pode ter sido tudo em vão. Se me deixar...
— Faça o que puder. — A voz profunda de Michael interrompeu as palavras de Irene
num tom de quem quer pôr fim ao assunto. — E eu farei o que tenho a fazer. Não vê, minha
filha? Isto não é uma crítica; eu, entre todas as criaturas, não tenho o direito de julgar as
mudanças que os outros são levados a fazer. É uma profecia. Não vejo outra alternativa a não
ser intervir...
De repente deixou de se ouvir a voz de Michael e, quando este voltou a falar, fê-lo tão
suavemente que Truth teve que se esforçar para ouvi-lo.
— Não chores, minha filha, pois este fim estava escrito no Livro da Vida antes do
mundo ter sido criado, e no fim não há nada que nenhum de nós possa fazer para apagar uma
linha que seja. Fez o melhor que soube ao serviço do seu dono. Agora tem que me deixar
servir o meu.
Truth não ficou para ouvir o resto; de qualquer maneira não conseguiria ficar calada
muito mais tempo, perante toda aquela conversa mística de servir donos. Mas, à parte o
elitismo, havia um pesar verdadeiro, tanto na voz de Michael como na de Irene. Que tipo de
ilusão teriam eles inventado desta vez?
E sobre quem? Truth franziu o sobrolho. Tinha deduzido, depois da conversa que
tinha tido com Michael na véspera, que estavam a falar sobre ela, mas poderia também ser
sobre Light, ou mesmo sobre Julian. Tentou reconstruir o diálogo que tinha acabado de ouvir,
mas não se lembrava das frases.
Alguma coisa não tinha mudado e o tempo estava a acabar e agora Michael e Irene
cochichavam pelos cantos.
Julian não ia gostar disso. Se havia alguma coisa de que Truth tivesse a certeza, era
disso.
Mas quando finalmente chegou à sala de jantar, tendo dado uma grande volta,
interrogou-se se toda a conversa que tinha ouvido não seria mais uma assombração, pois tanto
Michael como Irene estavam ali, sentados à mesa, como se não se tivessem mexido dos
lugares na última hora.
Truth entrou na sala, piscando um pouco os olhos contra a intensidade das luzes.
Olhou derredor à procura de Julian, que nesse momento entrava atrás dela. O lugar à direita
dele estava vazio e tinha um prato com um abafador por cima.
— Alguém me pode explicar o que se está a passar aqui? — perguntou Fiona numa voz
estridente.
— Não — respondeu-lhe Hereward mansamente. Sorriu e os seus dentes brancos
brilharam como os de um lobo.
O lobo cinzento. A revelação atingiu-a como um empurrão nos ombros, idiota e
inegável. Hereward era o lobo cinzento.
O cansaço e o álcool começaram a fazer efeito ao mesmo tempo, drogando os seus
sentidos e pondo-a num falso estado de sonho, no qual manifestas impossibilidades se tornam
realidades plausíveis. Hereward, o lobo cinzento, era um dos quatro Guardiões do Portão, mas
onde estavam os outros?
Olhou à volta da mesa. Apercebeu-se, espantada, que cada um dos convivas parecia
ter outra cara por cima. Caradoc, as feições manhosas do Trickster; Donner, a cara larga e
suave de um animal que ela não conseguia identificar. A anima de Gareth era débil, mais
próxima da alusão do que da verdadeira parecença; Fiona, uma impressão confusa de um olho
brilhante e um bico preto afiado ou dentes afiados.
Não olharia para Michael com esta visão dupla. A mesma persuasão interior
responsável por estas visões hipnológicas disse-lhe para não o fazer e ela obedeceu.
“Ah, aqui está ele”, pensou ela com uma satisfação confusa. Por cima das feições de
Ellis Gardner estava pendurado o halo de um cão preto. Mas onde estava o cavalo branco e o
veado vermelho?
Olhou para Julian, esperando ver os cornos dourados do veado e apanhou o maior de
todos os choques, pois sobre Julian não havia nenhum halo, nenhum nimbo, nem uma
máscara de um espírito.
Por cima de Julian não havia nada a brilhar.
CAPÍTULO NOVE
MAIS ESTRANHO DO QUE A VERDADE
What should I say,
Since faith is dead,
And Truth away
From you is fled?9
SIR THOMAS WYATT

— Bem — disse Julian, quando Truth se sentou no seu lugar — estou a ver que toda a
gente está aqui. Tenho pena, mas Light não virá. Não está a sentir-se bem.
Irene fez uma tentativa malograda para se levantar. Julian sorriu, indicando-lhe que se
devia sentar novamente. Truth achou que ele estava com um ar cansado, embora parecesse
estar bem, quando ela o tinha deixado na sua sala de estar a alguns minutos. O estado de
espírito estranho e meio sobrenatural que se apoderara dela ao entrar na sala de jantar tinha
desaparecido ao olhar para a cara dele: as pessoas e as coisas não eram mais do que aquilo
que pareciam e Truth conseguiu afastar a percepção interior como se não passasse de um
sonho que tivesse tido acordada.
Ou quase. Seria esta outra visão a forma como Light via sempre o mundo? Truth
pensou nas terríveis cicatrizes que tinha visto no corpo da mulher mais jovem e estremeceu
interiormente. Se se via o mundo daquela forma, era muito melhor não falar sobre isso.
Truth olhou para o prato coberto à sua frente. Ainda estava quente: o cheiro a carne e a
molho provocou-lhe uma contração no estômago. A última coisa que queria neste momento
era comida.
— Tenho uma pequena coisa a anunciar — continuou Julian — e vou aproveitar esta
oportunidade em que estão todos reunidos. Há uma mudança no nosso calendário de trabalho.
Esta comunicação parecia inofensiva demais para ser a causa de uma expectativa tão
tensa, mas ao olhar à volta da mesa, Truth percebeu claramente quem estava fascinado pela
mística de Blackburn e quem não estava. A maior parte dos homens: Ellis, Donner, Caradoc
quase não reagiram. Gareth parecia apenas perplexo, como se houvesse alguma coisa que ele
quisesse entender, mas que não conseguia. Hereward parecia abstraído.
Mas Irene parecia mais preocupada do que interessada, e Fiona estava claramente mais
interessada em parecer bem do que em ouvir o que as outras pessoas tivessem a dizer.
— Como sabem, não temos conseguido recriar o material que se perdeu com o
desaparecimento de Venus Afflicted. Apesar disso, iremos continuar com o Trabalho de
Blackburn. Abriremos o Portão na véspera de Todos os Santos, daqui a duas semanas. Será
um trabalho completo, com todos os iniciados vestidos e paramentados conforme a sua
graduação. Sei que não temos o número necessário de pessoas, por isso alguns de vocês terão
papéis duplos, mas acho que vamos conseguir. Agora...
A cena era um pouco bizarra, com Julian a dar instruções como um oficial da RAF
num filme antigo da Segunda Guerra Mundial. Truth tentou não sorrir ao pegar no copo.
Tanto trabalho, tanta minudência... a magia não era isto...
— Julian, você não deve estar a falar a sério!
Irene Avalon estava de pé, olhando para Julian do outro lado da comprida mesa. A
maquiagem berrante que usava nessa noite tornava-a muito mais velha, e a luz dos
candelabros brilhou nos seus brincos ao tremer de agitação.

9
Que devo dizer, / Uma vez que a fé é morta; / Verdade ou distância, / Do que você está fugindo? (N. da T.)
— Você sabe que Thorne queria que o ritual fosse feito durante Beltane, com a maré a
subir e não quando estivesse a descer.
— E realmente foi quando ele tentou... mas resultou? — perguntou Julian
retoricamente. — Não, não resultou. Falhou porque não havia poder suficiente durante a maré
cheia, sendo essa a razão por que proponho usar a maré vaza.
— A maré vaza. As energias chpothic... talvez dê resultado — disse Donner devagar.
— Oh, meu Deus, sim...! E se uma vaca tivesse um motor seria um Volkswagen —
disse Ellis irritado. — Julian, há mais de vinte anos que estou envolvido no trabalho. Uma
pequena reconstrução é uma coisa...
— Olhe... você não tem solução melhor! — disse Gareth a Ellis, levantando-se um
pouco da sua cadeira.
— Acho que não vale a pena sugerir que tentemos primeiro à maneira de Thorne e
depois a sua? — disse Caradoc, falando intencionalmente mais baixo do que Ellis ou Gareth.
Julian sorriu.
— Uma sugestão prudente, Caradoc, e digna da sua posição no templo; só que o Dia de
Todos os Santos é daqui a duas semanas e Beltane é seis meses depois. Não quero esperar
mais um ano para inaugurar a Nova Era, e você? Vamos fazê-lo à minha maneira. Se a coisa
falhar, tentaremos o método de Thorne daqui a seis meses.
— Você não viverá para tentar o método de Thorne! — explodiu Irene. — Julian,
Thorne sabia que os poderes da maré vaza não deviam ser abordados de ânimo leve. Ele disse
que a humanidade não devia usar as energias chtonic, apenas as telúricas, ou seja, os poderes
que se manifestam no mundo dos vivos. Os poderes chtonic são pré-humanos, desumanos;
são demasiado perigosos. A Loja não está completa; você nem sequer tem ninguém para os
graus mais elevados! Você disse...
— Olhe... — Julian inclinou-se para a frente com as palmas das mãos sobre a mesa. —
A não ser que admitamos o sacrifício humano (e lembro-lhe que nem isso funcionou em
1969), temos que encontrar outra forma de incutir mais poder na Abertura do Portão do que
aquele que estará ao nosso alcance na próxima primavera. Do que nós precisamos para abrir
o Portão não é uma gazua, mas sim um pé-de-cabra. Recentemente descobri algumas coisas
que vou partilhar convosco na altura própria, mas vou dizer-lhes agora que acho que as forças
que podemos evocar no Dia de Todos os Santos nos darão esse pé-de-cabra. Se começarmos
os preparativos amanhã, teremos o tempo à justa até a Abertura do Portão, se todos
concordarem comigo.
Fez-se um longo silêncio, mas Julian, como Truth percebeu, era esperto de mais para
quebrá-lo. Tinha uma sensação frustrante de estar num ponto fulcral, de poder alterar os
acontecimentos a seu bel-prazer, mas não sabia como fazê-lo.
— E como resolvemos o fato de não termos o ritual? — perguntou Donner.
— Trabalhamos com o que temos — respondeu prontamente Julian — e improvisamos
o resto. E ao abrirmos o Portão, completamos o trabalho de Thorne, inauguramos uma nova
idade de ouro para os deuses e os homens.
Ele tinha-os conquistado. Truth sentiu a vaga de concordância crescer como se
estivesse no convés de um barco. Fariam o que Julian queria no Samhain, embora sentissem
que estava errado. Ele deslumbrava-os, tal como Thorne Blackburn tinha deslumbrado o seu
círculo há vinte e cinco anos, sem saber qual seria o fim.
E apesar das promessas de Julian, Truth receava cada vez mais que a experiência
terminasse da mesma maneira.
Truth não se lembrava do que fora a sobremesa nem se a tinha comido. Tinha bebido
mais vinho branco do que tencionava, mas não sentia qualquer efeito. De cada vez que o seu
espírito tentava não se lembrar das assombrações que afligiam Shadow’s Gate (e a ela), o fato
desagradável da morte da tia Caroline desafiava mais uma vez a sua mente torturada. A tia
Caroline estava morta e Truth tinha a sensação de ter falhado perigosamente.
Por que tinha deixado por fazer o que deveria ter feito? O que tinha ela feito que não
devesse fazer e o que poderia fazer para remediar as coisas?
“Tarde demais, tarde demais, tarde demais, tarde demais...” A voz ecoava na sua
cabeça.
Foi um alívio levantar-se da mesa ao mesmo tempo em que os outros. Iam tratar dos
seus assuntos do assunto de Thorne Blackburn e ela sentiu uma aversão crescente contra o
trabalho de Thorne Blackburn, mas completamente diferente do ódio irracional que tinha
trazido consigo.
Olhou para a outra extremidade da mesa. Michael estava por detrás da sua cadeira,
olhando fixamente para Julian com um olhar de fome angustiada nos seus olhos.
“Assim possam os condenados no Inferno olhar para o Paraíso”, pensou Truth, e
depois pensou de onde teria vindo aquela estranha referência rococó. Ultimamente o seu
espírito ter um pendor para a teologia, indo buscar questões essenciais do Bem e do Mal que
ela anteriormente achava irrelevantes para a sua vida no século XX.
Michael, sentindo-se observado, desviou o olhar de Julian e olhou para Truth. Ela
bebeu o vinho que sobrara e virou-se, não querendo ver o seu olhar sombrio.
“O mal que os homens fazem sobrevive-lhes. O bem é muitas vezes enterrado com os
seus ossos”, palavras de Shakespeare, retiradas do sótão da memória, que exprimiam bem os
seus pensamentos.
Se o que ela descobrira esta tarde na biblioteca de Shadowkill fosse verdade, então era
certo que o mal tinha sobrevivido ao seu criador em Shadow’s Gate.
E onde, mas onde se enquadrava Michael Archangel? Não era um seguidor de Thorne
Blackburn, mas por qualquer razão, ainda desconhecida, ele atribuía grande importância a
Shadow’s Gate.
Mas a quê?
Preocupar-se-ia com isso amanhã, decidiu Truth. O que quer que fosse, estava
demasiado cansada para pensar nisso agora. Só lhe apetecia um banho e cama. Quaisquer que
fossem os mistérios de Shadow’s Gate, com certeza que poderiam esperar até que estivesse
suficientemente descansada para enfrentá-los.
Quando subiu as escadas não se dirigiu para o seu quarto, mas para o de Light. A irmã
dela. A acreditar em Julian, claro, mas o seu coração tinha precisado de Julian para lhe dizer a
verdade. Truth já sabia que Light estava ligada a ela, desde o primeiro momento em que a
tinha visto.
“Uma irmã.” Truth pensou com prazer neste fato e nos que se seguiram que Light não
tinha que ficar aqui, que Truth a podia levar com ela, que a podia amar tal como sempre tinha
desejado amar alguém.
Alguém de confiança.
Sentiu a incomodativa urgência de fazer uma análise introspectiva, mas afastou-a, tal
como fazia com muitas outras coisas, ultimamente. Teria que esperar. Como se a casa
aprovasse o seu objetivo, chegou ao quarto de Light sem dificuldade e abriu a porta.
A luz da mesinha de cabeceira dava ao pequeno quarto um brilho suave. Light estava
deitada a dormir, tal como Truth e Julian a tinham deixado. Tinha as faces levemente coradas
e respirava profunda e regularmente.
Truth entrou e fechou a porta. O alívio atenuou-lhe a tensão física, como se tivesse
chegado a uma espécie de refúgio ao entrar no quarto. Pegou numa cadeira de madeira e
levou-a para perto da cama, tencionando sentar-se um pouco ao lado de Light antes de
procurar a sua própria cama e alívio que o sono lhe pudesse dar.
Pousou a cadeira com cuidado e olhou de relance para o relógio. Dez horas. Tinha sido
uma tarde muito agitada.
— Não percebo porque faz tanto alarido por causa das jóias.
Uma voz de homem, com uma ligeira dicção teatral. Truth deu um salto como se lhe
tivessem batido e olhou ansiosamente à sua volta, mas a porta estava fechada. Não havia mais
ninguém no quarto a não ser ela e Light.
— Se têm de pertencer a alguém, é a mim. Caro não tinha o direito de levá-las, e muito
menos o de dá-las, nem mesmo a si.
Truth, horrorizada, sentiu a pele arrepiar-se como se estivesse coberta de serpentes
rastejantes. A voz masculina e trocista vinha da boca de Light.
— Quem é você? — Truth forçou-se a manter a voz baixa e regular, não fosse acordar
Light, e a ver quem estava a olhar para ela através dos olhos de Light.
— Santos da casa não fazem milagres.
Com a indiferença objetiva do estado de choque, Truth viu a cara de Light esboçar um
sorriso sardónico, embora os olhos da rapariga estivessem fechados e parecesse estar a
dormir.
— Você não é São Pedro; quantas vezes é que me vai renegar, Truth?
Mesmo que Light fosse o maior dos mímicos, Truth não achava que ela fosse capaz de
imitar aquela voz indiscutivelmente masculina com uma exatidão tão natural.
— Três vezes é o tradicional — disse ela calmamente.
— Muito bem. Então com esta são três e para a próxima vez devia reconhecer-me. E se
realmente quer as jóias de volta, estão na gaveta de cima da cómoda. Mas aviso-a de que são
minhas. Leve-as e estará a levar mais do que imagina.
“Com que então afirma que é Thorne Blackburn?”
Truth engoliu as palavras antes de pronunciá-las. Não queria ouvir a resposta. Em vez
disso dirigiu-se à cómoda dois passos e abriu violentamente uma das gavetas de cima. O anel
e o colar estavam em cima de uma pilha de roupa muito bem dobrada.
— Ficaria surpreendido com o que eu esperava — disse Truth, forçando-se a dizer as
palavras, passado o torpor.
Não houve resposta.
Virou-se para trás. Light estava a dormir pacificamente.
— Blackburn!
A voz de Truth soou como uma chicotada no silêncio. Light mexeu-se e murmurou
agitada, sempre a dormir. Não houve outra reação.
Truth passou uma mão pelo cabelo. “Estou a perder o juízo. Sei que estou.” Virou-se
novamente para a cómoda e tirou o colar. Enfiou-o por baixo da camisola. As contas de âmbar
aqueceram imediatamente, enquanto o ouro permanecia um peso frio contra o seu estômago.
Pegou no anel e meteu-o num bolso da saia.
“Pensa. Não podes ficar histérica. Não existe a magia. Dedicaste a tua vida a prová-
lo. Mas isso não exclui o resto dos fenómenos paranormais. Encara isto como outra
assombração. Só queria saber...”
—... O que está a acontecer aqui... — murmurou Truth em voz alta.
Acariciou o amuleto através da camisola para se sentir mais segura. Existiam
explicações no mundo real para tudo o que acontecera ali, naquela noite. Light devia ter ido
ao
quarto dela, encontrado as jóias e pegado nelas. A psicometria e os dons mediúnicos de Light
explicavam o resto; tinha tido sorte por Light não ter encontrado Venus Afflicted também.
Tinha que encontrar um esconderijo melhor do que a mala do carro.
— Truth?
Desta vez a voz era familiar. Truth voltou rapidamente para o pé da cama e pegou na
mão de Light.
— Viu-o? — perguntou Light.
— Vi quem, querida?
A forma de tratamento carinhosa e pouco habitual manifestou-se com facilidade.
Apertou os pequenos dedos frios que Truth tinha colocado confiantemente nos seus.
— Thorne — disse Light. — Ele às vezes vem e senta-se ao pé de mim. — Bocejou
com uma naturalidade infantil. — Tenho tanto sono — queixou-se Light.
— Queres contar-me o que aconteceu esta noite?
Truth odiava pressioná-la, mas esta talvez fosse a sua única hipótese de fazer as
perguntas antes que Julian falasse com Light.
“Por que é que eu acho isso? Julian tem sido tão bondoso desde que cheguei aqui e
ele nunca magoaria Light.”
Light olhou para ela confiante e meio a dormir, e o coração couraçado de Truth
rendeu-se ao inocente ataque. Light era dela, sangue do seu sangue, que ela devia proteger.
— Thorne e eu fomos à biblioteca — disse Light, sem se dar conta do efeito que as
suas palavras causavam em Truth. — Ele queria que eu tirasse de lá alguns papéis.
— Por que não o fez ele? — perguntou Truth, com uma voz cuidadosamente neutra.
Light riu-se, como se Truth tivesse dito uma coisa extremamente divertida.
— Porque ele é incorpóreo, ora essa! E não pode tocar em coisas, principalmente
porque — mais um bocejo que lhe fez estalar os maxilares — dissipa a energia, especialmente
se for ferro. Por isso fi-lo eu.
— E depois? — perguntou Truth.
— Eles arderam — disse Light, pouco interessada em mais respostas.
Truth lembrou-se do que Julian lhe tinha dito sobre Light e as perguntas e decidiu não
a pressionar mais.
— Arderam — disse Truth. — Foi isso. E agora dorme, está bem?
Como resposta, Light virou-se, aconchegando-se melhor nas almofadas. Daí a um
instante tinha adormecido novamente.
Truth esperou mais um pouco, depois saiu do quarto em bicos de pés, fechando a porta
atrás de si. Thorne Blackburn estava morto. Como o fantasma de Marley, não havia dúvida. E
a não ser que um fantasma mais loquaz e melhor conservado do que os previamente
documentados nos anais da parapsicologia andasse a rondar Shadow’s Gate, Light não tivera
com Thorne Blackburn as conversas que relatara.
E por falar nisso, Truth não tivera com Thorne Blackburn a conversa que parecia ter
tido. Porque não havia e nem podia haver nenhum Thorne Blackburn a falar através de Light;
havia, isso sim, um espírito fraco próximo da loucura e da ilusão.
Até a falsa magia podia ser destrutiva para uma mente frágil.
Truth tinha que tirar a irmã dali antes que a prejudicassem mais. Tinha que impedir
Julian de usar Light nos seus rituais. Mas como? Truth não tinha a certeza da idade de Light,
mas se ela era filha de Blackburn, Light devia ter uns vinte e tal anos, pelo menos; portanto já
chegara à maioridade há muito tempo. Embora Julian não pudesse manter Light aqui contra a
sua vontade, Truth também não podia obrigar Light a ir com ela.
Parecia não haver respostas fáceis. Se Light não quisesse cooperar, o que podia ela
fazer? Truth não suportava expor-se a si mesma ou à sua irmã recém-encontrada à curiosidade
dos meios de comunicação, coisa que não podia deixar de acontecer se ela apelasse às
autoridades para conseguir o que queria.
Talvez sujeitar-se à loucura em Shadow’s Gate fosse melhor do que a crueldade
institucional, que tinha deixado as suas marcas vivas no corpo de Light.
Chegou ao quarto sem incidentes e abriu a porta cuidadosamente. Ninguém lá estava,
embora ninguém pudesse lá estar, claro. Realmente não. Entrou com uma sensação de alívio e
fechou a porta atrás de si. Depois, como um gato, começou a tentar apagar todos os vestígios
de que o quarto tivesse sido revistado: pendurou as roupas, voltou a arrumar as gavetas da
cómoda, até que a única coisa que ficou desarrumada foi a pilha de livros e blocos de notas
em cima da cama.
Indo até à janela, Truth abriu-a e respirou profundamente o ar da noite. Lá em baixo, o
relvado estava verde onde a luz da casa incidia e preto mais além. Esticou o pescoço, mas não
conseguiu ver a cúpula da sala central, por mais que se esforçasse.
Quando olhou para o céu, viu que as nuvens se tinham afastado e que o crescente
prateado da lua brilhava entre as árvores. Estaria cheia no Dia de Todos os Santos, daí a
menos de duas semanas... quando Julian fizesse o seu ritual e provocasse só Deus sabe que
manifestação do poder espírita e incontrolável da nascente subterrânea; a não ser que antes
disso ela conseguisse anular esse poder.
Queria sinceramente que Dylan estivesse aqui. Caçar e controlar fantasmas era
especialidade dele e não dela.
“Ele não pode tocar em coisas. Dissipa a energia, especialmente se houver ferro.”
Recordou as palavras de Light. Seria esta a pista para terminar com as assombrações em
Shadow’s Gate? Fenómenos espíritas e magnetismo pareciam ter uma ligação que ela ainda
não percebera, que talvez pudesse usar.
Por um momento, Truth sentiu piedade por Thorne Blackburn. Tinha quase a certeza
de que ele comprara Shadow’s Gate depois de ter lido acerca da casa em The River Where
The Ghosts Walk. Ele nem imaginava como era forte o espiritismo do local com o qual tinha
brincado; ou pensaria ele que todos aqueles relatos sobre assombrações eram apenas um
logro, uma ilusão como a sua? Talvez o que aconteceu a seguir não tivesse sido culpa sua,
mas a casa a usá-lo...
Truth deu-se a si própria um forte abanão mental. Já era suficientemente mau ter que
investigar Thorne Blackburn, quanto mais arranjar-lhe desculpas! Uma casa “assombrada”
não podia ter vontade própria; as assombrações eram apenas expressões de personalidades
que se tinham ligado a determinados lugares durante a vida, e esses lugares tinham tanta
vontade própria como uma fita magnética! Fantasmas, possessões, espíritos desencarnados,
tudo isso pertencia ao limite obscuro entre a parapsicologia e o ocultismo; uma fronteira que
Dylan Palmer e Colin MacLaren gostavam de explorar e em que Truth Jourdemayne não
participava. Ficaria pelas coisas que conseguisse medir.
Quanto a Thorne Blackburn, não se podia dizer que fosse um candidato ao papel de
vítima. Blackburn tinha arruinado as vidas de todos quantos tinham corrido atrás do seu
paraíso da Nova Era, e mesmo depois da sua morte a sua reputação atraiu outros que estavam
mais do que dispostos a vestir o seu manto vago.
Até Julian, concordou Truth com relutância. Julian, que pensava continuar o trabalho
de Blackburn... que ainda procurava conclui-lo?
E o que fariam Julian e os seus seguidores quando percebessem que a sua magia não
tinha dado resultado desta vez, porque a magia não funcionava nunca...
“Tens a certeza, Truth?”, murmurava uma voz interior. E, embora não estivesse
segura, Truth retraiu-se com desesperança, tentando preservar-se de um mundo em que a
magia e o caos imperavam.
— Investiga a assombração — murmurou Truth para si própria, começando a andar
para cá e para lá diante da janela aberta. O que significava máquinas fotográficas, gravadores;
equipamento especializado e caro que o instituto não lhe entregaria apenas por ela o pedir.
Até Dylan tinha dificuldade em convencer o diretor a deixar sair o material do instituto.
Dylan. Se lhe falasse e lhe explicasse, ele ajudá-la-ia. Compreenderia quando
explicasse que Julian não queria mais ninguém aqui.
Tinha que compreender.
Sem reparar no que estava a fazer, Truth torceu as mãos.
Dylan tinha que compreender, tinha que ajudar; sem ele não podia fazer o que tinha
que fazer.
“Mas alguma vez lhe deste razões para ele te ajudar?”, disse-lhe uma estranha voz
interior.
Truth abrandou e parou. Os amigos ajudavam-se uns aos outros. Seria Dylan seu
amigo? Tinha tentado ser. Fora ela que impedira a amizade de crescer, mantendo-se
indiferente a cada relacionamento que se tinha proporcionado desde que se lembrava. Agora
queria usá-lo, em nome de uma amizade que não existia, exceto talvez no desejo de Dylan.
“Se for esse o preço, então terás que pagá-lo. Rende-te e torna o sonho dele real, se
esse for o preço da sua ajuda”, disse-lhe a voz interior e desumana. “Nós pagamos as nossas
dívidas. É essa a lei. Quem nos vincula por compromisso, vincula-nos para sempre; é essa a
lei do sangue.”
Truth sentiu a força do discernimento ou da fantasia; já não sabia como subjugá-la,
calando-a com uma fúria misturada com terror, sabendo que o Outro não emocional e frio
apareceria nos seus sonhos, aquele que ia buscar a sua força a esta casa e à terra onde se
encontrava, e que estava em contradição com a paixão quente e humana.
Uma paixão que Truth sempre negara até agora, quando lhe davam a hipótese de
desenraizá-la da sua alma para sempre.
Truth gemeu, deixando-se cair na cama e virando-se até que o medalhão de ouro do
colar de âmbar se enterrou na sua pele. Falibilidade humana ou perfeição alheia, toda a vida
recusara fazer essa escolha, sabendo que um dia teria que escolher entre ambas.
Tal como Blackburn tinha escolhido, e escolhera a humanidade, sabendo que esta o
destruiria.
— Estás a identificar-te demasiado com o assunto — disse Truth desafiadoramente em
voz alta, conseguindo dar uma gargalhada insegura. — Chama-se transferência. E assim,
quando uma pessoa sensata faria as malas e fugiria pela noite dentro aos berros, tu vais
começar a investigar a sério.
Respirou profundamente, reconhecendo o seu medo da mudança, do desconhecido, de
mágicos que se poderiam tornar homicidas. A primeira coisa que faria amanhã seria telefonar
a Dylan desde que conseguisse encontrar um telefone que funcionasse em Dutchess County
e ver se havia alguma maneira de o convencer a mandar-lhe o equipamento do Instituto
Bidney para caçar fantasmas. Depois veria como estava Light, tentaria ter uma conversa
sensata com Michael e, sim, tentaria continuar a investigação para a biografia, que era a razão
primeira da sua presença ali.
— A mensagem de Thorne Blackburn para o mundo: não comprem casas assombradas
— disse Truth em voz alta. — Gostaria de ter alguém com quem falar... Irene.
Truth agarrou-se ao pensamento como uma palha no vendaval. Irene tinha estado aqui
há vinte e seis anos, quando tudo tinha acontecido. Conhecera a mãe de Truth e de Light.
Apesar do que Julian tinha dito, Truth podia perguntar-lhe sobre as crianças, sobre Thorne
Blackburn, mesmo sobre a assombração. Se conseguisse o apoio de Irene em relação ao
perigo das manifestações paranormais em Shadow’s Gate, até talvez conseguisse persuadir
Julian a deixar Dylan vir investigar.
De repente, desesperadamente, Truth queria Dylan aqui, quanto mais não fosse porque
casas assombradas eram a especialidade dele e não a dela... e talvez porque não podia
continuar toda a vida a catalogar as últimas hipóteses e oportunidades perdidas e não agarrar
nenhuma delas.
Falaria com Irene nessa mesma noite.
A decisão, depois de tomada, trouxe-lhe conforto e uma nova vitalidade era uma
espécie de ação. Truth alisou o cabelo e olhou a sua cara no espelho. Estava bem.
“Razoavelmente sã, queres tu dizer.”
No último momento tirou o colar, enfiando-o na cómoda. Depois abriu a porta e saiu
para o hall.
Mais uma vez, o tempo passara de forma estranha, ou então ela tinha meditado e
arrumado durante mais tempo do que pensara. Os corredores estavam escuros quando ela saiu,
Tendo, por única iluminação, candeeiros sombrios e espaçados nas mesas do hall. Quando
olhou para o relógio era quase meia-noite. Agora, onde poderia encontrar Irene? Na primeira
noite descobrira que o quarto de Irene ficava mesmo ao virar do corredor. E Julian não lhe
tinha indicado o quarto dela hoje à noite? Sim, ele tinha dito que ficava mesmo por baixo do
de Light, no andar de baixo; agora, se ela conseguisse calcular a partir dali...
Talvez por infelicidade, não foi muito difícil. Truth virou no corredor mesmo a tempo
de ver a porta que sabia ser de Irene abrir-se e um homem a sair. Truth parou onde estava,
quase não tendo coragem para respirar. Ficou a olhar.
O seu cabelo loiro, mais comprido do que o de Fiona e ondulado, caía-lhe pelas costas
abaixo. Usava jeans à boca de sino, cujas pernas tinham sido alargadas com bocados de tecido
de tapete, e um colete de lã multicolor sobre uma T-shirt manchada. No pulso esquerdo, no
sítio onde normalmente se veria um relógio, usava uma fita larga, que parecia preta na luz
sombria.
Conhecia a figura de centenas de fotografias.
Fechou suavemente a porta e todos os seus movimentos eram os de um jovem amante,
dando por terminada a visita à cama da sua amada; depois dirigiu-se ao hall com um passo
elástico e determinado.
Thorne Blackburn.
Um fantasma do passado. Um homem com o corpo magro e forte, de uma geração
anterior aos complexos vitamínicos, anterior ao jogging, anterior ao ténis. Se era um fantasma
ou um homem de carne e osso, Truth não sabia, mas sabia que a figura que desaparecia não
era ninguém que ela já tivesse visto em Shadow’s Gate.
“Estranho. Ele é menor do que eu pensava”, pensou Truth, sufocando o riso perverso
que lhe subia do peito. Agora não fazia sentido acordar Irene se ela estivesse a dormir.
Mas que confusão que isto era, mesmo que ninguém estivesse a tentar enganar os
outros! Imaginou a reação de Julian se ela lhe contasse que tinha visto Thorne Blackburn a
andar pelos corredores de Shadow’s Gate. Seria a mesma que ela teria tido há uma semana.
“Que trapalhada”, pensou Truth novamente, e voltou para o quarto.
Quando abriu a porta, reparou resignada que alguém lá tinha estado novamente,
enquanto ela tinha saído. Os livros que trouxera da biblioteca e que tinha deixado num monte
em cima da cama estavam empilhados em cima da secretária e o seu bloco de notas estava
aberto em cima do monte. Pelo menos, quem quer que tivesse revistado o quarto, tinha sido
muito arrumado.
Fechou a porta atrás dela, embora nesta altura quase não valesse a pena, e dirigiu-se à
secretária. O seu bloco de notas estava aberto numa página de notas biográficas sobre Thorne
e fora escrito na letra arrojada que tinha visto no álbum de fotografias.
“Mentiras, tudo mentiras. Mas a verdade também o é, Truth.”
Devia ser a letra de Blackburn e no momento estava disposta a aceitá-la como tal,
embora isso fosse impossível. Se fosse verdadeira, esta escrita era mais uma razão para
investigar.
Se alguém a tinha imitado, então por que?
O seu corpo tremeu com uma tensão pouco normal, enquanto vestia o pijama e se
enfiava na cama, mas não tencionava dormir e arriscar-se a sonhar. Escreveu no diário até os
olhos lhe arderem, anotando e catalogando meticulosamente impressões, descrevendo as
assombrações com uma indiferença objetiva: o vórtice na biblioteca, a aparente
“canalização” de Thorne através de Light, a sua visão dele no hall. Era uma cientista. Não
iria teorizar antes de possuir todos os dados.
Indicou escrupulosamente em cada um qual era a margem de erro, de mal-entendidos
ou de um simples erro.
Exceto no último caso, à meia-noite Truth não se sentia uma testemunha de muita
confiança, ou mesmo nenhuma.
Uma assombração ou, na linguagem da sua profissão, um acontecimento paranormal:
uma coisa perante a qual as pessoas comuns troçavam, tanto como Truth troçava em relação à
magia. Mas Truth, que tinha procedido não por fé, mas pelo trabalho até agora, acreditava em
fenómenos paranormais e sabia que representavam um perigo que estes “mágicos” não
estavam a levar a sério.
Truth abanou a cabeça, divertida. Julian achava que conseguia controlar, com algumas
palavras mágicas e encantamentos, o que a casa decidisse fazer-lhe, tal como um antigo pagão
que atirava virgens para o vulcão, esperando um resultado complacente, e com o mesmo
efeito.
Partia do princípio, claro, que tinha razão. Mas não podia haver outra explicação, ou
então toda a sua vida se baseava num erro.
Pôs os blocos de lado e virou-se para os livros que tinha trazido da biblioteca.
Interessada na história de Shadowkill, leu a noite toda até o sol já ir bem alto.
Na luz imperdoável da manhã, Truth estudou o seu reflexo no espelho. A sua cara
estava pálida de cansaço e falta de sono; os olhos brilhavam em contraste com as olheiras
roxo-escuras por baixo. Bem, assim seja. Já sobrevivera a muitas noites em branco. Estaria
bem, se não tivesse que fazer nada de complicado; guiar, por exemplo.
Ao ver que a casa de banho afinal não tinha chuveiro, Truth lavou-se com a esponja
em vez de tomar banho de tina, usando a água fria para acordar melhor. O que quer que viesse
ter ao seu quarto esta noite, ia dormir ou então admitir a derrota nas mãos de um bocado de
carne cozida; uma migalha de batata mal cozida, para usar uma frase de Charles Dickens.
Vestiu-se depressa, enfiando umas calças caqui e uma camisola quente de gola alta.
Um pouco informal, mas tinha feito as malas para andar a mexer em arquivos e não para se
dar com pessoas do nível de Julian. Bem, talvez fosse a pé até Shadowkill durante a manhã e
comprasse algumas coisas para melhorar o guarda-roupa. Duvidava que hoje conseguisse ter
algum pensamento mais elaborado. A única coisa que planeara por agora era ir ver Light e
depois encarar a sala de jantar para tomar o café da manhã e ver como as coisas corriam a
partir dali.
Mas quando subiu ao quarto de Light, no terceiro andar, encontrou-o vazio.
— Ela saiu com Julian — disse Irene, espreitando com uma braçada de roupa dobrada,
que explicava o que estava a fazer no terceiro andar.
Na luz da manhã impiedosa, Irene parecia quase pintada de encarnado; o cafetã
púrpura e dourado que usava parecendo um fato bizarro. Todas as linhas da sua cara estavam
descaídas pelo cansaço e pela tristeza. Irene Avalon parecia mortalmente doente, mas de
momento Truth não tinha tempo para a compaixão.
— Para onde? — disse Truth rispidamente. “Para onde levou ele a minha irmã?”
— Estão no templo. Mas...
Truth não ficou para ouvir o resto.
Virou, tornou a virar, virou novamente e desceu; estava realmente a tornar-se perita
em encontrar o caminho em Shadow’s Gate, pensou ela com uma calma desesperada,
chegando ao andar de baixo e ao estranho e estreito corredor que dava finalmente para o
grande pátio central da casa. Avançou até A porta e tentou um dos puxadores de latão que
imitavam o sol e os seus raios.
Estava fechada. A porta estava fechada.
— Julian! Abra a porta!
Truth bateu à porta com força, sem se preocupar com as conseqüências de interromper
a sessão que Julian poderia estar a fazer com Light; mas Julian sabia que Light era frágil,
sabia que ela tinha estado doente, como ousava ele submetê-la a isto agora?
Por fim, com dores e sem conseguir respirar, parou. Pela reação que obteve, Truth
podia estar a bater nas paredes de uma casa a seis condados dali. Encostou-se à parede,
esfregando a mão pisada e ofegando. Alguém neste mausoléu deveria ter uma chave algures e
ela ia arranjá-la.
A primeira paragem que efetuou na sua busca foi a sala de jantar. Ellis, tinha a certeza,
teria a chave, mesmo que tivesse roubado a sua própria cópia. Mas quando lá chegou, a figura
solitária que encontrou a descansar foi Michael e não Ellis.
— Onde está Ellis? — perguntou Truth rudemente. — Tenho que entrar no templo.
Michael estava vestido como sempre, com a estranha formalidade que Truth vira nele
desde a primeira vez: mesmo ao pequeno almoço, no seu próprio lugar, usava um fato escuro
e uma gravata de seda. Mas as roupas de Michael não eram uma extensão do seu poder, como
as de Julian. Michael usava a roupa como se fosse um traje estranho e nativo e ele o emissário
aristocrata de um grande império.
Michael levantou-se quando ela entrou, gravemente cortês.
— Acho que ele ainda está a dormir — disse ele. — Julian manteve-os acordados até
muito tarde ontem à noite e Ellis tem um papel particularmente trabalhoso no ritual. Truth, o
que aconteceu? Está branca como a cal. — Deu um passo na direção dela.
— Tenho que entrar no templo — repetiu Truth com um desespero obstinado. — Julian
está lá com Light e...
Ela parou quando viu a expressão na cara de Michael.
— Light no templo? Não, ela não está lá — disse Michael surpreendido. — Julian
levou-a a dar uma volta de carro pelo campo. Saíram agora mesmo. Julian partiu daqui há
quinze minutos mais ou menos. Eles...
— Bolas! — a voz de Truth soou com a fúria das suas emoções massacradas. — Em
qual de vocês devo acreditar? Irene disse-me que eles estavam no templo... e o templo está
fechado!
Michael quase olhou para ela com pena.
— Eu não lhe mentiria nunca, e muito menos em relação a Light. Talvez lá tivessem
ido por um minuto, mas é verdade que os vi a saírem de carro, tal como lhe disse. E Julian
mantém sempre o templo fechado, quando não estão lá dentro.
Puxou a cadeira ao lado da sua e sentou-se, observando-a com os seus olhos escuros.
Truth sentou-se devagar na cadeira oferecida, já envergonhada pela sua explosão
violenta, devido à explicação calma de Michael. Era verdade que tinha o direito de estar
preocupada com o bem-estar de Light, mas exaltar-se assim...
— Conte-me o que aconteceu ontem à noite — disse Michael.
Truth olhou para ele sem expressão e Michael empurrou o termo do café na direção
dela. Truth confortou-se com a rotina caseira de se servir do café da manhã e a sensação da
loiça quente entre as suas mãos. O primeiro gole restabeleceu-lhe o auto-domínio.
“Autodomínio. É isso que Shadow’s Gate destrói em primeiro lugar. E depois todo o
resto.”
Ao princípio hesitante, depois mais suavemente, à medida que a recordação da fúria a
animava, Truth relatou a Michael o vórtice na biblioteca de Blackburn e o colapso de Light.
— ... e quando lhe disse que queria investigar a casa, ele recusou. Ao princípio —
emendou ela apressadamente. — Mas não posso fazer tudo sozinha! E Julian tem que
compreender que fenómenos como este são sérios; ele vai ter que encontrar outra pessoa que
não seja Light se quiser brincar de Teatro Sagrado. Não pode usá-la mais; não depois daquilo!
— Mas você está errada, Truth — disse-lhe Michael sombriamente. — É mesmo aquele
tipo de demonstração que convence Julian de que está na pista certa e que tem que continuar
o seu trabalho... com Light.
Como se não tivesse dito nada de dramático, Michael empurrou o cesto de pãezinhos
quentes para Truth. Os frascos de compota brilhavam à luz do sol, com o seu conteúdo
turmalina, âmbar e dourado.
— Ele está errado — disse Truth simplesmente, sem emoção.
Tirou um pãozinho e considerou as suas próprias palavras. De alguma forma,
pareciam estranhas.
— Você está errado — emendou ela conscientemente. — Julian é... Ele não faria uma
coisa dessas. Ou faria ?
— Não... mas... Mas também não vai desistir. Gastou muitos anos e sacrifícios
inacreditáveis para chegar ao ponto onde chegou. Não vai parar. Tem tão pouco tempo, afinal.
Truth franziu o sobrolho. Tanto Michael como Irene tinham dito que o tempo era curto
na noite anterior. Mas para um homem com os recursos de Julian, ou recursos aparentes, isto
não fazia sentido. Se Julian Pilgrim era realmente aquilo que parecia...
— Por que? Por que é que têm pouco tempo?
Michael sorriu, envergonhando-a pela sua imaginação selvagem:
— Simplesmente porque a Abertura do Portão que ele quer tentar não é uma coisa que
ele possa fazer sozinho. Precisa no mínimo de sete pessoas e seria melhor se tivesse mais,
segundo entendi. E além de um médium que entre em transe, a concepção de Blackburn
necessita também de um Hierolator — disse Michael delicadamente.
Mesmo neste momento, Truth tinha apenas uma idéia muito vaga do que era o papel
do Hierolator, a Concubina Sagrada, nos rituais de Blackburn, mas sabia que era o papel de
Fiona. Sentiu-se levemente zangada, como se vivesse as emoções que de direito pertenciam a
outra pessoa.
— Necessita de sete pessoas — repetiu Truth submissa. Reviu os nomes mentalmente:
Gareth, Donner, Caradoc, Hereward e os restantes. — Mas se contar com ele próprio tem
nove.
— Durante quanto tempo? — disse Michael. — As alianças mágicas são por natureza
mágicas. Julian mantém estas pessoas aqui pela força da sua vontade.
“E por pagar as contas”, pensou Truth com ironia, mas conseguia entender o ponto
de vista de Michael. Julian não tinha uma verdadeira autoridade, temporal ou espiritual, sobre
os seus acólitos. O que os mantinha com ele era a esperança de obterem resultados mágicos
ou, possivelmente, mais ganhos materiais.
— Julian tem que agir rapidamente — disse Michael.
— Ele disse que ia tentar no Dia de Todos os Santos; acredito que o faça. E você deixa
de estar em perigo assim que o sol nasça...
— Oh, Michael, lá está você outra vez! — disse Truth cansada. — O que acha que ele
vai fazer? Sacrificar-me ao deus Pan? Acho que conheço melhor o caráter das pessoas do que
isso.
— Nunca disse que Julian era um perigo para si — lembrou-lhe Michael, e Truth corou
pela sua própria presunção. — O perigo para si virá do conhecimento. Se você descobrir o que
temo que descubra, o que não pode deixar de acontecer se continuar aqui, não poderá nunca
voltar à sua vida anterior com a sua paz e alegrias simples.
— O que o leva a pensar que as tenho? — disse Truth de repente e a exposição daquele
fato fê-la corar novamente.
Quase lhe tinha dito que a sua vida era vazia e que não havia nada que a levasse a
lutar.
Truth compreendia agora que tinha passado toda a sua vida a lutar contra, numa
resistência obstinada que não lhe deixava tempo para o autoconhecimento.
— Quero dizer, se é tão perigoso, por que não falar-me sobre isso, para eu poder
decidir se fico ou não? — acrescentou ela rapidamente, para encobrir os seus sentimentos. —
Isto não é o In goldstadt do século XVIII, Michael; não existe nada que “o homem não deva
saber”, e de resto todos nós vivemos todos os dias pavores imagináveis: A fome, a guerra. —
Parou, fazendo um gesto com a chávena meia cheia de café. — O que pode ser mais
aterrorizante do que a sida? Ou um tiroteio de rua?
Michael sorriu amargamente.
— Se eu me explicar de forma a que você compreenda e aceite a veracidade das
minhas palavras, terei falhado, porque você passará a conhecer a verdade da qual eu a quero
poupar. Enquanto houver esperança que você permaneça inocente, tenho que ficar calado;
para seu bem.
“Olhe, você é mesmo um membro da Inquisição?” As palavras impertinentes que
Truth queria pronunciar formularam-se no seu espírito, mas acabou por não as dizer. Michael
era suficientemente sério para ser assustador; Truth achava que ele acreditava no que dizia, e
desde a noite anterior passara a admitir, honestamente, que tal credulidade não significava
automaticamente que ele fosse maluco.
Impulsivamente, estendeu a mão, colocando-a por cima da sua.
— Desculpe, Michael. Sei que você está a falar a sério. Provavelmente até é verdade.
Mas não posso ir-me embora. Não posso!
Ao analisar-se interiormente, Truth ficou levemente surpreendida por ver que tinha
dito a verdade. Se fosse embora agora, qualquer que fosse a razão, uma peça essencial do
mecanismo que a tornava Truth Jourdemayne e não outra mulher qualquer ficaria partida para
sempre.
A mão de Michael fechou-se por cima da sua, oferecendo-lhe um refúgio que Truth
sabia não poder aceitar, permanecendo o que era. Teve uma visão súbita de si própria como
uma traça, murchando na chama implacável do fogo santo e purificador de Michael.
— Vou rezar por si e esperar que você encontre a força necessária para ir — disse
Michael.
— E acho que você e eu vamos ter uma longa conversa no dia 1 de novembro — disse
Truth, tentando tornar as coisas mais leves.
Todos os seus instintos lhe gritavam para fugir de Michael; não do que ele lhe poderia
fazer, mas simplesmente do que ele era. Forçou-se a ficar onde estava, segurando a mão dele.
“Filha da Terra, este não é o teu lugar...”
Michael sorriu-lhe com a suavidade dolorosa de quem segurava mais uma vez um
fardo demasiado grande que, no entanto, tinha de carregar até ao fim.
— É pena — disse ele pesarosamente, tirando a mão e levantando-se.
Por um breve instante, Truth sentiu o seu desgosto como o dobrar de um grande sino.
Depois Michael saiu da sala, deixando Truth sozinha.
O sol da manhã brilhava nos pendentes dos candelabros apagados, tornando o seu
brilho monótono. A simpática sala, com a sua elegante mobília vitoriana, papel de parede em
brocado e cortinas de veludo a condizer, parecia tão estranha como se tivesse sido montada
por marcianos para um ritual estranho e extraterrestre. Truth esticou a mão que Michael tinha
segurado e olhou para ela como se nunca a tivesse visto.
Quem deveria ser e o que deveria fazer, quando todas as suas convicções sobre a
natureza da realidade sofressem um golpe mortal? E se estas pessoas não fossem doidas? E se
a maneira delas verem o mundo estivesse certa, e não a dela?
E se o pai que ela odiara durante todos estes anos não fosse um monstro, mas um
herói?
A dor das lágrimas que brotavam dos seus olhos era como ácido, fazendo-a levantar-
se.
— Não — murmurou ela. — Eles estão enganados. É apenas um jogo estúpido. Vou
prová-lo. Vou mesmo!
A sala que continha a coleção de Blackburn era sossegada e austeramente calma na luz
da manhã, como um templo construído apenas para a serenidade do pensamento.
“Mentiras”, lembrou-se Truth com tristeza, tendo consciência de que teria
inevitavelmente de perder a batalha que estava a travar. Tal como parecia estar a perder o
juízo. Porque, se não podia ter visto e ouvido as coisas que tinha ouvido, então o que restava
para ela acreditar?
A sala tinha um leve cheiro a limão e viu que as cinzas da lareira tinham sido varridas.
Pensou quem teria feito a limpeza; na verdade, quem se ocuparia de todas as limpezas em
Shadow’s Gate? Seguramente não era Irene, apesar de tê-la visto esta manhã a subir para
fazer a cama de Light. Irene não podia fazer o trabalho todo em Shadow’s Gate sozinha,
apesar de Truth não se lembrar de ter visto outros criados, a não ser Hoskins, o cozinheiro, e
Davies, seu assistente. Então se não era Irene, nem Hoskins, quem era?
Mas pequenos mistérios domésticos deste tipo não eram da sua conta, pois não? Olhou
novamente para a lareira. Tinha de se lembrar de perguntar a Julian o que é que fora
queimado ali, embora já tivesse tido uma resposta de Light ou daquilo que tinha falado
através dela.
Se ela estivesse disposta a acreditar.
E se estivesse...
Não. Com um esforço quase físico, Truth afastou estes pensamentos pouco razoáveis,
recorrendo à armadura da lógica que a tinha protegido toda a vida. Havia uma assombração,
nada mais. Dirigiu-se à lareira e, ao fazê-lo, sentiu uma súbita sensação de frio, como se
estivesse numa corrente de ar.
Mas dantes não havia aqui nenhuma corrente de ar. O que houvera, como na noite
anterior, fora um acontecimento paranormal, e para que tal coisa pudesse ocorrer aqui, tinha
que haver uma espécie de foco, um lugar na sala em que a atividade se centrava... e tais
lugares eram quase sempre caracterizados por um ponto frio.
Tal como este.
E como poderia testá-lo? A hipótese de ter equipamento adequado era ainda longínqua
e dependente de conseguir apanhar Dylan e obter a sua ajuda. Mas precisava de respostas
agora!
Truth olhou à volta da sala e viu um amontoado de material de escritório abandonado
casualmente em cima de uma das estantes mais baixas. Havia um rolo de fio e um bocado de
giz.
Serviam.
Um clip seria um contrapé o aceitável num pêndulo improvisado. Truth cortou um
bocado de fio com a sua altura, menos 20 cm suficientemente comprido para que, quando o
pendurasse com o braço esticado, o clip de metal que pesava ao fundo ficasse apenas a 2 cm
do chão. Em menos de cinco minutos, os seus preparativos estavam completos.
Pôs-se ao lado do lugar onde sentia a corrente de ar e esticou o braço com o prumo
pendurado. Dylan tinha dito que os melhores pêndulos eram de cobre, por qualquer razão que
tinha a ver com a eletricidade. Truth só esperava que um clip de aço fosse um substituto
aceitável. Tinha lido o trabalho dele sobre a localização de fenómenos em lugares frios que
descrevia o que ela ia fazer, mas na verdade nunca tinha visto uma demonstração do
procedimento.
Tinha tido medo. Agora compreendia. A parapsicologia era ótima quando era uma
coisa medida por computadores e laboratórios, mas confrontar a ciência desconhecida no seu
próprio território, era coisa de que ela tinha fugido, com medo do que poderia ver.
Havia tanta coisa de que se tinha mantido afastada, com medo de encará-las
abertamente. Tantas oportunidades perdidas.
E agora Michael queria que ela continuasse a esconder-se; ele não via que era como
pedir-lhe para se enterrar viva?
Rangendo os dentes, Truth endireitou-se firmemente, olhando fixamente para baixo e
esperando que o movimento do prumo parasse. Desenhava preguiçosamente círculos,
abanando para a frente e para trás, andando cada vez mais devagar, até que parou.
Mas, quando parou, não ficou pendurado na posição vertical.
Truth piscou os olhos, tentando não perturbar a quietude do pêndulo. Era difícil de
acreditar no que via, apesar de estar a ver exatamente o que a investigação de Dylan a
preparara para ver: o fio de prumo, pendurado dos seus dedos, a cair obliquamente, com o
prumo a puxá-lo para fora da vertical, como se um ímã invisível o puxasse.
Truth fixou o lugar para onde o pêndulo puxava. Quando ela se mexeu, começou a
balouçar novamente, caindo normalmente, como se a sua suspensão pouco natural tivesse sido
apenas um truque de luzes. Fez uma marca no chão com o giz e andou uns passos para o lado,
segurando mais uma vez o pêndulo com o braço esticado. Sentiu uma cãibra nos ombros ao
forçar-se a segurar o pêndulo firmemente, esperando que fosse parando devagar.
Meia hora mais tarde, tinha o pescoço e os ombros doridos e marcas de giz com uma
forma oval irregular, com cerca de um metro de diâmetro no eixo mais longo. Dentro deste
perímetro invisível, a temperatura era pelo menos quinze graus inferior à temperatura noutro
sítio da sala.
“Apanhei-te!”, exultou Truth silenciosamente. Quando tivesse montado o
polibarómetro para medir as flutuações, seria como se tivesse um estetoscópio para o coração
da casa.
Os valores máximos e mínimos do fenómeno seriam expressos pelas variações de
temperatura e pressão.
Truth franziu o sobrolho. Estava tudo muito bem, se fosse verdade. Mas tinha quase a
certeza (nove décimos da certeza) de que a nascente era o centro da atividade e a nascente
ficava por baixo do templo de Julian e não aqui.
Não era? Truth suspirou, enrolando a linha num pequeno rolo à volta do pêndulo.
Depois parou.
Estava a ser observada.
Apercebeu-se disso de repente, como uma revelação, tanto mais chocante por estar em
frente às altas portas duplas de carvalho que abriam para a sala, mas que não tinham sido
abertas.
Ela estava sozinha nesta sala.
Mas a sensação de estar a ser observada era tão intensa que era quase dolorosa e Truth
rendeu-se a ela, deixando cair o rolo e fazendo com que o pêndulo começasse a girar à sua
volta quando ela se virou para olhar para a parede atrás de si.
As paredes na biblioteca tinham a habitual moldura ornamental comum a casas
antigas, mas agora havia uma racha longa e escura ao longo da parte de fora da moldura,
direita como uma régua, ao longo dos painéis de madeira, desaparecendo nas rachas do
soalho.
Uma porta.
Tinha dado dois passos em sua direção, quando percebeu que quem lhe tinha tornado
visível esta porta escondida poderia estar por detrás dela e, de repente, Truth não acreditava
que quem quer que fosse tivesse apenas intenções benignas. Truth hesitou, presa entre a
curiosidade e o senso comum.
Ouviu-se um gemido agudo, parecido com o som que se obtém quando se passa um
dedo molhado sobre o bordo dum copo de cristal. Depois um baque, pesado e rígido, como se
fosse um machado a cair num toro.
Truth voltou para trás, vendo o enorme quadro de Blackburn, com uma moldura
dourada, com 1,8 por 1,2 polegadas, a cair na cornija da lareira de mármore branco, partindo o
lado de baixo da moldura de gesso ornamentada. Teve apenas tempo para saltar para trás,
ouvindo os pequenos bocados de gesso a baterem no chão como se fossem granizo, enquanto
a imagem enorme caía majestosamente para a frente, desabando no chão no lugar onde Truth
estava pouco antes. O impacto provocou um ruído tremendo, como o trovão do Juízo Final.
Truth engoliu em seco. A parte da frente da moldura estava a menos de um palmo dos
seus pés. Se não se tivesse dirigido para a porta escondida, estaria agora debaixo do quadro.
A porta.
Virou-se novamente para ela e não viu nenhuma linha na parede. Forçando as suas
pernas vacilantes a obedecerem-lhe, Truth dirigiu-se para a parede e passou a mão,
procurando um sinal da porta que tinha que estar ali.
Não havia porta nenhuma, nenhuma junta, nenhuma possibilidade de haver uma porta.
A pintura formava uma superfície lisa e intacta, impossível de falsificar. Não poderia haver ali
uma porta.
“Pode ter sido uma alucinação; mais um acontecimento paranormal” postulou Truth
com esperança, sentindo uma raiva familiar por ter que se pôr a adivinhar. Simplesmente não
sabia; já não havia maneira de saber quais eram as regras.
Virou-se para os destroços, dos quais tão facilmente poderia fazer parte. Os destroços
de gesso da moldura ornamentada e dourada formavam um padrão branco no chão de pinho
amarelo. Agora que estava ao contrário, via-se que o retrato de Blackburn não tinha sido
pintado em tela, mas em madeira. O quadro e a moldura, em conjunto, deviam pesar quase
cem quilos. Truth sentiu um arrepio pela espinha acima. Poderia ter ficado esmagada, os ossos
partidos... ou pior. Procurou uma das cadeiras, agarrando-se às costas para se apoiar enquanto
se sentava.
Agora que o perigo imediato tinha passado, a reação começou a sério, fazendo os seus
músculos dançar e tremer como se respondessem à vontade de outra pessoa. Lutando contra o
frio que ameaçava enregelá-la, Truth esforçou-se por focar a sua atenção no que tinha acabado
de acontecer. O quadro tinha caído.
Por que? Já não acreditava em coincidências.
Truth ouviu o barulho da porta a abrir-se.
— Ah, bem — disse Caradoc, na soleira da porta. — Eu... — Olhou do quadro caído
para o sítio onde Truth estava sentada. — Precisa de ajuda?
CAPÍTULO DEZ
VERDADE OU OUSADIA

There is nothing só extravagant and irrational


which some philosophers have not maintained for truth.10
JONATHAN SWIFT
Truth riu-se desamparada, olhando do quadro para Caradoc.
— Embora possa parecer o contrário, a iconoclastia não é um dos meus vícios. Caiu
apenas.
“Não foi? ‘
Caradoc veio ter com ela. Nos sítios onde a luz incidia o seu cabelo curto castanho-
escuro parecia vermelho, emprestando-lhe um leve halo flamejante. Pôs-se ao lado dela,
olhando sombriamente para o chão.
— Alguém — disse Caradoc depois de uma longa consideração — vai ter que o
levantar e colocá-lo de novo na parede. Julian vai ficar muito chateado.
Fez esta afirmação com uma satisfação sombria.
— O painel não parece estar rachado, por isso o quadro não deve estar estragado —
disse Truth o mais animadoramente que conseguiu — mas acho que a moldura já não presta
para nada.
Caradoc roncou significativamente.
Ela olhou novamente para a parede. Lá em cima, na superfície creme clara, via-se um
pequeno círculo brilhante, ao nível da parede, como um buraco causado por uma bala,
contendo ainda a bala lá dentro: a metade da escápula que segurara o gancho do quadro.
Olhou para baixo e viu a outra parte. A parte da frente da escápula partida estava entre a
poeira do gesso, quase junto dos seus pés. Era da grossura de um dedo, parecendo que alguma
coisa o tinha cortado.
— Mas que desordem! — disse Caradoc novamente, chamando a atenção para si. —
Você teve sorte em não estar por baixo. Eu ia a descer para o pequeno almoço quando o ouvi
cair; pelo menos achei que fosse isso, parecia o fim do mundo. Pensei que fosse trovoada, ao
princípio.
Involuntariamente, Truth olhou pela janela. O céu azul não mostrava nenhum indício
de tempestade.
— Ah, claro! — disse Caradoc, como se ela tivesse falado — mas hoje à noite vamos
ter outro temporal, vai ver.
Hesitou como se quisesse ficar, mas não tendo a certeza de que a sua presença fosse
bem-vinda. Truth pensou qual teria sido a primeira impressão que causara nos habitantes de
Shadow’s Gate para ele se comportar assim. Agora, mais do que nunca, não podia dar-se ao
luxo de ficar isolada, de ser posta de lado. Na batalha que iria travar, precisaria de aliados, e já
esperara o tempo suficiente para encontrá-los.
Afastou a estranha intimidação, não querendo que esta a distraísse.
— Caradoc — disse Truth, determinada a encontrar um terreno comum e respostas para
as suas perguntas — alguém já mencionou passagens secretas aqui em Shadow’s Gate? Nas
paredes ou qualquer coisa parecida?
Caradoc franziu o sobrolho.
— Parece que há uma por baixo da cozinha e que dá para o estábulo; para o local onde
havia dantes um estábulo, quero eu dizer, há mais ou menos cem anos. Mas acho que foi
10
Não há nada só extravagante e irracional, / que alguns filósofos não tenham mantido pela verdade. (N. da T.)
fechada deste lado para impedir que o chão da cozinha caísse, quando Blackburn era o dono,
contou Julian. E sei que há escadas secretas nos quartos do terceiro andar que vão dar às
torres. Julian mostrou-as nos planos. — Caradoc olhou para ela de forma inquisitiva.
— Mas não aqui? — disse Truth.
— Não há nenhuma no andar de baixo, com exceção da cozinha. Não haveria espaço,
com a sala dos tambores e os corredores à volta, pois não?
— Sala dos tambores? — perguntou Truth.
— O templo. Alguns de nós chamam-lhe a Sala dos Tambores. Sabe, é redonda, e
quando se está lá dentro durante uma tempestade é como estar dentro de um tambor; tudo faz
eco.
— Ah!
Sentindo que as suas pernas estavam suficientemente firmes, Truth levantou-se.
Mexeu no gesso espalhado pelo chão com a ponta do sapato e debruçou-se para apanhar a
escápula. Virou-a entre os dedos, olhando para a superfície lisa do corte. A escápula que
segurara o quadro à parede tinha-se partido a direito, sem ter os bordos torcidos e ásperos, o
que seria normal no metal usado.
Mas se tivesse sido cortada, não teria caído no instante em que tinha sido cortada, em
vez de esperar que ela estivesse por baixo? E não poderia ter sido cortada no momento antes
de cair, a não ser que Shadow’s Gate estivesse assombrado por gremlins que usassem lasers.
Tentou outro assunto.
— Oiça, Caradoc, o que acha de Julian mudar a Abertura do Caminho assim? “E tu o
que pensas, Truth Jourdemayne?”, pensou Truth, ouvindo-se a si própria a falar.
Caradoc encolheu os ombros:
— Talvez dê resultado da maneira que ele quer. Mas também pode acontecer que
sejamos bem sucedidos e não o saibamos durante semanas. A magia é assim.
“Se tiver êxito, sabê-lo-á em segundos.” Truth não sabia de onde lhe vinha essa
certeza interior, nem a convicção desesperante de que Caradoc não entendia os verdadeiros
perigos do Grande Trabalho que tinha iniciado. A sua magia era uma magia de alegoria e de
gnose, e não apenas de mero poder sobrenatural.
— A magia ocupa-se, na realidade, da transformação pessoal, sabe, e não de todas
aquelas coisas do David Copperfield — continuou Caradoc. — Acredito no que Blackburn
estava a tentar fazer e não estou a ver outra altura melhor para se abrir a Porta entre os Dois
Mundos. A raça humana precisa de uma certa ajuda, sabe?
Truth olhou do pedaço de metal em suas mãos para a cara de Caradoc. Os seus olhos
cor de avelã brilhavam com convicção, como se tivesse visto o problema de toda a dor
humana e percebido que podia fazer alguma coisa para contrabalançá-la, uma disposição que
era quase uma galanteria despreocupada, achando que o seu próprio conforto não era
relevante
perante essa ação piedosa.
Truth achou este pensamento de um idealismo tão passional, profundamente
perturbador.
— O que acha que vai acontecer se a Porta entre os Dois Mundos for aberta? —
perguntou ela, passando do geral para o específico.
Além disso, Truth tinha curiosidade em saber o que ele diria. Precisava ter outras
opiniões sobre o resultado final do Trabalho de Blackburn, se decidisse continuar com isto.
— Bem, segundo o próprio Blackburn, os domínios dos deuses e dos homens foram
separados pela vontade dos deuses na pré-história. A recordação da separação sobreviveu
como o mito da expulsão do Paraíso, mas na realidade foram os deuses que se foram embora,
e não os humanos que foram expulsos — começou Caradoc com ar de quem estava a dar uma
lição bem aprendida.
Truth aguardou com expectativa.
— Bem — disse Caradoc. — As comunicações sempre foram possíveis entre os
domínios (é disso que trata a magia) e claro que os deuses podiam interceder no mundo
humano como quisessem, mas depois de a Porta Entre os Mundos ter sido fechada, os
humanos já não podiam ir livremente para o mundo dos deuses.
— E Thorne Blackburn ia mudar tudo isso? — perguntou Truth.
Parecia uma proposta ambiciosa para alguém que ainda não tinha trinta anos quando
morrera.
— O Trabalho mudaria tudo isso — corrigiu-a Caradoc com suavidade. — Blackburn
sentia que o ritual da Abertura do Caminho (são duas semanas de rituais, na verdade, mas
toda a gente que fala sobre isso acha que só o último é que conta) daria início à reação em
cadeia que uniria novamente o reino dos deuses com o reino dos homens. E finalmente
poderíamos perguntar-lhes porque nos tinham deixado.
Por detrás das suas palavras calmas, Truth ouviu o choro de todas as crianças
abandonadas:
“Por que me deixaste, paizinho?”
“Mãezinha? Não me deixes, não vás...”
— E os deuses permitiriam a reabertura dessa Porta? — perguntou Truth, numa voz
calma.
Tinha as suas dúvidas sobre a crença de Caradoc de que os deuses (se eram realmente
deuses) deixassem os seres humanos deitar abaixo a parede que eles tinham levantado.
— A filosofia de Blackburn dizia que tudo o que o homem era capaz de o fazer, o
homem tinha o direito de o fazer; que o espírito do homem não devia estar sujeito nem à
vontade da Igreja nem à do Estado. Claro que não desculpa coisas como roubo e assassínio
em massa — acrescentou Caradoc; uma apologia que ele devia fazer muitas vezes, achava
Truth.
— Compreendo — disse Truth, embora o que compreendesse era que a filosofia de
Thorne Blackburn era uma desculpa para uma carreira de irreverência e de liberdade, cedendo
aos apetites e à mera loucura, tudo em nome do Serviço a Uma Verdade Superior.
Mesmo que interpretasse da forma mais generosa possível os objetivos de Thorne, a
humanidade não estava preparada para aderir a um código moral tão sutil. Ela queria dizer
algo mais, talvez até explicar. Mas não conseguia encontrar as palavras e a oportunidade
passou.
— Acho que vou ver se o Julian já se levantou e contar-lhe o que aconteceu ao quadro
— disse Caradoc relutantemente.
— Ele não está aqui. Saiu com Light, disse o Michael — lembrou-se Truth.
Ficou aliviada por ver que Caradoc parecia achar isto normal.
— Ele faz isso muitas vezes. Parece que ajuda. Pobre criança! Será melhor para ela
quando tivermos aberto a Porta.
— Como? — não pôde Truth deixar de perguntar.
Caradoc olhou para Truth levemente impaciente.
— Logo que a Porta esteja aberta e os deuses tenham voltado, Light já não será
anormal. Será normal — disse ele finalmente.
— “Os vossos jovens terão sonhos e os vossos velhos terão visões”, Isaías, não é? —
disse Truth.
— Qualquer coisa assim — disse Caradoc, subjugado de repente. — De qualquer
maneira, apanharei Julian quando ele voltar. Quer vir tomar o pequeno almoço?
— Não — disse Truth, pensativa. — Tenho que fazer algumas coisas. Mas obrigada.
Caradoc deixou-a e mais uma vez Truth teve a sensação de ter enfrentado um desafio
ou de ter passado num teste.
“Os vossos jovens terão sonhos e os vossos velhos terão visões”, citou Truth. Mas
quando o profeta bíblico Isaías disse estas palavras, estava a falar do Eschaton (Último
Julgamento) do Fim do Mundo. Ragnarok. Armagedon. Ele não podia adivinhar o que os
séculos vindouros fariam das suas palavras.
Mas seria que a interpretação de Blackburn estava tão longe da do profeta? Ele não
queria dizer que a Abertura do Caminho era o princípio do fim?
Se fosse assim, o que Julian tencionava fazer não era um ritual alegre de
esclarecimento, mas algo mais sombrio.
Muito mais sombrio.
De acordo com as promessas da companhia de telefones celulares, o novo telefone
celular de Truth não trabalhava e, em vez de verificar se um dos telefones em Shadow’s Gate
estava a funcionar, Truth viu-se a percorrer o caminho até Shadowkill, que teoricamente teria
telefones públicos a funcionar.
Pelo menos, esta missão deu-lhe a oportunidade de tirar o colar e o anel do seu
esconderijo na gaveta para o esconderijo mais seguro na mala do carro, permitindo-lhe tirar a
carteira ao mesmo tempo.
Parecia uma louca caça ao tesouro, mas ao contrário. E Truth pensou desesperada
quanto tempo se poderia manter um passo à frente daquelas pessoas desconhecidas,
determinadas a pilharem os seus tesouros. Certamente que estas viagens freqüentes ao carro
quando toda a sua bagagem estava lá dentro fariam desconfiar a pessoa mais confiante.
De pé atrás quanto à influência fantástica de Shadow’s Gate, Truth analisara-se o
melhor que podia ao caminhar pela estrada que levava ao portão. A fazer fé nas suas
sensações, Shadow’s Gate exercia uma influência perceptível nas suas emoções ou na
imaginação. Longe da influência do local, descobriu uma forte necessidade de pôr de parte
tudo o que acontecera. Ao passar pelos portões de ferro ao fundo do caminho foi como se
tivesse tomado dois Valium e uma dose de uísque. Não admirava que voltasse sempre, como a
heroína de uma novela grega que se quer destruir, se tudo o que acontecia perdia a sua
ressonância emocional quando saía da propriedade.
Intrigada, testou-a, uma coisa mais fácil de fazer a pé do que de carro. A fronteira não
era clara e Truth achava que se movia, mas existia. Por que seria que os outros não o tinham
mencionado? Talvez não saíssem muitas vezes da propriedade, mas Gareth passava pelo
menos uma parte do dia na casa do portão. Certamente que tinham reparado no que Shadow’s
Gate lhes fazia. A não ser que não provocasse nada neles e fosse ela a única visada a filha de
Thorne Blackburn.
A resmungar, admitiu que era possível que o fenômeno de Shadow’s Gate visasse
apenas a ela. Pelo menos, tinha havido um aumento de acontecimentos paranormais desde que
ela tinha chegado.
Mas atingi-la como?, pensou Truth, depois de ter chegado sã e salva à cidade. Em
Shadow’s Gate era verdade que se encontrava numa montanha russa emocional anormalmente
exacerbada, mas não seria essa a reação normal à investigação do seu passado, carregado de
emoções? E se era, não perturbaria isso a sua calma normal?
Antigamente isto seria fácil de decidir, seguramente que estava no seu estado normal,
e as fantasias histéricas que vivia em Shadow’s Gate eram ilusão.
Mas Light tinha-se magoado. O quadro tinha caído. “Deixa que tudo o que queiras
seja um sonho ou uma visão”, disse Truth para si própria; aquelas coisas eram reais; tão reais
como o local frio no chão da biblioteca. Alguma coisa se estava a passar na casa que uma vez
pertencera a Thorne Blackburn.
E como uma heroína de novela de terror, mas por razões muito mais válidas, Truth
voltaria a Shadow’s Gate para forçar a casa a revelar os seus segredos.
Se conseguisse.
— Dylan? É a Truth!
— Truth! Mas que bom! Onde estás tu? — Dylan estava genuinamente contente por a
ouvir e Truth sentiu-se levemente culpada pelo fato de estar apenas a telefonar para pedir um
favor.
— Estou num pequeno lugar chamado Shadowkill. Fica em Dutchess, vim cá para
visitar Shadow’s Gate e...
As frases estudadas saíam-lhe com facilidade; a história da casa que tinha descoberto,
a sua convicção de que era um centro de energia paranormal, os acontecimentos que já tinham
tido lugar até agora.
— ... Apenas um pouco de PK e alguma transferência: um local frio na biblioteca, mas
não acho que a verdadeira acção se passe ali. Há um médium a viver aqui e...
“E ela é minha irmã”, acrescentou Truth silenciosamente. Continuou a explicar o que
tinha aprendido e o que tinha adivinhado.
— Ele não admite que apareçam estranhos por aqui, mas não levanta objeções ao
equipamento de observação, por isso pensei...
Ela tinha voltado à biblioteca em Shadowkill para usar o telefone e estava sentada
num banco estreito e angular na cabina antiquada de madeira. Através do vidro podia ver o
balcão de informações da biblioteca e as filas e filas de livros nas estantes da viragem do
século, mais ao fundo.
Shadowkill era uma cidade simpática, simples e amigável.
Então porque tinha tanto medo, como se houvesse alguma coisa de que queria protegê-
la e pudesse falhar?
— O quê? Dylan, não te ouvi.
Consciente de que o seu espírito estava a vaguear, Truth foi empurrada para o presente
pelo tom interrogativo na voz de Dylan.
— Eu disse “porque não deixar-me ir até aí este fim-de-semana com um caminhão e
alguns dos meus estudantes graduados, montar tudo e fazer alguns testes.” Posso levar-te a
jantar fora e...
— Não! — A recusa foi tão instantânea que foi rude e Truth apressou-se a emendá-la.
— Julian não quer estranhos aqui.
Houve uma pausa.
— Ah! — disse Dylan, e a sua voz soou um pouco mais fria. — Julian. O novo e
solitário dono de Shadow’s Gate?
— Sinceramente, Dylan, parece que saíste duma novela romanesca — respondeu Truth
com rispidez.
Naquele momento não se lembrou das fantasias melancólicas sobre oportunidades
perdidas. Estava muito irritada com Dylan e era difícil lembrar-se de que estava a tentar que
ele fizesse o que ela queria.
— Sabes... Olha, claro que este homem é riquíssimo e talvez até pudesse comprar o
instituto todo com trocos...
Dylan riu-se.
— Só se os bolsos dele tiverem dois milhões e meio de dólares de fundura.
— Bem, talvez — disse Truth, pensando no que vira até agora.
Fez-se silêncio.
— Ele está a fazer o Trabalho de Blackburn — disse Truth de repente.
— Ele sabe quem tu és? — perguntou Dylan com cuidado.
— Sim. — “Para o diabo, uma filha.” — Só que eu... eu tenho... A minha irmã está
aqui, Dylan e...
— Eu vou até aí — disse Dylan, interrompendo-a. — Não sabes no que te estás a
meter com essas pessoas.
A sua presunção de que tinha o direito de interferir irritou-a, mas ao mesmo tempo, no
fundo, divertia-a que este inocente tivesse a presunção de querer protegê-la, não sabendo
quem ela era.
O momento passou.
— Se tu sabes, Dylan, então estou preocupada contigo — disse Truth, tentando ser
leve. — É que eu sei exatamente como são estas pessoas.
— Uma irmã. Tu falaste numa irmã — disse Dylan. Parecia nervoso.
— Blackburn teve outros filhos — disse Truth corajosamente. — Um deles está aqui.
É tudo.
Fez-se um silêncio fulminante no outro lado da linha que deu a entender a Truth, que,
na opinião de Dylan, não era nada “tudo”.
Esta conversa não estava a correr nada bem. Teria ela sido assim sempre tão
desajeitada a relacionar-se com outras pessoas? Ou era apenas porque Dylan Palmer tinha
tempo para penetrar a sua fria armadura?
“Uma escolha”, murmurou a sua voz interior. “Tens que fazer uma escolha, Filha da
Terra.”
— Olha — disse Truth, tentando falar novamente no assunto. — O mais importante
agora é tentar determinar a extensão do fenómeno paranormal aqui em Shadow’s Gate. Julian
não se importa que tu tragas uma equipe em novembro e que faças o que te apetecer, mas
acho que temos que começar agora. Preciso de ti.
“Isto aqui é perigoso, Dylan, mas se eu te contar, tu não vais ouvir mais nada do que
eu te disser.”
Truth interrompeu-se, suspirando, e esfregou a testa com a mão livre. O cansaço da
noite passada em branco fazia-lhe doer os ossos, mas não era apenas isso. Tudo parecia
cansativo, como se o cansaço formasse paredes invisíveis que a impediam de seguir o
caminho que lhe era apontado.
— Preciso de ti — repetiu ela — para que me arranjes o equipamento. A máquina
fotográfica. Alguns monitores. Eu sei o que estou a pedir, Dylan...
— Não, acho que não sabes — disse ele calmamente, e a conversa morreu novamente.
— Que tenho eu de dizer para que faças o que eu quero? — perguntou Truth frustrada.
Se isto era um exemplo da chamada vida normal que as pessoas lhe diziam para fazer, ficaria
onde estava, muito obrigada. — Preciso desses monitores. Preciso saber, antes que alguém se
magoe — acrescentou ela num tom de voz mais baixo.
Através da linha interurbana, ouviu Dylan a suspirar.
— Truth, não é isso. Estes monitores não são baratos. Mesmo que eu leve apenas um
dos conjuntos barométricos e uma máquina fotográfica... Sabes que um rolo custa cento e
vinte dólares? Em que orçamento vou eu esconder estes custos?
— Eu pago — murmurou Truth.
—Não é assim que as coisas se fazem, Truth. — Ela ouviu-o a suspirar novamente e
imaginou que sentia a respiração dele a mexer as madeixas de cabelo enroladas à volta da sua
cara; e essa imagem repelia-a ou atraía-a? — O que estás tu a fazer aí? — perguntou Dylan
desamparadamente.
Desta vez, as emoções dela ficaram descontroladas e o seu autodomínio quebrou-se
como um prato.
— O que estou eu a fazer, Dylan? Estou a fazer o que tu e toda a gente sempre me
massacraram para fazer. Estou a envolver-me. Estou a ser impulsiva. Estou a tomar contacto
com os meus sentimentos. Que diabo, até estou a ter contacto com o meu pai! — O riso que se
seguiu foi trocista e mal controlado. — Estou a conhecer o meu pai melhor, Dylan. Não é
coisa que tu aconselharias?
Sentiu a euforia apoderar-se dela. A excitação de saber que se quisesse podia ferir com
uma palavra, mudar o curso de vida dos outros, forçá-los a obedecer, porque tinha o poder de
comandar...
— Eu vou até aí e vou-te trazer comigo. E se esse teu Julian me tentar impedir... — a
voz de Dylan soou irritadiça e áspera. Truth sentiu a tensão entre eles como uma chicotada,
trazendo-a de volta ao mundo.
— Este meu Julian dir-te-á com toda a razão, Dylan Palmer, que tu não tens o direito
de me tratares como uma adolescente que fugiu de casa — disse Truth.
Esforçou-se por conter a sua voz trémula e exaltada. Todos os seus instintos lhe
diziam para gritar com ele; se ele estivesse aqui, ela arranhá-lo-ia...
— Sou uma mulher crescida. Preciso desse equipamento. Achei que me ias ajudar.
Não queres. É tudo.
As mãos dela tremiam. Respirou fundo.
— Eu ajudo-te. — Dylan falou tão baixo que ela teve que se esforçar para o ouvir. —
Vou ver o que consigo arranjar. Tens um número para onde te possa ligar?
Ela tinha ganho, mas a vitória não a fazia feliz.
— Estou em Shadow’s Gate, mas os telefones não são de muita confiança. Aluguei um
portátil, só que ainda não funciona. Podes tentar ambos.
Deu-lhe ambos os números. Ele leu-os novamente.
Truth hesitou. Dylan não merecia este tratamento dela.
— Lamento ter-me irritado contigo, Dyl. Eu...
Hesitou em falar-lhe sobre a morte da tia Caroline, depois afastou a idéia de usar a
morte da tia para comprar uma compaixão barata. O que quer que acontecesse, não ia usar
isso.
— Ultimamente, tenho tido alguns problemas pessoais — disse ela finalmente. — E
estou preocupada com estas pessoas. Estão a brincar de ocultistas numa casa assombrada e
acho que estão a brincar com o fogo.
— E com o dinheiro que Julian tem, como tu dizes, podem comprar uma caixa de
fósforos realmente cara — disse Dylan, acabando o raciocínio dela. — Se houver... se houver
mais alguma coisa que eu possa fazer, Truth, basta dizeres-me. Talvez o Colin...
— Estranhos não — disse Truth rapidamente. — Julian... — Que poderia ela dizer para
que ele não ficasse novamente apreensivo? — Espera apenas algumas semanas, Dylan, está
bem? Depois do Dia de Todos os Santos vai ficar tudo bem.
Até mesmo para ela, o som das suas palavras tinham um eco triste: como o de um
assobio ecoando no cemitério.
— Se achas que sim... disse Dylan duvidoso. — Vou fazer o que puder.
— Obrigada — disse Truth honestamente. Queria dizer mais alguma coisa, mas
detestava pensar em dizer alguma coisa que não fosse verdadeira. — Quando precisei de
ajuda, pensei em ti — disse ela finalmente. As palavras saíram-lhe com uma honestidade
relutante.
Conseguia ouvir a satisfação de Dylan na respiração contida e teve uma súbita e
perturbadora visão da força dos sentimentos dele por ela. Ela não tinha feito nada para
merecê-los; e a força desses sentimentos fazia-a sentir-se presa, quase indignamente.
— Não, não indignamente. Quase pesarosamente, como se amá-la fosse fazer a corte à
destruição.
— Bem, então continua a pensar em mim, está bem? E amanhã telefono-te, desde que
consiga a ligação — respondeu Dylan.
— Está bem.
Alguns minutos depois, Truth tinha pousado o telefone e já se esquecera da maior
parte da conversa, deixando para trás os sentimentos feridos de Dylan e a vontade dele de
ajudá-la. Dylan merecia mais do que uma palavra simpática dela.
Durante algum tempo deixou o seu espírito vaguear, imaginando como seria falar com
Dylan sobre coisas inconseqüentes, passear com ele pela Universidade de Taghkanic sem
nenhum outro motivo ou objetivo em mente. Descobrir como era Dylan Palmer e como ela
seria com ele.
Depois a realidade interveio como o fechar de uma porta de ferro. Mesmo que Dylan
não se importasse de perder tempo, por que estaria ele interessado em perder tempo com ela?
Se ele soubesse o que ela era...
“E o que é isso, precisamente?”
Mas ele sabia, não é verdade? E ainda não tinha fugido.
“Já está pronta para fugir, Truth?” Recordou a voz de Hereward na primeira noite
em que chegara a Shadow’s Gate.
Mas, desta vez, as palavras não tinham piada.
Truth demorou-se o mais que pôde em Shadowkill, comprando o almoço no
restaurante chinês da rua principal, procurando em todas as pequenas e caras boutiques alguns
acessórios para renovar o seu guarda-roupa. Já que ia ficar em Shadow’s Gate durante um
período mais longo, não queria parecer um parente pobre.
Numa das suas paragens, Truth encontrou um delicado xaile azul-escuro; fios
prateados de lurex, tecidos pelo meio, davam-lhe o aspecto do céu numa noite estrelada, e
embora não tivesse qualquer idéia de como poderia usá-lo, comprou-o imediatamente.
Comprou também um colete comprido em patchwork com veludos coloridos na mesma loja e
um par de brincos de prata com ónix verde e marcassita. Já estava novamente na rua, tendo
decidido que já tinha gasto dinheiro demais, quando viu o vestido.
O nome da loja era Innovations, e Truth decidira, ao olhar para o letreiro simples em
letras douradas no canto inferior da loja, que era melhor nem entrar. Isso foi antes de olhar
para o vestido na montra.
Estava num manequim de vime e era de seda. Tinha todos os tons possíveis de verde,
desde o brilho azulado do coração de uma esmeralda até ao amarelo-turmalina como os olhos
de um tigre. A seda tinha sido marmoreada; as cores das tintas utilizadas formavam um
padrão ondulante de flâmula.
O corte era simples: linha princesa, com um decote debruado com um cordão de
veludo azul, mas era a saia que tornava o vestido realmente especial. Mesmo ao vê-lo
pendurado no manequim na montra, Truth conseguia ver que a bainha da saia tinha sido
cosida com uma dúzia de triângulos de uma rede opalina que parecia seda, armando-a como
num conto de fadas, como se um dos vestidos de baile da Cinderela tivesse ido parar à aldeia
de Shadowkill por engano.
O vestido brilhava.
— Quanto custa o vestido da montra? — perguntava Truth momentos depois.
A vendedora com quem ela falou foi suficientemente esperta para não lhe dizer
imediatamente; tirou o vestido do manequim e entregou-o a Truth. O tecido escorregava nas
mãos de Truth como flocos de inverno, flexível e a brilhar à luz.
— Na verdade não precisa de nenhuma jóia — disse a vendedora astuciosamente. —
Pode amarrar uma fita de veludo verde à volta do pescoço. Acho que tenho uma aqui, se
quiser ver como fica.
Truth segurou o vestido à luz. Parecia que devia servir-lhe.
— Quanto custa? — disse ela com firmeza, recusando-se a ser seduzida por padrões
como asas do martim-pescador contra o céu, ou uma superfície brilhante como o orvalho da
manhã na relva.
A vendedora, vencida, disse um número parecido com o salário semanal de Truth.
“Não está mal”, pensou Truth. “Pagaria o dobro na cidade.”
E ela merecia alguma coisa, uma compensação, algum conforto, um vestido para levar
ao baile...
— E o xaile que comprou vai ficar lindamente com o fato — disse a empregada com
esperança.
Truth olhou para baixo, para um canto do xaile azul-escuro que espreitava de um dos
sacos. Duvidava que a vendedora tivesse razão, mas quando o pôs ao lado do vestido à luz da
janela viu que era verdade.
Meia-noite e a suavidade do prado, e a liberdade selvagem que ela se negara a vida
toda, aí estavam elas, prontas a servirem.
— Se calhar não me serve — disse Truth, tentando escapar.
— Provavelmente serve. Por que não o experimenta?
Claro que servia. Dentro do pequeno gabinete de provas, Truth olhou para o espelho e
trocou os nós de ouro pelos balouçantes brincos de prata. O verde nas longas pedras com a
forma de um losango repetia os verdes da superfície pintada do vestido, e a saia cingia-se e
ondulava à volta das suas pernas, brilhando e cintilando, mostrando ora um membro nu, ora
seda desenhada, e no momento seguinte uma espuma de gaze incandescente.
Quando atirou o xaile por cima dos ombros, viu uma princesa cigana refletida no
espelho, poderosa e controlada.
“A roupa é poder. Esse é um segredo que os magos sempre conheceram. O hábito faz
o monge; podes vestir o poder como um manto e transformares-te na pessoa que queiras
ser...”
Abanou a cabeça e os brincos cintilaram, e agora a única coisa que não condizia eram
os bons sapatos castanhos para andar que Truth trazia calçados.
Deixou Innovations quinze minutos depois, com o vestido embrulhado em papel
dentro de uma caixa, com uma fita verde-azulada amarrada ao pescoço e com a morada da
sapataria ainda na mão. Que lhe importava se não existia nenhum local onde pudesse usar tão
maravilhoso fato? Ela podia inventar o local e a altura para usá-lo ou usá-lo onde quisesse.
Quando chegou à loja dos sapatos, a mulher sentada atrás da caixa registradora
pareceu-lhe vagamente familiar. Truth olhou fixamente para ela, tentando perceber de onde a
conhecia.
— Sou a Mary Lindholm, lembra-se? Da pensão?
— Ah, claro. Só não esperava vê-la hoje aqui — disse Truth. — Como vai?
A senhora Lindholm fez uma careta.
— O técnico de seguros disse que nunca tinha visto uma coisa assim; foi como se
alguém tivesse tirado o telhado e encharcado tudo com uma dessas mangueiras de trinta mil
galões por minuto. Para começar vão substituir os fios elétricos. Só não sei como pôde
acontecer... — levantou-se com esforço. — Então, estou a ajudar a minha prima, para estar
longe da desgraça. E como posso ajudá-la?
Truth explicou o que precisava.
— É para condizer com esta cor — acrescentou ela, tirando o vestido de forma a ver-se
o debruado de veludo verde.
A senhora Lindholm sorriu:
— Acho que tenho exatamente aquilo que procura. Que número calça?
Minutos depois voltou da sala das traseiras com uma caixa nas mãos.
— Bem me parecia que ainda os tinha lá dentro. Roxy ia devolvê-los no fim da
estação, mas esqueceu-se e os retalhistas ambulantes não aceitam devoluções a partir de uma
certa data. Experimente estes e veja se gosta. Posso fazer-lhe um bom preço.
Truth pegou na caixa e olhou lá para dentro. Os sapatos eram de veludo verde com um
salto dourado guarnecido com esmeraldas de imitação. A parte da frente do sapato era
enfeitada com renda dourada e tinha mais esmeraldas de vidro; sapatos dignos da rainha do
país dos elfos. Olhou para o nome do estilista, inscrito em ouro na palmilha e engoliu em
seco. Não havia maneira de podê-los pagar, especialmente depois de comprar aquele vestido.
Mas não seria divertido experimentá-los, fingir...
Truth sentou-se e desatou os práticos sapatos castanhos. Calçou as meias curtas que a
senhora Lindholm lhe ofereceu; não tencionava experimentar sapatos hoje e não tinha vindo
preparada para isso; e depois enfiou os sapatos.
Andou até o espelho, consciente do brilho cintilante dos sapatos a cada passo que
dava. Sentia-se como Dorothy no Feiticeiro de Oz, só que os seus sapatos eram esmeralda e
não rubi.
— São perfeitos — disse Mary e disse um preço apenas um pouco mais alto do que o
do vestido — e estão por um terço do preço que deveriam custar.
— Mas estes são do Stuart Weizmann! — disse Truth. Os sapatos deslumbrantes do
estilista eram a última palavra em elegância e custavam mais de mil dólares.
— Todos nós temos momentos de indulgência impulsiva — disse Mary Lindholm. —
Por que não ficar com eles? Roxy viu-os numa apresentação e também não conseguiu resistir-
lhes, mas como vê ainda aqui estão. Eu bem lhe disse que não conseguia vendê-los em
Shadowkill.
— Estava enganada — disse Truth com firmeza, entregando-lhe o cartão de crédito
sem esforço.
Mary Lindholm tinha razão, que haja uma indulgência impulsiva, uma recordação da
mulher que Truth Jourdemayne poderia ter sido. Truth saiu da sapataria com mais um saco de
compras, tão ofegante como se tivesse enfrentado os demónios, sabendo que eram horas de ir
para casa.
No caminho de volta a Shadow’s Gate Truth deixou o espírito vaguear, esperando que
o seu inconsciente inventasse uma resposta para todos os problemas e enigmas que a
envolviam.
O seu espírito, pouco razoável, recusou-se a resolver qualquer um deles,
concentrando-se em vez disso na mais vaga e menos urgente das suas preocupações presentes:
o futuro.
O que ia ela fazer com o resto da sua vida? Tinha tanta segurança no emprego como
qualquer outra pessoa, até descobrir recentemente que o campo da parapsicologia estatística
era excitante e desafiador e que a sua vida era...
Não existia. Tinha colegas e conhecidos, mas não tinha amigos íntimos. Dylan era o
amigo mais próximo que tinha e sabia que se aproveitara disso esta manhã, tirando partido da
sua bondade para obter o que queria.
“Mas ele não me quer!”, protestou Truth interiormente.
“Por que não deixá-lo decidir por ele?”, respondeu uma voz interior. “Pára de
criticá-lo tão severamente sempre que a conversa passe do Bom dia, senhora Jourdemayne.”
Está bem. Talvez o fizesse. Mas o que iria fazer com o resto da sua vida? Ia passá-la
sentada atrás de uma secretária no Instituto Bidney? Se escrevesse o livro sobre Thorne
Blackburn, como planeara, e o publicasse, as coisas iam inevitavelmente mudar.
Conferências, viagens, trabalho prático...
Se continuasse nessa atividade.
Mas nesse ponto toda a sua imaginação vacilou, uma vez que, se não estivesse a
trabalhar no Instituto Bidney ou numa organização filiada, não conseguia imaginar o que
poderia estar a fazer. Pois durante todos os anos da sua vida, os seus gostos, educação,
interesses e treino tinham-na levado ao campo da parapsicologia, como se ela fosse uma seta
dirigindo-se sem errar para o seu alvo, ou uma religiosa com a sua vocação.
Mas agora, pela primeira vez, estava a olhar bem de perto para si própria e a examinar
o seu passado com uma honestidade brutal. A sua satisfação serena com a carreira não seria
mais uma ligação ao que ela entendia agora como uma longa cadeia de erros de apreciação? E
se a vida dela não tivesse como objetivo a parapsicologia, mas o seu irmão mais obscuro?
Seria a Ciência a sua vocação; ou a Magia?
Quando Truth ia a subir o caminho em direção à casa, conseguiu ver um dos homens,
parecia Donner, a conduzir um trator de cortar a relva em círculos, pelo lado mais longo do
relvado, com um acessório que chupava as folhas caídas, deixando para trás um relvado de
veludo. Acenou-lhe quando a viu e Truth também disse adeus. Por detrás dele, em cima das
colinas que eram tudo o que o estado de Nova Iorque podia reivindicar em termos de
montanhas, amontoavam-se nuvens escuras, uma promessa mais concreta da tempestade que
se avizinhava do que a previsão de Caradoc esta manhã.
Considerando o que tinha acontecido durante a última tempestade a que tinha
assistido, Truth pensou que era bom que se retirasse cedo e que dormisse profundamente.
O elegante BMW preto de Julian estava de volta, parado por baixo do pórtico, ao lado
do Saturno de Truth e do Volvo branco. A sua presença lembrou-a que precisava falar com ele
e de ver Light. Distribuiu os sacos mais comodamente pelos braços e começou a subir as
escadas da porta da frente.
Ao chegar ao degrau do topo, Gareth apareceu do lado da casa, puxando dois sacos
enormes de relva cortada. Ficou mais alegre quando a viu.
— Olá! — disse Gareth, largando os sacos por um momento. — Foi até a cidade?
Ouviu falar do que aconteceu ontem à noite? — continuou ele antes que ela conseguisse
responder, mostrando um entusiasmo óbvio. — E esta manhã? Os Poderes estão a reunir-se;
Julian diz que já temos manifestações dos Reis dos Elementos e que em breve também
veremos os veículos astrais dos Guardiões da Porta.
Era estranho, refletiu Truth, e não acontecia pela primeira vez, ver alguém como
Gareth, saudável e com uma aparência normal, vestindo umas calças já gastas e uma T-shirt
manchada de relva a falar um calão próprio de uma reunião decadente no Bloomsbury, onde
se fuma ópio e se bebe absinto. Ouvi-lo ao sol frio do outono no vale do Hudson era um
choque ainda maior.
— Bem, isso é simpático — disse Truth inadequadamente.
Gareth sorriu para ela com uma expressão tão querida e normal que, por um instante,
Truth sentiu que era ela a lunática.
— Mas você estava lá; esqueci-me, já assistiu. Não é fantástico?
Desta vez ele parou e esperou, aguardando obviamente que ela concordasse que
vórtices espíritas, quadros que caíam e veados fantasmas eram de fato fantásticos. Só que
Gareth não sabia nada sobre o veado, porque ela não tinha contado a ninguém sobre os
animais que tinha visto quando voltara para casa no dia anterior. Julian tinha profetizado isso
sozinho.
Mas se os veados fantasmas e, supunha ela, cavalos, lobos e cães eram uma
manifestação do Trabalho de Blackburn e não um sintoma do Fenómeno Paranormal de
Shadow’s Gate, de que maneira influenciavam a sua teoria de que todos os problemas de
Blackburn tinham sido causados por esta casa assombrada e não pela magia?
O que vinha primeiro: a magia ou o mágico?
— Truth?
— Desculpe, Gareth. Estava apenas... a pensar.
— É bastante intimidativo estar presente quando a Nova Era começar, não é? — disse
Gareth alegremente. — Diga-me, tem a certeza de que não se quer juntar a nós?
Provavelmente passaria de neófito a zelador quase imediatamente, e depois podia ter a
Liberdade do Templo e participar em todos os rituais e tudo o mais.
Por um momento, Truth hesitou. Não fazia a menor idéia do que era um zelador,
embora parecesse ser o equivalente a um escuteiro, mas a ideia de poder decidir através dos
seus próprios sentidos o que se estava a passar realmente nos rituais que se faziam no Círculo
da Verdade parecia uma idéia mais atrativa do que repugnante.
— Bem, vou pensar no assunto. Serve? — perguntou ela.
— Claro!
Gareth sorriu ainda mais e Truth teve de repente um discernimento cruel de que parte
do prazer de Gareth se devia à posição que obteria ao poder contar que tinha conseguido este
consentimento tentador da parte dela.
Com uma intuição que ia aumentando, sentiu que Gareth Crowder era um estranho
aqui, talvez mais ainda do que Michael.
Porque Gareth queria muito tomar parte no que se passava aqui e Michael não.
Gareth voltou a prestar atenção às folhas.
— Bem, o melhor é eu despachar-me com isto. Temos uma incineradora para queimar
lixo e costumava haver uma licença para a sua localização, mas a aldeia diz que já caducou e
que agora só nos dão uma pelo prazo de duas semanas, por isso agora temos que acumular
tudo até novembro. Que maçada!
Truth sorriu com simpatia. Era fácil imaginar que as objeções da aldeia tinham a sua
origem não numa causa real, mas sim no seu profundo mal-estar com Shadow’s Gate e os
seus ocupantes. Todos os seus ocupantes, desde o velho Elkanh Sheidow...
“Quem tinha preso o que deveria ser livre, quem tinha mexido com o que deveria ser
inviolável, enfurecer-se-ia contra as suas algemas até que fosse liberto para ocupar o seu
legítimo lugar entre Aqueles Que Cavalgam...”
Truth pestanejou e viu que Gareth já ia a meio da primeira curva do caminho, puxando
os sacos atrás dele.
— Gareth! — chamou Truth. Ele parou. — Preciso falar com Light. Sabe onde ela
está?
— Acho que está no labirinto. Pode dar a volta à casa para lá chegar. Deixe as suas
coisas aí; se quiser, eu levo-as.
— Não se preocupe — disse Truth. — Eu volto para as levar.
Empilhou os sacos no banco à direita da porta. Tencionava apenas demorar uns
minutos e, afinal, quem iria roubar as suas coisas aqui?
Deu a volta à casa, atravessou o pórtico onde antigamente os coches paravam para
levar e deixar passageiros quando o tempo estava mau. Deveria haver uma garagem para as
carruagens à vista, mas tudo o que Truth viu foi o terraço das traseiras, o jardim e o labirinto
de buxos. Talvez a casa das carruagens tivesse ardido.
— Light? — chamou Truth suavemente.
Tinha passado a casa e estava junto da entrada do labirinto, mas mesmo assim não via
Light em lado nenhum. Julian não tinha dito que por vezes Light ia passear pelo bosque? Se
ela tivesse ido para lá, Truth podia andar à sua procura até que chegasse a Nova Era de
Blackburn e provavelmente não a encontraria.
Truth espreitou para o labirinto, perguntando-se se encontraria Light nos caminhos
pavimentados com pedrinhas.
A solução do labirinto era fácil; como em muitos outros, alternava-se virando à
esquerda e à direita para chegar ao centro e usava-se o mesmo método para sair.
Truth deu um passo no caminho e parou quando ouviu vozes. Um momento mais
tarde, viu Michael e Light. Ele tinha o braço à volta dos ombros dela, e Light ria-se para ele, o
cabelo prateado espalhado por cima do braço dele, esvoaçando na brisa como arabescos de
nuvens. Michael bateu-lhe na ponta do nariz com um dedo, sorrindo, e ela empurrou-o no
peito de brincadeira. Depois viram Truth.
Light retraiu-se como uma criança que tem um segredo que não deveria ter. Michael
ficou a observar Truth para ver o que ela faria, mas a duplicidade não era da sua natureza.
Não tentou esconder o que Truth acabara de ver, ou fazê-la pensar que não tinha visto nada.
— Olá! — disse Truth, esperando que o tom fosse amigável e neutro. — Estava
apenas à procura de Light e Gareth disse-me que ela estava aqui. Queria certificar-me de que
estava bem depois do que se passou ontem — disse ela, dirigindo-se diretamente a Light.
— Ah! — Light parecia pouco segura. — Estou bem — disse ela esperançosamente, e
Truth achou que provavelmente Light não se lembrava dos acontecimentos da noite anterior;
apenas recordações de outras vezes em que pessoas a tinham maçado para obterem
informações que não tinha, sobre acontecimentos de que não se lembrava.
— Então, está bem — disse Truth, sorrindo de forma encorajadora. Ter-lhe-ia Julian
contado quem era o pai dela? E, em caso afirmativo, teria Light compreendido que ela e Truth
eram irmãs? — Queria apenas ver-te outra vez. É tudo.
— Não queres falar sobre Thorne? — disse Light duvidosa.
Do canto do olho, Truth viu Michael a franzir o sobrolho em sinal de advertência.
— Não quero falar sobre nada de que não queiras falar — disse Truth sinceramente.
— Queres falar sobre o quê?
Falava devagar e de forma simples, como se se tratasse de uma criança atrasada,
embora não houvesse nada em Light que sugerisse que ela fosse diminuída, apenas uma
diferença tão profunda que não existiam palavras para descrevê-la.
Light riu-se e pôs a cabeça de lado, olhando furtivamente para Truth através das
pestanas.
— Tu sabes um segredo — disse ela.
Truth demorou um momento a perceber que o pronome que ela tinha ouvido não era o
que ela esperara.
— Eu sei um segredo? — disse ela.
Light anuiu, ainda a sorrir. Truth olhou para Michael, esperando que ele a guiasse.
— Achas que Truth quer que permaneça um segredo, ou achas que ela nos vai contar?
— disse Michael.
Como resposta, Light saiu debaixo do braço dele e avançou em direção a Truth,
esticando a mão. Truth estendeu também a sua e os dedos de Light fecharam-se à volta da sua
mão, mostrando força e segurança.
— Ela está... preocupada — disse Light, como se estivesse a ler frases numa
linguagem que não lhe era familiar. — Com o fato de eu saber? Não, sobre o que os outros
farão quando souberem. Mas ela ainda pensa que será melhor se toda a gente souber. Truth
não gosta de segredos — anunciou Light, fixando Truth com o seu olhar prateado.
Truth recusou-se a amedrontar-se com esta demonstração, que podia ser qualquer
coisa desde telepatia genuína a suposições tão certas que poderiam parecer simplesmente
sobrenaturais.
— Light é minha irmã — disse Truth a Michael, olhando para ele.
Os dedos de Light apertaram-se mais à volta dos seus. Então tinha sido acertado dizê-
lo.
Talvez fosse a proximidade de Light, extremamente espírita, mas quando os seus
olhares se encontraram, Truth imaginou de repente que conseguia ouvir os pensamentos de
Michael:
“Se não for embora por si, não quer ir embora por ela? Levá-la para bem longe,
mantê-la segura?”
Truth abanou a cabeça relutantemente.
“E o que faria você com a minha irmã, se tivesse esse direito?”, pensou ela.
— Estive a falar com Light sobre os seus dons — disse Michael em voz alta, como se
respondesse às perguntas que ela não formulara.
— Michael diz que eu não devia ver coisas — disse Light, mas não como se isso a
perturbasse.
— Michael diz — corrigiu-a Michael, aproximando-se das duas mulheres — que todos
os sentidos humanos são uma dádiva de Deus e que a dádiva do Homem a Deus é a disciplina
dos mesmos sentidos.
— Quer dizer que Light não devia usar os seus poderes? — exclamou Truth
rispidamente.
— Quero dizer que nos mandam viver neste mundo e, enquanto cá estivermos, a nossa
tarefa é prepararmo-nos para as coisas que formos chamados a fazer neste mundo, e não tentar
viver noutro. Light tem grandes capacidades; pode ser que a sua tarefa neste mundo seja pô-
las de lado.
— De todas... — começou Truth, mas a pressão de Light na sua mão fê-la parar. Ser
normal era assim tão mau, quando ser diferente tinha causado tanta dor a Light?
— Você não diria que a sua irmã devia falar com toda a gente que ela conhece, e muito
menos convidá-la para sua casa. E muito menos o deveria fazer, quando o visitante é invisível
e não tendo a opinião de ninguém para ajudá-la ou em quem possa apoiar-se a não ser nela
própria.
— Então só quer que ela... — Truth não conseguia imaginar uma descrição delicada
para aquilo que achava que Michael queria.
— ... Aceite a proteção Daquele que protegerá a sua alma de todas as forças malignas
— disse Michael com firmeza. — Negar o que ela é, quando ela é uma obra de Deus, seria
pelo menos impertinente, mas negar a sua proteção na sua vulnerabilidade seria loucura.
Michael sorriu suavemente, para disfarçar a ferroada de fanatismo das suas palavras.
— Eu vejo a tua alma — disse Light com brandura.
Ia dizer mais, mas Michael colocou um dedo nos seus lábios.
— Tens que te calar, ou a tua irmã dirá que sou uma má influência, um fanático
religioso que acredita que toda a gente tem que procurar o Divino como ele o faz.
— E é isso que faz? — disse Truth com ousadia, lutando contra o inimigo.
— Há muitas maneiras de se aproximar do Divino — disse-lhe Michael. — Mas apenas
uma é segura, acho eu, e essa segurança foi comprada com dor, pesar e lágrimas que estão a
ser pagas até o dia de hoje. Mas percebo que estou a maçá-la, Truth, e você já me acha
suficientemente chato. Devo ir-me embora com Light?
— Não — disse Truth, pensando nas suas compras, que esperavam por ela nas escadas
da frente e vendo que Light estava muito feliz ao pé de Michael, pelo menos quando Julian
não estava perto para a censurar. — Tenho que fazer algumas coisas. Realmente só queria ver
se Light estava bem.
— Sim — disse Michael. “Por enquanto”, diziam os seus olhos. “E no futuro?”
Quando voltou às escadas da frente, os sacos tinham desaparecido. Não lhe ocorreu
que pudessem ter sido roubados; estava mais espantada do que preocupada, até que se
lembrou da oferta de Gareth para levá-lOs para dentro.
“Deve tê-lo feito de qualquer maneira”, pensou ela para si própria. Gareth tentava
agradar demasiado, tentando comprar um lugar no Círculo, como se não lho dessem por
direito. Certamente que ir ver ao quarto seria a primeira coisa a fazer. Quando entrou no
foyer, o leve cheiro a sal, a mar, a açúcar, a pinheiro do incenso, fê-la recordar de repente a
sua primeira noite em Shadow’s Gate. Não lhe prestou atenção. O olfato era o mais primário
dos cinco sentidos, o mais passível de desencadear recordações associativas ilógicas. Não
significava nada a não ser possivelmente que a porta da Sala dos Tambores, o templo, estava
aberta. Tentou lembrar-se se tinha sentido o cheiro a incenso da única vez que lá estivera e
não conseguiu. Continuou a subir as escadas, descobrindo que a porta do templo não era a
única a estar aberta.
A porta do quarto estava aberta e Truth ouviu barulhos vindos lá de dentro. Gareth
estaria também a desempacotar as suas coisas? Isso era ir um pouco longe demais.
Truth apressou-se a passar a porta e parou de repente. Fiona Cabot estava no quarto de
Truth, usando um dos seus habituais fatos exíguos: um body de veludo amarrotado com uma
saia transparente de chiffon por cima, embora a razão pela qual alguém que desejava tanto ser
respeitada se vestia como se tivesse saído de um catálogo de Frederick’s of Hollywood fosse
um mistério que Truth ainda não resolvera.
Os papéis dos sacos estavam espalhados pelo quarto e os sacos em si tinham sido
completamente revistados. Enquanto Truth observava, Fiona experimentava o colete de
veludo, o colete de veludo de Truth , virando-se para o espelho na cómoda, admirando o seu
reflexo. Ao virar-se viu Truth.
— Ah, está aí.!Vi aquele loiro idiota trazer estas coisas para cima, por isso decidi vir
ver se havia aqui alguma coisa que eu gostasse.
A cara dela parecia serena e despreocupada. Truth pensou durante um momento que
razão assistia a Fiona para entrar no seu quarto, e de seguida teve um ataque de raiva tão
grande que quase a paralisava.
— Saia daqui! — disse Truth. — E tire isso, não é seu.
—Obrigue-me. — O sorriso de Fiona era feio. — É como o seu velho e querido pai
dizia: “tenho o direito de fazer o que eu quiser e você tem o direito de chorar por causa
disso.” Não vai gritar pelo Julian porque iria parecer uma piegas e talvez ele não a deixasse
ficar mais tempo aqui, por isso acho que vai ter que me aturar.
Fiona despiu o colete e atirou-o para um canto, depois se voltou para os sacos,
cantarolando baixinho.
— Sua... cabra — disse Truth.
A raiva tinha desaparecido, fora substituída por um desprezo frio e a admiração
inerente à descoberta de uma nova espécie. Tinha-as visto em livros e na televisão, mas nunca
esperara encontrar uma na vida real; uma cabra; uma mulher que pensava e se esforçava tanto
por tornar as outras pessoas infelizes, quanto a maior parte das pessoas se esforçava por ser
feliz.
Fiona voltou-se para ela, sorrindo meigamente, e respondeu com uma palavra tão feia
que os ouvidos de Truth doeram ao ouvi-la. Pegou na pequena tesoura de Truth que estava na
cómoda, depois chegou a um dos sacos e tirou um punhado de seda marmoreada verde: o
vestido de Truth.
Truth deu um passo para dentro do quarto, pensando se conseguiria tirar-lhe a tesoura,
antes de Fiona fazer o que era óbvio.
— Eu não o faria — observou Julian suavemente. As duas mulheres ficaram quietas,
como se a observação tivesse sido dirigida apenas a elas. — Fiona, minha querida, estás a
comportar-te mal? — disse Julian.
— Truth estava a mostrar-me o vestido novo que comprou na cidade — mentiu Fiona
— e eu ia cortar um fio solto. Só que agora já não o vejo.
Deixou cair o vestido e a tesoura no chão, dando-lhes um pontapé, sorrindo para Julian
com a perfeita confiança de uma mulher que sabe que acreditarão nela, não porque é
verdadeira, mas porque é linda.
— Fiona, querida...
A voz de Julian era quente e complacente e Fiona desabrochou ao ouvi-la como uma
rosa ao sol. Truth pensou porque não conseguia ouvir a raiva que saía dele como fumo de um
bolo de gelo seco, ártico e que queimava.
— ... se mais alguma vez incomodares a senhora Jourdemayne, seja de que forma for,
vou mandar o Hereward levar-te para a paragem de autocarro mais próxima e o melhor é
rezares para teres dinheiro suficiente no bolso para comprares um bilhete, pois garanto-te que
a fonte terá secado. Não preciso de situações destas aqui em Shadow’s Gate, o que significa
que não preciso de ti. Espero estar a ser bastante claro? — perguntou ele gentilmente.
Fiona não esperava com certeza esta descompostura desapaixonada e selvagem. Truth
viu a rapariga ficar tão pálida que a sua maquiagem ordinária pareceu ficar à superfície da
pele, esbranquiçada e inerte. Os olhos pareciam maiores, brilhantes através das lágrimas que
deles brotavam.
— Fiona? — disse Julian com a mesma voz suave.
Fiona engoliu em seco, forçando um sorriso apaziguador. Abanou a cabeça, sem
conseguir falar, o fato de veludo parecendo de repente pálido comparado com a lividez da sua
pele. Julian deu um passo para o lado e Fiona aproveitou a fuga que lhe ofereciam, correndo
para fora do quarto.
Julian olhou para Truth.
— Desculpe — disse ele. — Não aconteceu nada às suas coisas? Suponho que não seja
um segredo para si que a magia, tal como a parapsicologia, atrai personalidades
intrinsecamente instáveis. — Sorriu maliciosamente.
A fúria que Truth sentira Julian brandir como um chicote desaparecera, e a raiva de
Truth para com Fiona esvaiu-se.
Sentia-se esgotada mas calma, sentindo unicamente pena por Fiona, tão brutalmente
posta no seu lugar. Agora, apenas uns minutos depois, era difícil de acreditar que as palavras
que tinham sido ditas de Fiona e de Julian tivessem sido pronunciadas.
Aproximou-se e apanhou o vestido, afastando cuidadosamente a tesoura. Inspecionou-
o de perto, mas Fiona não tinha deixado marcas no tecido brilhante. Colocou-o por cima de
um braço e depois apanhou o colete. Pensou se seria capaz de usá-lo sem se lembrar desta
cena. Colocou as duas peças de roupa na cama.
— Bonito.
O veredicto de Julian era francamente o de um apreciador e francamente masculino.
Truth sentiu-se a corar levemente pela observação, que era muito mais do que normal e pela
sua reação.
— É como a velha anedota: vi-o na montra e tive que o comprar — disse Truth,
tentando fugir do cumprimento.
— Você tem bom senso — disse Julian, tendo o cuidado de exprimir o seu
cumprimento seguinte em termos mais neutros, embora o seu sorriso fosse quente e íntimo.
— Qualquer tomada de decisão é um risco. A maior parte das pessoas tem medo de correr
riscos.
— Eu não tenho medo — disse Truth, olhando para ele.
— Não — disse Julian com um sorriso interior. — Imagino que não tenha.
O jantar foi apressado, estando Fiona ausente sem qualquer explicação. Os outros, que
nesta altura já se tinham acostumado à presença de Truth, falavam livremente à sua frente,
mas utilizando o vocabulário técnico de magia superior, que empregava uma terminologia tão
estranha a Truth como a de um físico.
O que era, por exemplo, um Ritual Menos Afugentador?
Parecia ser parecido com o Exercício do Pilar do Meio, embora essa informação não
lhe servisse para nada. Conversa sobre caminhos, pilares, portas e casas e as árvores à
esquerda e à direita davam a Truth a sensação de ter caído numa convenção de jardineiros
pelo menos até começarem a falar sobre operações e trabalhos. Não sabia o significado de
tudo isto, mas começou a respeitá-lo de má vontade.
Light estava radiante, tão envolvida na conversa como os outros, e esfuziantemente
bem disposta. Todos os outros, e até Ellis, a tratavam como uma adorada irmã mais nova, mas
Truth vira o que os outros pareciam ignorar o que o exercício dos seus poderes lhe custava e
sabia que até a ignorância apaixonada podia matar.
Tinha que tirar Light daqui e parecia que Michael era o seu único aliado.
Era estranho, refletiu Truth, que o que ela não faria por si própria: sair de Shadow’s
Gate, fá-lo-ia sem hesitar por uma mulher que conhecera há menos duma semana.
— Lamento, mas vamos ter de deixá-la — disse Julian, interrompendo o curso do
pensamento de Truth. Debruçou-se possessivamente sobre a sua cadeira, com a mão no seu
ombro. — Mas como Gareth diz, será sempre bem-vinda, se quiser juntar-se a nós.
Truth forçou-se a não olhar para Michael, sentindo que seria um erro tático. Era mau
quando se sabia que realmente não se podia confiar no nosso único aliado possível.
— Dê-me mais tempo — disse Truth, deixando de sentir a pressão persuasiva.
— Todo o tempo de que precisar — disse Julian, sorrindo e seguindo os outros que
saíam da sala de jantar, deixando Truth e Michael sozinhos.
— Michael? — A pergunta de Truth fê-lo parar quando ia a levantar-se da mesa. Ficou
de pé e esperou atento e cortês, com a cabeça inclinada. — Se eu lhe pedisse a sua opinião
sobre o fato de eu fazer parte do Círculo da Verdade, você diria que não. Não era?
Michael ponderou a pergunta durante um momento escolhendo as suas palavras com o
cuidado de um advogado ou de um juiz, achou Truth.
— Se você se juntar ao Círculo da Verdade, não encontrará nem felicidade nem
descanso, e provavelmente destruirá qualquer esperança de encontrar ambas as coisas na sua
vida — disse ele por fim.
“Uma evasiva tão simpática quanto seria capaz de esperar num presbitério jesuíta”,
pensou Truth amargamente.
— Michael, você não acredita em magia, no Trabalho, pois não? Acha que o meu pai
era doido, não acha? “E se for esse o caso, porque está aqui, Michael Archangel?”
— Não. Acho que ele tinha razão — disse Michael com simplicidade. — Esse é o
problema. Tudo o que ele disse era verdade. Boa noite, Truth. Durma bem.
E ao dizer isto, Michael deixou-a e Truth ficou sozinha na sala de jantar de Shadow’s
Gate.
Depois do caso com Fiona e a conversa com Michael, era de esperar que o sono se
tornasse esquivo, mas Truth tinha dado um bom passeio ao ar livre naquele dia e tinha
passado uma noite em claro antes disso. Mal conseguiu manter os olhos abertos durante um
banho rápido com sais de banho, que tinham sido mais uma das suas compras em Shadowkill,
e adormeceu quase antes de apagar a luz.
Foi acordada, pensou ela, por um trovão e abriu os olhos ao ver o rasgo dum
relâmpago branqueando o seu quarto, dando-lhe um aspecto acinzentado e monocromático.
Estava um homem sentado na cadeira ao lado da sua cama. Respirou profundamente.
Deveria gritar? Ela própria não tinha a certeza.
— Cala-te! — disse ele com simpatia. — Odeio mulheres que gritam.
Viu-se novamente um relâmpago a brilhar, desta vez mais longínquo; depois o quarto
ficou às escuras, cheio do som da chuva a cair. Mas Truth já reconhecera a sua visita noturna.
Forçou-se a mexer, apesar do terror que a paralisava, e esticou uma mão em direção ao
candeeiro ao lado da cama.
— Não faças isso — disse Thorne Blackburn.
Truth parou. Se isto era um sonho; “podia ser, podia ser”, dizia ela desesperada,
podia acabar; Truth esforçou-se por acordar. Mas todos os seus sentidos estavam já
extremamente atentos e o homem na cadeira, apenas uma forma indistinta, sem os relâmpagos
a alumiá-lo, ainda lá estava.
— O que quer? — disse Truth. Não era isso que se devia perguntar aos fantasmas?
Viram-se novamente relâmpagos tremeluzentes, tão rápidos como a língua de uma
serpente, mostrando-lhe o Thorne das fotografias: cabelo loiro comprido, com uma fita na
cabeça, um colete de ganga e uma T-shirt manchada.
— Para começar, o meu colar e o meu anel. Onde estão?
Durante um momento assustador, não se conseguiu lembrar. Estava demasiado
aterrada para tomar consciência de si própria. Acreditava, sinceramente e com um pavor
primitivo, que este era o seu pai, Thorne Blackburn, que ressuscitara dos mortos.
— No meu carro — conseguiu ela dizer finalmente.
— Diabos! Não posso mandar-te ir buscá-los — disse Thorne Blackburn. Às suas
palavras seguiram-se trovões com um estrondo e um ruído surdo e prolongado que foi
desaparecendo. — Deixa-os em qualquer sítio da casa, está bem? São meus. Preciso deles.
Mais do que tu, de qualquer forma.
Gotas de chuva batiam na janela com a força do granizo. Novamente relâmpagos e,
durante o lampejo, Truth viu a sombra de Thorne na parede, real e grande como a aparição
sem idade à sua frente. Fechou os olhos com força, enjoada pelo medo primitivo.
— Está morto — disse ela através dos dentes cerrados. — Não pode precisar de nada!
O trovão seguiu-se ao relâmpago alguns segundos depois. A tempestade estava a
afastar-se.
— E tu és tão teimosa como a tua mãe — disse Thorne afetuosamente — mas é difícil
fazer este truque sem perder o meu tempo a discutir. Vim dizer-te para saíres da minha casa,
antes que o teu racionalismo te lixe. Quem é que tu achas que és, Hans Holzer? Tu não és
como as outras pessoas, minha querida, és minha filha...
Era difícil continuar apavorada, perante um ralhete afetuoso de um pai morto, numa
voz com leve sotaque da classe trabalhadora. Truth atirou-se ao interruptor e tocou-lhe
freneticamente. O candeeiro ao lado da cama acendeu-se. Não se via ninguém na cadeira.
E quem seria Hans Holzer?
O quarto estava escuro, iluminado apenas pelo brilho pálido que emanava da televisão
e do vídeo.
“Obrigada, futuros Epopts da Nova Era, realmente é ótimo estar aqui com Ed esta
noite e na verdade temos uma longa viagem cósmica planeada para todos vocês...”
Truth, com os olhos vermelhos e insones, estava na sala que continha a coleção de
Blackburn, a ver vídeos. A olhar para o pai.
“Vim dizer-te. Sai imediatamente daqui antes que te lixes.”
Já tinha visto esta gravação cinco vezes. Existiam aqui cópias, em cassetes de vídeo,
de todos os aparecimentos públicos de Thorne Blackburn, Carson, Sullivan, The Dating
Game, The Hollywood Bowl; até alguns minutos em Woodstock.
Antes, não conseguia suportar a ideia de ver Thorne, nem mesmo numa gravação.
Agora não podia afastar o olhar. Ele era tão novo. Teria vinte anos nestas gravações e já era o
guia do chamado Youthquake, o espantoso movimento demográfico em que jovens
adolescentes se tinham apropriado da cultura da nação, desde a música até a moda. O
Youthquake, a Invasão Britânica: o leve sotaque de Liverpool que tinha ouvido...
... nos seus sonhos? Ah, antes tivesse sido um sonho...
... ainda se conseguia distinguir nestas atuações gravadas, se se ouvisse com atenção e
com essa intenção, embora Thorne Blackburn tivesse trabalhado duramente em dada altura
para conseguir a dicção agradável de um locutor da rádio.
Ou seria o sotaque de Liverpool que tinha sido treinado, com o propósito de
capitalizar o fascínio americano na década de 60 pelas coisas inglesas? Nenhuma informação
biográfica sobre Thorne Blackburn atestava a sua nacionalidade; Truth partira do princípio
que ele era americano.
Sabia agora que tinha feito muitas suposições.
Depois de Thorne ter aparecido no seu quarto, desistira de dormir, por muito que o
corpo lhe pedisse. Depois de passar uma hora a tremer com cada trovão, a lutar contra o
impulso de agarrar nas chaves do carro e de fugir...
“Sem Light? E para onde irias? Nunca fugiste de nada na tua vida. Exceto do fato de
seres filha de Thorne Blackburn.”
... tinha desistido e vestira-se. E viera cá para baixo, à procura de uma prova. As
gravações que Julian tinha juntado. Todos os bocados de filmes que existiam sobre Thorne.
“Quem achas tu que és? Hans Holzer?”
Não. Hans Holzer era um conferencista e autor de inúmeros livros populares sobre
fantasmas, assombrações e ocultismo, e Thorne parecia desprezá-lo pela sua visão moderada
do mundo sobrenatural. Por essa razão, se não existisse outra, os seus livros estavam
representados na coleção de Blackburn.
Devia ter ouvido Dylan ou outra pessoa falar dele, embora não se lembrasse de quase
nada. Não era possível que a sua informação tivesse vindo de Blackburn.
Ao ver a figura pequena em movimento, preservada para sempre numa gravação,
Truth conseguiu pensar sobre o que tinha visto ou sonhado. Se tivesse sido um sonho, então
certamente que o homem no seu quarto tinha sido Thorne Blackburn.
“Tu não és como outras pessoas, minha querida, és minha filha.”
A voz, a cara, tudo era igual. Embora o seu subconsciente não tivesse estas gravações
para se inspirar, ela certamente tinha acesso a material suficiente para criar uma imagem tão
próxima da realidade, que o seu espírito acordado conseguia fundir as duas.
“E a escrita no teu livro? Ou aquilo que falou através de Truth? Ou o homem que
viste no hall fora do quarto de Irene? O que achas?”
Truth escondeu as mãos na cara. Desamparada, contrariada, acreditava.
— Que Deus te condene, pai. Que Deus te condene ao inferno!

CAPÍTULO ONZE
VERDADE OU CONSEQÜÊNCIA
This truth within thy mind rehearse,
That in a boundless universe
Is boundless better, boundless worse.11
ALFRED, LORD TENNYSON

Tendo dado o primeiro passo para o abismo do absurdo, Truth não sabia o que fazer
agora. Um verdadeiro crente, achava ela, desenfreado da realidade, deveria procurar sinais e
presságios que o conduzissem na direção da sua nova ilusão, mas ela nem queria a prova que
tinha, quanto mais obter outras.
— Pelo menos não tinha que acreditar em magia — disse Truth para si própria
desesperada. Tinha apenas que admitir que via ouvia e falava com fantasmas. Um fantasma,
pelo menos.
Mas os fantasmas estavam muito longe do mundo seguro e estéril da parapsicologia
objetiva, da estatística, de séries de testes feitos em edifícios modernos e bem iluminados.
E tinha medo que os fantasmas fossem apenas o início, como se tivesse aterrado num
estranho país de sombras entre a Magia e a Ciência, um lugar que não se regia pelas regras de
nenhum deles. E agora, também Thorne exigia que ela saísse de Shadow’s Gate.
“Antes que o meu racionalismo me lixe. Mas eu já não sou racionalista, pois não,
pai? Não, acho que a filhinha do pai descarrilou.”
Queria chorar, mas os seus olhos doíam-lhe e estavam secos, como se já tivesse
chorado todas as lágrimas que podia chorar. Truth abanou a cabeça cansada.
Um ruído assustou-a. A fita no vídeo tinha parado novamente. Tirou o som, carregou
no botão para rebobinar e levantou-se, esticando-se para acender as luzes. Sentar-se no escuro
não a tinha levado a nada. Olhou para o relógio. Quase cinco horas da manhã. Lá se tinha ido
a paz de uma noite de sono.
“Toda a gente, bem, contando Thorne e Michael como toda a gente, quer que eu saia
de Shadow’s Gate. Mas, na verdade, não é por eu estar em perigo. Nenhum deles disse isso.”
Tentou concentrar-se no que Michael lhe tinha dito nas suas conversas terrivelmente
incongruentes.
“Não por eu estar em perigo. Não é essa a razão. É porque eu vou descobrir
qualquer coisa.”
O quê? Voltou a sentir a enorme desconfiança que toda a vida tivera em relação a
Thorne; se havia alguma coisa que ele não queria que ela soubesse, estava determinada a
descobrir o que era.
A sua mão ainda se encontrava sobre o antiquado interruptor, quando a porta da
biblioteca se abriu.
— Ah, é você! — disseram Truth e Irene ao mesmo tempo.
Irene Avalon ia obviamente a caminho da cama ou tinha acabado de se levantar.
Trazia o cabelo branco puxado para trás e preso com uma rede prateada, e não estava
maquiada.
Calçava uns chinelos fofos e púrpura e a sua figura robusta estava envolta num roupão
pesado de flanela, igual ao que tinha emprestado a Truth. Esta comparou a mulher à sua frente
com a ruiva sorridente das fotografias, que mesmo nessa altura não podia ser uma jovem, se
vinte e cinco anos a tinham envelhecido de tal maneira, e pensou que a magia do tempo era a
mais cruel das bruxarias.
11
Esta verdade dentro do teu espírito ensaia / Que em um universo infinito / É melhor sem limites, sem limite é
pior. (N. da T.)
— Vi as luzes acesas — disse Irene. — Estava a meditar no templo depois do Trabalho
de hoje à noite e ia subir, mas queria apenas certificar-me que nenhum daqueles rapazes
endiabrados tinha deixado as luzes acesas. São todos bons rapazes, mas nenhum deles teve
que se preocupar com dinheiro, se quer saber a minha opinião.
— A tempestade acordou-me — disse Truth. Uma meia-verdade, afinal de contas, era
melhor do que nenhuma. — Resolvi descer e trabalhar um pouco, para aproveitar o sossego da
casa.
— Não anda a dormir bem? — Irene estudou a cara de Truth de perto. — Não —
respondeu ela própria. — Minha filha, está positivamente perturbada. O que precisa é de uma
boa chávena de cacau e de dormir um pouco. Acredito que já esteja meio sintonizada com o
Trabalho. Não me admiro que não consiga dormir quando o Círculo está a trabalhar.
A explicação de Irene, numa linguagem sem significado, era preferível a ter que
admitir a realidade; pelo menos na opinião de Truth. Deixou que Irene a guiasse até a cozinha,
onde a mulher mais velha pegou num pequeno tacho, colocando-o sobre o fogão.
— Verdadeiro cacau, nada destas misturas modernas cheias de químicos e de gorduras
vegetais hidrogenadas! Apenas uma pitada de açafrão lá para dentro para ajudá-la a dormir.
Já na Idade Média o usavam em bebidas quentes feitas com leite, cerveja e especiarias. Não
fazem mal — disse Irene calmamente.
— Desde que eu não tenha que regressar à Idade Média para a beber — brincou Truth
debilmente.
Irene riu-se, andando de um lado para o outro na cozinha, tirando o leite do frigorífico,
juntando açafrão, baunilha, açúcar amarelo e cacau; finalmente bateu a bebida fumegante até
fazer espuma e deitou-a em duas grandes canecas.
Truth segurou a chávena debaixo do nariz e inalou profundamente. Doce como o mel,
era como um campo de flores comestíveis ao sol. Além do forte cheiro a baunilha e do
delicioso cheiro tropical a chocolate havia um leve travo avinhado a melaço e o sabor
agradável e terroso a açafrão. Foi bebendo. Sabia ainda melhor do que cheirava.
— Delicioso — disse Truth, mas não acreditava que conseguisse dormir, mesmo que
bebesse uma piscina cheia desta bebida.
Falaram de coisas banais: do tempo, das lojas na cidade.
Truth teve a sensação de que Irene lhe queria dizer alguma coisa e, quanto a ela,
estava confusa com tantas perguntas que ainda não tinha feito.
Irene estava apenas a encher as chávenas com o que restava na caçarola, quando se
ouviu o barulho de uma chave na porta que antigamente era a entrada de serviço; depois
entrou um homem, a sacudir um pesado casaco de veludo. Havia também uma mulher, vestida
de forma parecida, atrás dele.
— Ah, senhor Walker — disse Irene. — Estes são o senhor e a senhora Walker, Truth.
São eles que tratam da casa de manhã, quando não há ninguém a atrapalhá-los.
— Bom dia, minhas senhoras — disse o senhor Walker, polido mas desejando
nitidamente que lhe libertassem os seus domínios.
Então era por isso que Truth nunca via as pessoas que tratavam da casa para Julian;
provavelmente iam-se embora antes das nove horas e o senhor Hoskins saía às oito da tarde,
deixando a casa e a noite para Julian e os seus apóstolos.
— E eu sujei-lhe a cozinha e tenho a certeza de que não me vão deixar acabar de a
limpar — disse Irene com astúcia.
Fez menção de pegar no tacho que podia aborrecê-lo e lavá-lo, mas o senhor Walker
afastou-a abruptamente.
— Venha lá, Irene, vamos para outro sítio para deixarmos o pobre do homem fazer o
seu trabalho em paz.
Truth pegou no braço da mulher mais velha, levando as chávenas de cacau que ainda
não tinham acabado, e saíram da cozinha. Truth teria escolhido qualquer outra sala na casa
para uma conversa amena, mas Irene encaminhou-se para o templo.
Ainda não fora completamente arrumado depois dos acontecimentos noturnos.
Quando Truth e Irene entraram, havia ainda um círculo de cadeiras no meio do chão, dando-
lhe uma sinistra semelhança com uma sala de aulas deserta.
Irene carregou no botão que acendia as luzes, depois se sentou num banco e deu uma
palmadinha num ao seu lado, convidando Truth a sentar-se.
Truth sentou-se como lhe tinham pedido e olhou para a chávena. O fato de Irene a ter
trazido aqui mostrava claramente que esta sala não lhe metia medo e, na realidade, até tinha
estado aqui na noite em que Katherine tinha morrido.
— Fale-me sobre a minha mãe — disse Truth. — Acha que o meu... que Thorne a
amava? — deixou Truth escapar, corando.
Era uma pergunta infantil e estranha, mas Irene pensou seriamente sobre ela. Truth viu
um leve sorriso na sua boca e um brilho nos olhos, como se as recordações que tinha daqueles
tempos fossem suficientemente felizes para aligeirar o horror do final.
— Ela era a sua alma gémea, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Havia duas
mulheres que ele amava dessa maneira; não da mesma forma como me amava a mim, mas não
os culpo por isso. É melhor ter um décimo de um homem como Thorne e as suas recordações
do que ter tudo e arrependermo-nos. Mas para Thorne... Havia duas, Katherine e... bem,
vamos chamar-lhe a outra. Mas como não podia ter ambas, quando teve de escolher, escolheu
Katherine, mesmo sabendo que ia perder a outra. Não se tratava de ciúmes; nenhum de nós
era ciumento naqueles dias, estávamos a construir um mundo novo e todas as regras iam
mudar. Acho que foste tu que tiveste importância para Thorne quando se tratou de Katherine,
mas aqui estou eu a contar histórias e não tenho esse direito. Mas ele amava as duas e deixou
uma das suas amantes pela outra, por isso nunca duvides que o teu pai não amasse a tua mãe.
Irene ia bebendo o cacau, o seu espírito obviamente perdido em recordações daqueles
tempos.
— De certa forma, é como se Thorne Blackburn, entre todas as pessoas, tivesse sido
posto neste mundo para refrear a impetuosidade de Katherine. Pareces-te com a tua mãe, mas
para mim tens mais coisas da Caro. Que teimosa que ela era! Thorne sempre disse que nada
conseguia mudar Caro, mas Caro, quando decidia qualquer coisa, era inamovível. Mas
Katherine era uma pessoa para causas desesperadas, tão temerária como Lúcifer e igualmente
orgulhosa. Naquela noite... foi longe demais, foi tudo. Foi longe demais.
Irene abanou a cabeça, a recordação da dor diminuindo a sua alegria.
— Tia Irene, o que aconteceu a Thorne naquela noite?
Deixou escapar o tratamento familiar sem se dar conta disso. Sentia um súbito e
inabalável amor pela velha mulher e quase conseguiu imaginar que se lembrava da Irene de
antigamente.
— Ele... viu que ela estava morta. É mais complicado do que isso, mas lamento não te
poder contar. Estou vinculada ao Círculo.
Irene continuou a contar a história. Não era necessário especificar a noite; na história
de Thorne Blackburn havia apenas uma.
— Mas ele sabia que ela estava morta. Tirou as jóias dele (são como insígnias, muito
bonitas, podes vê-lo com elas naquelas velhas fotografias) e atirou-as fora (um anel, um colar
e uma pulseira) e envolveu-a nos seus braços, chorando como um bebé. Mas a Polícia nunca o
encontrou, apesar de ter procurado por todo o lado durante dois dias e de ter montado
barragens nas estradas até Fishkill.
Irene suspirou e abanou a cabeça.
— Digo-te que me perturbou muito, ver Julian a usar a pulseira de Thorne. Mas não é a
original, disse-me ele, apenas uma cópia feita a partir das especificações do livro de trabalho.
Pega-se em nove elos de ferro...
Irene continuou a falar, como uma perdiz a esvoaçar diante dos caçadores para desviar
a sua atenção do ninho, mas Truth recusava-se a ser distraída.
Se isto fosse verdade, então ela estava errada. Durante todos estes anos, quando
acusara Thorne Blackburn da morte da sua mãe, errara.
— Diz que Thorne viu Katherine morta? Como é que ela morreu? Julian disse que foi
uma overdose; é verdade? O que aconteceu? O que aconteceu a Thorne? — perguntou Truth.
— Não te posso dizer — respondeu Irene com simplicidade. — Tu não estás vinculada
ao Círculo. Eu jurei proteger, esconder e nunca revelar qualquer arte ou artes, parte ou
partes...
— Está bem. Julian sabe? — disse Truth com impaciência.
— Sabe. Perguntou-me a mim e logo que eu achei que ele podia trabalhar no Grau
adequado, contei-lhe.
E isso era coisa que Truth não alcançaria, se ficasse aqui sentada até ao dia do Juízo
Final.
— Mas a Polícia... — disse ela frustrada. — Certamente a Polícia não tinha aceitO
uma explicação daquelas? Muitas outras pessoas que tinham invocado a Quinta Emenda da
Constituição foram parar à cadeia, apesar de serem repórteres, quanto mais os cultistas loucos
dos anos 60.
Irene abanou a cabeça tristemente.
— Desculpa, minha querida. Eu dizia-te se pudesse, mas é como perguntar a um padre
o que se passa no confessionário, não percebes? Juramentos são coisas reais e não se pode
quebrá-los. No entanto, posso dizer-te o que disse à Polícia e é tudo verdade.
Fez uma festa na mão de Truth e esta forçou-se a sorrir. Irene não tinha culpa...
De ser doida? Ou consciente? Ou simplesmente leal? Truth não sabia. Parecia que de
repente já não havia vilões, e isso assustava-a tanto como a maldade.
— O que eu lhes disse foi o seguinte, e é verdade, foi tudo o que os olhos conseguiram
ver. Houve uma tempestade súbita enquanto nós (o Círculo Interno, treze ao todo) estávamos
no templo, e as portas abriram-se. As portas da frente e as daqui. Katherine (a tua pobre mãe)
entrou em convulsões. Eles decidiram mais tarde que tinha sido uma overdose, coisa que
Thorne nunca teria permitido se soubesse, tens que acreditar nisso; mas pelo menos disseram
que foi um acidente, senão nós todos teríamos sido acusados de assassínio. Mas o pai de
Johnny (o nosso Johnny um de nós, o Círculo como nós éramos naquela altura pobre rapaz,
tem estado por aqui nos últimos quinze anos) tinha dinheiro para pagar aos advogados, e se
não o acusaram, nós também tínhamos de ficar livres. Acho que eles não se importaram
muito, quero dizer a Polícia, embora, se tivessem conseguido deitar a mão a Thorne, as coisas
teriam corrido de forma muito diferente...
— Sim, tia Irene. Mas naquela noite houve uma tempestade?
— Sim. Thorne gostava de trabalhar durante tempestades. Dizia que era mais fácil
manipular o poder. Mas a tempestade naquela noite... Bem, as portas abriram-se e claro que as
velas que nós segurávamos se apagaram todas: foi o vento. Tentamos acender as luzes, mas a
eletricidade falhou por causa da tempestade, e quando conseguimos ir buscar as lanternas e
pôr tudo em ordem, Thorne tinha desaparecido e Katherine estava morta.
— Então ele pode ter fugido? — disse Truth insegura.
Mas mesmo que a Polícia não andasse à procura de Thorne passados vinte e cinco
anos, Julian andaria e Truth apostava que Julian o teria encontrado.
— Foi isso que a Polícia disse, e eu até aceito; eles revistaram tudo isto muito bem, e
claro que não fizemos nada para impedi-los. Não podíamos — acrescentou Irene, rindo-se
para se justificar. — Thorne era o dono, percebes; eles chamaram o resto das pessoas que cá
viviam e disseram que não tínhamos direito de continuar aqui. Também nos prenderam, todos
menos a Caroline, embora no fim tivessem de libertar a maior parte de nós, depois de o pai de
Johnny ter alcançado o seu objetivo. Mas tiraram o bebé a Debbie, pobre rapariga, e quando
lhe disseram que ela era uma mãe incapaz enforcou-se na sua cela. Foi há tanto tempo... —
disse Irene com pesar.
A Debbie de que Irene falava devia ser Debra Winwood, a mãe de Light. E Johnny
devia ser Jonathan Ashwell, cujo pai devia ter sido tão rico e ter tão boas relações como a
narrativa incompleta de Irene sugeria. Mas que coisa horrível! Truth sentiu raiva em defesa
daquela pobre rapariga, apesar do senso comum lhe dizer que deveria haver outra versão das
coisas, diferente da que Irene conhecia.
— E as outras crianças? — perguntou Truth.
— Pilgrim fugiu na noite da tempestade. Era um rapaz rebelde. Ninguém a não ser
Thorne conseguia ter mão nele. Deve ter ficado incontrolável depois de Thorne... ter
desaparecido. Apanharam-no enquanto nós ainda estávamos presos. Soubemo-lo mais tarde.
O pobre pequeno só tinha oito anos. Não sei o que lhe aconteceu. Caro tentou que o
entregassem, mas eles recusaram-se a fazê-lo, e tentou ficar contigo e com Light, mas... os
porcos... como nós lhes chamávamos naquela altura, estavam determinados a extinguir a
multidão dos infiéis; trinta hippies que faziam magia na velha casa.
Irene fez uma pausa, olhando para longe. Quando voltou a falar, a sua voz estava tensa
de raiva.
— Todas as crianças foram levadas; havia outras, além das de Thorne, e alguns dos
pais eram casados legalmente e tudo. Não tinha importância. Só passados seis meses Caro
conseguiu ter-te de volta, graças à influência de amigos bem colocados, imagino eu. Vinha
tudo nos jornais americanos, por isso consegui ver todos os recortes mesmo depois de me
mandarem para casa. Ela veio visitar-me quando eu ainda estava na cadeia e pediu-me para
me afastar e manter os outros afastados dela e de ti. Acho que ela já sabia que tinha uma
guerra pela frente. Quanto às outras crianças, não sei o que lhes aconteceu. Realmente não
tenho a certeza de nada do que aconteceu depois de eles terem desistido de nos acusarem de
assassínio. Fui deportada para Inglaterra. Os palermas classificaram-me de “estrangeira
indesejável” e, como sabes, isso não se apaga facilmente dos arquivos. E desde esse dia até
hoje nunca mais voltei aos Estados Unidos.
Irene suspirou e abanou a cabeça.
— Claro que me deu bastantes maçadas durante estes anos, mas por Thorne valeu a
pena. — Sorriu, recordando, de uma maneira que antigamente zangaria Truth, mas que agora
só a tornava triste. — Não sei como Julian conseguiu que me dessem um passaporte novo, um
visto americano e tudo — continuou Irene num tom levemente perturbado — mas ele
conseguiu bastante, o querido. Eu estava em Brighton (era vidente, sabes, e apesar de os meus
poderes já não serem o que eram, ainda sou capaz de ler uma linha do coração). Mantive até
contacto com os Círculos que ainda faziam o Trabalho de Blackburn; éramos tratados com
desprezo naquela altura pelo O.T.O. e pelo Golden Dawn; achavam que Thorne não era
suficientemente sério, mas depois de ele ter desaparecido havia pessoas suficientemente
impressionadas com o seu trabalho para o continuarem em parte (preparando o Caminho,
pelo menos; embora sem Venus Afflicted ninguém conseguisse Abrir o Caminho). Até que
Julian, claro...
Enquanto Irene continuava a falar, Irene ia pensando furiosamente.
Uma coisa ressaltava das recordações de Irene: que o corpo de Thorne Blackburn
nunca tinha sido encontrado.
Irene tinha dito que ele desaparecera e não que tinha morrido.
— Então Thorne ainda pode estar vivo? — perguntou ela finalmente.
Irene parou de falar e olhou fixamente para ela. Finalmente deu uma pequena
gargalhada alarmada.
— Não! Thorne ainda vivo? Truth, realmente não te posso contar nada, mas digo-te
isto: se estás a pensar que ele fugiu naquela noite, não é verdade.
Irene hesitou, como se ponderasse se a sua consciência suportaria submeter-se a uma
confissão. Finalmente respirou fundo.
— Ele nunca saiu daquela sala, nem pela porta, nem pela janela. Eu estava lá e posso
garanti-lo. E é tudo o que te vou contar.
Irene insistiu para que Truth voltasse para o quarto, prometendo deitar-se pelo menos
durante algumas horas. A conversa à meia-noite com Thorne Blackburn já lhe parecia irreal.
Era difícil acreditar que alguma vez acontecera.
Mas ela acreditava que Thorne estava aqui. Algures. De algum modo. E porque era
uma cientista por inclinação e treino, o fato de ele estar aqui não era suficiente. Queria saber
porque.
Por que aqui? Por que agora? Por que ela?
Truth adormeceu sem querer e quando acordou já passava do meio-dia. Sentia-se
amarrotada e desmazelada por ter dormido vestida, mas ao lavar a cara vigorosamente com
água fria limpou algumas das teias de aranha, e pensou que podia continuar a fazer o que se
tinha proposto inicialmente, embora fosse difícil manter-se concentrada no seu objetivo
primitivo: rever a colecção de Julian de coisas sobre Blackburn e tomar notas para a sua
biografia.
Se Blackburn fosse realmente inglês, talvez pudesse contar com Dylan para ver se
alguns dos seus amigos ingleses podiam descobrir alguma coisa sobre os seus primeiros anos
de vida. Ou talvez até encontrá-lo através do departamento que emite passaportes.
Passaporte. Se o Governo britânico tivesse realmente revogado o de Irene e o Governo
americano o visto, como é que Julian tinha conseguido ambos?
Talvez Irene não estivesse bem informada, duvidou Truth. Enquanto ia pensando nas
várias abordagens possíveis, Truth mudou de roupa, vestindo desafiadoramente o colete de
veludo sobre uma blusa branca de algodão e calças escuras.
Se não ia fugir de um fantasma, certamente não recuaria perante os ataques de mau
génio de Fiona. E Julian pusera-lhes termo, se Fiona fosse sensata.
“Mas será que é? E resta a questão...”, matutou Truth.
Ouvindo o estômago a dar sinal, lembrou-se que não tinha tomado o pequeno almoço
e que, se dormia pouco, pelo menos precisava comer. Lembrou-se dos dias de estudante, das
noites de estudo sustentadas a pizzas e barras de chocolate e, embora não quisesse ir tão
longe, um bom almoço vinha a calhar. Quando saiu do quarto, dirigiu-se à sala de jantar.
O almoço em Shadow’s Gate era buffet, vendo-se sobre os dois aparadores, preparados
para isso, uma terrina de sopa e várias saladas e carnes frias. Aparentemente o almoço, tal
como o pequeno almoço, era informal, as pessoas iam e vinham como queriam.
Quando Truth entrou, Ellis, Hereward e Light já estavam à mesa. Light tinha um prato
cheio de sobremesas junto do cotovelo e mexia num prato de sopa com pouco método. A sua
cara iluminou-se quando viu Truth.
— Ah, que bom! Estás aí — pôs a cabeça de lado como se estivesse a ouvir, olhando
ainda para Truth, embora esta visse que os seus olhos já não estavam focados nela; tanto
melhor, concluiu ela.
— Vais ficar doente se comeres todo esse açúcar de estômago vazio — disse Truth.
Ellis resmungou, dando a entender que já tinha dito a mesma coisa. O copo de água
junto do prato estava meio cheio com um líquido âmbar e Truth apostava que não era chá
gelado. Light encolheu os ombros na defensiva e deixou cair a colher de sopa no prato,
provocando salpicos.
— Bem — disse Truth rapidamente — acho que não tem importância a ordem por que
comes o almoço e a sobremesa, desde que comas as duas coisas.
— Crianças — disse Hereward, não se dirigindo a ninguém em especial. — É uma
chatice viver com elas, mas também não se pode viver sem elas.
Light deitou-lhe a língua de fora e ele fez-lhe um sorriso amarelo. Ela empurrou a
sopa
e pegou num bolo, dando-lhe uma dentada com satisfação triunfante.
— Ali há sanduíches e as sopas e as saladas estão debaixo da janela. O café e a
sobremesa estão na cozinha. Dão-nos a liberdade de ir ao santuário durante o almoço, porque
é nessa altura que Hoskins faz as compras — disse Hereward a Truth.
Ela encheu um prato no aparador e pousou-o num lugar ao lado de Light, depois foi
até a cozinha à procura de café.
Quando voltou, com uma chávena na mão e um guardanapo cheio de biscoitos quentes
na outra, viu que a sanduíche de ovo e salada tinha desaparecido e que Light tinha uma
expressão maldosamente inocente.
— Hum. Eu sei um truque que vale dois desses — disse Truth, fazendo uma pausa para
juntar umas fatias de rosbife ao seu saque. Light franziu o sobrolho e virou-se novamente para
a sobremesa.
Truth deu uma dentada no rosbife. Estava delicioso, como toda a comida em
Shadow’s Gate, e era disso que o seu estômago voraz precisava. Sentou-se e usou o
guardanapo para limpar um bocado de maionaise da face de Truth. O sentimento de proteção
que sentia em relação à irmã que encontrara novamente era quase assustador na sua
impetuosidade.
— Então, o que vais fazer esta tarde? — perguntou Truth alegremente.
Pensou na conversa que tinha tido com Caradoc (teria sido ontem?) sobre o fato de a
magia ser uma arte de transformação pessoal, uma ferramenta espiritual do homem que não
deveria ser circunscrita à vontade da Igreja ou do Estado. Nobres sentimentos... mas qual era a
realidade?
— O templo está escuro hoje à noite, por isso não vamos trabalhar — disse Hereward,
respondendo à pergunta dela. — Mas a maior parte de nós tem palavras a decorar para o ritual
de amanhã. Não é a primeira vez que o fazemos, mas odiava enganar-me no théâtre sacrée —
acrescentou ele.
A maneira como Hereward falou, fez Truth lembrar-se de uma coisa.
— Você é ator, não é? Quando não está... aqui?
Hereward riu-se.
— Estou sempre “aqui”, mas você tem razão. Não vou perguntar se já me viu nalguma
peça, porque não viu, mas... como soube?
— Eu andei com um cigano da Broadway, nos meus tempos de universitária. Lembro-
me de ele falar sobre as noites escuras do teatro... e pensei que tivesse alguma coisa a ver com
a conta da eletricidade.
Hereward riu-se.
— Não. Significa apenas que não está a ser utilizado. Mas tenho que ter cuidado. Não
quero revelar nada.
Os seus olhos cinzentos de lobo observavam-na fixamente, dando outro significado às
suas palavras.
— Bem, pelo menos, meu querido amigo Guardião, não tem que brandir uma enorme
espada, enquanto está a dizer a sua parte — disse Ellis. — Pensei que Julian me ia trespassar
com ela ontem à noite.
Deu um grande golo no que estava no copo (xerez, pensou Truth) e pousou-o
novamente.
— Bem, você deixou-a cair — disse Hereward, olhando ainda para Truth. — Mas é
para isso que servem os ensaios do guarda-roupa, meu querido Guardião das Portas. E por
falar em vestidos, Truth, o que é que você fez à pequena Fee, o nosso anjo de compaixão, com
caracóis à Ticiano? Nunca a vi dizer as deixas tão mal como ontem à noite, desde que a
conheço.
Uma vez que tinha mencionado vestidos, Hereward devia saber perfeitamente o que
tinha acontecido, e Truth não tencionava dar-lhe mais pormenores.
— Há quanto tempo a conhece? — perguntou Truth.
Foi só depois de fazer a pergunta que se apercebeu de como estava realmente
interessada na resposta.
— O Círculo está a trabalhar em conjunto há cerca de um ano. Nós os dois, Ellis e eu,
já tínhamos tido anteriormente uma experiência com o Trabalho de Blackburn, tal como Irene
e Doe, refiro-me ao Caradoc, mas aposto que Fiona não sabia distinguir um Airt de um Epopt
antes de conhecer Julian.
Hereward encolheu os ombros.
Airt era a palavra gaélica para direção, mas quanto a Epopt, Truth não fazia a menor
ideia do que fosse. Thorne não tinha usado essa palavra? Olhou inquisitivamente para Ellis,
mas daquele lado ninguém quis elucidá-la.
— É verdade, seja importante ou não. Há alturas em que penso que Thorne nos teria
feito um grande serviço se tivesse elaborado um sistema mágico que não dependesse tanto
da... participação feminina — disse Ellis.
— Mas, Ellis, está a falar como se não gostasse de mulheres — disse Hereward.
Ellis fez uma careta aborrecida.
— Só estou a dizer que o Trabalho de Blackburn é construído à volta do Hierolator e
do Hierofex, e ambos são mulheres.
— Resta o Ritual de Anúbis — disse Hereward, provocador.
— Sim — disse Ellis sem comentários. Viu o olhar de incompreensão de Truth e
decidiu ser menos severo, bebendo mais um pouco do copo. — Uma vez que na sua pesquisa
vai provavelmente encontrá-lo, vou-lhe dizer: O Ritual de Anúbisé a Preparação do Caminho
de Blackburn com os homens a substituírem o papel das mulheres. Foi publicado pelo Círculo
do Fogo, que é a loja de Blackburn de São Francisco...
— Naturalmente — interveio Hereward. — Mas não sei se alguma vez foi representado.
Se tivesse sido, não seria difícil descobrir onde está o túmulo de Thorne: bastava ouvir o
barulho dele às voltas no túmulo.
Mesmo que Ellis tivesse bebido muito, e Truth começava a achar que devia ter sido
bastante, o seu discurso sarcasticamente preciso continuava claro. E parecia a Truth que o
ocultismo e o mundo académico tinham mais em comum do que ela achara no início lutas de
facções e disputas sobre material, uma pequena comunidade fechada em que toda a gente
conhecia e dizia mal dos outros.
— Sem falar do trabalho de encontrar um espírita masculino que entre em transe e que
tenha atingido a maioridade para o nosso Hierofex Anubiano. Não é verdade que a maior
parte dos médiuns é mulheres? — perguntou Hereward a Truth...
Ela sentiu-se grata por lhe fazerem uma pergunta para a qual tinha a resposta, e pensou
se seria essa a ideia de Hereward.
— Parece que assim é, mas um dos médiuns mais famosos de que há notícia, R. L.
Lees, era homem. Viveu em Londres no século dezenove e até foi consultado sobre o
assassínio dos Ripper. Outro médium famoso masculino desse período era Daniel D. Home;
Houdini tentou mostrar que a sua reputação era exagerada e falhou. Mas é verdade que há
mais mulheres do que homens nesse campo, na proporção de pelo menos três para um. Talvez
as mulheres se sintam melhor ao admitirem que o mundo não é... bem, inteiramente suscetível
de uma análise lógica — terminou Truth debilmente.
— Não será bem assim — disse Ellis amargamente.
— Se o mundo fosse um lugar lógico, seríamos todos Unitários — disse Hereward — e
não haveria desentendimentos. Mas tenho que me ir embora; Julian deu-me uma lista de
compras, e tenho que ir até Nova Iorque para comprar algumas das coisas.
Hereward levantou-se.
— Se vai a Nova Iorque vou consigo. Quero ir ao meu apartamento buscar algumas
coisas — disse Ellis, acabando a bebida e levantando-se também. Oscilou um pouco e
endireitou-se, apoiando uma mão na mesa.
Hereward parou de empurrar a cadeira e olhou severamente para Ellis.
— Sim, eu sei o que ele disse — disse Ellis, como se Hereward tivesse falado — mas
não estou a pensar em aparecer em The Tonight Show, como o nosso Fundador fez nos seus
dias, lembra-se? Só quero ver se Dorian tem regado as plantas e escolher algumas roupas de
inverno. Faz muito frio aqui.
Hereward virou os olhos para o teto, como se pedisse ajuda ao céu, e expirou
lentamente.
— Bem, a responsabilidade é sua, meu querido Guardião das Portas — disse ele por
fim. — Mas não vou mentir a Julian por si.
Truth ficou aliviada ao ver que ambos pegavam nos seus pratos e se dirigiam para a
cozinha.
Então tinha havido um desentendimento na luta de Julian pela harmonia da Nova Era,
pensou Truth, depois dos dois homens terem saído. O paleio era fluente e as histórias
divertidas, mas havia qualquer coisa mais de que eles não falavam, e ela gostaria muito de
saber o que era.
Light, que tinha acabado a sobremesa e deixado a sopa,juntou as suas coisas e
levantou-se para ir embora.
— E tu? — perguntou Truth?
— Vou ficar contigo — disse Light.
Embora bem-vinda, Light era uma companheira desanimadora. Seguiu Truth até à
biblioteca e enrolou-se num local soalheiro como um gato, olhando sem pestanejar para o
espaço.
Alguns minutos mais tarde, Truth, ao chamá-la pelo nome, não conseguiu acordá-la.
Para onde tinha ido? Truth olhou para os olhos prateados, muito abertos, e pôs-se a
matutar. Não tentou acordar Light novamente; melhor seria deixar a criança sossegada, depois
do que toda a gente lhe tinha feito, para tentar mudá-la.
Criança? Truth questionou os seus próprios pensamentos. Se Light fosse realmente
filha de Thorne, e realmente não parecia haver muitas dúvidas quanto a isso, então teria pelo
menos 27 anos, tendo nascido, se fosse filha de Debra Winwood, pouco antes de 30 de abril
de 1969. Truth pensou novamente no suicídio da mãe de Light e retraiu-se. Que começo
horrível para uma vida que não continha nada a não ser sombras!
Até que Julian tinha aparecido. Sempre que começasse a dar a Julian o papel do
Napoleão do crime moderno, disse Truth para si mesma, devia lembrar-se de quanto ele tinha
feito por Light e desistir imediatamente. Julian, como toda a gente, tinha seguramente os seus
segredos e pecadilhos, mas o bem que ele fizera era irrefutável.
Com um suspiro, Truth virou-se para as gavetas do arquivo e para Thorne Blackburn.
Era ainda a coisa mais certa na sua vida, mas era difícil, agora, lembrar-se de que não era um
diabo apenas um charlatão do ocultismo: um ator, uma fraude, um hipócrita.
“E ressuscitar dos mortos”, pensou Truth, “não alterava o que ele tinha feito na
vida.”
Começou a ler as cartas que Julian tinha colecionado cuidadosamente e guardado por
ordem cronológica. Thorne tinha produzido numerosa correspondência manuscrita, e as suas
cartas eram muitas vezes ilegíveis, muito gatafunhadas, mas a mais antiga datava de 1939.
Thorne estava em Nova Orleães e tinha um certo número de comentários mordazes a fazer
sobre o “comércio turista” vudu, terminando assim:
“Eu devia abrir a Porta da Morte e trazer de volta Maria La Veau para andar entre
os die mundus, soubesse eu qual deles recuaria mais horrorizado;os estúpidos que se
alimentam de sentimentalismos ou a Rainha das Bruxas. As coisas mudaram muito desde a
última vez que cá estive...”
A seguir Thorne descrevia com ironia que, da última vez que estivera em Nova
Orleães, a cidade ainda era dominada pelos franceses e que a tinha achado, especialmente
Natchez Under Hill, muito modificada. A carta terminava com um pedido de dinheiro,
elegantemente disfarçado, e várias linhas que pareciam grego. Truth traduziu-o como pôde:
“Não é morte o que jaz eternamente. E com qualquer coisa, qualquer coisa até a
Morte pode morrer.” Em 1959 o mentor mágico de Thorne parecia ser H. P. Lovecraft, ou
pelo menos Giuseppe Bálsamo, conde Cagliostro tendo em conta o fato de ele afirmar ter
mais de cem anos.
— O meu pai, Vampiro Lestat — grunhiu Truth.
As cartas tornavam-se cada vez mais longas, páginas de escrita minuciosa, com
explicações ou objeções elaboradas sobre teorias do ocultismo, mas, independentemente de
outras afirmações que fazia, Thorne deixara explícito, desde as primeiras referências que
Truth encontrara, que havia uma porta entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens, e
que essa porta podia ser aberta por magia.
Em cartas posteriores acrescentava que era o “Velho Sangue”, o sidhe, e que fora
escolhido pelos deuses para reabrir as portas entre os dois mundos. Thorne referia-se à
“guerra” em várias cartas e, ao princípio, Truth pensou que se tratava do Vietnam, mas depois
percebeu que se tratava da Segunda Guerra Mundial.
Se Thorne tivesse cerca de trinta anos quando morreu, deveria ter nascido por volta de
1939 e a sua infância teria a guerra como pano de fundo. Mas as referências ao seu passado
eram muito ligeiras e insignificantes:
“... desde a guerra, tornou-se claro para todos os indivíduos sensíveis às vibrações
mais elevadas que estamos a aproximar-nos do fim de uma era. Crowley pensava que a Nova
Era tinha sido declarada em 1904, mas ele não compreendia Aiwass: era apenas uma voz a
gritar: “Para o deserto, escolham o caminho certo”.
Era uma sorte, pensou Truth, olhando para a data da carta, que a Besta não tivesse
sobrevivido para se ver despromovida de Lúcifer para João Baptista. Mas Crowley tinha
vivido em 1947; se a sua assinatura no livro da biblioteca de Thorne não fosse falsa,
significava que Thorne ainda era uma criança quando conhecera Crowley.
Truth tomou nota para ver se conseguiria verificar a ligação entre Blackburn e
Crowley, mas os seguidores modernos de Crowley eram um grupo discreto, o que era
compreensível, tendo em conta os quantos disparates se tinham escrito sobre eles.
Tanta coisa a fazer...
A correspondência de Thorne ia diminuindo; pelo menos o arquivo de Julian tinha
menos cartas quando Thorne tinha lançado o seu jornal clandestino em São Francisco.
Essa compra tinha sido negociada com o banco por um dos seus seguidores tal como a
aquisição da casa Haight-Ashbury, a compra do Autocarro Mistério e, por fim, a aquisição
de Shadow’s Gate, acabando tudo por ficar em nome de Thorne, porque, segundo ele dizia
aos que o apoiavam: “Não suporto viver da caridade, sujeito aos caprichos dos outros.”
No entanto, não se tinha importado de aceitar grandes donativos em dinheiro, e Truth,
conseguindo finalmente olhar para o assunto com uma certa frieza, perguntou-se como ele
teria conseguido tudo isso; as pessoas com muito dinheiro eram normalmente mais cuidadosas
com a escolha dos seus beneficiários.
Mas Thorne parecia possuir um radar infalível em relação às pessoas que tinham
dinheiro e um charme natural que lhe facilitava a tarefa. As pessoas que viviam em Shadow’s
Gate em 1969 não tinham sido definitivamente ilibadas de qualquer resquício de
cumplicidade na morte e desaparecimento dum espírito liberal por parte da Polícia local e
certamente que isso não se devia ao fato de serem hippies, mas por serem “hippies ricos”, se
o que Truth estava a descobrir fosse verdade.
— Nenhum deles abaixo de corretor — murmurou Truth em voz alta.
Bem, como se costuma dizer: é tão fácil amar um homem rico como um homem
pobre. E tudo parecia indicar que Thorne fizera jus ao ditado.
Mas Truth não encontrou qualquer indicação, nem em cartas escritas por ele nem nas
que recebeu, de que Thorne Blackburn estivesse a fugir dos seus seguidores e a meter o
dinheiro ao bolso; pelo menos não da maneira que ela tinha imaginado. No sentido mais
estrito, Thorne não era um aldrabão, uma fraude, um canalha, um impostor.
Era verdade que Thorne tinha usado várias fortunas que à partida não lhe pertenciam,
mas tinha gasto tudo no que ele chamava o Trabalho: em loucuras extravagantes como
encastoar prata no chão do templo de Shadow’s Gate. Certamente que tinha sido manipulador
e provavelmente pouco escrupuloso...
— Mas as intenções eram puras — disse Truth com um suspiro. — Pai, o que hei de
fazer consigo?
Nos anos 90, de moral tão escrupulosamente monetária e economicista, ela podia
arruinar a reputação do pai pelo simples fato de falar dos seus aspectos financeiros.
Mas seria isso que ela queria fazer? Realmente? Ainda?
— O Julian vem aí — anunciou Light.
Truth deu um salto ao ouvir a voz inesperada da irmã e logo de seguida ouviu bater ao
de leve à porta.
Julian usava uma camisola de seda natural e calças de tweed e esta combinação dava-
lhe o ar dum devasso ladrão de jóias em férias. Atravessou a sala, ao encontro de Truth, e
olhou para os papéis.
— A história de uma vida interrompida? — perguntou ele, pegando numa das cartas e
olhando para ela.
Vendo a carta na mão dele, era impossível não deitar contas ao investimento de capital
que toda esta pasta, estes documentos inestimáveis e insubstituíveis representavam para
Julian...
— Julian, como é que você... quero dizer, deve ter sido difícil para si... — hesitou
Truth.
— Quantas casas é que eu assaltei? — disse Julian na brincadeira.
A sua boa disposição estava perto da euforia. Truth nunca o vira tão bem disposto.
— Não franza o sobrolho. A realidade é bastante mais prosaica: coloquei anúncios nos
jornais de magia mais importantes e comprei-os de uma forma ou de outra. Infelizmente,
Thorne raramente guardava as cartas que recebia, por isso lamento que a correspondência seja
unilateral, com raras exceções.
Ela já tinha reparado que os ficheiros continham muito poucas cartas para Thorne e se
Julian tinha conseguido outras cartas além destas, não era crível que ela conseguisse fazer
melhor pelos seus próprios meios.
— Será altura de eu dizer que há algumas coisas que o dinheiro não pode comprar? —
perguntou Truth alegremente.
— É verdade, é verdade... mas muito poucas coisas — disse Julian cantarolando.
Pareceu controlar-se, como se lhe custasse viver naquele estado de euforia.
— Mas essas, as que o dinheiro não pode comprar, são as coisas mais importantes...
acho eu. E o que descobriu você sobre Thorne?
— Não muita coisa; para além das suas convicções sobre a magia e dos seus triunfos
financeiros — acrescentou Truth, não se contendo. — Julian, você, mais do que qualquer outra
pessoa, deve saber. Onde é que ele nasceu? Como é que ele se ligou ao oculto?
— Mas que diplomata! — disse Julian, sorrindo-lhe. — Tenho a certeza de que você
queria dizer: “Como é que ele se meteu nesta idiotice?” — Puxou uma cadeira ao lado dela e
sentou-se. — Mas isso não responde à sua pergunta.
Estendeu as mãos em cima da mesa, olhando para as pontas dos dedos, como se as
palavras aí estivessem escritas.
— Tanto quanto eu sei... Thorne era inglês ou, pelo menos, passou muito tempo em
Inglaterra. O seu passado parece-se bastante com um misterioso assassínio insolúvel, com
algumas diversas e nenhuma explicação, e lamento que o que eu tenha para lhe oferecer se
resuma a vinte e cinco anos de lendas acumuladas e não de fatos concretos.
Julian continuou a estudar as pontas dos dedos e, sem querer, o olhar de Truth seguiu
o dele, de modo que ambos ficaram a olhar fixamente para as suas unhas impecavelmente
tratadas.
— É possível que a mãe de Thorne fosse uma inglesa casada com um americano, como
aconteceu a muitas delas nos anos quarenta. Teria regressado aos Estados Unidos com o
marido, claro, e Thorne teria nascido aqui — disse Julian. — Depois, pode ter acontecido que,
por morte dos pais, ele tenha regressado a Inglaterra para ser criado pelos avós. O FBI tinha
um dossiê sobre ele, e eu consegui consultá-lo parcialmente, graças a uma operação maior de
magia: invocar a lei da liberdade de informação. Thorne era sem dúvida cidadão americano na
altura em que o FBI começou a observá-lo.
Julian olhou para ela e Truth ficou instantaneamente seduzida pelo seu olhar de um
brilhante azul; deslumbrante e calmante, tudo ao mesmo tempo, como os mares das Caraíbas.
— Mas eles não sabem mais nada sobre ele? — perguntou Truth, passado um longo
momento.
Sentiu que se libertava duma rede invisível à medida que falava e Julian sorriu.
— Estavam mais interessados em saber quem ele encontrava no Weather Underground
do que em descobrir com quem ele andara na escola — disse ele com ironia. — Muito
descuidado da parte deles, se nos lembrarmos de quão reservado e rodeado de secretismos
viria Thorne a revelar-se. Como a minha primeira prioridade não era descobrir o seu passado,
não investiguei o assunto, mas suspeito que deram a Thorne o nome de solteira da mãe como
um dos seus nomes próprios, por isso talvez a melhor pista de trabalho seja investigar os
Thorne. A propósito: Thorne era o segundo nome próprio dele; o primeiro era Douglas.
— Não consigo imaginar Blackburn como Doug — admitiu Truth. — Não vai ser fácil
de encontrar, mas é possível que existam registros de casamentos militares e já sei que preciso
procurar uma base no norte de Inglaterra.
— Por que diz isso? — perguntou Julian, ao que Truth respondeu, antes de se dar conta
do que ia dizer.
— Consegue-se perceber pela voz dele; parece ser de Liverpool ou de Birmingham. É
uma pronúncia diferente da do sul. Se ele foi viver com os avós, apanhou a maneira de eles
falarem... — disse Truth, calando-se ao ouvir as suas próprias palavras.
— A voz dele? — perguntou Julian. “Quando é que você ouviu Thorne a falar?” foi a
pergunta omissa que pairou no ar.
Sim, detectava-se a pronúncia de Liverpool na voz dele, mas apenas quando falava
descontraidamente, dizendo à filha para sair de Shadow’s Gate, e não nas gravações que
Julian tinha colecionado com tanto afã. Truth corou ao perceber a magnitude do seu deslize.
— Estive a ouvir as gravações — disse ela. — Consegue-se perceber, se prestarmos
atenção. — A voz dela soou inexpressiva, pouco convincente, mas seria a verdade mais fácil
de acreditar?
Julian olhou para ela, com uma luz interior a brilhar nos seus olhos radiantes.
— Se ele regressasse, seria para si — disse ele, quase como se falasse consigo próprio.
Que podia ela dizer? Que não acreditava em fantasmas? Quando tinha feito tudo,
menos chantagear Julian para que a deixasse trazer o equipamento para fazer gravações,
porque tinha a certeza de que Shadow’s Gate estava assombrada? Desviou o olhar e só nessa
altura reparou que Light não estava presente.
— Light — disse Truth, pondo-se de pé. Olhou à sua volta.
— Ela estava aqui, quando eu entrei — disse Julian, pouco preocupado. — Deve ter-se
aborrecido e saiu daqui. Não se preocupe, Truth; verá que Light entra e sai sem ninguém dar
conta. Ela já tem idade suficiente para se livrar da maior parte dos sarilhos sozinha. Desde que
esteja em casa à hora do jantar, eu não me preocupo demasiado.
— Mas... — começou Truth.
— Não se preocupe — disse Julian com firmeza, pousando a mão sobre a dela, e Truth
voltou a sentar-se relutantemente; uma leve excitação percorreu-a ao sentir a pressão cálida da
mão dele.
Gostasse ou não, havia uma certa verdade no que Julian tinha dito e, ou ela acreditava
que Light podia ser responsável, ou então achava que ela deveria voltar para uma instituição
semelhante àquela de onde Julian a tinha tirado.
— Tem razão — admitiu ela, embora se revoltasse contra as suas próprias palavras;
mas não seria essa revolta um orgulho falso?
A auto-suficiência que apreciara durante estes anos todos era, afinal, uma ratoeira, não
era? Nunca se sentira tão pouco segura. Sabia que tinha que proteger Light, mas não sabia
como.
— Não fique tão preocupada — disse Julian, num tom zombeteiro. — O meu trabalho
está a correr maravilhosamente e, pelo que ouvi, o seu começou de forma prometedora. Se
achar que uma viagem a Inglaterra ajudaria a sua investigação, terei muito gosto em pagar as
despesas. E tenho alguns contatos em certos meios sociais. Ficaria feliz por apresentá-la às
pessoas de que precisa.
— É muito generoso, Julian — disse Truth devagar.
— Sou muito egoísta — corrigiu-a Julian carinhosamente. — Estou tão desejoso em
desvendar os segredos do passado de Thorne como você. É verdade que ele era afilhado de
Aleister Crowley? O avô de Thorne seria membro do Golden Dawn? — O sorriso dele
convidava-a a partilhar a sua curiosidade... e a mais.
— A nossa teoria não irá por água abaixo se Thorne tiver nascido em 1939? — disse
Truth. — Houve guerra de 41 até 44, pelo menos para os americanos. Se a sua teoria estiver
certa, então o ano de nascimento de Thorne seria 1942.
— Não é impossível — disse Julian. — Em 1969 teria 27 anos.
— Quando morreu? — perguntou Truth rispidamente.
Irene Avalon tinha contado a Julian Pilgrim o que sabia, ou achava que sabia, sobre a
noite fatal.
— De qualquer forma, quando desapareceu — disse Julian, evitando discretamente a
pergunta. — Nunca mais foi encontrado na Terra, apesar dos esforços do Departamento do
Xerife do Condado de Dutchess, da Polícia de Nova Iorque e do FBI.
Truth abanou a cabeça, frustrada. Mesmo as perguntas mais simples sobre Blackburn
pareciam esbarrar num matagal de encenações e mistificações.
— Vai a Inglaterra por mim? — perguntou Julian, tentando convencê-la. — Ou
podíamos ir juntos daqui a algumas semanas. Que tal passar o Natal em Paris?
— Parece que está a tentar seduzir-me — disse Truth sem pensar. — Aí, meu Deus,
Julian...! Não queria dizer... — gaguejou ela, com as faces a arder.
— Não tem importância. É verdade. Da forma mais correta, claro. — Julian pegou na
mão de Truth que estava pousada na mesa e voltou-a entre as suas. Passou o polegar pela sua
palma da mão. — Truth, você é muito perspicaz e nada ingénua. Tenho a certeza que sabe que
há muito poucas coisas que uma pessoa como eu, com os recursos que possuo, tenha que
pedir. Mas gostava muito de sair consigo. Gostaria de jantar comigo hoje à noite... fora de
Shadow’s Gate?
Sorriu-lhe. Truth ficou tão alvoroçada que levou algum tempo a perceber o que ele lhe
estava a pedir; e quando o compreendeu não pôde deixar de anuir, como se alguém, que não
ela própria, lhe tivesse colocado as palavras na boca.
A Estalagem River View ficava a uma hora de caminho para norte de Shadowkill, no
condado de Columbia. Tinha uma vista maravilhosa sobre o Hudson, um chefe de cozinha
diplomado e um terraço envidraçado onde ambos podiam ser apreciados num conforto
opulento. Quando o BMW de Julian subira o caminho longo e curvo do que Julian descrevera
como “o tipo habitual da casa de campo na estrada”, Truth dera graças não apenas por ter
trazido o vestido verde de seda que comprara na cidade, por ter posto para trás das costas a
falsa modéstia e de tê-lo usado; era o vestido perfeito para esta paisagem.
— Ah, minha beleza, finalmente tenho-a só para mim — brincou Julian, tirando-lhe a
capa azul dos ombros.
Ela sorriu-lhe, enquanto ele depositava o casaco e a capa no bengaleiro.
— Tem que me levar embora até à meia-noite, senão transformo-me numa abóbora —
gracejou Truth, tentando igualar o tom dele.
Julian sorriu, ofereceu-lhe o braço e entraram no restaurante.
A Estalagem River View era uma antiga mansão à beira do rio Hudson, construída
cerca de uma geração depois de Shadow’s Gate; um opulento clube da época de ouro do jazz,
cuja doca privada assistira ao descarregamento de muitas caixas de uísque canadiano ilegal
nos tempos da Lei Seca. Tinha sofrido vários reveses da fortuna, conforme Julian lhe contou
pelo caminho, até ser comprada em 1979, por Jillian e Peter Randollph, ambos licenciados
pela CIA, que neste canto do estado de Nova Iorque significava Instituto de Culinária
Americano.
Depois de quase vinte anos de trabalho dos Randollph e de uma crítica na New York
Magazine, a estalagem tornou-se um sucesso do dia para a noite. Um lugar de eleição para
casamentos, com os poucos quartos de que dispunha reservados com meses de antecedência.
— Sabe que até tem um fantasma? — perguntou Julian quando o chefe de mesa os
levou para uma mesa no terraço.
— Está a brincar! — disse Truth.
Sentaram-se e Truth pôs-se a admirar a paisagem. Embora o sol já se tivesse posto há
muito tempo e estivesse demasiado escuro para se ver muita coisa, os arbustos que
bordejavam o caminho de acesso ao cais estavam iluminados por luzinhas; um batelão descia
paulatinamente as águas do rio.
— Não, é verdade! — protestou Julian.
Veio um criado para tomar nota do que queriam beber, mostrando uma solicitude
característica de um serviço muito caro.
— Vamos ser vulgares e beber champanhe? — perguntou Julian. — A não ser que
prefira um cocktail, claro.
— Não, champanhe calha muito bem.
O vinho branco espumante que Truth associava ao nome não era coisa de que ela se
sentisse tentada a abusar e queria ficar de espírito toldado, embora, por outro lado, lhe
apetecesse deixar campo aberto, para ver se Julian fazia algum “avanço”.
“E porque razão quereria eu semelhante coisa? Se há alguém em Shadow’s Gate que
não tenha outros segredos é Julian.”
— E então, o fantasma? — incitou-o Truth.
— Pode ser Cristal se estiver gelado, senão serve Perrier-Jouet — disse Julian ao
criado. — E ponha a gelar o P-J de 1982 grande cuvée para a sobremesa, está bem? — O
homem fez uma vénia e afastou-se.
— Ah, sim, o fantasma. Bem, o velho Joseph Peladan, que construiu esta casa, era um
típico ladrão da viragem do século à laia de William Randolph Hearst. Não nos apercebemos
disso aqui no primeiro andar, porque foi remodelado como restaurante, mas para acabar e
mobiliar esta casa, Peladan roubou de um grande número de imponentes casas inglesas: gesso,
painéis e objectos de arte, além de grande quantidade de mobília. Nos seus tempos áureos,
isto deve ter parecido um museu. Bem, de qualquer maneira, entre os objetos que Peladan
encomendou, e que lhe foram enviados, encontrava-se um fantasma.
Trouxeram o champanhe, que foi aberto e aprovado. Truth deu um pequeno gole e
depois um maior. Ficava a anos-luz do champanhe que serviam nas festas na Universidade de
Taghkanic.
“Tem cuidado, Dorothy, já não estás no Kansas.”
Continuou a beber, enquanto Julian continua a contar de forma encantadora o que
Truth suspeitava ser uma vulgar história de fantasmas, se não fosse mesmo parte do folclore
local sobre o milionário e a sua biblioteca assombrada.
— ... por isso, se vir por aí uma senhora com um vestido de noite antiquado —
terminou Julian — não lhe pergunte as horas.
Truth riu-se, como era de esperar, e um criado que aguardava, sentindo que chegara o
momento, aproximou-se com dois menus de couro.
— Se não se importa, pedirei a Peter para decidir o que nos vai dar. Assim é mais
divertido — disse Julian.
Olhou inquisitivamente para ela. Truth anuiu. Julian fez um gesto e o criado pegou nos
menus e afastou-se.
Truth meditou sobre a sua passividade inusitada. Era como se estivesse numa espécie
de demanda mágica, em que para encontrar a solução da adivinha teria que responder que sim
a todas as perguntas.
“Ele está a tramar alguma, o que será? Não consigo imaginar nenhuma razão para
merecer que ele me engane. Como poderia eu ter alguma coisa que ele queira, ou que não
consiga comprar mais barato noutro lado?”
Mas era difícil ser tão cínica perante o charme de Julian; charme que ele exercia
declaradamente esta noite, fazendo com que todas as inconveniências do dia-a-dia
desaparecessem, criando uma espécie de versão hollywoodesca da realidade.
— Asseguro-lhe que tenho uma razão oculta para trazê-la aqui — disse Julian,
enquanto lhes serviam uma entrada descrita pelo criado como gravlox envolto em massa
folhada com espargos selvagens. — Sinto-me muito... atraído por si — disse ele quase
timidamente — e, no outro dia, portei-me de forma tão idiota consigo, que estou aqui na
esperança de recuperar o terreno perdido.
— Ah, sim — concordou Truth gravemente. — Portou-se tão mal que nem me lembro
bem da ocasião.
Pegou numa garfada da especiosa entrada. Parecia desfazer-se na boca sem ser
necessário mastigar. Tremeu só de pensar qual seria o preço deste jantar a dois; se este era o
tipo de vida que os ricos tinham, não teria qualquer dificuldade em habituar-se a ele.
E não era isso que lhe estavam a oferecer?
O arrepio que sentiu nessa altura quase a fez engasgar.
Julian tinha-a levado para um sítio importante e estava a oferecer-lhe... o que?
Ele estava a falar.
— Desculpe Julian, o que estava a dizer?
— Nada de especial. Apenas que não queria que você pensasse que eu me importava
que Shadow’s Gate fosse investigado. De fato, ainda não tinha decidido quando falei consigo
antes, mas decidi fechar a casa em novembro. Se os seus amigos quiserem vir com os seus
estranhos equipamentos, posso deixá-la aberta e manter Hoskins, se achar bem.
— Seria ótimo — disse Truth.
E tarde demais. “O que está para vir, chegará na próxima semana, no Dia de Todos
os Santos.”
— Falei com Dylan (o doutor Palmer é o caça-fantasmas residente no instituto); ele
está muito interessado — se chamá-la idiota fosse expressão de interesse — e vai mandar
algum do seu equipamento à frente. Deve chegar em breve. Não se importa, pois não?
Era estranho, pensou Truth com desprendimento, como a astúcia manipuladora que
desprezava nos outros lhe vinha de forma tão natural no momento em que sentia que
precisava
dela. Como poderia Julian dizer que se importava sem parecer um idiota?
— Como poderia importar-me, se isso a mantém interessada em nós? — respondeu
Julian. — O que é muito problemático (e sei que você compreende) é que se venha a saber e
que o nome de Thorne possa ficar ligado a uma espécie de idiotice de Amytville. Mas agora
nos conhece suficientemente bem para saber que a última coisa que queremos é publicidade.
“Conheço-o? Mas eu não o conheço, Julian...”
— Thorne parecia gostar de publicidade — disse Truth, descobrindo da entrada já nem
migalhas restavam.
O criado, que esperava, aproximou-se rapidamente para tirar os pratos.
— Isso foi há muito tempo e num país distante — disse Julian com um sorriso
malicioso — e esse tipo de inocência já morreu há muito tempo. Eu acho que Thorne era um
homem profundamente inocente em vários aspectos, não acha?
O criado voltou a aparecer com uns tabuleiros enormes, sobre os quais seriam
colocados os pratos. Julian encheu novamente os copos de champanhe.
— Inocente? — ponderou Truth. — Não sei se diria inocente. Sincero, certamente,
mas... Apaixonadamente sincero, de fato, e cheio do idealismo do seu tempo, só que em
Thorne tinha tomado o curso bizarro das ciências ocultas. Como toda a sua geração, Thorne
Blackburn queria encher o mundo de paz e amor, apesar de no seu caso tencionar fazê-lo
provocando o aparecimento da Nova Era, em que deuses e heróis viviam entre os homens.
Nunca tinha parado para perguntar se seria uma boa ideia.
— De qualquer forma — disse Truth, encolhendo os ombros — será uma opinião para
o biógrafo dar, ou não, quando tiver todo o material, não acha?
— Touché — disse Julian, levantando o copo para fazer uma saúde. — E só espero que
tenha tanto de criteriosa como de bonita.
Parecia que Thorne Blackburn era o convidado invisível na festa. Ignorando, ou
apenas não ligando às tentativas dela de encorajá-lo a falar sobre ele, Julian falou sobre
Thorne durante a refeição: o período de São Francisco, a Volta Mistério Universal, a odisséia
através do país no Autocarro Mistério, os oito meses passados no México, durante os quais
apurou a sua determinação de fazer os rituais que constituíam Venus Afflicted.
Desistindo das tentativas de interrogá-lo, Truth sentia-se cada vez mais tentada a
contar a Julian as aparições de Thorne em Shadow’s Gate; mas certamente que Thorne
aparecera também a Julian?
Se é que ela não estava a ficar doida. O que era muito possível, ao fim e ao cabo.
— Eu daria dez anos da minha vida para saber onde está o livro agora. — disse Julian,
enquanto lhes tiravam os pratos. — Venus Afflicted encontrava-se em Shadow’s Gate, pelo
menos sabemos isso. Thorne estava a acrescentá-lo e a corrigi-lo até o fim. A Polícia
procurou-o e não o encontrou, e claro que, quando a casa ficou para mim, virei-a de pernas
para o ar. Nada.
— Por que razão quereria a Polícia um livro de magia? — perguntou Truth.
A mudança de conversa fê-la sentir desconfortavelmente culpada. O livro que Julian
procurava tão ardentemente, estava ao seu alcance: Venus Afflicted encontrava-se na mala do
seu carro.
Truth não gostava de guardar segredos e Julian parecia não suspeitar dela, mas de uma
certa forma esperar que...
E entretanto, uma pequena voz interior de auto-preservação dizia-lhe para manter o
livro secreto, tal como a tia Caroline o tinha feito.
Pois se Julian tinha procurado o espólio de Thorne por todo o lado, não era possível
que se tivesse esquecido de Caroline Jourdemayne.
Truth tinha uma sensação incómoda de que estava prestes a fazer uma descoberta
importante, mas o que ela estava à beira de desvendar desapareceu quando Julian voltou a
falar.
— Eles ainda estavam a tentar acusar Thorne e achavam que o livro de magia seria
prova sabe Deus de quê. O livro era bastante famoso na comunidade de magia. Thorne
referia-se bastantes vezes a ele nos seus diários e ensaios — disse Julian, um pouco pensativo.
Teria de ler aquilo tudo, bem como as suas cartas, percebeu Truth desapontada.
“Talvez pudesse pedir a Thorne para ressuscitar e os vir explicar”, pensou ela
impertinentemente.
— Mas na realidade não precisa do livro de magia de Thorne, pois não? Você está a
fazer o... — Truth viu-se obrigada a fazer gestos, por não conhecer a terminologia própria
para descrever o que queria dizer.
— O nosso Círculo está realmente a fazer o Ritual da Abertura do Caminho, por vezes
chamado a Abertura da Porta — explicou Julian com um ar pomposo. — Sem o livro. Uma
vez que me deu ocasião para isso, aproveito para esclarecer que a Abertura é a última parte de
uma série de rituais que levam cerca de dez dias a fazer. Estão ajustados à Árvore da Vida,
que é... bem, não interessa; levaria anos a explicar a Cabala. Para encurtar a história, a
primeira parte da Abertura foi publicada (sob várias formas, posso acrescentar) e é a parte
principal do Trabalho de Blackburn, tal como ele está a ser feito hoje em dia. Chama-se ao
conjunto destes nove rituais a Preparação do Caminho, formando um Trabalho completo por
si. Thorne aconselhou que este fosse feito várias vezes como um fim em si, para que o Círculo
trabalhasse fluidamente, mas quando tem que ser feito é como um prelúdio para a Abertura do
Caminho.
Era espantoso como tudo isto era plausível, até lógico.
Truth hesitou: se a magia, como Julian a descrevera, era mais do que mera elaboração
de uma ilusão, o que seria mais?
— E você não o tem — disse ela novamente, puxando o assunto para o seu campo.
— E Thorne também não teve... até certa altura — disse Julian quase rispidamente. —
Desculpe, mas ouvi a mesma coisa de Irene e de Ellis durante semanas e é verdade: eu não
tenho a Abertura como está escrita em Venus Afflicted. Mas tenho Irene, que a ensaiou com o
círculo primitivo de Thorne várias vezes, e tenho... bem, não quero abusar da sua boa vontade
com mais um relato das andanças domésticas da gémea mais obscura da ciência.
Era uma frase de Colin MacLaren que Dylan gostava muito de citar e Thorne
conhecera o professor MacLaren há anos. Ela olhou para Julian. Charmoso, saudável e quase
normal e bonito e além disso rico! Seria tão fácil fazer perguntas a Julian sobre Thorne e
MacLaren e dizer-lhe...
Contar-lhe...
Sobre Thorne. Sobre o livro. Que ela o tinha, que estava aqui, que não tinha que tentar
recriar o ritual, que...
— O que acha que o chefe planeou para sobremesa, Julian? Sabe? — disse Truth
alegremente, desfazendo o encantamento.
A sobremesa era de tirar o fôlego; taças individuais de frutos frescos, levemente
embebidos em licor e açúcar e dispostos sobre uma base de algodão-doce colorido.
— É bonito demais para comer! — protestou Truth.
— Se não o comer derrete-se — respondeu Julian, mostrando uma alegre
insensibilidade.
Para alívio de Truth, Julian parecia preparado para abandonar o assunto de Thorne
Blackburn e Venus Afflicted e tornar-se mais uma vez aquilo que parecia ser: um homem rico
e sofisticado.
Quando o criado que tinha colocado os pratos se retirou, aproximou-se outro com uma
garrafa envolta num guardanapo branco. Outro criado em uniforme trouxe um frappé que
continha a garrafa de champanhe.
— O seu champanhe, senhor. Não havia o grande cuvée blanc de 1982, mas tínhamos
um duplo cuvée rosée de 85, que espero ache aceitável. — Fez uma pausa, esperando pela
decisão de Julian.
Era muito estranho, pensou Truth, olhar para um mundo em que não só frases como
esta faziam sentido, como também as perguntas que estas frases formulavam eram
extremamente importantes; o mundo da grande riqueza, um mundo tão polido pelo gozo dos
privilégios que qualquer erro de perfeição era visto como um enorme defeito.
Julian franziu o sobrolho e por um momento Truth pensou que ele ia fazer uma cena,
mas depois sorriu e a ansiedade do criado acalmou.
—Claro. Champanhe rosée, Truth?
Cuvée, explicou Julian, era um champanhe doce próprio para a sobremesa. O vinho
vertido nos copos era de um rosa delicado e a sua doçura fazia-o escorregar pela garganta
como se fosse perfume de rosas liquefeito. Seria fácil tornar-se impulsiva, bebê-lo
imoderadamente, e parte de Truth até gostava da ideia.
“Mas se eu fizer algo de precipitado, é porque quero e não porque estou excitada
devido à bebida.” Pousou o copo meio vazio.
— Não gosta?
— É muito agradável. Só que os professores não têm muitas oportunidades de ver a
vida da alta sociedade. Não estou habituada.
— Então vamos ter que habituá-la. Dança?
Truth teria apostado forte em como não havia nenhum lugar no vale do Hudson onde
ainda houvesse dança de salão; e se conseguisse encontrar alguém com quem apostar, teria
perdido o dinheiro. Julian encontrou um lugar assim; de fato, encontrou três, começando pela
Estalagem River View, que tinha um pequeno estrado de dança metido no que era a antiga
estufa, com uma pequena orquestra.
Por isso já era muito tarde quando o BMW de Julian parou na porta principal de
Shadow’s Gate.
— Deixo-a aqui e vou guardar o carro lá atrás. Ah, e se quiser saber do seu, mandei o
Gareth mudá-lo de lugar. Como vem aí o mau tempo, o melhor é ter tudo protegido.
— Como é que ele o mudou? — perguntou Truth. — Eu não lhe dei as chaves.
Nem o faria, porque as chaves da ignição abriam também a mala e aí se encontrava
Venus Afflicted. Até tinha tido o cuidado de levá-las com ela nessa noite.
— Não? Então ele deve tê-lo deixado onde estava. Provavelmente pedir-lhas-á
amanhã. Mas durma bem, querida.
Então não ia oferecer-lhe uma bebida nem fazer avanços, sutis ou não. Truth sentiu-se
aliviada. Não conseguia lidar com mais uma complicação na sua vida, agora, e Julian parecia
suficientemente astuto para o saber. Saiu do carro.
— E você também — disse ela, voltando-se para fechar a porta.
Julian esticou-se e pegou na mão dela, beijando-a. Foi um gesto com o seu quê de
comicidade, de forma que ela não se sentisse envergonhada. Truth virou-se e ouviu o carro a
afastar-se atrás dela.
Apesar de estar um pouco tonta do vinho e da música, o sentido de responsabilidade,
que era parte importante da sua natureza, obrigou-a a seguir o caminho que dava passagem
para o local onde deixara o carro da última vez que viera de Shadowkill.
Ainda lá estava, ninguém lhe tinha tocado. O alívio e o champanhe fizeram-na sentir-
se subitamente tonta e o som distante da porta de um carro a fechar-se na noite calma avisou-a
de que, se não quisesse que esta noite continuasse numa direção para a qual não estava
preparada, o melhor era entrar antes que Julian voltasse.
Apesar de estar distraída, o estado de alerta, que ela pensava que desaparecera para
sempre, apoderou-se dela logo que entrou no quarto.
Agora sabia como lhe chamar. Era a presença de Thorne que ela sentia. Ele nunca a
magoaria. Sabia-o com a intuição inquestionável de uma criança. Sentiu o peso do ódio contra
ele, que tinha carregado no coração durante toda a vida, pura e simplesmente... desaparecer.
“Descobre a verdade e a verdade libertar-te-á.”
Thorne Blackburn podia estar morto, talvez tivesse ressuscitado, as coisas que ele
tinha feito durante a vida podiam ser estranhas, odiosas ou simplesmente desconcertantes,
mas ele nunca magoaria a sua filha consciente ou intencionalmente.
Ele amava-a.
Ele agora amava-a; e com essa certeza, uma parte carente e reprimida de Truth
Jourdemayne começou a dobrar-se e a estender as asas.
— Isto são ideias provocadas pelo champanhe — murmurou Truth em voz alta,
embaraçada pelos seus próprios pensamentos.
Caiu na cama, gemendo, atirando os sapatos. Os seus sapatos novos, com os quais
tinha ido dançar quando os usara pela primeira vez. Podia esquecer o seu bom senso.
Deitou-se para trás na cama e olhou para o teto, franzindo o sobrolho.
O amor era uma coisa muito bonita, mas não fazia ninguém ressuscitar. Se era apenas
o amor que importava, certamente que haveria milhares milhões de mortos a voltarem para
confortar o sofrimento das pessoas amadas.
O amor só por si não conseguia explicar a presença de Thorne.
Se realmente ele estivesse aqui. Se isto não fossem ilusões duma mulher à beira dum
colapso nervoso. A sua convicção podia ser um sintoma da sua doença.
Que provas tinha ela? Que provas poderia obter? Alguma coisa tangível ou, caso isso
falhasse, alguma informação que Thorne poderia ter, alguma coisa que ela pudesse verificar.
O que estaria ele a fazer no quarto dela?
“Ah, claro, ele quer recuperar as jóias. Ainda estão no carro com Venus Afflicted.
Tenho que as ir buscar...” pensou ela.
E talvez que a sua aceitação incondicional da realidade de Thorne fosse a mais
assustadora de todas as coisas.
CAPÍTULO DOZE
MENTIRAS VERDADEIRAS
When my love swears that she is made of truth,
I do believe her, though I know she lies.12
WILLIAM SHAKESPEARE

“A tia Caroline levou Venus Afflicted com ela naquela noite. É a única que o pode ter
feito. Mas por que? Diga-me por que?”
Um rufar à distância, como o barulho de cascos a aproximarem-se.
“Tu és uma rapariga esperta, Truth. Tens todos os fatos. Até tens o livro. Tenta
descobrir.”
Não eram cavalos...
“Mas...” protestou Truth, apesar de se sentir...
... arrancada ao sono, vendo que estava deitada, tonta e entorpecida, continuando a
ouvir o martelar.
— A porta — disse ela por fim, contente por ter descoberto isto com um cérebro que
parecia estar cheio de borboletas. — Já vou — disse ela.
Olhou para o relógio. Nove horas.
“Nove horas da manhã?” protestou uma parte dela, sentindo-se ultrajada. Tinha
dormido menos de quatro horas; não admirava que estivesse tão desorientada.
— Truth? — chamou Gareth através da porta. — Está lá fora um grande caminhão com
seis caixotes. Dizem que são para si.
Dez minutos mais tarde, vestida à pressa e longe de estar acordada, assomou à entrada,
olhando para o caminho onde se encontrava um caminhão branco. No chão de gravilha jaziam
três caixotes de um metro de altura e um quarto estava a ser descarregado, com grande
cuidado, da caixa do caminhão. Em todos os quatro se via escrita a palavra FRÁGIL e ESTE
LADO PARA CIMA e MARGARET BERESFORD INSTITUTE - NÃO DEIXAR CAIR.
Dylan tinha conseguido o que ela queria. Ali estava o equipamento que ela tinha
pedido.
— Alguém vai ter de assinar isto. A senhora é Ruth Jourdemayne? — perguntou o
condutor, como se fosse uma pergunta que ele estivesse cansado de fazer.
Truth reconheceu-o vagamente; pertencia ao serviço de transporte que o instituto
costumava usar; já tinha visto o condutor noutras ocasiões. Sentiu-se aliviada por Dylan não
ter vindo.
“Que poderia eu dizer-lhe? Olá, Dylan, tive uma longa conversa com o meu pai que
já morreu e tu tinhas razão.”
— Truth Jourdemayne — corrigiu ela.
Truth pegou no livro de registro de entregas.
— Bom dia — disse Julian.
Ao contrário de Truth, Julian não se tinha dado ao trabalho de vestir-se; trazia um
roupão de seda por cima de um pijama preto, e o cabelo preto caído para a testa dava-lhe um
ar rebelde. Piscou os olhos à luz intensa da manhã e olhou para Truth, levantando uma
sobrancelha com ar interrogador.
— Parece que o instituto mandou o equipamento que eu pedi — disse ela.
Um quinto caixote juntou-se aos outros quatro sobre a gravilha. Truth olhou para o
livro de protocolo que tinha na mão.

12
Quando o meu amor jura que ela é feita de verdade, / Eu acredito nela, mas eu sei que ela mente. (N. da T.)
— Têm um sentido de oportunidade maravilhoso. — Levantou levemente a voz. —
Podem trazê-los para dentro Havemos de abri-los a uma hora mais civilizada.
— Só me mandaram trazê-los até aqui; não disseram mais nada — argumentou o
condutor.
Julian ficou completamente parado.
— Oh, meu Deus! — murmurou Gareth.
Truth virou-se para olhar para Julian. Não era preciso ser espírita para perceber que a
tensão na entrada era enorme; bastava olhar para a cara de Gareth.
Julian deu alguns passos em frente, até a beira das escadas. Ao passar por Truth,
arrancou-lhe o protocolo das mãos.
O sol da manhã transformava o seu cabelo num halo preto, que cegava como asa de
corvo.
— Não se importa de trazê-los para dentro? — disse Julian em tom amável. —
Certamente não pensa que a senhora os vá carregar sozinha?
Nada nas suas palavras, na voz calma e comedida, parecia ameaçador. Mas Truth
estava assustada. E Gareth também.
— O senhor desculpe, eu não quis... é apenas um extra; é só isso.
— O instituto... — começou Truth.
— Não há problema, eu encarrego-me das despesas adicionais — disse Julian sorrindo.
Mas Truth não estava tranqüilizada e, quando olhou à sua volta, viu que Gareth tinha
fugido.
— Bem — disse Julian, virando-se para trás, de repente todo suave. — Ora muito bem
— escondeu um bocejo. — Gareth, há espaço...
Só então Julian reparou que Gareth não estava lá e, mais uma vez, Truth sentiu a
tensão a subir.
— Gareth... — disse Julian, muito suavemente.
— Por que não as pomos na biblioteca? — disse Truth rapidamente. — Algumas coisas
vão ser usadas lá, de qualquer maneira.
— Está bem. Podem pôr tudo lá.
Truth ficou a observar, enquanto o primeiro dos seis caixotes era trazido pelas escadas,
com a ajuda de pranchas e dum estrado com rodízios. Ela foi à frente, deixando Julian no hall
de entrada.
A sala parecia estranha e inacabada, sem o retrato de Thorne Blackburn a coroá-la. O
que teria feito Julian com o quadro estragado? Esquecera-se de perguntar na noite passada.
O estrado foi empurrado para dentro e Truth deu instruções para que o colocassem no
meio da sala e puxassem as mesas para trás, se necessário. Enquanto os homens trabalhavam,
Truth recuou até à entrada da porta.
E viu Gareth a vir ter com Julian, contra vontade, como um petiz a ser arrastado. Viu o
sorriso de Julian a alargar-se e a sua mão a levantar-se, dando-lhe uma estalada com as costas
da mão que deixou Gareth a cambalear. O som foi alto, claro e terminante.
Truth recuou para dentro da sala, levando a mão ao queixo por empatia. Por que teria
Julian feito semelhante coisa? Gareth era a criatura mais inofensiva que ela conhecia!
Os homens saíram da sala, para irem buscar mais um caixote. Passado um momento,
Truth foi novamente espreitar à porta.
Julian estava sozinho. Olhou para ela com um ar interrogador e, pela primeira vez
Truth sentiu realmente o fluxo do espírito adormecido de Shadow’s Gate à sua volta, impondo
a sua vontade, usando-os como instrumentos.
Afinal de contas, o que ela tinha visto era provavelmente uma parte do Trabalho de
Blackburn. E se Gareth não gostasse da forma como era tratado, era perfeitamente livre de se
ir embora, pensou Truth.
E se calhar o que ela tinha visto não tinha acontecido.
Julian foi ao seu encontro.
— Está pálida esta manhã — disse ele, pondo um braço à volta dela.
Sentia o calor do seu corpo, através das finas camadas de seda que ele vestia, passar
para o seu próprio corpo; e estava suficientemente perto para sentir o leve perfume da sua
colónia.
— Não sou... muito madrugadora — hesitou Truth.
A consciência das finas camadas de seda, que escorregavam por cima do corpo nu de
Julian, era de enlouquecer; um erotismo doloroso que substituiu a confusão do seu despertar
estremunhado e do seu medo anterior. Teria sido fácil responder ao seu convite sutil; levantar
a mão e acariciar-lhe a face; segui-lo.
Quando os homens voltaram com o segundo caixote, foi quase um alívio. Quando os
carregadores acabaram, a maior parte das pessoas da casa estava a pé e Truth percebeu por
que razão os trabalhadores estavam tão relutantes em trazer a carga para dentro. Quando o
último caixote foi pousado, os três homens estavam afogueados e a escorrer suor.
— Querem beber um café antes de irem embora? — perguntou Truth, sentindo-se
responsável pelo estado em que eles tinham ficado.
— Só quero sair daqui, minha senhora, se não se importar de assinar isto aqui.
O condutor mostrou-lhe novamente o protocolo e Truth pegou nele.
— Talvez fosse melhor desempacotar tudo e verificar se há alguma coisa danificada
— sugeriu Julian com uma suavidade maliciosa. A seu lado, Caradoc bufava.
Julian encostou-se à porta com uma caneca de café fumegante nas mãos. Tinha-se
vestido enquanto os caixotes eram transportados e agora estava com um ar muito
descontraído, com uma camisa de linho sem colarinho e um fato escuro Armani.
O condutor olhou para Julian com uma hostilidade descorçoada, como um cão
encurralado por um leopardo.
— Tenho a certeza que está tudo bem — disse Truth rapidamente. — E se não estiver,
não tenho hipótese de o saber à primeira vista.
Rabiscou a sua assinatura na folha de cima e entregou novamente o protocolo. O
condutor pegou nele e saiu rapidamente.
— Guie com cuidado! — gritou-lhe Julian alegremente.
— Julian, que maldade! — disse Truth, dividida entre a reprovação e uma admiração
secreta pela habilidade com que Julian tinha conseguido o que queria.
— Uma confissão — disse Julian, sorvendo café da caneca. — Odeio ladrões,
especialmente quando são estúpidos.
— Ladrões? — disse Truth, surpreendida. Ela estava à espera que Julian dissesse
“chatos”.
— Ele estava a roubar serviços a que você tinha direito e a impingir o trabalho
potencial para si. Queria cobrar um custo adicional por trazer os caixotes para dentro de casa,
mas eu calculei que não eram esses os seus termos originais do acordo de entrega. Extorsão,
pura e simples.
Explicado desta maneira parecia extremamente lógico.
— Acho que tem razão — disse ela com relutância.
— O homem tem o direito de fazer aquilo de que é capaz — disse Caradoc. — O
Trabalho de Blackburn.
— Mas — disse Truth, confusa por estar a discutir filosofia àquela hora da manhã —
isso quer dizer que o condutor tinha o direito de me aldrabar.
— Se pudesse — concordou Julian pensativo. — Mas não podia.
— Pequeno almoço — anunciou Caradoc, fazendo um convite geral.
Afastou-se lentamente, deixando Truth e Julian sozinhos.
Julian sorriu-lhe.
— Mas chega de lógica jesuítica. Venha; estamos aqui... estamos... Deus nos valha...
acordados, está uma bela manhã e eu tenho tempo livre até à tarde. O que gostaria de fazer? —
perguntou Julian.
Truth olhou pela porta entreaberta para os caixotes.
— Acho que o dever me chama — disse ela relutantemente.
— Pelo menos faça-me companhia ao pequeno almoço; o senhor Hoskins vai ficar
espantado — disse Julian. — E dê as chaves a Gareth, está bem? Reparei que o carro ainda
estava lá.
— Posso mudá-lo eu própria depois do pequeno almoço — disse Truth. — De qualquer
maneira, tenho que tirar algumas coisas do carro.
“E dessa forma saberei onde ele está, se precisar dele de repente.”
— Muito bem. — O sorriso de Julian não indicava que a sua vontade estivesse a ser
contrariada. — Então, depois do pequeno almoço, Gareth mostra-lhe o sítio onde o deve
arrumar.
As quatro horas de sono dar-lhe-iam uma ilusão de descanso durante algumas horas, e
a boa comida podia compensar uma parte do cansaço. Aliás, Julian parecia ser firme
partidário de copiosos pequenos almoços; sentou Truth na mesa da sala de jantar, dando-lhe
uma chávena de café, e regressou da cozinha minutos depois, equilibrando dois pratos
atulhados de comida.
Embora Caradoc tivesse mencionado o pequeno almoço, não estava presente, e Truth
perguntou-se onde andaria ele.
Uma parte mais maliciosa do seu espírito imaginou Gareth a entrar por ali dentro com
um olho negro.
— Cá estamos — disse Julian, pondo um dos pratos em frente dela. — Nem toda a
gente toma pequeno almoço em Shadow’s Gate, mas o senhor Hoskins está sempre pronto a
auxiliar aqueles que o fazem.
— Julian, eu não posso comer isto tudo! — protestou Truth, olhando o prato com
fiambre, omelete, fruta fresca e um pãozinho.
Parecia que além de fornecer café e pães, o senhor Hoskins cozinhava o pequeno
almoço conforme os pedidos.
— Claro que pode — disse Julian, servindo-se de uma garfada do seu próprio prato. —
O seu corpo é uma máquina; quer que ele funcione sem combustível?
— Você torna as coisas tão simples — protestou Truth.
— Tal como eu esperaria que você tornasse... como é? A parapsicologia estatística...
simples. Tudo depende do que se sabe.
“O que eu sei é que não sei muito”, disse Truth para si própria.
Caradoc e Gareth entraram juntos. Gareth dirigiu-se à cozinha, voltando pouco depois
com um prato cheio de fiambre e sanduíches cheios de manteiga e geleia. Começou a comer
gulosamente com uma eficiência que deixou Truth fascinada.
Não se lhe via nenhuma pisadura na cara.
— Quando toda a gente se levantar, posso pedir para a ajudarem a montar as coisas...
se é assim que se diz — disse Gareth, enquanto ia comendo.
— Toda a gente, neste caso, é Hereward e Donner — disse Caradoc — porque Ellis
não deve ser grande ajuda. E digo-o de uma forma simpática.
— Ellis é boa pessoa — disse Gareth, defendendo o seu amigo ausente. — E se quiser
pôr o seu carro lá atrás... acrescentou ele, deixando a frase a meio.
— Tenho a certeza de que Truth vai gostar da oportunidade de apresentar a causa da
parapsicologia contra o ocultismo — disse Julian, metendo Gareth na conversa — bem como
explicar para que servem aquelas máquinas extraordinárias.
— Não sou eu a perita — lembrou-lhes Truth. — Geralmente só entro em cena quando
os dados em bruto já foram colhidos: probabilidades contra possibilidades; esse tipo de coisas.
Até já fizemos estatísticas sobre a percentagem de lotes de filmes infravermelhos com defeito
de origem, para podermos garantir que as fotografias que temos são de fantasmas e não
manchas defeituosas da película.
— O que é diferente do testemunho direto dos observadores — disse Julian.
— Mas esse não é de confiança — disse Truth, deixando-se entusiasmar pelo assunto e
querendo educar a sua pequena audiência. — A visão e o espírito humanos podem enganar-se
de muitas maneiras. Só a máquina é objetiva.
— Claro que não há maneira de enganar uma máquina — murmurou Julian, e Truth
sentiu-se indignada.
— São instrumentos inferiores, mas é o que temos. Se ficar toda a vida à espera da
perfeição, não há de ir muito longe — disse ela rispidamente.
— É verdade — concordou Julian— mas nesse caso não acha que a relação de
confiança entre o ser humano e a máquina deveria ser estudada? Pergunto-me por que razão
nenhum céptico, perante o que ele chamaria a percepção geral e ilusória de fantasmas e
visitantes do espaço, nunca perguntou por que razão as pessoas vêem o que vêem.
Era um bom argumento e Truth reconheceu-o como tal.
— É uma pergunta para a qual não estou preparada — admitiu Truth. Sob o olhar
ameaçador de Julian, comeu um bocado de omelete e depois mais outro.
— Bem, então basta concordarmos com Sir Isaac Newton, quando ele diz que estamos
à beira dum vasto oceano, e que vamos apanhando bocados de conchas coloridas, enquanto o
mar do conhecimento absoluto espuma a nossos pés.
“Talvez. Mas não me parece que concordemos... quanto à razão de o mar se agitar e
os porcos terem asas” protestou Truth silenciosamente.
— Uma vez que me nega a hipótese de faltar à escola — disse Julian depois de acabar o
pequeno almoço — vou para o meu escritório pôr a minha correspondência em dia. Não hesite
em interromper-me — disse-lhe ele com um sorriso amarelo.
— Prometo — disse Truth.
Deixou o pequeno almoço a meio e foi ao quarto buscar as chaves.
Enquanto descia as escadas, com as chaves a tilintarem na mão, Truth ia pensando
onde poderia esconder Venus Afflicted quando o tivesse novamente na sua posse. A visita
indesejada de Fiona mostrara-lhe que o seu quarto estava longe de ser seguro e embora não
lhe parecesse que Fiona voltasse a incomodá-la, ainda restavam meia dúzia de candidatos.
Light.
A ideia era atraente pela sua perversidade. Porque iria alguém revistar o quarto de
Light, se tinham a certeza de que a espírita altruísta não tinha nada a esconder? E Truth tinha
visto diversos sítios naquele quarto de sótão onde podia esconder o livro. Desde que Light não
suspeitasse que ele lá estava, estaria seguro Truth não tinha dúvidas de que Light entregaria
imediatamente Venus Afflicted a Julian se suspeitasse da sua existência. Mas se Thorne fosse
real e não apenas uma ilusão constrangedora, certamente o seu instinto protetor se alargaria
também à outra filha.
Foi lá para fora, tremendo com o frio da manhã.
O carro estava exatamente no sítio onde ela o deixara.
Olhou furtivamente à volta, à procura de alguém que a pudesse observar a abrir a
mala, sentindo-se ridícula. O colar e o anel estavam lá e Venus Afflicted também. Com mais
um olhar dissimulado à volta, Truth enfiou o livro e as jóias dentro da carteira, fechando-a
bem. Depois fechou a mala.
Mas onde é que deveria pôr o carro? Não havia mais nada, para lá da passagem e da
entrada lateral, além do relvado e do labirinto de buxos. Parecia que, afinal de contas, ia
precisar da ajuda de Gareth.
“Tal como uma heroína romanesca a desmaiar? Esquece!”
Um pouco de trabalho de detetive resolveu o mistério.
Lembrando-se da direção em que Julian levara o carro na noite anterior, seguiu
simplesmente o caminho ao longo da curva, passando pela frente da casa, até chegar a um
sítio que parecia um antigo resguardo para carruagens, por detrás de um grupo de árvores. As
portas estavam abertas e ela viu o BMW imaculado de Julian, parado ao lado da carrinha
Volvo, que mostrava sinais de bastante uso. Uma motocicleta preta e brilhante, com o depósito
de gasolina pintado com estrelas prateadas, estava parada num canto. Imaginou que devia ser
de Hereward; parecia o tipo de pessoa que tinha uma moto assim vistosa.
“E desde quando é que começaste a pensar que as motos eram vistosas?”, perguntou
Truth a si mesma. Parecia que tinha sido sonâmbula a vida inteira e que de repente acordara
para se ver na pele duma pessoa que não conhecia que tinha grande quantidade de gostos
firmes e aversões, não reconhecendo nenhuns deles como seu.
Em quem é que ela se estava a transformar? Em quê é que ela se estava a transformar?
Suspirou. O que era preciso era continuar viva até terça-feira. Julian faria o seu ritual
na segunda, Dia de Todos os Santos; não teria qualquer resultado, claro...
“Claro? Matou a tua mãe.”
“As drogas mataram a minha mãe e não a magia. E Thorne estava inocente!”
“Tens a certeza? Mesmo a certeza?”
“Thorne não teria morto Katherine Jourdemayne. Ele amava-a.”
“Também tens a certeza disso?”, comentou a crítica voz interior. “Já pensaste que o
grande Thorne Blackburn estava tão surpreendido com o que aconteceu como o resto das
pessoas?”
“Tenho que lhe perguntar quando o vir”, disse Truth seriamente.
“Quando o vir...”
Agora que sabia para onde ir, era uma questão de minutos para enfiar o Saturno no
espaço vazio. Com a carteira mais pesada ao ombro numa atitude que esperava ser normal,
Truth regressou a casa a pé.
Olhando para Shadow’s Gate, era difícil de acreditar que podia ser a estrumeira de
loucura e obscurantismo que a investigação básica e a imaginação macabra sugeriam. Os
assassínios de Elijah Cheddow, em 1872, tinham ocorrido há mais de um século. A morte de
Katherine e o desaparecimento de Thorne há vinte e seis anos. Era fácil esquecer que quase
tinha gelado na biblioteca há algumas noites ou que tinha ouvido Light a falar com a voz do
seu pai.
Ao subir o caminho, Truth viu a porta da frente aberta.
Inconscientemente, saiu do caminho empedrado, escondendo-se entre as árvores.
Viu Michael a sair. A luz do sol dava-lhe um brilho azul e preto ao cabelo; estava
vestido como de costume, com um fato escuro de três peças e gravata, que emprestava a
formalidade do traje canónico a que ele teria ou não direito.
Virou-se para trás, esticando a mão, e Light saiu. Usava roupas que Truth não sabia
que ela tinha uma saia e casaco, com uma blusa escura. O cabelo estava penteado para cima.
O efeito era severo e desconcertantemente adulto, como se a charmosa mulher-criança
soubesse que era apenas uma máscara que podia tirar quando quisesse.
Então esta devia ser a máscara.
Por que?
Michael pôs o braço à volta de Light, ajudando-a a descer as escadas. Naquela radiosa
manhã, ambos pareciam brilhar.
Ele sorria-lhe. Light esticou-se para acariciar a cara. Depois, enquanto Truth os
observava, os dois começaram a andar em direção à cidade.
“Deus queira que ele esteja a levá-la para longe...”
Truth esfregou a testa, confusa, começando a ter dores de cabeça. Ainda não era meio-
dia, mas a manhã tinha sido incrivelmente tensa. Mas não queria que Michael levasse Light
para longe dela; apenas para longe daqui, e ele não ia fazer isso, pois não?
Então o que estaria ele a fazer?
“Não interessa, desde que ninguém esteja no quarto dela”, murmurou Truth,
brutalmente prática. Esperou até que o par desaparecesse na curva do caminho, em direção à
cidade, antes de se mexer.
A casa deixou Truth encontrar o quarto de Light com facilidade.
Ouviu-se a si própria a pensar isso e retraiu-se. Era muito fácil deixar-se levar pelo
antropomorfismo, atribuindo aos objetos inanimados uma racionalidade humana. As casas
não eram coisas vivas. Não tinham necessidades, nem desejos, nem ações.
Mas os seus habitantes sim. E o que queriam os habitantes de Shadow’s Gate?
Truth abriu a porta do quarto de Light e entrou, ainda a pensar naquele problema. O
que queriam eles todos... e até onde iriam para o conseguirem?
Perto da janela havia um poial com uma tampa. Era uma pequena arrecadação cheia
de lençóis e cobertores. Cheiravam a mofo, como se ninguém lá mexesse há muito tempo.
Truth enfiou Venus Afflicted numa fronha e enterrou-a bem no fundo.
Não seria o esconderijo ideal nem totalmente seguro, mas era melhor do que nada.
Sopesou o colar de âmbar com o seu pingente maciço, matutando. Seria boa ideia
esconder o anel e o colar algures fora do seu quarto; se alguém os encontrasse aqui, talvez não
procurasse noutro lado.
Ou ao encontrá-los poderia sentir-se motivada para procurar melhor o livro.
— Você paga e faz a escolha — disse Truth em voz alta, fazendo uma citação.
Passado um momento, voltou a enfiar o colar na gaveta de onde o tinha tirado há um
ou dois dias.
— O quer de volta, pai? Então venha buscá-lo.
Pegou no anel e foi-se embora.
Onde poderia esconder o anel para ela (e talvez Thorne) o encontrarem? Armada e
motivada desta forma, Shadow’s Gate tinha o ar de um local para uma caçada de ovos de
Páscoa fora de época. A maior parte das possibilidades que se apresentavam eram óbvias de
mais ou difíceis demais para ela ter acesso rápido a elas. Por fim desistiu e levou-o novamente
para o quarto e, subitamente inspirada, escondeu-o no fundo do frasco de sais de banho que
tinha comprado.
Pronto. Este assunto estava arrumado.
Agora só tinha que pensar nos seis caixotes com máquinas frágeis.
Às quatro horas da tarde, Truth estava a considerar seriamente uma mudança de
carreira apesar de ter tido a ajuda grátis de quatro homens fortes (Caradoc, Hereward, Donner
e Gareth) para pegarem e tirarem dos caixotes os aparelhos, retirar o equipamento dos
caixotes tinha sido apenas o início.
À hora do almoço, quando os seus ajudantes tinham terminado e arrumado os caixotes
e o material de proteção, Truth viu que tinha três máquinas fotográficas, que podiam ser
preparadas para tirar fotografias automaticamente com uma hora de intervalo. Duas delas
estavam equipadas com rolos de alta definição que lhe permitiriam tirar fotografias
reconhecíveis mesmo numa escuridão quase total. A terceira tinha um rolo infravermelho, que
era sensível não à luz, mas à temperatura.
Dylan não tinha mandado nenhum rolo suplente e Truth não percebeu porquê.
Tinha um gravador profissional, seis bobinas de fita e uma quantidade de microfones
suficientemente sensíveis para gravarem o som da água nos canos do andar de cima.
Não tinha um, mas dois polibarómetros, especialmente construídos para o instituto,
capazes de registrar e gravar todas as diferenças de temperatura e pressão atmosférica,
registrando também tremores de terra.
Tinha pacotes de pilhas para as seis máquinas.
Só lhe faltava uma estratégia.
Quase tudo tinha rodas, por isso Truth achava que não teria dificuldade em movê-las
para onde quisesse embora fosse impossível carregar qualquer dos objetos, exceto o gravador,
pelas escadas; por isso libertou os seus prestáveis assistentes e lançou-se ao trabalho de tentar
entender trinta páginas de instruções escritas à mão por Dylan, além dos manuais que
acompanhavam cada máquina.
Gareth trouxe-lhe um sanduíche e só depois dele sair é que Truth percebeu que tinha
perdido uma ótima altura de lhe perguntar o que tinha acontecido de manhã. Suspirou; tanto
azar era realmente falta de organização, dando-lhe motivos para pensar que era estúpida ou
inapta e virou-se novamente para as notas de Dylan.
Quanto mais lia, mais se convencia que este trabalho não era para ela.
Às duas da tarde estava tão desesperada que resolveu falar a Dylan. Hoje o seu
telefone celular estava a funcionar como devia.
— Truth? Como estás? — Ouvia a voz alegre de Meg através do auscultador.
— Estou ótima, Meg. — Que mais poderia ela dizer? — O Dylan está por aí?
Mas Dylan não estava, por isso Truth limitou-se a deixar novamente o número do seu
novo telefone embora, se não estivesse por perto quando ele tocasse, tivesse poucas hipóteses
de saber se ele lhe tinha telefonado ou não e voltou ao equipamento e instruções.
Nunca se sentira tão inepta.
Agora que tinha o equipamento que pedira, onde é que o ia pôr? Devia ter pensado
nisso muito antes.
A biblioteca era o lugar mais óbvio, já que fora palco de um fenómeno anteriormente:
era lógico colocar aqui uma das máquinas fotográficas e um dos polibarómetros para ver o
que apanhava.
Mas o lugar óbvio para o outro, além das duas máquinas e do gravador, era o seu
quarto. Thorne já lá tinha ido e era provável que lá voltasse.
E quando o fizesse, ela poderia apanhá-lo.
Mas se o fizesse, teria que admitir que era perseguida por um fantasma e teria de dizer
quem era. Com ou sem inviolabilidade do método científico, Truth não queria expor-se à
atenção que o Círculo da Verdade de Julian lhe dedicaria se viesse a saber o que se passava.
Devia haver outra maneira.
Por isso decidiu pôr o outro polibarómetro no templo.
Julian espreitou para ver como ela estava por volta das três. Não levantou objeções ao
fato do polibarómetro ir para o templo, embora não permitisse que a máquina fotográfica ou o
gravador fossem para lá.
— Os nossos rituais são secretos, Truth. E embora eu tenha esperança que um dia
você pertença ao Círculo e deixe de ser uma estranha, fotografar ou gravar o que fazemos está
fora de causa — disse ele.
Por fim, quase sem ideias e sem paciência, Truth decidiu colocar as outras duas
máquinas na biblioteca para obter uma imagem por paralaxe, o que lhe dava uma desculpa
perfeita para levar o gravador para cima. Queria que eles pensassem que ela queria apenas
guardá-lo. Talvez conseguisse uma prova sem que ninguém desse por isso.
Mas o que faria quando a tivesse?
Quando Truth conseguiu levar o gravador para cima já passava das seis e embora não
soubesse ainda se parte do equipamento do instituto funcionava, tinha a certeza de que não
tinha partido nada.
Olhou através das janelas. O sol já se tinha posto, deixando apenas uma leve linha
azul-escura de luz no horizonte, mas havia projetores a iluminar o jardim e o labirinto. Depois
de um dia passado dentro de casa, sentiu-se tentada a dar um passeio ao ar livre.
O verão de São Martinho aquele breve período quente depois da primeira geada
ainda estava longe e Truth sentia na cara o ar da tarde frio e convidativo, enquanto caminhava
pelo caminho cheio de pedrinhas brancas. Olhando por cima do ombro, viu que a maior parte
dos quartos da velha casa estava iluminada, incluindo um bem lá no alto no canto. O de Light.
Para onde teriam ido ela e Michael? Por breves instantes, Truth deixou a sua
imaginação fantasiar o futuro. Depois de tudo aqui ter acabado, levaria Light com ela. Tinha
um apartamento com dois quartos. Seria pequeno inconveniente mudar o escritório para o
quarto e dar a Light um quarto. Light podia passear pela Universidade de Taghkanic e Truth...
Mas aí a imaginação falhou, porque Truth não conseguia imaginar-se a voltar à sua
vida antiga. E se aceitasse o convite de Julian da noite anterior e fosse à Europa com ele? O
que aconteceria a Light?
“Podíamos levá-la conosco”, pensou Truth, mesmo sabendo que Light não estava
preparada para lidar com a confusão inerente a uma viagem à Europa.
“Mas isso não tem importância”, pensou Truth com uma estranha objetividade. “Não
vai ser essa a minha decisão.”
O impulso sedutor desapareceu e Truth viu que os seus passos a tinham levado até ao
labirinto. Hesitou à entrada.
Entrar era tentador e, se não tivessem alterado o mapa que tinha visto num dos livros,
não havia de perder-se.
E mesmo que o tivessem feito, como poderia perder-se numa coisa tão pequena? Não
era como se estivesse a aventurar-se no labirinto de Hampton Court. Truth começou a descer
o caminho.
Teve apenas tempo para entrar e para notar que os arbustos de buxo cortavam a luz, e
para perceber como tinha sido uma audácia da sua parte vir aqui depois do anoitecer quando...
algo... se modificou.
Se isto fosse a Califórnia e não Nova Iorque, Truth não hesitaria em dizer que era um
terremoto. Tinha a mesma característica desorientadora, que obrigava a vítima a parar e tentar
lembrar-se do seu nome. Sentiu-se como se tivesse tropeçado numa pedra que não estava lá,
embora o caminho fosse perfeitamente liso.
Depois percebeu que alguma coisa estava a arder; cheirava a fumo e ouviu o crepitar
das chamas como se fosse fogo de artilharia distante. Virou-se.
Não havia nenhum arbusto entre ela e a casa que ardia.
Começou a andar para a frente e parou quando percebeu que alguma coisa estava
errada, que um fogo assim não podia ter alastrado nos poucos minutos em que se afastara da
casa.
Depois percebeu que a casa que estava a arder não era a casa que ela deixara.
A casa em chamas era uma longa estrutura branca de pranchas de madeira, com
janelas pequenas. Estava totalmente incendiada, com todas as janelas a destacarem-se em
fogo vermelho e dourado. Shadow’s Gate, tal como fora na noite em que se incendiara, em
1872, há cento e três anos.
Como se tivesse a clarividência que sentia nos outros, Truth olhou para o fogo e viu
através dele, com muita clareza, um quarto pintado de branco com uma cama de dossel por
baixo do teto inclinado. O fogo dançava à sua volta, mas não tinha ainda apagado os borrifos
de sangue que manchavam as paredes do quarto.
No meio do quarto via-se um homem, com a pele escandecida pelo fogo e a camisa
ensopada em sangue e suor, segurando um machado e soluçando enquanto o brandia sem
necessidade. Baixando-o uma vez e outra, embora os seus alvos já tivessem cessado de lutar e
de respirar a muito.
Elijah Cheddow. Que, neste lugar, tinha morto a família, desaparecendo a seguir;
morrendo queimado num fogo que ele próprio tinha posto. E nunca ninguém tinha sabido
porquê, embora Truth começasse a suspeitar.
A visão da cor das chamas desapareceu quando uma parte do telhado cedeu, enviando
um pilar de fagulhas para o céu. Lá longe, Truth ouvia um sino a acordar os aldeões de
Shadowkill para o desastre que acontecera.
Mas, de certa forma, e apesar do horror, a cena que Truth presenciou não a assustava o
seu impacto emocional foi diminuído, como se existisse na sombra de um terror ainda maior,
um poder que, uma vez preso, tinha que ser alimentado.
— Conheço um lugar onde o tempo se desenrola desordenadamente — disse uma voz
familiar atrás dela. Não, não te vires.
Ela olhou de lado quando Thorne falou e, ao desviar o olhar do fogo, este parou
subitamente, regressando ao passado.
‘ A brisa da tarde murmurava nas folhas dos buxos.
— Olá — disse Truth e depois acrescentou com relutância: — Olá, pai.
O medo que não sentira ao observar o fogo surgia agora; não de Thorne Blackburn,
mas dela própria, da sua sanidade.
Agora percebia o que Michael tentara dizer-lhe, aconselhando-a a ir-se embora
enquanto ainda havia coisas que ela ainda não sabia; enquanto tinha a certeza serena de que
havia apenas uma maneira de ver o mundo.
‘ — Não gostarias de percorrer o caminho de saída e entrar no teu carro e ir embora?
Podias mandar buscar as tuas coisas; e se não as receberes que importância tem? De qualquer
maneira, vestes-te como uma pessoa honesta — acrescentou Thorne, levemente irónico.
— Por que hei de ir-me embora? — forçou-se Truth a perguntar. “Agora que estou a
começar a descobrir quem sou realmente.”
Olhou fixamente em frente para a parede de arbustos do labirinto. Ainda conseguia ver
a entrada à sua direita. Já não se via uma casa a arder.
Ou seria... só por agora?
— Assim terias sempre a certeza sobre tudo, incluindo a tua sanidade — respondeu
Thorne. — Não és como os outros; és minha filha. E nem sequer percebes o que isso significa
— acrescentou ele.
“Ai não? Quando os laços de sangue...”
Truth virou-se abruptamente. Não viu ninguém. Olhou pelo caminho acima, embora
soubesse que, se alguém lá estivesse, não teria tempo para desaparecer.
Esticou a mão e afastou as folhas. Não havia nenhum caminho por ali.
— Já estou maluca — disse Truth em voz alta. — Já li sobre alucinações; não são
assim. Pessoas normais não vêem coisas que não estão lá e não têm conversas com pessoas
que não existem. E Light?
Não houve resposta.
— Thorne! — A voz de Truth era categórica, imperativa, pondo de lado a questão
sobre a realidade. — E Light? O que lhe acontecerá se eu me for embora? Ela não irá comigo.
Ela também é sua filha; é do nosso sangue; o que acontecerá?
“Estou aqui no escuro, gritando com os arbustos”, apercebeu-se Truth de repente.
— Thorne? Pai?
“Por favor, responda-me.”
— A Luz e a Verdade são o Caminho — disse Thorne Blackburn. Truth não sabia de
que direção vinha a voz, embora se apercebesse do sorriso na voz dele, que lhe dizia que ele
comprazia da sua própria esperteza. — E o Caminho é o Caminho do Peregrino. O teu sangue
escolheu por ti, minha filha. Tem cuidado. — A voz desvaneceu-se como um efeito de teatro.
— Oh, meu Deus! — disse Truth, nervosa e exasperada.
Mais um aviso melodramático e crítico! Pensou em todas as coisas que queria dizer a
Thorne Blackburn naquele momento e decidiu que nenhuma delas devia ser dirigida a um pai,
estivesse ele morto ou vivo.
“Estou a ficar maluca. Estou a ter todas as discussões com o meu pai, que deveria ter
tido quando era adolescente, só que não sou uma adolescente e ele já morreu. Mas nada
parece mudar...”
Truth voltou para trás rapidamente e regressou a casa.
Para onde quer que Michael tivesse ido naquela tarde com Light, estavam os dois de
regresso a tempo do jantar. Fiona também estava à mesa, tendo o cuidado de não olhar para
Truth.
Julian presidia como um deus da Antiguidade sobre os seus filhos pouco
disciplinados, persuasor, repreendendo-os e interditando-os por turnos. Reservou um sorriso
especial para Truth, que a aqueceu como se ela ainda estivesse em frente do fogo a que
assistira de tarde. Só mais tarde se apercebeu de que deveria ter provocado uma recordação
associativa do incontido de Shadow’s Gate, mas era como se essas recordações estivessem
sozinhas num mundo à parte, separadas da realidade quotidiana.
A conversa desenrolava-se à sua volta, animada e auspiciosa.
O Círculo ia trabalhar nessa noite, dando início aos rituais que culminariam na
Abertura do Caminho. O Círculo reunir-se-ia todas as noites da meia-noite até de madrugada,
durante uma semana, desde segunda até o Dia de Todos os Santos, para treinarem durante seis
horas o elaborado théâtre sacrée de Blackburn. Na noite de Todos os Santos começariam de
madrugada e trabalhariam o ritual final da liturgia de Thorne; o que iria ligar os mundos dos
Deuses e dos Homens. E depois?
Embora ali estivesse há poucos dias, Truth afeiçoara-se à maior parte das pessoas do
Círculo de Julian; o indiferente Donner; Hereward com a sua ironia indireta; Ellis que parecia
troçar conscientemente dele próprio; Caradoc, cujo envolvimento numa coisa tão outré
parecia não estar de acordo com o seu caráter; Gareth, que queria apaixonadamente tomar
parte e que era tão pouco infeliz no amor. Não eram histórias longínquas numa monografia
sobre cultos; eram pessoas que corriam para uma calamidade tão certa como se fossem
crianças perdidas num depósito de armas, a brincarem com as pistolas.
“Porque tinha ela tanta certeza?”
A pergunta tornava-se tanto mais urgente quanto mais pensava nela. Ela estava...
estava a ter uma espécie de colapso nervoso, com certeza; porque se não fosse esse o caso, o
que lhe estaria a acontecer? E Thorne continuava a insistir no fato de que ela era sua filha,
como se isso a pusesse em perigo.
Quanto mais tempo Truth permanecia em Shadow’s Gate, mais perguntas e menos
respostas tinha.
Os membros do Círculo despediram-se logo a seguir ao jantar; Truth deduziu que
haveria diversos preparativos que antecediam o ritual. Julian ficou para trás e quando Truth se
levantou, foi com ela até à entrada.
As luzes estavam baixas e só se viam as brasas da lareira. Os copos dos cocktails antes
do jantar ainda lá estavam. Truth dirigiu-se para a lareira, olhando para o fogo que se
apagava.
Quem era Thorne Blackburn e o que era a sua filha?
Julian colocou o seu braço à volta dela; sentia o calor da mão dele no sítio em que
envolvia o seu ombro. Sentia-o pulsar, como o ronronar de um motor indolente.
— Amanhã o seu equipamento já deve ter gravado dados interessantes — disse Julian.
— Espero que sim — disse Truth, mas mesmo a perspectiva de um gráfico das
diferenças de energia provocadas pelos trabalhos de uma loja de ocultismo não conseguia
distraí-la do sentimento de condenação que pairava sobre ela.
— Diga-me que se vai juntar a nós — pediu-lhe Julian. — Pois seria um crime que o
próprio sangue de Thorne estivesse ausente do cenário do seu maior triunfo, não concorda?
— Light estará lá — disse Truth sem pensar.
— É verdade — concordou Julian. — Mas todos os filhos de Thorne deveriam lá estar.
— Eu... eu vou pensar no assunto — disse Truth, como dissera antes.
— Até admito que parte do meu desejo seja puramente egoísta. Se não estiver a
trabalhar conosco, mal vou vê-la na próxima semana — acrescentou Julian.
— É normal os mágicos serem egoístas? — perguntou Truth, tentando gracejar.
— Junte-se a nós e eu mostro-lhe o que são os mágicos — disse Julian, num tom pleno
de promessas.
Mas aceitou a sua recusa renovada com bom humor e, beijando-a ao de leve na testa,
partiu para a sua magia.
Depois de ele ter desaparecido, ela quase desejou ter ido com ele. Nunca tinha
reparado como Shadow’s Gate parecia vazio e monótono à noite, como se, na ausência de
Julian, fosse um teatro sem uma peça.
Olhou para o relógio na cornija. Nove e trinta e três.
Podia esquecer a excitante vida noturna dos ricos. Truth bocejou, lembrando-se de que
tinha dormido pouco nos últimos dias. Deitar-se cedo não lhe faria mal nenhum.
Subiu até ao quarto. A cama estava aberta; devia ser Irene que fazia estas coisas, uma
vez que Truth não conseguia imaginar Fiona a ser tão caseira, e muito menos a fazer para ela
estas coisas, mesmo que as fizesse para todos os outros; e o pijama estava também esticado.
Tinha apenas que escrever os acontecimentos do dia antes de se deitar.
Despiu-se e preparou-se para se deitar, ligando o enorme gravador. A maior parte dos
fracassos na gravação de fenômenos espíritas, dizia Dylan, devia-se a falhas na ligação dos
gravadores.
Truth não ia cometer esse erro, especialmente porque os acontecimentos em Shadow’s
Gate pareciam não seguir qualquer calendário específico.
As enormes bobinas começaram a girar devagar e as agulhas vibravam nos
mostradores. A máquina fazia um som discreto, suficientemente baixo para não ser ouvido
nem a poucos passos de distância. Cada bobina continha doze horas de fita; a máquina devia
ser ligada para gravar até às nove e meia da manhã seguinte. Truth verificou se todos os fios
estavam cuidadosamente dispostos para evitar falhas, nenhum dos equipamentos do instituto
para caçar fantasmas funcionava com energia de rede; cada um tinha uma enorme bateria
recarregável, que durava pelo menos uma semana. E uma semana era tudo o que ela
precisava.
Carregou no botão “teste”. A luz de aviso da bateria ficou encarnada: 87 por cento de
energia. Mais do que o suficiente.
Ao verificar as baterias do gravador lembrou-se do aviso de Julian sobre a vida das
pilhas em Shadow’s Gate e resolveu tentar o telefone celular: marcou o seu número de casa e
foi recompensada com o som do gravador de chamadas. Pelo menos, o telefone estava a
trabalhar.
Hesitou em tentar novamente Dylan e finalmente desistiu da ideia. Era tarde, ela
estava cansada e o equipamento estava a trabalhar bem. Truth enfiou-se na cama com o seu
diário e começou a apontar os acontecimentos do dia.
Estava a sentir-se agradavelmente sonolenta quando acabou e levantou-se para olhar
pela última vez para o gravador. Não estava a trabalhar.
Levou alguns segundos a registrar o fato. Como podia não estar a trabalhar? Mas o
fato era que as agulhas estavam na posição de descanso e todas as luzes estavam apagadas.
Ter-se-ia soltado a ficha? Mas este equipamento tinha sido concebido para resistir a
poltergeists; a ficha estava presa à bateria com duas roscas de metal. Truth levantou a
proteção do botão de teste e pressionou-o, mas o mostrador LED não acendeu.
Mas antes estava a funcionar. Ainda há pouco tempo tinha a potência máxima.
Olhou para a ficha na parede. Podia ligar o gravador diretamente à corrente da casa.
Era tentador, mas ela já sabia que a corrente elétrica da casa não era estável se ligasse o
gravador à tomada, arriscava-se a induzir um aumento de potência que poderia danificar o
aparelho. Suspirando e afastando exasperada qualquer ideia de dormir, Truth desligou o
gravador e soltou-o da bateria. Quando ligou a bateria à tomada de parede, uma luz verde e
um leve tremelicar das agulhas lhe assegurou que as leis da física ainda funcionavam.
E os outros? Truth suspirou, prendeu o roupão com o cinto, enfiou os sapatos nos
chinelos e foi lá abaixo.
Havia três máquinas fotográficas e um polibarómetro na biblioteca. A bateria de uma
das máquinas estava desligada. As outras três baterias indicavam 33, 17 e 40 por cento de
energia, respectivamente, embora todas as três indicassem entre 80 a 90 por cento quando ela
ligara o equipamento e o experimentara.
Os relógios das três máquinas também estavam baralhados.
Não conhecendo o ciclo das manifestações que se centravam na biblioteca, Truth
tinha-as regulado para tirarem uma fotografia por hora. Uma das máquinas já tinha gasto todo
o rolo de filme. Truth retraiu-se; como Dylan dissera, o rolo era caro e aparecia agora
regulada para tirar uma fotografia de seis em seis horas. A terceira tinha sido alterada para
funcionamento manual.
“Seria tão reconfortante pensar que isto era sabotagem”, refletiu Truth.
Reconfortante, mas pouco provável; Julian tinha mostrado muito pouco interesse em interferir
nas suas investigações e ela duvidava que fosse a fingir.
Ligou o polibarómetro à bateria com a potência de 40 por cento embora, à velocidade
que as baterias se estavam a gastar, fosse pouco provável que durassem a noite toda, e
procurou tomadas para recarregar as outras três baterias. Encontrou tomadas para duas delas
na biblioteca; as baterias pareciam carregar normalmente depois de estarem ligadas e decidiu
esquecer a outra por enquanto. Pelo menos, agora tinha uma prova das afirmações de Julian
quanto ao fracasso das baterias dentro de casa.
Quando terminou este trabalho na biblioteca, dormir pareceu-lhe a coisa mais remota e
um roncar no estômago lembrou-lhe que estivera tensa demais ao jantar e que não comera
muito.
“Uma boa chávena de cacau, como diria Irene, cura todas as feridas. É disso que eu
preciso.”
Uma estreita faixa de luz por baixo da porta avisou-a de que a cozinha já estava
ocupada, mas embora ele fosse a única pessoa que podia lá estar hoje à noite, Truth ainda não
estava preparada para ver Michael em frente do fogão, debruçado sobre um tacho.
O casaco e colete tinham sido atirados para uma cadeira e as mangas da sua camisa
branca estavam enroladas até ao cotovelo. O colarinho também estava desabotoado, sem as
suas roupas formais, Michael parecia absurdamente jovem. O forte cheiro a chocolate subia
do tacho, enquanto Michael mexia novamente o seu conteúdo.
— Acho que tivemos os dois a mesma ideia — disse Truth.
Ela supunha que devia ficar embaraçada por aparecer à frente de Michael de pijama e
roupão, mas era um bom e pesado roupão e os pijamas escondiam muito mais do que muitas
roupas que se usavam na rua. De qualquer maneira, Michael não era pessoa de quem ela
fizesse uma idéia romântica. Havia qualquer coisa demasiado... estranha... nele.
“Mas que coisa esquisita eu fui pensar. Light gosta dele.”
— Cacau? — perguntou Michael? Sorriu-lhe. — Chega para os dois.
Truth anuiu e pegou num dos bolinhos de chocolate que tinham sobrado da sobremesa
do jantar e sentou-se à mesa da cozinha. Michael trouxe o tacho e duas canecas de louça
branca. Encheu as duas até cima e sentou-se.
— Julian está a pensar fechar a casa em novembro — disse Truth, abordando o assunto
indiretamente.
— Acredito que o faria — disse Michael.
“Faria” e não “fará”.
— Não acredita nele? — desafiou-o Truth.
Michael olhou-a nos olhos e, mais uma vez, Truth teve a perturbante sensação de
perigo.
— Acho que Julian acredita... que não há razão para fazer planos para além do dia 31
de outubro — disse Michael cuidadosamente.
— O dia do seu ritual final — acrescentou Truth. Michael anuiu.
Estaria Michael a insinuar que Julian estava maluco? E de qualquer forma, seria
Michael uma fonte segura, se era a sanidade que estava em questão?
— O que acha que vai acontecer, quando... “Quando ele descobrir que não
funcionou”, pensou Truth, não tendo coragem para o dizer.
— Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. O que acha que Julian vai fazer com o poder que
ele obtém ao abrir o caminho para que os deuses pagãos possam andar pela terra novamente?
— Thorne Blackburn sempre disse que a Abertura do Caminho iria inaugurar uma
nova era dourada — disse Truth devagar.
— Admiravelmente vago — disse Michael com um sorriso zangado.
— Então acha que os objetivos de Julian não coincidem com os interesses da
humanidade?
‘ “Era só o que me faltava; mais uma conversa que não leva a nada com um idiota.
Bem, pelo menos este está vivo.”
— E você? — ripostou Michael. — Pense com cuidado: o puro altruísmo é quase tão
raro como a bondade desinteressada neste mundo.
— Pensei que você era amigo dele — disse Truth, começando a ficar chateada.
Os seus sentimentos por Julian estavam demasiado confusos para suportarem um
exame profundo, mas sabia que não gostava de ouvir estas indiretas de Michael.
— Eu sou amigo dele — disse Michael. —Talvez o único que ele ainda tem; e
certamente o que ele precisa mais.
— Mas que bom para os dois! — respondeu Truth com rispidez. Bebeu o que restava
na caneca e levantou-se. — Diga-me só mais uma coisa, Michael. Você odeia a magia, não
acredita no estudo do desconhecido e acha que Julian é doido. Então o que está a fazer aqui?
Michael olhou para ela, e Truth viu nos olhos dele uma fúria e uma dor que
denunciavam o mau gosto da sua irritação, como se estivesse a troçar de um homem que já
tivesse sido ferido de morte.
— Estou aqui, porque é aqui que tenho que estar — disse Michael , porque o Bem não
pode agir na ausência do Mal. Tenho menos hipóteses do que ele.
— Michael, preciso que me fale racionalmente — disse Truth desesperada. — Preciso
que me diga a verdade.
— “O que é a verdade?”, gracejou Pilatos — citou Michael amargamente. — Muito
bem, a verdade! Se ficar aqui, porá em perigo a sua alma imortal. É possível que lhe ofereçam
a hipótese de renunciar à certeza do céu. É possível que a aceite. Essa renúncia custar-lhe-á a
luz, Truth. Andará em trevas o resto dos seus dias.
— Isso é um disparate! — disse Truth infeliz.
— É a verdade — disse Michael com tristeza — mas você não percebe. E quando o
perceber... pode já ter passado a altura em que ainda tem a liberdade de escolha.
— Eu já lhe disse que não acredito... na sua religião — disse Truth hesitante.
— Não é preciso que você acredite para que ela exista, ou para que seja verdadeira —
disse Michael. — Ela existe.
Ela não conseguia falar com Michael melhor do que com os outros, percebeu Truth
com tristeza. Michael agarrava-se a uma fé que informava o seu mundo e sem aceitar a sua
realidade, como poderiam os dois falar?
— Boa noite, Michael — disse Truth finalmente, dirigindo-se ao lava-loiças para
passar a chávena por água.
— Durma bem — disse Michael Archangel.
A caminho do seu quarto, passou pelo de Light. Esta já estava no templo com os
outros e o quarto estava vazio.
Venus Afflicted ainda se encontrava onde Truth o deixara.
Aí permaneceu durante os nove dias seguintes.
CAPÍTULO TREZE
A HORA DA VERDADE
Time’s glory is to calm contending kings,
To unmask falsehood, and bring truth to light.13
WILLIAM SHAKESPEARE

O dia 30 de outubro era um domingo e Truth passou-o como passara todos os dias da
última semana, ou mais, na coleção de Blackburn em Shadow’s Gate. Nesta altura tinha uma
pilha de notas que rivalizavam com o material da sua fonte em matéria de número de palavras
e até já tinha um esboço do seu livro. Teria capítulos sobre os primeiros anos de vida de
Thorne e a evolução dos seus seguidores depois da sua morte, mas a parte principal do livro
seria ainda a carreira pública de Thorne com todo o seu excesso escandaloso, tal como tinha
planeado originalmente.
Só que os excessos já não pareciam tão escandalosos.
Tentou ignorar a voz interior que lhe dizia que Thorne não era mais excessivo do que
os seus contemporâneos, que a sua crença sincera tornava pouco nítida a fronteira, se é que
não a apagava, entre aldrabão e visionário ou, pelo menos, entre aldrabão e pessoa excêntrica.
Thorne, acreditara ele, não tinha tentado roubar dinheiro para enriquecer.
E de certa forma não tinha roubado nada; a riqueza que os seus devotos lhe tinham
entregue fora gasta para alcançar a sua visão, não tendo sobrado nada.
Até as suas mentiras tinham sido um ato de honestidade; se ele contava aos seus
seguidores histórias inacreditáveis sobre o seu passado e façanhas, era precisamente para que
eles não acreditassem nele ou em qualquer outra pessoa que tentasse enganá-los. Thorne tinha
sido criado num mundo em que o exemplo da mentira de Hitler ainda estava fresco; o que ele
mais desejava era criar um mundo de semideuses e não de seguidores.
“Como pode tudo correr tão mal, pai; como?”
Mas andar atrás de Thorne não foi a única coisa que Truth teve para se ocupar durante
aquele tempo. Ainda havia o assunto das baterias.
Quando finalmente chegou lá a cima naquela noite, o telefone celular também não
funcionava, e Truth reprimiu o impulso momentâneo de atirar aquela coisa inútil pela janela
do quarto. Mas alugara-o apenas e não o comprara e Julian tinha-a avisado. Disse para si
própria que no dia seguinte havia de pô-lo a funcionar novamente e assim começou uma luta
frustrante e intermitente com as baterias, com o telefone para que funcionasse, com a corrente
da casa, e outros estratagemas que finalmente a levaram a desistir. Mas isso não foi o pior.
Julian mal conseguia disfarçar o seu divertimento afetuoso ao ver que nenhuma das
baterias do equipamento caça-fantasmas de Dylan se mantinha carregada por mais de algumas
horas, por mais que ela tentasse. Os rolos fotográficos que Dylan mandou a mais para as
máquinas fotográficas não serviram de nada; ela ainda não usara os que tinha.
Não que tivesse feito muita diferença não ter o equipamento disponível. Exceto no seu
efeito pernicioso sobre as baterias, Shadow’s Gate esteve sossegado como um cordeiro.
Os quartos permaneceram nos seus lugares e os quadros também.
Truth nem sequer viu Thorne Blackburn e ficou muito surpreendida por sentir muito a
sua falta. Tinha começado a gostar do velhaco; como se ele fosse um tio maldoso com hábitos
deploráveis, mas que, no entanto, fazia parte da família.
13
Hora de glória com a calma alegada pelos reis. / Desmascarar a mentira, e trazer a verdade à luz. (N. da T.)
Iria sentir a falta dele quando saísse de Shadow’s Gate.
Olhou à volta da biblioteca, trincando a caneta. As janelas sem cortinas deixavam
entrar cascatas de luz branca de outubro.
Caradoc estava sentado à outra mesa, rodeado de vários livros sobre magia. Truth dera
uma vista de olhos e achara-os incompreensivelmente técnicos, mas Caradoc não parecia ter
dificuldades; trabalhava com afinco, comparando um com o outro, e tomando notas num livro
grande e encadernado a preto. Estava concentrado no trabalho; nestes dias, todo o Círculo da
Verdade estava ocupado pelo Trabalho, focando toda a sua atenção no aperfeiçoamento da
sua representaçãodos rituais elaborados de Thorne. Mal os via durante estes dias, exceto ao
jantar.
“Um teatro construído para alguém... que eles nem sequer têm a certeza de vir”,
pensou Truth ironicamente.
Para o seu entendimento de pessoa não iniciada, parecia que o Círculo de Julian estava
a preparar uma longa e elaborada peça todas as noites e passava as restantes horas em que
estava acordado a ensaiar e a construir os cenários, e a preparar a maquiagem. Bem, era
melhor que fossem eles e não ela, embora ela também tivesse trabalhado duramente, e o seu
trabalho na biblioteca de Blackburn estivesse quase pronto.
Em breve iria embora, pensou Truth com preguiça. Tinha copiado à mão a maior parte
dos documentos a que precisava se referir mais tarde. E, além do mais, Julian iria dar atenção
a outros assuntos depois de ter acabado a Abertura do Caminho.
Não haveria lugar para ela aqui.
O ritual final seria amanhã à noite.
Truth pestanejou e olhou à sua volta, tão confusa como se estivesse a acordar de um
longo sonho. Amanhã à noite seria o Dia de Todos os Santos e o ritual final de Julian. Como é
que o tempo passara? Durante uma semana vagueara através dele como se tivesse todo o
tempo no mundo.
E agora já não havia mais tempo.
Essa tomada de consciência era tão alarmante como qualquer outra coisa que lhe
tivesse acontecido aqui, e a súbita sensação de urgência tão asfixiante como se a casa tivesse
acordado subitamente.
Onde tivera ela a cabeça. nem sequer tinha ido a Stormlakken para assistir ao serviço
funerário da tia Caroline!
Truth levantou-se devagar, sentindo-se levemente tonta.
No chão, ao lado da lareira, Light olhou para cima quando Truth olhou para ela e
sorriu, depois continuou a brincar com um fio branco no qual se via uma única conta prateada.
Truth gemeu interiormente. Sentira-se tão satisfeita com a sua diligência e agora
apercebeu-se que se tinha concentrado no trabalho para se proteger do verdadeiro trabalho.
Deveria ter-se esforçado mais por afastar Light daqui; descobrir mais sobre o passado dos
outros e as suas razões para estarem aqui; deveria ter descoberto mais sobre Julian, por amor
de Deus; dinheiro assim não nascia no chão como dentes-de-leão...
Nem sequer tentara falar a Dylan, depois de ter desistido do telefone celular. Meg ter-
lhe-ia dado o seu recado, mas depois disso nada.
Bem, podia remediar isso imediatamente.
Não sentiu dúvidas ao entrar no escritório de Julian; se ele tinha o único telefone em
Shadow’s Gate, devia estar habituado a todo o tipo de interrupções, mas de fato não estava a
interrompê-lo. Julian não estava lá.
Truth dirigiu-se à secretária e levantou o auscultador. Segurou-o contra o ouvido.
Nada.
Carregou no botão algumas vezes um hábito inútil que apanhara nos filmes e, ao fazê-
lo, Truth reparou num cheiro estranho na sala, um cheiro amargo e bafiento, penetrante, mas
estranhamente agradável.
Era óbvio que o telefone não funcionava, embora o tempo tivesse estado
razoavelmente claro, por isso não se podia atribuir o seu não funcionamento a falhas de
corrente. Truth pousou o auscultador e, ao fazê-lo, viu a agenda de Julian aberta sobre o mata-
borrão.
“Não devia olhar”, disse Truth para si própria. Mas olhou.
Não que ganhasse alguma coisa com a sua bisbilhotice. A maior parte das coisas
estavam escritas em linhas de símbolos usados por especialistas, exceto uma coisa que estava
escrita em inglês: “Ver Ellis.”
“Por que será?”, pensou Truth, mas realmente não tinha nada a ver com isso, por isso
forçou-se por deixar o diário e sair antes que alguma coisa embaraçosa acontecesse.
Voltou à biblioteca, mas agora sentia-se tão irrequieta como anteriormente estivera
calma. Light olhou para ela durante um longo momento antes de voltar ao seu jogo elaborado
de fazer deslizar a conta prateada para a frente e para trás entre os fios. Ao observá-la, Truth
tomou a decisão de ir a Shadowkill tentar telefonar a Dylan, quando lhe ocorreu uma ideia
ainda melhor.
Ia fazer o que já devia ter feito há muito tempo. Ia mandar todas as suas notas a Dylan
e pedir-lhe para revê-las. Ele não interpretaria as suas visões de Thorne como prova de um
falhanço moral; qualquer outra coisa, desde a iludir-se a si própria a verdadeiro espiritismo,
sim, mas não como indicador nebuloso da imoralidade pessoal de Truth.
Podia confiar em Dylan.
E mandaria também Venus Afflicted para a sua morada na universidade. Talvez
conseguisse copiá-la na cidade e mandar uma cópia a Dylan; suspeitava que Dylan fosse um
estudioso de Blackburn, embora não quisesse que ela o soubesse sem, no entanto, atravessar a
fronteira do ocultismo.
Até aí não quisera fazer estas coisas; mas isso se devia ao fato de não se sentir
suficientemente forte para sobreviver às conseqüências inevitáveis. Mas andou sempre em
estado de torpor em Shadow’s Gate, alguma coisa mudou dentro dela, alguma coisa na forma
de se definir a si própria; e admitir perante Dylan que precisava da sua ajuda era coisa que já
não a assustava. Precisar de ajuda não a diminuía. Toda a gente precisava de ajuda às vezes;
era assim que as coisas se passavam no mundo.
Pegou nas notas e saiu da biblioteca. Esse dia era domingo; amanhã enviaria o
embrulho logo que o correio abrisse.
A primeira coisa a fazer enquanto sabia onde Light estava era ir buscar Venus
Afflicted.
Truth subiu as escadas até ao quarto de Light no terceiro andar. O livro encontrava-se
no sítio onde o deixara, bem como o colar, apesar das exigências de Thorne. Pegou em ambos
e levou-os para o quarto. Enfiou o colar numa gaveta e começou a fazer um embrulho com as
coisas que tencionava mandar a Dylan: as cassetes do ditafone, o livro de apontamentos e
diário, o material que tinha juntado sobre a história das assombrações em Shadow’s Gate. A
pilha era suficientemente grande para precisar de uma caixa robusta.
Talvez houvesse uma lá em baixo. Talvez Hoskins soubesse ou talvez conseguisse
encontrar Irene.
Da porta, olhou mais uma vez para a pilha. O livro estava muito bem escondido dentro
de outros papéis, não se conseguia distingui-lo. Saiu, fechando a porta atrás de si.
Demorou cerca de meia hora a encontrar uma caixa, fita cola e papel de embrulho,
mas Hoskins foi prestável e assim não teve que incomodar Irene; não que encontrar Irene
fosse fácil. Nos últimos dias, a casa inteira parecia um motor enorme, dedicado ao Trabalho, e
todos os momentos em que as pessoas estavam acordadas pareciam dedicados a ele: em
meditação, em ensaio ou ritual privado, ou a preparar as várias tintas, óleos, chás e incensos
feitos de fresco que pareciam ser tão necessários para cada representação. Truth sentia-se
pouco à vontade, embora estivesse habituada a tal disciplina quando a encontrava em círculos
académicos.
Voltou ao quarto, pensou em escrever uma carta que acompanhasse o material, depois
decidiu que podia muito bem dizer a Dylan que o ia mandar, quando lhe telefonasse.
Embalaria a caixa, deixá-la-ia na mala do carro durante a noite para ter a certeza de
que estava segura e telefonaria a Dylan.
O passeio seria um bom exercício: não se lembrava da última vez que saíra de
Shadow’s Gate, quando a casa deixara de tentar mandá-la embora.
E por que seria?
Era como se, de uma forma bizarra, Shadow’s Gate lhe estivesse a dar as boas-vindas.
Abriu a caixa e começou a enchê-la.
Venus Afflicted não estava lá.
Ao princípio achou que se tinha enganado. Verificou todos os papéis da pilha, depois
todas as outras pilhas de papéis, depois em cada canto do quarto.
Não estava.
Eles tinham-no. Depois de todo o seu cuidado, depois de todo o seu planeamento, no
momento em que estava prestes a pô-lo fora do seu alcance para sempre, eles tinham-no
apanhado.
Sentiu uma fúria enorme em relação a esta ofensa, como se a casa, ao acordar,
estivesse a alimentar toda a sua loucura através dela. Uma raiva sem medida corria nas suas
veias, como se o seu sangue se tivesse transformado em fogo. Estava farta de ser simpática, de
deixar que eles a convencessem de que eram sensatos. Estava farta de concordar, de ser
compassiva.
Isto era demais.
Ia ter com Julian. Ia exigir o livro de volta; era dela!
Thorne estava morto e o livro era dela; era a sua herança!
Não pensou no momento a seguir ao confronto, não podia. Quando abriu a porta, esta
bateu na parede com um barulho que parecia um tiro de uma espingarda.
Sentiu que a casa tentava afastá-la, a confundi-la e usou a sua raiva como uma espada
para romper a sua influência. Pela primeira vez sentiu uma força que era sua por direito e
abraçou-a alegremente, embora uma parte dela recuasse. Sentiu a força da casa a recuar,
impotente, enquanto descia as escadas a correr.
— Julian? — chamou Truth a meio do caminho. A sua voz soava perigosa.
Hereward atravessava o mármore preto e branco da entrada, em direção à porta. Olhou
para cima quando a viu, mas a porta estava aberta, Hereward segurava a porta enquanto uns
homens de branco entravam, trazendo uma maca.
Esta visão fez com que recuperasse um pouco a razão.
— Hereward? — disse ela, mas ele não parou, conduzindo os maqueiros pelo hall.
Devagar, espantada, Truth desceu o resto das escadas. A porta da frente estava aberta.
Viu uma ambulância cor de laranja e branca, cujas luzes azuis giravam ainda, parada em
frente das escadas.
“O que se está a passar?”
— Não é horrível? — disse Irene. Vinha da sala para a entrada. — Foi... Oh, como é
que o Ellis pôde fazer semelhante coisa? Ele já tinha subido e descido aquelas escadas
centenas de vezes!
— O que... — começou Truth, mas depois os paramédicos voltaram, empurrando a
maca devagar e com cuidado.
Gareth e Hereward seguiam-nos, muito sérios.
Ellis estava deitado na maca, com talas que indicavam bem a gravidade do seu estado.
A sua cara tinha uma cor cinzenta, provocada pela dor, e os olhos brilhavam. Quando viu
Truth, mexeu-se levemente contra as correias, e abriu e fechou a boca.
Truth correu para ele.
— Ellis?
— Ele caiu das escadas. As escadas dos criados; nós não as usamos, são íngremes
demais — disse Gareth,
— E bateu com a cabeça — disse Hereward rispidamente.
Ellis mexia na mão de Truth com os dedos gelados. Ela olhou-o nos olhos; ele também
a olhava fixamente com os olhos cheios de lágrimas de dor. A sua boca mexia-se
desesperadamente, mas as palavras que ele tentava dizer não saíam.
— Está tudo bem — disse Truth.
A dor de Ellis fizera com que a sua fúria desaparecesse e agora sentiu uma enorme
piedade, que doía. Ellis fechou os olhos; frustrado? Resignado?
— Senhora? — disse um dos paramédicos e Truth deixou que a tirassem do caminho.
Os dois maqueiros transportaram a maca cuidadosamente pelas escadas abaixo.
Truth olhou para trás e viu Julian, todo vestido de seda cinzenta Armani. Ele olhava
ainda fixamente para Ellis com uma expressão indecifrável.
O que iria Julian fazer agora? Ela não sabia muito sobre os trabalhos do seu Círculo,
mas sabia que Ellis ocupava uma importante posição no ritual. Ellis era o cão preto, um dos
quatro Guardiões. Conseguiria Julian encontrar alguém para substituí-lo?
— Truth — disse uma voz vinda da porta aberta.
Ela virou-se.
Era Dylan.
Dylan Palmer entrou no hall. Olhou para trás, vendo o condutor da ambulância a
fechar as portas.
— Quando ia a chegar e vi aquela coisa, pensei... Bem, estou contente por não teres
sido tu. — A sua voz soava tensa de alívio.
Dylan usava uma camisa de veludo côtelé cinzenta com as mangas arregaçadas, jeans
desbotados e botas de trabalho. O seu cabelo loiro estava todo despenteado e parecia estar
numa luz diferente dos outros.
— E você é? — disse Julian antes de Truth conseguir entender as emoções conflituosas
que surgiam dentro dela e falar.
Julian avançou e a diferença entre ele e Dylan era tão grande como entre Julian e
Gareth, mas de certa forma Dylan não se saiu pior na comparação.
— Doutor Dylan Palmer — disse Dylan, dando um leve ênfase ao título. — Do
Margaret Beresford Bidney Memorial Psychic Science Research Laboratory na Universidade
de Taghkanic. Você deve ser Julian Pilgrim. — Estendeu a mão a sorrir.
— E o que o traz até aqui? — disse Julian, a voz neutra.
Não estendeu a mão. Embora Julian não olhasse na sua direção, Truth viu Gareth a
mexer-se pouco à vontade e lembrou-se da manhã em que as caixas tinham sido entregues.
Julian não gostava de surpresas.
— Bem, na realidade — disse ele — vim aqui ver Truth.
— Ela está ali — disse Hereward.
— Olá, Dylan — disse Truth pouco à vontade.
“Que diabo estás a fazer aqui?” Finalmente, como se alguma coisa dentro dela
tivesse decidido como se defender, começou a sentir a raiva a tomar conta dela. Como ousava
Dylan vir até aqui?
Como se chamados por um alarme inaudível, Caradoc saiu da biblioteca e Donner
apareceu vindo das traseiras da casa e, de repente, o grupo na entrada tinha todas as
características de um confronto prestes a acontecer. Mas isto não estava certo. Dylan era dela,
para ela punir como decidisse; os outros não o deveriam julgar.
— Julian, poderíamos usar a sala por uns momentos? — perguntou Truth.
Julian anuiu, sorrindo levemente. Truth dirigiu-se a Dylan e pegou no seu braço,
levando-o para longe dos outros.
— O que deu no Cientista Maluco e seus rapazes musculosos? — perguntou Dylan,
abanando a cabeça em direção da porta que dava para a entrada.
— O que estás a fazer aqui? — disse Truth.
A fúria aumentava dentro dela numa doce sedução; a fúria que sentira anteriormente
surgia dentro dela, afastando a confusão e a dúvida, agora que tinha encontrado um novo alvo:
Dylan.
— Eu podia fazer a mesma pergunta — disse Dylan, a voz áspera devido à confusão e à
preocupação. — Há duas semanas desapareces, e dizes-me que vais escrever uma biografia de
Thorne Blackburn, começando por aqui. Há dez dias telefonas-me a dizer que precisas de
equipamento para experiências em Shadow’s Gate, que eu te arranjei e depois... nada. Tentei
o telefone celular, o telefone da casa... nada.
— Então vieste até aqui para me controlares? — disse Truth acusadoramente.
— Então vim até aqui para ver se estavas bem — emendou Dylan. — O que está a
acontecer aqui? Quem era aquele que estavam a meter dentro da ambulância?
— Ellis Gardner. Mais um dos rapazes musculosos de Julian, como tu disseste tão
educadamente. Caiu nas escadas.
Ela apercebeu-se do tom de raiva na sua voz e isso excitou-a; era uma coisa perigosa,
pedindo para ser libertada.
Dylan não respondeu diretamente.
— Tenho estado preocupado contigo — disse ele finalmente.
— Nem pareces tu.
Deu um passo em direção a ela. Truth levantou uma mão para afastá-lo.
— Como é que tu sabes o que eu pareço e o que eu não pareço, Dylan? Sou filha de
Thorne Blackburn... os laços de sangue acabam por se revelar. Truth atravessou a sala em
direção à lareira e ficou de costas viradas para Dylan. — E embora eu devesse agradecer a tua
preocupação (pelo teu equipamento, se não for por outra coisa), agora que já me viste, e Julian
realmente não quer visitas neste momento, por que é que não vais embora?
Fez-se um grande silêncio e Truth virou-se e viu que Dylan a olhava fixamente.
— Que diabo te deu? — disse ele espantado. — O que se está a passar aqui?
— O Trabalho de Blackburn — disse Truth rispidamente. — E não, não me envolvi, se
é isso que queres dizer. Estou aqui porque Julian tem uma coleção muito útil de recordações
de Blackburn. E é tudo.
— E as assombrações? — perguntou Dylan zangado. — Ou também devo esquecê-las?
Truth encolheu os ombros, tentando evitar o confronto e não tendo a certeza de
conseguir fazê-lo.
— Eu não... Todo o equipamento está ligado à eletricidade, Dylan. Não está a
funcionar. As pilhas gastam-se em poucas horas, nada agüenta uma carga. — Riu-se um
pouco. — Mas vê por ti. Julian ficará muito contente que o teu pessoal venha investigar o
fenómeno na semana que vem. — As palavras dela eram um aviso.
— Depois de ter feito o seu ritual no Dia de Todos os Santos? Não fiques tão
surpreendida, Truth, eu seria muito mau caça-fantasmas, se não conhecesse os dias sagrados
das bestas. Samhain e Walpurgisnacht, esses são os dias importantes. Até onde é que Julian
tenciona copiar Thorne? Quem vai morrer desta vez? — os punhos de Dylan estavam cerrados
agora quase gritava, como se alguma coisa em Shadow’s Gate que se alimentava de emoções
tivesse compreendido que tinha uma nova vítima.
— Não devias falar assim! — gritou Truth, perdendo a calma, o corpo a tremer com a
necessidade de se atirar ao inimigo. — Não sabes nada sobre Julian e sobre o que ele fez, mas
apareces aqui fazendo acusações sem fundamento, quando Julian é... — Parou, tentando
controlar-se com o maior esforço que alguma vez tinha feito. No esforço de dominar-se, tinha
enterrado as unhas nas palmas das mãos. — Julian é o ser humano mais bondoso, mais são
que eu alguma vez conheci e não vou ouvir as tuas difamações. Ele quer ajudar-me com o
livro...
— Nenhum livro vale isto! — interrompeu-a Dylan, falando alto. — Estás a ouvir-te a ti
própria? Não vês o que eles te estão a fazer? Como podes ser tão cega...
— Sai!
Toda a fúria de Truth cedera, virando-se contra si própria, até se transformar numa
coisa dura e firme que a queimava no peito como fogo.
— Irene Avalon era a melhor amiga da minha mãe. Light é minha irmã. Achas que elas
me iam magoar? Até temos um racionalista, que tem a certeza que Julian é o Anticristo; não
me parece que Julian esteja a criar diabos com ele por perto. Vai-te embora, Dylan, e guarda
os teus disparates para um programa noturno de televisão.
Cruzou os braços, gelada, apesar da luz do sol que entrava através das janelas da sala.
Dylan veio ter com ela com uma expressão de remorsos.
— Nunca te deveria ter deixado ficar aqui depois de me teres dito que este lugar estava
assombrado. As assombrações afetam o espírito, Truth; é por isso que são tão traiçoeiras; não
é preciso ter paredes a pingar sangue e freiras sem cabeça quando força ainda não explorada
do espírito humano pode ser muito mais perigosa — disse ele tristemente. — Por favor...
Truth olhou para ele friamente. Por que não desistia ele e a deixava em paz? Ela não
era do tipo de precisar de emoções humanas.
Mas Thorne escolhera de outra forma e a escolha destruíra-o.
— Este é o meu campo, Truth, eu sei — disse Dylan seriamente.
— Eu ainda não acabei aqui — disse Truth.
A força estava aqui, à sua disposição. Agora via que a tinha utilizado contra a casa.
Deu uns passos em frente e Dylan foi forçado a recuar um pouco.
— Acho que podia tirar-te daqui à força, ou fazer chantagem obrigando-te a ir embora
comigo, sob a ameaça de ir à Polícia, mas sempre preferi usar a razão. Se ficas de livre
vontade...
— Fico — interrompeu-o Truth.
— Então és uma mulher crescida e capaz de fazer as tuas próprias escolhas, mesmo
que eu pense que são erradas. Mas, por amor de Deus, toma cuidado, Truth! O lugar mais
perigoso na terra para um médium desprotegido é uma casa assombrada.
— Eu não sou médium — disse Truth, esquecendo por momentos a sua raiva. — Nos
testes feitos no instituto, nunca ficara provado que fosse fora do normal; considerando o pai
que tinha, ficara contente...
Dylan suspirou e passou uma mão pelo cabelo:
— Talvez. Podes correr o risco? A tua tia era um dos médiuns mais poderosos do
Reno. Foi por isso que Thorne se interessou por ela e pela irmã gémea em primeiro lugar.
Claroque ele dizia que também tinham sangue sidhe ou qualquer coisa, mas, seja como for, é
uma coisa hereditária.
“Oh, meu Deus!” A fúria que a assolava estava a fazê-la perder o controle da situação.
Truth escondeu a cara nas mãos, recuando em direção à cornija da lareira. Poderia não levar a
sério Irene, Michael e até Thorne, que a visitara como Fantasma, mas quando Dylan, calmo,
racional e estável dizia a mesma coisa, o que havia de pensar?
— Por que é que eu não sabia?
— Achei que sabias. Truth — Dylan aproximou-se.
— Estou tão contente por ainda estar aqui, doutor Palmer — disse Julian. — Queria
aproveitar esta oportunidade para pedir desculpa pela maneira como o recebi... se é que não
estou a interromper nada.
— Não, Julian, claro que não — disse Truth, grata.
Julian atravessou a sala para se colocar ao seu lado e Truth encostou-se a ele.
— Quando estava a chegar, doutor Palmer, um associado meu e um querido amigo
magoou-se gravemente. Vão levá-lo para o Hospital de S. Francisco em Poughkeepsie.
— Para tão longe? — perguntou Truth espantada.
— Acho que não há nada mais perto, onde possam tratar o pobre Ellis, querida —
disse Julian, pegando na mão dela. — Northern Dutchess não trata estes casos e Albany
Medical fica ainda mais longe. Por isso lamento ter sido bastante grosseiro — terminou ele,
dirigindo-se a Dylan. — Você deve ser o investigador espírita que eu vou receber no próximo
mês? — Estendeu-lhe a mão. — Espero que aceite ficar para o almoço?
Dylan foi suficientemente bem educado e apertou-lhe a mão. E tudo o resto que
poderia ter sido dito entre Truth e Dylan ficou por dizer.
Julian telefonou para o hospital durante a refeição, o serviço telefónico estava num
período de boa vontade, e voltou para a mesa com um ar sério.
— Ele ainda está no raio X e eles nem sequer parecem muito dispostos a falar comigo.
Disse-lhes que ia pagar todas as contas e foi espantoso como de repente se mostraram
prestáveis.
— Você? — perguntou Dylan.
— Claro — disse Julian. — Os atores não têm dinheiro nem seguro médico. E, de certa
forma, Ellis estava a trabalhar para mim...
— Noblesse oblige — disse Dylan, mas esta foi a única observação direta que fez
durante todo o tempo.
O civismo forçado da situação também deu azo a Truth de controlar as suas emoções e
de pensar. Ela não podia ir ter com Julian e exigir Venus Afflicted de volta, sem admitir que
sempre o tivera, o que seria admitir que o tinha trazido para Shadow’s Gate e o mantivera
escondido, quando ele praticamente o tinha pedido.
Não podia.
“Desiste e parte”, murmurava uma voz parecida com a de Thorne dentro dela. “Não
tinhas o livro há dois meses. Agora também não precisas dele. Desiste e foge.”
“O lugar mais perigoso na terra para um médium desprotegido é uma casa
assombrada”, dissera-lhe Dylan.
“Não és como os outros, minha filha. És especial; és minha filha”, repetia a voz de
Thorne.
Não. Não podia confessar simplesmente. E a única razão para fazê-lo seria obter a
ajuda de Julian para recuperar Venus Afflicted, coisa com a qual não tinha a certeza de poder
contar.
Truth estudou Julian, mas ele estava a conversar amigavelmente com Dylan e não
pareceu reparar. Será que conseguia encontrar o livro sozinha?
Talvez. Teria de procurar em casa durante a noite; afinal de contas, sabia exatamente
onde se encontrariam os seus habitantes e durante quanto tempo. Da meia-noite às seis no
templo e podia-se largar uma bomba à porta sem perturbar ninguém lá dentro.
Exceto Michael, mas ao ver-se na necessidade de recuperar o livro de Thorne, Truth
passou por cima desse problema. Trataria de Michael quando chegasse a altura. Encontraria o
livro, pegaria nele e partiria. Amanhã de manhã ainda podia tentar convencer Ligth a partir
com ela, talvez não fizessem o ritual final.
Mas se Julian não tencionava continuar os trabalhos do Círculo por Ellis estar
magoado, como podia ela ir à procura do livro?
Dylan partiu a seguir ao almoço, guiando o pequeno Datsun pela estrada que ia dar ao
portão. Truth e Julian estavam juntos nas escadas, a vê-lo partir.
— Ainda bem que ele foi disse Julian. Senti-me um caloiro a ser entrevistado pelo
reitor. Será que passei?
— Nunca vi ninguém que se parecesse menos com um caloiro nervoso — disse Truth
encostando-se a ele.
Julian colocou a mão à volta da cintura dela, duma forma possessiva que Truth já não
questionava. Sentia-se culpada, por tencionar vasculhar o quarto de Julian naquela noite.
Claro que não ia roubar nada, mas isso não fazia qualquer diferença, ou fazia?
— São os meus anos de prática — disse Julian, virando-a para si. — Houve um
momento em que pensei que tinha um rival no doutor Palmer. Tenho?
— Claro que não — disse Truth, corando levemente.
Julian não tinha um rival, nem alguém que se assemelhasse a ele. Pegou no braço dela
e levou-a novamente para dentro.
— Então fuja comigo, minha querida, daremos a volta ao mundo em muito mais do
que meia hora; descobriremos todos os pequenos segredos de Thorne e... quem sabe? —
Sorriu-lhe ao fechar a porta.
— Julian, e o Trabalho? Quer dizer, Ellis não vai poder trabalhar com vocês amanhã à
noite, mesmo que sejam só algumas nódoas negras.
— Não é esse o caso — disse Julian dirigindo-se com ela à sala. — Eu vou até lá pagar
a conta e possivelmente terão mais informações para me dar.
Pegou num pisa-papéis que se encontrava na cornija da lareira e olhou fixamente para
ele, como se toda a informação sobre o estado de Ellis pudesse estar lá.
— Mas e o Círculo? — insistiu Truth.
Julian voltou-se.
— Um dos outros pode substituir Ellis; já tivemos que fazer tantas substituições que
toda a gente sabe os papéis dos outros. Gareth pode fazê-lo. Cá nos arranjaremos. Não vou
atrasar isto um ano só por causa... — e calou-se. — Deve parecer tremendamente frio — disse
ele com um pequeno sorriso depreciativo.
— Não, apenas dedicado.
Truth sentiu-se aliviada: eles estariam no templo toda a noite.
— Lamento ter de... não retirar, mas adiar o convite para se tornar um de nós. Já não
há tempo. Mas talvez a possa convencer a viajar conosco. — O sorriso de Julian era caloroso.
— Eu... — hesitou Truth.
Ela tencionava dizer-lhe claramente que não iria a Inglaterra com ele. Que não se
achava capaz de suportar um romance com ele; que agora o seu dever era para com a irmã e o
seu trabalho.
— Quem sabe? — disse Truth e a excitação daquela possibilidade fez com que sentisse
um formigueiro na pele.
Julian viajou até Poughkeepsie para tratar das coisas no hospital. Não pediu a Truth
para acompanhá-lo e ela também não pediu para ir com ele. Em vez disso foi à procura de
Light; embora tivesse mudado de idéias, nem sequer tencionava convencer Light a ir embora
com ela. Se a saída de Ellis era um percalço nos trabalhos do Círculo, a deserção de Light
provocaria uma paragem das suas atividades. Ela sempre soubera que Light era médium de
transe, mas antes do ferimento de Ellis, esperava ter uma hipótese de convencer Light de outra
forma. Agora sabia que era impossível. O fato de o Círculo não estar completo era demasiado
óbvio. Perder Light implicaria um falhanço completo.
E embora Truth duvidasse de que isso fosse assim tão mau, também duvidava que
Light concordasse. Julian queria tanto fazer o seu ritual e Light devia-lhe tanto, bem como
Truth.
E o que iria ele fazer terça-feira de manhã, quando visse que o mundo estava quieto
como sempre estivera e chegasse à conclusão de que tudo aquilo não servira para nada?
“Se fosse...”
Truth suspirou, presa entre a racionalidade e as crenças do renovado Círculo da
Verdade que se via forçada a aceitar.
Light iria com ela na terça-feira de manhã. Tinha a certeza.
Tirá-la-ia daqui e depois...
Truth encolheu os ombros. Preocupar-se-ia com isso na terça-feira.
A refeição à noite foi tensa e nervosa, e tão carregada como a tempestade que se
formava na Storm King Mountain.
Julian ainda não regressara, mas telefonara de Poughkeepsie para dizer que Ellis
estava fora de perigo e que voltaria a tempo do ritual ao fim da tarde.
Michael também tinha saído sem dar explicações, embora ninguém o comentasse.
Talvez os fizesse sentir pouco à vontade, como Truth, embora ele e Irene parecessem dar-se
bem.
Truth fechou os olhos, cansada. Em quem poderia acreditar; em que podia acreditar?
As pessoas não podiam dizer todas as verdades; as suas histórias eram demasiado
contraditórias.
— Pobre Ellis! — suspirou novamente Irene — eu disse-lhe que aquelas escadas eram
traiçoeiras.
— Não seriam, se ele não bebesse como um peixe — disse Fiona rispidamente. —
Quero lá saber que ele se tenha magoado! Ainda bem que ele não está aqui: nunca gostei dele.
— Falou como uma verdadeira senhora — disse Hereward.
Fiona olhou para ele venenosamente.
— É agradável ver como nos estamos a nos dar bem na ausência do chefe — disse
Caradoc.
Usava um fato dourado-claro e uma camisa aberta; parecia que, não estando Julian
presente, a responsabilidade da alta costura cabia a ele. Brincava com o anel de brasão na mão
direita e não tocou na comida.
— O que esperava? — perguntou Donner irritado.
Ele era tão calado! Truth ficava sempre surpreendida quando ele dizia alguma coisa.
Ela tinha a impressão de que os seus companheiros não o impressionavam muito.
— Estamos todos exaustos. Seis horas de ritual todas as noites, quatro horas no
mínimo de preparação, mais latim e grego do que algum de nós já viu, e Julian a pressionar —
calou-se como se o que fosse dizer não fosse nada favorável.
E de fato, pensou Truth, ele parecia muito cansado.
Todos eles tinham um ar cansado, até Fiona. Não, mais do que cansado; esgotado,
como se alguém estivesse a construir... alguma coisa... com a força das suas vidas.
— E Julian a pressionar — concordou Hereward. — Por vezes acho que ele faria tudo
sozinho se conseguisse.
— Mas não consegue, por isso não o faz — disse Caradoc e isso pareceu encerrar o
assunto.
Truth tinha posto o despertador para a meia-noite, no caso de adormecer. Dava-se
corda com uma chave e não parecia sofrer dos mesmos problemas que outros relógios em
Shadow’s Gate, embora o seu relógio de pulso tivesse parado há muito tempo. Mas de
qualquer forma não havia necessidade; estava sentada muito direita e acordada, a ver o
ponteiro dos minutos avançar.
Aproveitou o tempo para rever as suas notas. Podia tê-las mandado por Dylan, mas
para quê, se o livro sobre magia não ia também?
A verdade era, admitiu Truth, que não quisera dar os apontamentos a Dylan; agora
não. Ele utilizá-los-ia apenas como mais uma desculpa para se intrometer, para se envolver no
que estava a acontecer aqui em Shadow’s Gate.
Ela não sabia se queria protegê-lo ou castigá-lo ou se queria toda a glória para si, mas
sabia que não o queria aqui. Não até que tivesse passado a noite do dia seguinte.
Lá fora, a chuva batia nas janelas e nos telhados. A tempestade começara quando ela
subira, mas a energia elétrica parecia manter-se por enquanto e ela tinha um castiçal e
algumas velas à mão, para o que desse e viesse. A chuva fazia-lhe companhia enquanto lia e a
trovoada longínqua rondava as colinas do rio Hudson.
Naquela noite também chovera: conseguira-se dominar o fogo em 1872 com facilidade
porque chovera o dia todo, encharcando a terra e as árvores e protegendo-as das faíscas e das
labaredas. De outra forma, o fogo poderia ter-se alastrado e devorado muitas terras.
Também chovera em 1969, durante o ritual final de Thorne.
Irene contara-lhe como a tempestade tinha aberto todas as portas da casa.
O tempo estivera claro durante toda a semana. Claro... e sossegado.
E agora estava a chover novamente. E havia uma tempestade.
Truth olhou para o seu relógio de viagem, o relógio mais fiável que tinha. Eram onze e
quarenta e cinco. Esperaria mais meia hora para ter a certeza e depois iria procurar em todos
os quartos, um a um, até encontrar o que lhe tinha sido tirado.
Limpou as mãos úmidas nas calças do pijama; agora estava nervosa. Seria muito mais
fácil se existisse o risco de encontrar Elijah Cheddow nos corredores. E embora fosse um
risco pouco provável, era suficiente para pô-la ansiosa e, se Thorne aparecesse novamente,
provavelmente morreria de susto.
Se Thorne aparecesse, ela poderia perguntar-lhe quem tinha o livro e o colar e o anel.
Também tinham desaparecido, como verificou depois de Dylan se ter ido embora, mas nessa
altura estava demasiado atormentada pelos acontecimentos para se sentir verdadeiramente
zangada. Thorne que tratasse disso; ele tinha dito que eram dele.
Mas o livro... tinha que tê-lo. Já não pertencia a Thorne.
À meia-noite e catorze ouviu-se um trovão mesmo por cima e todas as luzes se
apagaram. Truth resmungou e acendeu as velas. Mas a coragem racional e objetiva que sentira
dentro do quarto era mais difícil de manter quando saiu para o corredor, segurando a vela
bruxuleante. Era mais difícil ser corajosa quando se podia prever as conseqüências.
Ou talvez a coragem consistisse em continuar quando se sabia exatamente o que podia
acontecer.
Não sabia onde era o quarto de Michael, ou mesmo se ele já tinha regressado. Se
entrasse no quarto dele por engano, dir-lhe-ia que estava perdida. Até lhe podia chamar
mentirosa se quisesse; era uma história bastante plausível, dado o que ambos sabiam sobre
Shadow’s Gate.
E talvez... mas não. Abanou a cabeça. Não podia contar com a ajuda de Michael
Archangel, fosse por que razão fosse.
Começou pelo quarto de Irene. Afeiçoara-se a Irene e não acreditava que Irene a
roubasse, mas uma necessidade perversa de ser justa fê-la sentir que tinha que revistar os
quartos de toda a gente, fossem eles candidatos a ladrões ou não.
Não encontrou nada, apenas roupas, maquiagem e brincos, um livro sobre ervas
escrito à mão que não era nada parecido com o livro que procurava, coisas pessoais. Uma
fotografia de Thorne com Katherine e Caroline Jourdemayne, guardada com amor dentro
duma caixa de couro. Um pingente de prata com o mesmo símbolo que o dourado no colar
âmbar de Thorne.
A seguir revistou o quarto de Light, seguindo o mesmo princípio, e ainda encontrou
menos, embora confirmando mais uma vez que Light era extremamente gulosa.
Regressou ao segundo andar. Iria primeiro procurar nos quartos que estavam
ocupados, os vazios seriam os últimos.
Depois o resto da casa. Se tivesse tempo.
E esperava não encontrar Michael.
Mas não encontrou. Talvez ainda não tivesse voltado, embora Truth soubesse pouco
sobre ele para especular para onde ele poderia ter ido. O quarto que pensava ser o dele estava
vazio, embora muitas vezes não soubesse em que quarto estava, até encontrar alguma coisa
que identificasse o seu ocupante.
O de Fiona era fácil. Fiona tinha montes de notas escondidas nos sítios mais estranhos
e, no fundo de uma gaveta, Truth encontrou uma nota de despesas assinada por Julian, uma
folha de papel coberta com cuidadosas cópias da sua assinatura. Mas Fiona não tinha o livro,
por muito que Truth o desejasse.
O quarto de Ellis era uma triste desarrumação, com garrafas escondidas em todos os
lugares possíveis. O que teria ele tentado dizer-lhe, no final? Truth revistou o seu quarto com
mais cuidado, mas não encontrou nada.
Mais quatro quartos. O de Caradoc, de Hereward, de Donner e de Gareth; mas era
difícil dizer o que pertencia a quem. De quem era a mala cheia de livros sobre magia, e de
quem era a pistola e a caixa de munições? Gareth era o que tinha o bidão de gasolina no
quarto? Ou seria que a pilha de revistas pornográficas, chocantes na sua nudez, era dele?
O quarto que ela achava que era de Michael estava quase vazio. Ao princípio, Truth
pensou que estava vazio. Mas depois viu os fatos escuros de Michael no armário e, ao fundo
do armário, uma estreita mala de couro preto, com um metro e meio de comprimento e meio
metro de fundura, mas apenas com 20 cm de espessura. Uma mala daquele tipo poderia conter
quase tudo, desde uma guitarra elétrica a uma espingarda de grande potência, era pesada e
estava fechada.
Venus Afflicted poderia estar lá dentro, mas Truth duvidava.
O que significava que nenhum deles tinha o livro.
Doía-lhe a cabeça, da tensão, do stress, da chama tremeluzente da vela. O cheiro a
incenso era muito forte em todo o lado para onde ia, e toda a casa parecia pulsar com o ritual
que estava a ter lugar no seu centro. Se fechasse os olhos, conseguia vê-lo: o círculo das velas
que não tremiam, o brilho intenso de poder à volta de Light, Julian coroado com o sol e a lua,
a sua aura cintilante, testemunho direto da sua herança do poder de Thorne.
Poder que era suficientemente forte para fazer exatamente o que prometera.
Poder que podia abrir a porta do outro mundo.
Um pingo de cera quente entornada fez com que recuperasse a consciência. Os olhos
de Truth abriram-se rapidamente.
Endireitou a vela e percebeu que adormecera de pé.
Tinha sido um sonho.
Claro que sim.
Infelizmente a dor de cabeça era real. Truth esfregou os olhos com a mão livre e
imaginou que mesmo agora conseguia ouvir os cânticos. Estava em frente à porta da suíte de
Julian. Tinha-o guardado para o fim. Talvez inconscientemente não quisesse descobrir o que
ela já suspeitava ser verdade: que Julian lhe tinha tirado Venus Afflicted.
Abriu a porta vigorosamente, mas claro que não estava lá ninguém; Julian estava no
templo com os outros. A ilusão incomodativa de que sentia o que se passava no templo era
difícil de afastar. Sempre que a sua concentração diminuía, sentia a força a tornar-se mais
intensa, como a corrente do mar. Até conseguia cheirar o incenso...
Truth voltou à realidade com um movimento rápido. Pelo menos isso não era uma
alucinação; o quarto de Julian cheirava a incenso e por que não? Provavelmente as roupas
também estavam cheias desse cheiro.
Afastou a irrealidade do espírito e começou a procurar.
Os outros estavam apenas de visita, mas Shadow’s Gate era a casa de Julian; este
quarto tinha mais objetos pessoais do que qualquer outro. Mas os arquivos de papéis não a
interessavam, nem qualquer outra coisa a não ser Venus Afflicted.
Na gaveta da mesa de cabeceira de Julian encontrou um bocado de papel rasgado de
uma fotografia que estava em cima de um envelope de manila. Endireitou-a; era uma
fotografia de uma criança, um rapaz magro e enérgico, com uma T-shirt manchada, o cabelo
comprido puxado para trás.
Parecia-lhe familiar. Sabia que devia reconhecer alguma coisa, mas não tinha tempo.
Pegou no envelope e tirou para fora um monte de fotografias. Eram velhas, estavam amarelas
e envelhecidas e todas elas eram do rapaz da fotografia rasgada.
Viu-as rapidamente à luz da vela e encontrou uma em que Thorne também estava.
Pilgrim. O rapaz devia ser o filho de Thorne, Pilgrim, aquele que tinha fugido.
Agora sabia por que razão a fotografia lhe parecera familiar.
O bocado fora rasgado do lado da fotografia de grupo do Círculo de Thorne em frente
a Shadow’s Gate, como se alguém quisesse eliminar Pilgrim do grupo.
Mas por que razão estavam estas fotografias aqui em vez de estarem no álbum lá em
baixo?
Não havia tempo para pensar nisso. Tinha que se apressar.
Tirou o relógio de viagem do bolso e olhou para ele. Ainda parecia estar a funcionar.
Três da manhã e ainda tinha muito que fazer antes de ir dormir. Voltou a colocar as
fotografias dentro da gaveta.
Venus Afflicted não estava no quarto de Julian.
Truth desceu até ao seu escritório, movendo-se através da transbordante corrente de
força do ritual como se atravessasse um oceano à temperatura do sangue. Havia velas por
acender no escritório de Julian. Acendeu-as precipitadamente. À medida que sentia a força no
seu corpo, procurava nos ficheiros, nas prateleiras de livros, nas gavetas da secretária de
Julian, sem se preocupar em apagar os vestígios.
Nada. Julian não o tinha.
Truth levantou-se devagar e afastou-se da secretária.
“Não. Não.” As mãos tremiam. Sentia que a qualquer momento podia começar a
gritar. Apagou todas as velas menos a sua, tremendo de cansaço. Apercebeu-se agora de que
tinha quase a certeza que Julian o teria; estava tão segura que não conseguia pensar no que
fazer a seguir.
A sua vela iluminava a garrafa de vidro no bar chinês no canto. Deixou a vela solitária
a arder na secretária, dirigiu-se ao bar, enchendo o copo de um líquido que parecia quase
preto na escuridão. Cheirou-o antes de o beber; era um dos vinhos doces de que Julian
gostava.
“Espero que seja amontilado. Por amor de Deus, Montresor? Sim, Fortunato.” Bebeu
de um trago e serviu-se de outro.
Bebeu mais devagar; sentiu o efeito do primeiro: quando ia a meio, o mundo deu uma
violenta reviravolta e a sua sensação de sensibilidade agonizante do ritual cedeu. O que tinha
dito Julian quando estava a dar brandy a Light? Qualquer coisa sobre o fato de o álcool
moderar as chakras, o que quer que fosse que isso significasse.
“Não me admira que Ellis beba (quero dizer, que bebesse); era para não sentir isto.”
Julian chamar-lhe-ia sensibilidade ao oculto e Dylan o surgir de um dom espírita
hereditário.
Truth não se importava com o que lhe chamavam, só queria ir embora.
O vinho fê-la corar e ficar preguiçosa, mas não eliminou a necessidade de fazer
alguma coisa.
Mas não havia nada que pudesse fazer. Apenas ir ter com Julian no dia seguinte e
deixá-lo rir ou chorar com ela. Ou não dizer nem fazer nada e deixar o livro desaparecer
simplesmente.
Sentou-se por detrás da secretária e olhou para a vela com tristeza.
Agora que era tarde demais, via tudo o que deveria ter feito.
Por que não tinha contado tudo a Dylan enquanto ele ainda estava ali? Ela queria que
ele lesse os seus diários. Ia mandar-lhe uma cópia de Venus Afjlicted; por que se mostrara
relutante em dizer-lhe que existia?
Ela estava...
Agora não tinha a certeza de como se tinha sentido. Mas eram quatro da manhã e não
tinha alternativas. Bebeu um pouco de vinho. Depois de um longo momento, pegou no
telefone.
O toque soava reconfortante e marcou o número de casa de Dylan, de memória.
Nada. Deixou tocar o tempo suficiente para que a pessoa mais determinada a continuar
a dormir soubesse que era uma emergência. Ele não estava. Desligou e telefonou para o
escritório.
O gravador de chamadas apanhou a chamada na extensão de Dylan. Truth desligou.
Telefonou para o laboratório, usando a linha direta.
Alguém respondeu, mas não era Dylan e ele também não estava lá, e com quem mais
poderia falar? A quem mais poderia contar, e contar exatamente o quê?
“Que estou a ficar maluca? Que as velhas regras já não se aplicam? Que estou aqui
no século XX, tentando decidir, não se a magia existe, mas se se trata de magia branca ou
negra? Não fui treinada para isto!”
Pousou o telefone, vencida. Não fazia sentido procurar mais. Tinha sido vencida,
mesmo antes de saber que o jogo tinha começado. Encheu mais uma vez o copo, pegou na
vela e foi para a cama.
— Se calhar estou a perder o meu tempo... se calhar tenho tendências suicidas. Ou oiço
mal. Mas vim de longe... e nem imaginas o trabalho que deu... simplesmente por razões de
família. Mostro-te sinais suficientes perante os quais a maior parte das pessoas teria uma
sensação de auto-preservação e tu ainda estás aqui. Então por quê, o que tens a dizer?
O tom de repreensão (que agora já lhe era familiar) arrancou Truth a um sono
profundo. Sentou-se, sentindo-se enjoada; tinha bebido demais e ainda não se sentia
totalmente sóbria. O quarto estava cheio de uma leve penumbra, que antecedia a madrugada,
através da qual se via a silhueta de Thorne Blackburn a passear para trás e para a frente.
— Thorne — disse Truth com uma sensação de irrealidade meia grogue.
— Certo — respondeu Thorne e a tranqüilidade com a qual ela aceitou a declaração
convenceu Truth de que estava ainda a dormir e a sonhar. — Agora faze as malas e vai buscar
o teu chapéu e ainda podes chegar a casa a tempo do pequeno almoço.
Truth sentou-se. À medida que a luz se tornava mais forte, conseguia ver Thorne mais
claramente: usava o colar novamente e na mão viu o camafeu oval e azul com a imagem de
um escaravelho.
— Já vi que tem as jóias — disse ela.
— E tu estiveste a beber. Esta é uma altura boa para te dedicares aos rituais de Baco,
mas tu sempre tiveste um ótimo sentido de oportunidade. Levanta-te. Veste-te e vai-te
embora.
— Não posso ir sem Light — protestou Truth, sentindo-se mais confusa. — E não
posso... não quer que a Porta se abra? Se levar Light embora eles não podem fazer o ritual e
Julian esforçou-se tanto... pense nos sentimentos dele... não posso fazer isso a...
— Os sentimentos de Julian? — explodiu Thorne.
Truth estremeceu. Ele parou aos pés da cama e olhou fixamente para ela,
extremamente real, e o medo começou a penetrar no espírito ligeiramente embriagado de
Truth.
— Estás preocupada em não magoar os sentimentos de Julian? — rugiu Thorne. —
Acorda e cheira o enxofre, minha querida. Não existe nenhum Julian! É o teu meio-irmão que
está lá em baixo no templo; e tu não estás à altura dele, minha querida menina. Não tens a
coragem para seres uma heroína — troçou Thorne.
Os laços de sangue serão mais fortes. Ela devia ter suspeitado desta verdade desde o
primeiro momento; por que razão se sentira estranhamente relutante perante a sedução de
Julian? Teve uma sensação estranha, entre repugnância e atração, perante o fato de quase ter
sucumbido aos avanços de Julian.
Aos avanços do seu meio-irmão.
— Mas ele ama... — gaguejou ela.
— A si próprio — terminou Thorne. — Tudo o mais é a fingir.
— Como o pai? Realmente preocupou-se com mais alguém a não ser consigo próprio?
— perguntou Truth. Mas estava a falar sozinha.
Truth pestanejou e respirou profundamente, estremecendo.
Não se via ninguém. Claro que não; a presença de Thorne tinha sido um sonho
provocado pelos nervos, cansaço e xerez a mais.
Não. Estava cansada de mentir para si própria, de denegrir a imagem de Thorne e a
evidência dos seus sentidos. Se era um sonho, tinha sido um sonho verdadeiro.
Não havia nenhum Julian Pilgrim e isso mudava tudo.
Julian dissera-lhe que ninguém sabia onde Pilgrim estava.
Thorne dissera-lhe que Julian era Pilgrim. Qual dos dois homens estaria a mentir: o
vivo ou o morto?
Thorne nunca lhe mentiria.
Mas por que razão o faria Julian?
“Então não tenho coragem para ser uma heroína? Isso é o que veremos!”
Truth vestiu-se rapidamente, enfiando as chaves no bolso para acalmar a consciência.
Ia saber a verdade de Julian imediatamente. Estavam mesmo a sair do templo, quando ela lá
chegou.
A porta estava aberta e as luzes acesas, fazendo com que tudo lá dentro parecesse falso
e espalhafatosamente artificial.
Os membros do Círculo da Verdade pareciam atores depois de uma atuação esgotante;
mexiam-se como autómatos, obviamente interessados apenas em chegar à cama.
Truth entrou.
O cheiro amargo de velas apagadas, misturado com o cheiro doce e salgado do incenso
que usavam. Ainda se via o fumo, que formava uma nuvem azulada perto do teto. Havia um
altar retangular no centro da sala; estava coberto por peles de animais e Truth viu que estava
colocado em cima de um estrado com rodas.
Alguns dos outros olharam quando a viram, mas a maior parte deles continuou
concentrada nas suas tarefas, levando coisas das mesas à volta da sala e arrumando-as. Os
homens e Irene tinham vestes verdes, enquanto a de Light era vermelha e Fiona usava um
quimono azul de algodão, que decididamente não era mágico. Estava sentada num dos bancos
de madeira, fumando um cigarro e olhando para o vazio, parecendo exausta. Truth não via
Julian em nenhum lado.
O traje vermelho de Light ainda a fazia parecer mais pálida. Quando viu Truth
pestanejou com os olhos meios fechados e Hereward, que estava mais perto, pôs o braço à
volta dela para segurá-la. A pele dela tinha uma cor acinzentada, provocada pelo cansaço, e
viam-se-lhe olheiras por baixo dos olhos. Ele disse qualquer coisa a Light, ao que ela abanou
a
cabeça, e Hereward começou a levá-la em direção à porta. Não pareceu surpreendido ao ver
Truth;passou apenas por ela murmurando qualquer coisa que poderia ser uma desculpa,
levando Light com ele.
Os outros o seguiram em bloco. Ela pôs-se de lado para os deixar passar e finalmente
o templo ficou vazio.
— Julian — disse Truth hesitante.
Julian saiu de trás das cortinas ao fundo do templo. Tal como Fiona, não usava
nenhum traje. Usava um roupão de seda preta e era evidente que não tinha nada por baixo. Ao
contrário dos outros, Julian não parecia cansado. Tinha as faces rosadas e os olhos brilhavam
com uma vitalidade febril.
Um perfume extremamente forte irradiava da sua pele brilhante e pintada e o cabelo
estava untado, caindo em compridas madeixas pretas. Exalava sexualidade como uma ordem,
e Truth sentiu o seu corpo responder ao estímulo. Ontem teria sucumbido a esta necessidade
que Julian provocava nela, mas tinha percorrido um longo caminho em vinte e quatro horas, e
as outras necessidades eram mais fortes.
— Tenho que falar consigo. Agora — disse Truth.
— Claro — respondeu Julian. Não conseguiu reprimir um sorriso, como se soubesse
uma coisa e ela não. — Voltarei daqui a um momento.
Virou-se, deixando Truth nervosa e insatisfeita, junto da porta aberta. O altar coberto
de peles ainda se encontrava no centro do templo. Viu Julian levantar uma das peles e tirar
para fora um pequeno embrulho envolto em seda violeta bordada.
— Cá está — disse Julian. — Por que não vamos até à minha sala?
— Julian... — disse Truth, mas ele já se estava a afastar e ela não teve outro remédio
senão segui-lo.
— Bem. Cá estamos muito confortáveis. Meu Deus, devo dizer que se levantou cedo
esta manhã!
Julian estava sentado no sofá de veludo cinzento na sua sala, com uma toalha à volta
do pescoço. Usara-a para limpar o resto dos óleos e tintas do ritual, mas mesmo sem elas
parecia uma criatura de bruxaria meio selvagem. O embrulho envolto em seda estava na mesa
à frente dele.
Agora que estava aqui, a luz clara e fria do dia tornava ridículo o que tinha imaginado
e o que talvez tivesse sonhado. A cabeça ainda lhe doía, e não queria mais nada a não ser ir
para a cama.
— Talvez um copo de vinho? Pode ser cedo para si, mas é tarde para mim, querida,
por isso digamos que é uma bebida antes de eu ir dormir.
Julian levantou-se e dirigiu-se ao bar, escolheu dois copos pequenos de pé alto e
encheu-os com um líquido vermelho escuro que retinha a luz como se fosse cristal.
— Vinho do Porto; alimenta o sangue, ou pelo menos era isso que acreditavam
antigamente, e além disso é um dos prazeres da vida, digam o que disserem. Trouxe ambos
os copos e colocou-os em cima da mesa ao lado do embrulho.
— Sente-se — pediu Julian, tomando a iniciativa.
Truth abanou a cabeça sem dizer nada.
— Bem, não quero apressá-la, minha querida, mas hoje à noite é a nossa grande noite e
os meus planos são um chuveiro e cama. Claro que se quiser fazer-me companhia... — Sorriu.
“Fala”, disse Truth para si própria. “Dize o que tens a dizer.”
— Você é o filho de Thorne Blackburn, Pilgrim — disse Truth. Cada palavra foi
pronunciada com um esforço que a deixou enjoada.
A vivacidade não se desvaneceu da cara de Julian; desapareceu como se alguém
tivesse tocado num interruptor. Os olhos azuis, furiosos, olhavam-na silenciosamente e a cara
de Julian era uma máscara imóvel e desumana.
Depois de um longo momento, a sua cara mostrou sinais de vitalidade, mas era como
se aquela pele tivesse um novo habitante; como se, ao pronunciar o seu nome, não tivesse sido
apenas isso, mas também uma intimação. Julian tinha desaparecido, como se nunca tivesse
existido.
— É verdade — disse Pilgrim. O seu sorriso alargou-se. — Como é que adivinhou?
Até o último momento, Truth esperava que não fosse verdade. Que Thorne fosse uma
ilusão, ou uma mentira. Mas agora que o sabia, reconheceu perfeitamente as feições de
Thorne na cara de Julian; de Pilgrim.
O irmão dela, que até neste momento se mostrava vaidoso como se os laços de sangue
não tivessem qualquer importância. E, para sua vergonha, ainda se sentia atraída por ele.
— Thorne disse-me — respondeu Truth estupidamente.
Pilgrim atirou a cabeça para trás e olhou-a através das pestanas, sem se mostrar
surpreendido.
— Ah. Então ele está aqui. Bem me pareceu que devia estar. Mas que feliz reunião de
família; todos os mortos e vivos aqui reunidos no dia do Juízo Final, para depois passarmos
de braço dado através da Porta da Vida... a cantar, sem dúvida, embora Thorne mude de
atitude a partir de amanhã à noite.
— Pilgrim — disse Truth, tentando compreender.
— Sim, Pilgrim. O teu irmão, desaparecido há muito tempo. Não estás feliz por me
veres? Devias estar. Eu estou contente por te ver. — Pilgrim espreguiçou-se como um gato. —
Claro que sempre soube onde tu estavas. Há anos que me mantinha informado sobre ti, mas
de certa forma achei que não ias ficar muito satisfeita por trabalhares para a Nova Era com o
meu grupo. Imagina o meu prazer quando apareceste na minha própria casa, fazendo vagas
tentativas de abraçar a tua verdadeira herança. E é a tua verdadeira herança, minha irmã, o
sangue dos sidhe, os Senhores da Luz, corre nas nossas veias, tal como corria nas de Thorne,
e nós somos os soberanos naturais da humanidade. Thorne era covarde demais para aceitar a
sua herança. Ou... sejamos carinhosos... talvez não tivesse chegado o momento para um
soberano. Mas hoje estamos nos anos noventa, Truth, e o mundo está preparado para... novos
heróis. — Pilgrim sorriu-lhe abertamente e bebeu um pouco de vinho.
De repente, Truth sentiu-se sóbria demais e não queria ficar nem mais um momento
aqui em Shadow’s Gate. Tentaria persuadir Irene e Light a irem embora com ela, mas se não
conseguisse, iria sozinha; Dylan tinha razão: não se podia viver a vida de outras pessoas, e se
os outros não quisessem ir com ela encontraria outra forma de salvar Light. Mas não podia
ficar.
— Por que não me disse? — perguntou Truth. — Eu teria...
— Ter-me-ia dado uma lição, querida irmã, com a sua racionalidade monótona... e a
sua moralidade. Teria sido assim tão simpática comigo, se tivesse sabido quem eu era? Não
me parece; mas você era tão bonita, tão bonita... — murmurou Pilgrim, não se podendo dar
outro significado às suas palavras.
— Você é meu irmão! — protestou Truth, tentando lutar contra a náusea provocada
pelo choque.
Todo o desejo por ele desaparecera, afogado no medo deste homem. Como podia ter
pensado que conhecia Julian? Não havia nenhum Julian. Thorne tinha razão. Existia apenas
este demónio sorridente, com olhos selvagens.
— Incesto, querida irmã, não é um crime entre os sidhe; de fato até é encorajado e nos
antigos templos do Egito e Atlantis seguiam os costumes dos Senhores da Luz. Mas vejo que
só este pensamento a enoja. Como poderia eu esperar que estivesse pronta a viver na Nova
Era, se nem sequer me dava o livro, apesar de eu pedir de maneira tão cortês. Sabia?
De certa forma não foi uma surpresa, como se parte dela soubesse as verdades
escondidas de Shadow’s Gate desde o início.
— Quando se quer utilizar mais do que os cinco sentidos é espantoso quantas
informações se conseguem adquirir. Eu até esperei (muito pacientemente, acho eu) que você
me desse. Ainda não é demasiado tarde, sabe? — disse-lhe Pilgrim para ajudá-la.
Ele estava a divertir-se, percebeu Truth, começando a ficar zangada. Ele devia sentir-
se culpado, humilhado, e em vez disso, estava ali sentado à vontade, rindo-se dela.
— Onde está Venus Afflicted ? — perguntou Truth com uma voz rouca.
— Aqui. — Julian afastou uma dobra da seda, revelando a capa familiar. — Claro que
copiei tudo há dias. Eu disse-lhe que havia uma fotocopiadora aqui, no primeiro dia em que
nos conhecemos. Acha que eu me teria esquecido, mesmo que você se esquecesse? Até voltei
a colocá-lo no lugar depois de o ter copiado. Levei apenas algumas horas. E você estava tão
certa que ele se encontrava debaixo da roupa! Mas depois pareceu-me que estava a planear
ver-se livre dele, e isso não podia ser, pois não? Não lhe pertence. Você não quis usá-lo... mas
eu quero. O poder da Porta pode ser utilizado para muito mais do que o nosso pai alguma vez
sonhou. Eu cavalgarei à cabeça da Caçada Selvagem e a raça humana aprovará mais uma vez
a raça escrava dos sidhe!
— Não era isso que Thorne estava a tentar fazer! — explodiu Truth.
— Está a defender o pai finalmente? — ronronou Pilgrim. — Os laços de sangue são
mais fortes, não são? É uma pena que você tenha herdado toda a sua timidez... e só eu a sua
visão!
— Está bem. Você herdou a visão dele. Até tem o livro dele. E pode fazer o ritual
idiota durante muito tempo, a ver o que consegue! — ripostou Truth zangada.
Ele fizera dela uma idiota e ela não gostava, tudo o que queria era terminar esta
entrevista desagradável e assustadora e sair dali. Até ia pedir desculpa a Dylan.
— Tanto desengano é uma ofensa para o nosso sangue — disse Pilgrim, ralhando com
ela. — Você sabe que vai dar resultado... já o sentiu. Você, minha querida, já o sentiu. Você,
minha querida, é a chave para esta fechadura. É a sua força, e não a minha, que rasgará o Véu.
Truth olhou fixamente para ele.
— Deve estar doido — disse ela simplesmente.
Pilgrim suspirou.
— Suponho que esta seja a minha deixa para falar em voz alta, mas foi uma noite
longa e eu estou cansado. Mas o que você está a esquecer, minha racionalista obsessiva, é que
a magia é uma ciência. Thorne disse-o, eu disse-o... meu Deus, acho até que o lindo Michael o
disse... e você ignorou-nos a todos. No entanto, posso repeti-lo mais uma vez.
Pilgrim fez uma pausa e espreguiçou-se confortavelmente, olhando-a com uma
expressão de inocência irritante. Em cada momento, parecia mais novo, mais rapaz.
Mas Pilgrim e Julian eram a mesma pessoa, não eram?
— O método científico: que as ações têm consequências, os métodos de ação
produzem resultados, e o mesmo procedimento terá sempre o mesmo resultado. Em termos
leigos, a Porta não pode ser aberta a não ser em condições precisas. Primeira: o ritual
completo com todos os seus pormenores, agora na minha posse. Segundo: só se pode abrir a
Porta onde haja uma, para começar; e de acordo com os seus fascinantes apontamentos, existe
uma aqui. O velho Elkanha Scheidow abriu-a apenas um pouco, e nós vamos arrancá-la das
suas dobradiças. Terceiro: a Porta obedece ao seu guarda.
— Que é Ellis — disse Truth.
Ellis era o guarda da Porta para o Círculo da Verdade, como ele tinha dito na noite em
que Truth ali chegara.
— Não, minha querida. Será você.
Pilgrim sorriu e, embora não quisesse, Truth sentiu um arrepio de reconhecimento.
Embora Pilgrim pudesse estar muito doido, também tinha razão. A força aqui pertencia-lhe.
Havia uma ligação entre Truth e a magia que se revelava em Shadow’s Gate; ela sentira-o, no
momento em que vira a casa. Mas fora demasiado cega, demasiado estúpida, demasiado
teimosa para perceber o que os seus sentidos lhe diziam até agora. Quando já era tarde
demais.
— Oh, você acabaria por descobrir; de fato, se se tivesse dado ao trabalho de ler
algumas coisas enquanto andou a revistar o meu quarto, teria descoberto ontem à noite.
Realmente pensou que eu precisava da sua ajuda para investigar a história de Thorne, quando
eu podia chamar os melhores detetives que o dinheiro pode comprar? Descobri tudo o que
havia a saber sobre o nosso pai há muito tempo, mais do que você pode imaginar. Por
exemplo, os Thorne e os Jourdemayne eram primos, sabia? E ambas as famílias eram primas
dos Sheidow; admito que isso fosse há muitas gerações, mas a prova existe, basta procurá-la.
E eu procurei. Thorne também o fez. Thorne veio para Shadow’s Gate porque já sabia que
havia uma Porta aqui. Procurou a sua mãe para misturar o seu poder sidhe com a sua herança
humana Thorne nem sequer era filho de Edward Blackburn, embora fosse concebido e tivesse
nascido de um casamento. A mãe de Thorne era wicce, tal como o avô tinha sido um mago; a
mãe dele dançava para afastar os exércitos de Hitler de Inglaterra e Thorne foi concebido no
ritual, por aquela que tinha sido chamada. O pai de Thorne era um Senhor da Luz; mas a mãe
era humana; e duma linhagem que podia comandar o poder aqui.
— Por que me está a contar tudo isto? — perguntou Truth.
— É um alívio falar com alguém. Beba o seu vinho — disse Pilgrim. — Como eu
estava a dizer, Thorne era da linhagem certa, mas do sexo errado; as Portas só reagem às
mulheres. Foi assim desde o princípio do Mundo. Foi a noiva do velho Elkanha Taghkanic
que trouxe a Porta como dote. Assim, Thorne conheceu Katherine e trouxe-a para Shadow’s
Gate; o filho deles seria o guarda das portas, mas Thorne estava impaciente. Tentou abrir a
Porta na sua geração, apenas para descobrir que o poder tinha passado através da Porta na
ausência do Guarda (lembre-se, Katherine tinha morrido e você era apenas uma criança); isso
foi demais para ele. Eu não terei esse problema. — Pilgrim terminou o vinho e levantou-se.
A história dele, apercebeu-se Truth, continha uma explicação consistente, sem erros e
que explicava na sua totalidade uma ilusão paranóica clássica, mas qual dos dois estava
Pilgrim a tentar iludir?
— Não vai? — disse Truth, esforçando-se por parecer agradável. Pilgrim andava à
volta da sala impaciente.
— Não. Porque amanhã estará aqui, não é? No altar? Será a minha Hierolator, e juntos
abriremos a Porta Entre os Mundos.
— Não! — A sua recusa foi abrupta e instintiva. — Você tem a Fiona — acrescentou
ela, tentando suavizar as suas palavras.
— Aquela pega... — disse Pilgrim numa voz monótona e cheia de ódio. — Não pode
imaginar o que tem sido viver com ela. Ela não me pode dar o que eu preciso. Você pode.
— Não, Pilgrim — disse Truth. — Não posso fazer isso por si.
“Agora tenho que me ir embora.” Mais tarde poderia pensar se Pilgrim sempre tinha
sido maluco ou se fora Shadow’s Gate que o enlouquecera. Agora tinha que sair dali; podia
telefonar à Polícia de Shadowkill. Eles acreditariam nela.
— Quer dizer que não vai ajudar-me? — gritou Pilgrim, furioso de repente.
Mexia-se rapidamente e, bruscamente, pôs-se entre Truth e a porta. Havia uma chave
ornamentada na fechadura e Pilgrim deu-lhe uma volta. Meteu a chave no bolso.
—Você — rosnou ele. — A levar uma vida simpática com a sua tia querida que lhe
tornava tudo agradável, enquanto eu era punido; punido por ser seu filho, por todos os
moralistas mesquinhos que me tentaram moldar à sua imagem! Faz alguma ideia do que uma
criança sem pais sofre nesta sociedade? O sistema de adopção, se se tiver sorte; instituições se
não se tiver, e qualquer pessoa que tome conta, mais apropriada a um bordel no inferno do
que a qualquer outro lugar na terra! Quer que eu encha os seus ouvidos com histórias
horríveis, querida irmã? Quer que lhe mostre as minhas cicatrizes como lhe mostrei as de
Light? Será que assim toma o meu partido? Você não faz ideia do que eu sofri para chegar até
aqui. E agora peço-lhe uma pequena coisa e você não quer colaborar!
Agora delirava, gritava, mas ninguém conseguia ouvi-lo através das paredes grossas
de Shadow’s Gate.
“Oh, pai, tinhas razão. Por favor ajuda-me...”
— Eu... — começou Truth, mas a mentira morreu na sua garganta.
Pilgrim riu-se suavemente, em mais uma das suas loucas mudanças de humor.
— Não se preocupe, minha irmã. Já lidei com rebelião. Sou um perito nesse campo.
Olhe para Ellis, por exemplo. Ellis descobriu quem eu sou; e isso levanta tantas perguntas.
Como é que um pobre rapaz órfão conseguiu deitar a mão a tantos milhões, e tão novo ainda?
Bem, não importa. É uma longa história, e monótona. Mas ele ia contar-lhe; foi por isso que
deu aquela inesperada queda. Eu não acho que ele volte para nós: a insulina é normalmente
fatal para as pessoas que não sofrem de diabetes, e o pobre Ellis ficou tão ferido...
— Michael, claro, sempre soube — continuou Pilgrim, enquanto Truth o observava,
tão fascinada e petrificada como um pássaro a observar uma cobra. — Pensei que ele queria
dinheiro, mas não; e ao fim e ao cabo, o que poderia ele provar? Ser filho de Thorne não é um
crime, pois não? — Pilgrim deu mais umas voltas, até ficar na posição do início, e encostou-se
ao braço do sofá. Sorriu para Truth e os seus olhos estavam alerta, sentindo o medo dela. —
Achei que o belo Michael tinha de desaparecer, embora isso fosse muito inconveniente
naquele momento, mas ele só queria viver aqui. O nosso Michael prega o arrependimento, e
ele achava que me conseguiria convencer a não fazer o que eu tencionava. Claro que o deixei
tentar, até que descobri... Bem, não vou pôr a sua credulidade à prova. É suficiente dizer que
Archangel Michael teve um problema com o carro e acho que não o vamos voltar a ver. —
Pilgrim sorriu com os dentes brancos e afiados.
— Pilgrim, por favor, abra a porta.
Truth fez um esforço desesperado para se controlar; manter a voz firme e
inalterada,libertar-se do medo doentio que sentia. Esta realidade era muito mais assustadora
do que qualquer fantasma: a realidade de um louco que já tinha matado e mataria novamente.
— Em breve — disse Pilgrim, murmurando. — Prometo. Não a vou magoar; você é
minha irmã. Quero que goste de mim. Quando eu encontrei Light e a tirei daquela horrível
prisão a que chamavam um hospital, queria que ela me amasse, e assim foi, mas não foi o
suficiente. Quero que você me ame também — disse ele numa voz suave.
A boca de Truth estava seca. Doíam-lhe todos os nervos do corpo com medo. Pilgrim
queria uma resposta e ela não se atrevia a mentir.
— Quero amar-te, Pilgrim. E Thorne também.
— Thorne! — gritou Pilgrim, novamente furioso. — Ele não me ama: ele fugiu de nós;
de mim! E não me ralo se ele agora se tiver arrependido; é tarde demais para ele se
arrepender! — disse ele arfando.
— Ele não devia ter feito isso, Pilgrim — disse Truth.
Ela concentrou-se na chave que Pilgrim tinha no bolso. Precisava dela, para sair dali.
Parecia-lhe que os outros não podiam saber que tipo de monstro Pilgrim era, portanto a única
maneira de salvá-los era ir à Polícia. Não. Durante um breve momento, Truth viu lágrimas a
brilhar nos olhos de Pilgrim, quando o seu estado de espírito se alterou novamente.
— Eu amava-o; acreditava nele; e depois ele desapareceu e toda a gente... — Pilgrim
respirou fundo e esfregou os olhos. — Não me ajuda, por favor? Por favor, não me ajuda,
querida irmã? Realmente não feri o Ellis, sabe — disse ele e Truth conseguiu perceber que ele
estava a tentar parecer Julian. Ou o Michael. — Michael teve de ir a Nova Iorque. Amanhã
estará de volta. Somos velhos amigos; andamos juntos no seminário. Desculpe se a assustei.
Os outros percebem. A magia é o direcionar a realidade através do exercício da vontade. Às
vezes ficamos todos presos na nossa ilusão. Os rituais excitam-me e estamos tão próximos...
Só mais vinte e quatro horas.
Pilgrim baixou a cabeça, a imagem do arrependimento. Seria tão fácil acreditar nele e
Truth gostaria de consegui-lo. Dentro dela chorava pelo amante que tinha sido apenas uma
ilusão e pelo irmão que nunca conhecera, mas ela não queria mentir mais a si própria ou que
outros lhe mentissem.
Faria tudo para ajudar Pilgrim, mas começaria por se proteger a si e aos outros.
Esperou pela próxima explosão, mal ousando respirar, mas Pilgrim não se mexeu.
Finalmente pareceu acordar e suspirou.
— Bem. Podemos sempre tentar noutra altura. Concorda em ficar e não dizer nada se
eu lhe devolver o livro? — Pilgrim riu-se e nesta altura a ilusão de normalidade era quase
perfeita.
Truth não disse nada, não sabendo o que era seguro e o que provocaria uma mudança
violenta. Finalmente, Pilgrim pareceu desistir de a convencer.
— Está bem. Acho que mereço isto. Mas antes de ir, preciso que me perdoe — disse
Pilgrim. — Não pelo que eu tenha feito aos outros, sei que não posso pedir isso, mas pelo que
lhe fiz a si. Por favor, posso pedir-lhe isso? Você é minha irmã... — Pilgrim estendeu a Truth
o copo em que ela não tocara. — Por favor.
Truth pegou nele. Mesmo nessa altura, não ia beber, mas viu que Pilgrim a observava.
Truth viu que ambas as bebidas tinham sido servidas da mesma garrafa e Pilgrim tinha
esvaziado o seu copo. Ele colocou a chave da porta em cima da mesa e observou-a com os
olhos baixos. Truth sentiu lágrimas de piedade nos olhos por aquele pequeno rapaz que tinha
sofrido tanto, que se tornara no homem que estava aqui com ela.
— Perdoo-lhe, Pilgrim — disse Truth e bebeu.
Estendeu a mão para pegar na chave. Pilgrim sorriu.
O vinho tinha um sabor amargo. Sentiu a língua a ficar entorpecida. E tentou levantar-
se, fugir, lutar contra ele, gritar, mas o vinho estava a tornar o seu sangue pesado e frio.
“Idiota.”
CAPÍTULO CATORZE
O ESPÍRITO DA VERDADE
Who ever knew Truth put to the worse,
in afree and open encounter?14
JOHN MILTON

— Devo dizer — disse Thorne Blackburn — que quando um dos meus rebentos
renuncia ao senso comum, não há meias-medidas a ter.
A voz penetrava o seu sono agitado. Truth tentou levantar-se e viu que não se
conseguia mexer.
A tentativa provocou nela uma total tomada de consciência e, ao mesmo tempo, sentiu
o seu corpo. Doíam-lhe os ombros, os pulsos, a cabeça, a garganta; tudo lhe doía. E nem
sequer estava deitada.
Com um esforço abriu os seus olhos pastosos e olhou à volta.
Estava sentada num rude banco de madeira, num sítio que cheirava a terra úmida e a
putrefacção. Mesmo em frente a ela via-se uma porta baixa de madeira, coberta de pó devido
aos anos e à negligência. As traves do teto baixo de madeira começavam quase por cima dela
e Truth conseguia ver as teias de aranha que se amontoavam aos seus cantos. As paredes eram
de tijolos feitos à mão e a argamassa cinzenta estava a cair. O chão era de terra batida e a sala
em si estava longe de ser quadrada.
Ao princípio não viu Thorne. Viu que as suas mãos estavam ao mesmo nível da
cabeça e desta vez quando tentou mexê-las conseguiu ouvir um tilintar e sentir o metal frio de
algemas nos pulsos. Esticou o pescoço para ver melhor. Via-se uma placa de metal brilhante
presa à parede. O anel ao centro permitia que a corrente passasse livremente através dele;
tinha um metro de comprimento e estava presa às algemas nos seus pulsos. Deu um puxão.
— Não faças isso. Provavelmente vais fazer com que a parede caia em cima de ti.
— O quê? — disse Truth.
Virou-se em direção à voz e viu Thorne, que estava no canto mais afastado da sala,
como se tivesse acabado de passar pela parede. As traves do teto quase lhe tocavam na
cabeça. A luz que ela via era da prosaica lanterna Coleman que se encontrava pousada em
cima de uma caixa de gelo aos pés dele. Thorne usava um colete com franjas por cima de uma
camisa bordada de cambraia e as calças eram tão largas que lhe tapavam os pés. Segurava
uma chave. Nunca na vida ficara tão contente ao ver um fantasma.
— O que...
— A velha adega por baixo da casa. Ou querias saber como ele te drogou? Simples. A
droga estava no copo, não no vinho. É um velho truque — disse Thorne em tom de desculpa.
Truth abanou a cabeça e sentiu uma forte dor e um enjôo que a entontecia. Encostou-
se à parede, arfando.
— Vou te tirar as algemas, mas preciso da tua ajuda — disse Thorne. — Quero que
fiques aqui e que vás com eles quando eles voltarem. Temos de pôr travão àquele cretino; não
quero que mais ninguém se magoe.
Truth abanou a cabeça com cuidado, embora o esforço fizesse pulsar todos os tendões
do pescoço. Respirou com cuidado e sentiu-se melhor do enjôo.
— Acho que estraguei tudo, não foi? Não sou uma heroína?
Thorne sorriu-lhe com afeto e abanou a cabeça.
14
Quem nunca soube que a verdade posta à pior, / é livre e aberto para encontrar? (N. da T.)
— Não duvido da tua coragem, minha querida. Mas tenho dúvidas em relação ao teu
cérebro. O que te deu para confrontares Pilgrim daquela maneira? Ele é doido, sabes — disse-
lhe Thorne.
— Já ouvi dizer — comentou Truth secamente.
Thorne aproximou-se para chegar às algemas nos pulsos dela. A adega estava fria.
Truth sentiu o calor que o corpo de Thorne irradiava...
... sentia as suas mãos a agarrarem o seu pulso...
...via a maquiagem, misturada cuidadosamente para lhe tapar as rugas da cara; o
cabelo ainda comprido, mas agora de um loiro pouco natural...
Uma das algemas abriu-se e depois a outra.
— Está vivo! — gritou Truth.
Levantou-se de um salto e agarrou as mãos dele, antes que ele conseguisse afastar-se.
Eram duras e quentes e reais, tinham calos e estavam gastas e marcadas da idade. As mãos de
um homem com cerca de cinqüenta anos. As mãos de Thorne.
— Está vivo — repetiu Truth.
— Surpresa! — disse Thorne, fazendo um sorriso amarelo.
Agora que a procurava, a máscara da juventude desaparecia: era tudo pó de arroz, tinta
e expectativa; roupas antigas e uma iluminação cuidada. Não era nenhum fantasma. Era um
homem vivo, tão real como ela.
— Oh, meu Deus! — disse Truth, sentando-se devagar. A cabeça girava e fechou os
olhos com força.
— Queres uma cerveja? — perguntou Thorne, puxando a caixa de gelo do canto. Via-
se um cobertor por cima dela; abanou-o e colocou-o à volta dos seus ombros.
— Estou aqui desde sessenta e nove — disse Thorne.
Estava sentado a seu lado no banco, com o braço à volta dela. Truth segurava uma
garrafa de sumo de maçã entre as mãos e, quando fazia um intervalo na sua história, Thorne
mandava-a beber.
— E com a confusão em que as coisas ficaram quando eu “morri”, achei que podia
ficar aqui sem ninguém me maçar até ao fim dos meus dias.
Truth ia bebendo o sumo. A história de Thorne, contada de uma forma simples e sem
mostrar emoção, era quase mais inacreditável que tudo o que ouvira contar em Shadow’s
Gate.
— Admito que a chegada de Pilgrim foi um choque, mas não tão grande como quando
descobri o que ele tencionava fazer. Tinha a certeza que ele não tinha hipóteses: eu não sabia
onde se encontrava Venus Afflicted, tal como ele, ao princípio, não fazia ideia de quem ele era
e o que tinha descoberto.
— E mais tarde... bem, isso passou-se mais tarde.
Truth esticou-se e fez-lhe uma festa no joelho.
— Mas como? Mas por que...? Quero dizer, durante todos estes anos, andava toda a
gente à sua procura... — Fechou os olhos, espantada e exausta devido aos efeitos da droga e
destas novas revelações.
— Acorda. Bebe o teu sumo — ralhou Thorne. — Bem, para começar, deves ter
reparado nas minhas entradas e saídas pouco ortodoxas.
Truth riu-se, aliviada.
— Assustou-me tanto!
— Acho que não. És como a tua mãe: era capaz de ir ter com Satanás e cuspir-lhe nos
olhos só para o ver recuar. Mas fingir ser um fantasma foi fácil: este lugar costumava ser uma
paragem na linha subterrânea que contrabandeava escravos para o Canadá. Há túneis por todo
o lado.
— Mas Hereward disse que tinham sido todos entulhados... ou qualquer coisa parecida
— protestou Truth, embora neste momento já não tivesse a certeza do que Hereward tinha
dito.
— O quê? Achas que iam aparecer nos ozalides do arquiteto que se encontram na
câmara? Ninguém, a não ser as pessoas que os escavaram, sabiam da sua existência; o
labirinto foi construído mesmo por cima de uma das saídas principais em mil oitocentos e
noventa e tal e nunca ninguém reparou. Muito convenientes, aqueles túneis: vivi dentro deles
durante algum tempo, enquanto as coisas arrefeciam.
Ela não estava doida. Truth sentiu um alívio, como se tivesse tomado um remédio
forte, aquecendo-a e dando-lhe mais forças do que o cobertor de lã e a presença do pai. Não
estava doida, não estava a ter um colapso nervoso; Thorne estava vivo e estava aqui.
— Passado um tempo, aventurei-me a sair: revirando o lixo, fazendo trabalhos para as
pessoas daqui em troca de comida, esse tipo de coisas. Não sei se eles pensavam que eu fugira
à tropa, um radical em fuga ou o quê... e a maior parte deles não se ralava. Bebe o sumo.
Truth bebericou mais um pouco; estava com sede, mas doía-lhe a engolir. Tinha sorte,
pensou, por Pilgrim não a ter simplesmente envenenado.
— Pilgrim — disse ela, tentando levantar-se.
Thorne forçou-a a sentar-se novamente, sem ter que fazer para isso grande esforço.
— Agora não estás em condições de lutar contra Pilgrim.
Truth voltou a sentar-se, sentindo a fraqueza no seu corpo que lhe dizia que Thorne
tinha razão. E havia tanta coisa que ela queria saber, tantas perguntas que queria fazer.
— E a minha mãe?
Thorne suspirou e por um momento pareceu ter exatamente a idade que tinha.
— Dá-me... um pouco mais de tempo antes de falarmos sobre Katherine. Roubei tanto
de ti, minha filha, mas... dá-me apenas um pouco de tempo.
Truth anuiu.
— Odiava-o, sabia? — confessou ela, envergonhada. — Achei que era um monstro,
iludindo deliberadamente toda a gente com as suas mentiras, para conseguir o que queria.
Mas...
— Oh, eu era sincero — disse Thorne pesadamente. — Deus me ajude, esse foi o pior
dos meus pecados: o ter acreditado. E semeei dentes de dragão. Pilgrim... meu Deus, como
pôde o meu trabalho ser tão distorcido...? O que fizemos, fizemos com amor e inocência, mas
tudo o que Pilgrim quer é poder... o poder que é comprado com sangue, mentiras e uma dor
interminável. Quando penso no que ele será capaz de fazer se o conseguir... fico assustado.
— Mas não pode... — disse Truth.
— Chamar a Polícia? Claro... e Pilgrim ter-me-ia à sua mercê, e advogados
reacionários jurariam que o preto era branco e no próximo ano regressaria com um novo
Círculo pronto a acreditar em qualquer coisa que ele lhes dissesse. Não, temos que fechar a
Porta — disse Thorne solenemente. — E preciso da tua ajuda para o fazer.
Não havia o Fechar da Porta em Venus Afflicted, mas Truth calculava que Thorne
fosse a pessoa indicada para inventar um.
— Quase me tinha esquecido que acreditava naqueles disparates — disse Truth sem
pensar. Thorne riu-se.
— Faze o teu pai feliz, querida. Quando eu tirar Pilgrim do caminho, tu e eu devemos
ser capazes de fechar aquilo tudo sem grande dificuldade. Aprendi muito nestes últimos vinte
anos. Ficarias surpreendida (isto é, se soubesses alguma coisa sobre magia para começar) —
emendou Thorne maldosamente.
— Não te preocupes não te pedirei para fazeres nada que não possas confessar na
igreja — acrescentou ele, sorrindo como se adivinhasse as preocupações dela. Depois o sorriso
desvaneceu-se. — Mas só assim consigo emendar as coisas, não percebes? — A sua voz era
quase triste.
Truth apertou a mão dele. Sabia o que ele queria e teria sido fácil concordar sem
pensar, mas desta vez ele estava tão determinado a fazer a escolha certa, não apenas a escolha
lógica. Ela agora era mais forte, tinha a cabeça clara; podia pedir a Thorne para a levar para
fora dali, chamar a Polícia como planeara primitivamente, parar o ritual e Pilgrim ao mesmo
tempo.
Mas Thorne tinha razão quanto aos advogados. E embora fosse verdade que podia
acusar Pilgrim de assassínio... quando é que ele tinha mentido sobre os destinos de Michael e
Ellis? Se ela o acusasse do seu assassínio e eles aparecessem sãos e salvos... Truth estremeceu
só de pensar na confusão que os meios de informação fariam.
E Thorne Blackburn ainda era procurado por homicídio, um crime para o qual não
havia prescrição. Não haveria maneira de mantê-lo fora disto, e no delírio que o seu
aparecimento provocaria, qualquer caso contra Pilgrim podia simplesmente desaparecer.
Mas suponhamos que ela e Thorne conseguiam parar o ritual de Pilgrim, primeiro? Se
alguma coisa do que lhe tinham contado era verdade, ao fechar a Porta, a atividade
paranormal de Shadow’s Gate acabaria, tal como ela esperara. E, nessa altura, Pilgrim não
poderia usar o poder do Círculo ou da casa.
Há um mês chamaria a este tipo de raciocínio pura loucura, mas depois vira os
membros do Círculo, pálidos e esgotados, enquanto Pilgrim aparentava uma vitalidade pouco
natural.
Ela sentira o poder que eles invocavam, usando o local exato e paranormal de
Shadow’s Gate.
Parar o ritual. Fechar a Porta. Selar a ferida psíquica que afetava tudo aqui e depois
tratar dos assuntos mais terra-a-terra.
Era a coisa acertada a fazer.
— Se eu o ajudar — disse Truth — não vai magoar ninguém, pois não?
Thorne fez uma careta:
— Não vou matar Pilgrim, se é isso que queres dizer; nunca matei ninguém e agora
sou velho demais para começar. Mas acho que consigo que Irene lhe dê com uma garrafa e se
isso não der resultado posso sempre bater-lhe na cabeça. — Sorriu. — Acho que ele merece
pelo menos uma dor de cabeça.
— Eu também acho — disse Truth, esfregando as fontes que pulsavam. — Está bem, o
que quer que eu faça?
Thorne ficou com ela mais um pouco, a falar de coisas inconseqüentes de livros e de
filmes, da vida diária na Universidade de Taghkanic. Truth descobriu que o conhecimento da
cultura popular de Thorne parava em 1969 bem, se ele tinha vivido uma existência de fugitivo
todos estes anos, era de esperar. Mas, para o fim, parecia cada vez menos à vontade e
finalmente admitiu ter de partir.
— Não posso fazer muito para os enganar, se entrarem aqui e me apanharem — disse
ele desculpando-se.
— Então, vá. Eu não tenho medo do escuro.
— Eu deixo-te a lanterna e o resto das coisas. Deixa-os acreditar que isto é “uma
combinação de energias místicas” — resmungou Thorne. Levantou-se para se ir embora.
Truth também se levantou e abraçou-o. Era pouco mais alto do que ela, e o que
antigamente fora a elegância da juventude era agora a magreza da idade, provocada por falta
de nutrição.
— Está tão magro! — disse Truth. — Tem a certeza de que come o suficiente?
— Preocupa-te contigo! — riu-se Thorne. — Tu ainda não acreditas na magia. Mas
antes da noite acabar, tu e eu vamos fazer aqui um espetáculo que tu nunca esquecerás,
garanto-te eu.
— Estou ansiosa — disse Truth, e desta vez era verdade.
Ele deu a volta a uma curva no celeiro e desapareceu.
Truth sentou-se novamente, puxando o cobertor à sua volta. Agora só tinha que
esperar.
Havia sanduíches no refrigerador e, passado um bocado, Truth comeu um, mas era
maçador estar na adega sem nada para ler, a não ser uma garrafa de sumo de maçã, e logo
Truth adormeceu. Acordou algum tempo depois pelo barulho das chaves contra o cadeado e a
seguir a porta à sua frente abriu-se e Fiona entrou.
— Bem — troçou Fiona, olhando para a lanterna e a caixa refrigeradora. — Todos os
confortos de casa. Foi ideia tua, Gareth?
— Não. — Gareth entrou na adega atrás de Fiona.
Ambos vestiam trajes verdes e Gareth parecia pouco à vontade.
— Bem, anda lá, se conseguiste livrar-te das algemas — disse Fiona com rispidez.
Truth levantou-se, espreguiçando-se.
— Não devíamos...? — começou Gareth.
— Bolas... o que queres fazer, ler-lhe os direitos dela? Está bem, minha cabra... tens o
direito de fazer exatamente aquilo que eu te mandar fazer, senão dou-te cabo da cara. E se
Gareth não o fizer, Julian tratará disso.
— Não existe nenhum Julian — disse Truth.
— Ai não? Isso vai ser um grande choque para o tipo que está lá em cima com os
chifres. Mexe-te! — Fiona agarrou no braço de Truth e puxou-o.
Truth cambaleou para a frente e teria caído se Gareth não a tivesse apanhado e
segurado.
— Gareth — disse Truth — por que é que tu concordas com isto? Sabes que não está
certo.
— Eu... — disse Gareth.
— Ele fá-lo por mim — disse Fiona com um ar de troça. — Porque eu o amo. Não é
verdade, Gareth?
Agarrou no braço de Truth, espetando-lhe as unhas afiadas, e entre ambos, os dois
membros do Círculo da Verdade empurraram Truth para fora da adega e levaram-na pelas
escadas acima.
Quando chegaram ao primeiro andar, Truth percebeu que as coisas tinham corrido
muito mal. O poder se irradiava do templo como da boca aberta de uma fornalha
incandescente e tudo o que ela via parecia ter halos multicolores, deixando vestígios
fosforescentes no ar.
Lá fora chovia; uma chuvada forte que Truth conseguia ouvir claramente, mas acima
do som da tempestade conseguia ouvir os cânticos, com tanta certeza como se já se
encontrasse na sala. Sentia o forte cheiro a incenso nas narinas, na garganta, asfixiando-a.
Chegaram à porta do templo e por fim Truth percebeu.
Isto não era o início do ritual, quando ela e Thorne facilmente poderiam controlar e
alterar as coisas. O ritual já se iniciara há horas.
Onde estava Thorne? Por que não tinha vindo buscá-la?
Gareth abriu as portas.
Como se a mera barreira física conseguisse reter o poder intangível, uma nova onda de
força passou por Truth; um remoinho preto que alimentava ao mesmo tempo que devorava.
A energia puxava-a, levando-a para o passado, para a outra noite, para a outra morte...
e a rapariga bebé, que ainda não tinha dois anos, cujas tentativas frenéticas de seguir a mãe até
às portas da morte lhe tinham causado tanta agonia que os seus poderes psíquicos tinham
ficado selados... até agora.
Como se de repente tivesse sido liberta de uma roupa apertada demais, Truth sentiu as
suas percepções a desenvolverem-se e a alterarem-se, até conseguir sentir na confiança
reencontrada o ritmo do Ser e do Tornar-se correndo através dela. Isto era o mundo real, para
o qual acordara talvez demasiado tarde.
Dentro do templo, o perímetro do círculo estava iluminado por velas, o som dos
tambores a chuva, ampliada mil vezes pela acústica da sala e o canto de Light atingiram-na
com uma força que a fez estremecer; uma força muito superior àquela que os ocupantes do
templo poderiam produzir.
Truth esforçou-se por ver, embora a sua visão estivesse cheia duma galáxia de faíscas
e arco-íris incandescentes, e todo o seu corpo vibrava com o ritmo do poder da casa.
Light estava no topo do altar com a cabeça atirada para trás. Estava em profundo
transe. Tinha os olhos fechados. Gritava palavras numa língua desconhecida e cada palavra
parecia flutuar no ar, como se as ondas de som se tornassem visíveis de repente, e Light
tremia com o poder que corria através dela, esquecendo os outros. A vontade de Light e o que
falava através dela mantinham o ritual; tendo chegado até aqui, Pilgrim já não precisava dos
outros.
Irene estava quieta e a sua cara era uma máscara manchada pela tinta de lágrimas
incrédulas. Ao lado dela, Hereward estava ajoelhado no chão, com as mãos dobradas junto ao
estômago. A sua cara estava horrivelmente pálida e via-se sangue na sua boca e mais sangue
que jorrava por entre os seus dedos cerrados. Via-se uma luz azul à volta dele no chão; a sua
força da vida a esgotar-se lentamente.
Quando Truth entrou, ele olhou para ela. “Desculpe”, tentou ele dizer e abanava a
cabeça, tentando levantar-se.
Caradoc estava ao lado do altar. Segurava um recipiente com incenso, e a sua cara
estava perfeitamente impávida. Era isto que ele tencionava fazer? Não dava mostras de ter
notado que se estivesse a passar qualquer coisa fora do normal. Truth olhou para Caradoc e
não viu nada, apenas um silêncio uivante; o limite de uma tempestade onde uma
desumanidade voando alto estendia as suas asas.
Onde estava Donner? Procurou-o e finalmente encontrou-o.
Estava muito quieto, toda a sua atenção centrada em Pilgrim.
— Está à procura do seu cavaleiro branco? — disse Pilgrim a Truth.
Tinha as faces coradas e na cabeça usava um elaborado ornamento com chifres e uma
pele de lobo por cima dos ombros. Estava nu e segurava numa das mãos uma enorme espada
de ritual e na outra uma pequena pistola preta, apontada à outra pessoa que poderia fazer-lhe
mal. A pistola brilhava como carvão aceso na mão de Pilgrim, incandescente com o uso
recente que Truth conseguia ver com a sua visão do outro mundo. Já tinha dado um tiro em
Hereward; seria Donner o próximo? Seriam estas as mortes com que Pilgrim estava a contar
para dar energia à sua bruxaria e abrir a Porta?
Ou seria ela a morrer?
Truth começou a lutar. Libertou-se de Fiona, mas a mão de Gareth segurava-lhe o
braço como um torniquete de ferro.
— Larga-me, Gareth... por amor de Deus! — gritou Truth.
Sentiu o poder que Julian invocara a puxá-la para a frente, sugando-a para o padrão
que Pilgrim criara, o padrão que terminaria no horror do Caos vindo novamente.
— Acho que o seu deus e os seus mensageiros não virão hoje à noite... nem Thorne
Blackburn! — gritou Pilgrim acima do som da voz dela e da de Light. — Na verdade, Truth,
achas que um velho fraco que rejeitou a dádiva dos deuses poderia vencer-me! Agora vem
cá... vou te tirar o coração, cabra estúpida! Logo que a Porta esteja aberta, não preciso de ti!
Anda lá, Gareth; é necessário que uma mulher morra para o bem destas pessoas!
Pilgrim riu-se loucamente, mas a arma nunca se afastou do peito de Donner.
Era inacreditável, mas Gareth começou a empurrá-la para a frente por fraqueza, por
estar perdido no ritual, no desejo de se entregar a outra coisa fora dele. Truth lutou contra ele
e até talvez tivesse conseguido libertar-se, mas Fiona bateu-lhe no estômago com um dos
pesados castiçais e quando Truth se engasgou com a pancada, Gareth torceu-lhe ambos os
braços atrás das costas.
Trouxe-a para a frente de Pilgrim. O calor irradiava de Pilgrim e o poder... conseguia
vê-lo com os seus sentidos; um brilho violeta-escuro que se juntava na superfície da sua
pele,como se um duplo astral dentro dele estivesse prestes a rebentar o seu casulo mortal.
— Agora prendemo-la ao altar; vamos violá-la e mutilá-la e tirar-lhe o coração. Vá lá,
Irene, pára de chorar, já não estamos nos anos sessenta! Donner, seja um bom rapaz e anda cá
para me ajudares — disse Pilgrim, irradiando um prazer louco.
Como poderia alguém pensar que ele os deixaria viver depois do que tinham visto aqui
esta noite? Quantos deles estavam aqui como Irene, secretamente, ilegalmente, sem ninguém
que reparasse no seu desaparecimento?
— Donner! Não o faças! — gritou Truth. — Ele vai te matar!
Pilgrim brandiu a pistola e riu novamente, um som alto e agudo que se ouvia acima
dos cânticos de Light. Mesmo que não se acreditasse em magia, mesmo não se sentisse o
poder ali presente, mesmo assim havia a pistola. Truth sentiu que Gareth a levantava em
direção ao altar e começou a dar pontapés.
— Em nome do Cristo Branco e de Yod-He.Vau-he, o Tetragammaton todo poderoso!
— gritou uma voz vinda da porta.
Light parou de cantar como se tivesse sido esbofeteada.
Gareth virou-se, puxando Truth.
Michael Archangel estava na soleira da porta. O cabelo estava molhado de sangue.
Gotas vermelhas orlavam as suas sobrancelhas. Usava a batina de um padre e nas mãos
sangrentas trazia uma espada como Truth nunca vira antes. Irradiava um brilho branco, como
se banhada num foco que só a iluminava a ela.
— Ordeno-lhes que rejeitem estes erros da escuridão e que se rendam ao julgamento
do Senhor! — gritou Michael e Truth sentiu o poder Daquele em cujo nome agia, queimando
e implacável.
Pilgrim brandiu a espada e Gareth saltou para trás, puxando-a também. Truth sentiu as
forças opostas a juntarem-se e, por um momento, os Véus do Tempo e do Nascimento tinham
sido rasgados e toda a gente na sala estava perante a Eternidade.
— Domaris! — gritou Light. — Ajude-me! — Caiu de joelhos e gritou novamente, de
dor e medo puramente humanos.
— Deoris!
O nome antigo e eterno fora pronunciado pelos lábios da irmã; as irmãs que tinham
jurado em frente a um altar no início do mundo nunca se separarem até que o Tempo
acabasse. Por um momento Truth viu o desenrolar das suas vidas partilhadas através de vários
nascimentos, até o momento em que este antigo pecado as tinha preso para sempre à Roda.
Depois, este momento passou. Libertou-se de Gareth sem dificuldade e dirigiu-se à
irmã, meio cega no centro das forças que giravam na sala.
— Não obedeço a nenhuma criatura, deus ou diabo! — gritou Pilgrim.
A espada que ele segurava era visível na escuridão; a sua lâmina preta um buraco no
tecido da Criação quando a levantou.
— É você, peão do deus dos escravos, que me obedecerá e que me venerará!
Michael avançou para a frente e os seus pés nus deixavam marcas de sangue no chão
do templo, tendo erguido a sua espada para se defender do ataque de Pilgrim. Um nevoeiro
brilhante parecia separar os dois homens dos outros no templo, como se os seus corpos já não
estivessem totalmente no plano mortal.
Truth chegou ao pé de Light; ajoelhou-se ao pé dela. Os gritos tinham parado; a sua
irmã jazia no chão, flácida e inconsciente. Tinha a pele gelada. Truth tentou sentir-lhe o pulso,
cheia de medo, e finalmente encontrou-o, leve mas forte.
Abraçou a irmã contra o seu peito, observando a batalha.
A voz de Michael elevava-se num latim sonoro e profundo e cada sílaba parecia rasgar
a estrutura da realidade. Pilgrim brandiu a sua espada, mas não foi da sua lâmina que veio o
ataque. Com a outra mão desenhou uma forma no ar, e Truth parecia ver o caracter que
desenhara pairar no ar, como se preso num nevoeiro escuro e sangrento.
— Adonai! — gritou Michael e o símbolo começou a desaparecer.
— Anda lá — disse Thorne, agarrando em Truth pelos ombros.
Ela gritou ao sentir o seu toque, quase deixando cair Light, e viu as cortinas da alcova
a abanarem por onde Thorne tinha passado. Mal conseguia ver. Todo o templo estava cheio de
um som ardente e Truth sentiu-se como se estivesse a afogar-se no intangível tornado real.
— Não! Light...
— Não há tempo! — gritou-lhe Thorne ao ouvido. — Já foi longe demais! Não vai
parar... temos que a fechar!
Ele tinha razão. A falta de equilíbrio que se criara ali estava a alimentar-se da luta
entre Michael e Pilgrim. Agora já não interessava que o ritual fosse terminado; a Porta abrir-
se-ia, a não ser que os dois o conseguissem impedir.
Relutantemente, deixou Light escorregar para o chão e levantou-se:
— Ela ficará bem?
— Não se não ganharmos — disse Thorne seriamente.
Esticou-se, tirando Venus Afflicted do altar, e Truth tirou-o dele.
Sentia a capa nas suas mãos a arder e ao mesmo tempo gelada e a queimar como uma
estrela cativa.
Thorne agarrou no pulso dela e puxou-a através das cortinas no arco. Estava muito
escuro atrás das cortinas, mas Thorne mexia-se sem errar na escuridão, abrindo uma porta e
mostrando um lance de escadas que desciam em curva para baixo. Um leve brilho, quase
fosforescente, irradiava de baixo. O suficiente para guiar os passos duma pessoa, pelo menos
se estivesse desesperada.
— A velha cisterna — disse ele brevemente.
Truth seguiu-o pela escada para uma sala tão grande como o templo por cima, uma
grande sala em forma de tambor feita de tijolos e pedras, com séculos de existência. Esqueceu
o caos no templo até conseguir ver novamente o mundo físico; olhando para uma parede
curva Truth percebeu que estava a olhar para uma parte do alicerce da casa de 1648.
— Anda lá — disse Thorne.
A escada era de ferro. Chiava e tremia quando Thorne e Truth a desceram a correr,
Truth segurando o livro contra o peito. Quando chegaram ao fundo, Truth viu que a
iluminação vinha de uma lanterna em forma de chaminé, de incalculável idade, que estava
colocada num nicho na parede.
— A nascente está lá embaixo. — A boca de Thorne torceu-se ao apontar para o chão.
— Sheidow convenceu os Taghkanic que era um grande manitou, quando a desviou para os
seus fins. Foi assim que conseguiu que cooperassem no seu negócio de peles.
— Parece que este sítio só atrai charlatães — respondeu Truth e Thorne riu-se.
— Anda. Há um túnel para fora deste lado.
Ela estava demasiado amedrontada com outras coisas para se assustar na altura, mas
durante o resto da sua vida aquela fuga de Shadow’s Gate povoaria os seus pesadelos. A velha
rede de túneis de tijolo e de calcário argiloso não tinha sido reparada. As paredes estavam
curvadas para dentro com o peso da chuva da primavera e do gelo do inverno; as raízes
tinham furado os tetos e o seu emaranhado obrigava-os por vezes a andar de gatas para
poderem passar. Havia sempre o medo constante de que o túnel desabasse e os enterrasse
vivos. De cada vez que a trovoada abanava o vale, as mãos de Truth tremiam levemente, mas
naquela altura o seu espírito estava muito longe do puro terror animal. Sentia o poder da Porta
aberta à solta, as suas pulsações, livres do ritmo do ritual interrompido a formarem-se e
crescerem sob a convocação de um padrão seu. Tudo o que via brilhava com uma luz
fantasmagórica, como se Shadow’s Gate já não pertencesse totalmente a este mundo.
Finalmente ela e Thorne chegaram a um lugar, onde o teto fora reforçado com tábuas e
a porta à sua frente, numa parede caiada, tinha um caixilho de madeira.
— A velha casa do gelo — explicou Thorne, abrindo a porta.
Por impossível que parecesse, a casa do gelo ainda estava mais suja do que o túnel,
mas a porta de fora meio podre, a cair das dobradiças, dava para o exterior. A noite estava
prateada, como se iluminada pela lua cheia, embora a tempestade das bruxas ainda rugisse no
vale. Truth limpou a sujidade e teias de aranha da saia com a mão livre; através da porta
conseguia cheirar a doçura do ar da noite, eletrizado pela tempestade.
— Ali fora? — disse ela duvidosa.
Uma bátega de água entrou pela porta, enfeitando-lhe a saia com gotas e fazendo-a
tremer.
— Da próxima vez que te salvar, trago um guarda-chuva — prometeu Thorne.
Truth enfiou o livro por baixo da camisola e passou à frente de Thorne. A chuva,
gelada e doce, limpou-lhe a sujidade da roupa, embora a encharcasse até aos ossos. Por cima
dela soava o ribombar da trovoada e os relâmpagos ponteavam o céu como o clarão de fogo
de artilharia distante.
Thorne pôs-se ao seu lado na colina cheia de silvas. Truth ouviu-o praguejar quando a
chuva o encharcou. Olhou à sua volta. Não se via Shadow’s Gate em lado nenhum.
Ambos estavam cobertos de lama e a sangrar de centenas de arranhadelas quando
chegaram ao destino de Thorne; entretanto, tinham caído mais de uma vez. Truth quase
perdera o livro pelo menos meia dúzia de vezes; conseguiu manter a sua posse por pura
teimosia, embora tivesse várias nódoas negras e unhas partidas.
Thorne andava devagar na clareira, puxando Truth atrás dele. Ela limpava a chuva e os
cabelos dos olhos e olhava à sua volta.
Estavam embrenhados na floresta atrás de Shadow’s Gate, onde velhas árvores
cresciam como pilares de um templo entre uma vegetação mais baixa. Aqui a força da chuva
era suavizada pelos ramos das árvores, embora fosse outono e as árvores já tivessem poucas
folhas.
A clareira estava rodeada por pilares de granito em forma de ferradura, moldados
rudemente como os colossos de Stonehenge e enterrados profundamente na terra. As pedras
estavam bastante juntas, a intervalos de um metro, e eram doze. A terra que os rodeavam tinha
sido remexida e alisada, mas isso tinha acontecido há muitos anos e agora a erva curta,
retouçada pelos veados, estava coberta de folhas caídas.
— Trabalhamos nisto durante aquele primeiro verão. Carl partiu o pulso e Irene ficou
muito doente, porque foi envenenada pela hera — disse Thorne.
Ele arfava devido à corrida, tinha o cabelo colado ao crânio, mas até agora sorria,
como se não lhe importasse o resultado; era a batalha que era essencial para Thorne
Blackburn.
Truth esticou-se e tocou no pilar mais próximo. Pensou que estivesse frio, mas estava
quente, como se o sol o tivesse aquecido durante horas, e vibrava levemente por baixo dos
seus dedos. Depois de tudo o que lhe tinha acontecido esta noite, Truth já nem se assustava
com esta novidade.
— O que fazemos? Por que estamos aqui? — perguntou Truth.
Tirou novamente os cabelos encharcados dos olhos, resistindo à tentação de abraçar o
pilar para se aquecer. Qualquer que fosse a fonte deste calor, não serviria as necessidades do
seu corpo.
Thorne dirigiu-se para a frente do crescente dos megalitos, onde um espaço separava
as duas pedras mais altas. Hesitou, como se o que fosse fazer a seguir lhe custasse.
— Pilgrim encontrou este lugar, mas Irene nunca lhe contou a verdade, tenho a certeza.
É estranho como se pode ludibriar a maldade. Ele sabia tão pouco sobre mim como tu, mas
escolheu acreditar numa parte diferente da minha história. É verdade que a casa era a magia
da tua mãe... mas a minha era aqui.
Depois Thorne deu um passo para trás, colocando-se entre as duas colunas. Vibraram,
um cantar doce e alto que cortou o ribombar da trovoada, e de repente todas as pedras
pareciam cintilar com uma luz azul como o brilho das estrelas.
O seu corpo contraía-se como se a eletricidade passasse através dele, completando um
circuito poderoso. Truth distinguiu o brilho dos seus dentes no estranho brilho azul das
pedras.
— Pai! — gritou Truth, atirando-se para a frente.
Escorregou na lama e ficou espichada, com o livro de magia a pesar-lhe debaixo da
camisola encharcada. Conseguiu pôr-se de joelhos na lama, olhando fixamente para o pai; ele
não estava ferido, como ela pensava, mas de certa forma o corpo de Thorne completava o
circuito de forças ali presentes.
Devagar, ele estendeu os braços para ela, com uma aura de força azul e branca. Ela
sabia o que ele queria que ela fizesse.
Ainda de joelhos, Truth tirou Venus Afflicted debaixo da camisola. A capa estava
úmida e escorregadia da chuva, e um último resquício de pragmatismo mundano lamentou o
seu estado molhado e salpicado de lama. Esticou-se do sítio onde estava ajoelhada,
estendendo o livro para Thorne.
Ele disse alguma coisa, mas ela não conseguia ouvir com o barulho da chuva e abanou
a cabeça. Depois ele tocou no livro.
A força do Círculo fluiu pelo seu corpo, procurando sair para a terra, e Truth contraiu-
se, como Thorne fizera, apesar de todo aquele poder a manter rígida. Não havia fuga possível;
ela sentiu a força fluir para a terra e ir ao encontro de um poder ainda maior, um rio que corria
para um oceano enorme, que devolvia a sua força novamente ao rio. A força descia em
cascata através do corpo dela, do de Thorne, através das pedras e novamente para dentro da
terra, outra vez e mais uma vez sem fim. Os olhos de Truth fecharam-se; aqui estava a paz
que ela procurara; aqui, finalmente, pedindo apenas que se rendesse à sua chamada eterna.
— Não! — O grito de Thorne acordou-a.
Ela ergueu a face para os olhos azuis brilhantes e percebeu que não era para que ela se
rendesse que ele a tinha trazido aqui. O poder tem que ser controlado, a Porta tem que ser
fechada. Ela tinha que pegar na maré de força que corria dentro dela e impor a sua vontade;
era ela a guardiã e aqui estava a Porta.
Mas como?
O peito de Thorne dilatava-se, conforme ele aspirava o ar e a força. Depois começou a
cantar, estranhas frases pequenas que apareciam nos sonhos de Truth desde a primeira noite
que passara aqui em Shadow’s Gate; as palavras que neste mundo eram apenas isso, mas que
noutro lugar eram coisas vivas, reais, sólidas e sábias.
A noite, a tempestade, a floresta, o círculo de pedras, tudo desapareceu da percepção
de Truth como se despisse uma peça de vestuário fora de moda. Passou a Porta e viu-se com
Thorne numa colina alta, onde exércitos fantásticos se juntavam à sua volta, esperando pelo
sinal para partirem. O oceano rugia nas rochas lá em baixo e, por cima das hostes, Truth viu
uma Roda a girar entre as estrelas; uma Roda de prata que cegava e cada raio da Roda era
uma lâmina de dois gumes.
— “Para a terra; da terra, o sacramento infindável de dádiva e dádiva...”
Thorne não parara de cantar, mas agora Truth conseguia perceber as palavras que não
eram palavras, mas a Realidade.
— “Eu sou um falcão! Por cima do penedo...”
E a sua voz juntou-se à dele. Cada frase era uma runa, uma palavra, um feitiço tecido
com a respiração...
— “Eu sou um espinho! Por baixo da unha...”
E agora via a forma de tudo. Sabia o que tinha a fazer.
Entendia a tarefa que Thorne lhe destinara e como a iria fazer.
Viu o preço e a dor e mediu a sua força em relação à tarefa e a sua voz continuou
sozinha:
— “Sou um engodo!Do paraíso...”
E algures no limite da sua visão distinguiu a forma do trabalho distorcido de Pilgrim e
percebeu que também tinha que enfrentá-lo. A voz de Thorne juntou-se à sua, e o livro ardia
entre as suas mãos como ferro fundido, mas nenhum deles o largava.
— “Eu sou um mago, mas quem, além de mim, Conhecerá a Porta Entre os Mundos?”
A criação confusa de Pilgrim desapareceu e agora a Porta ardia perante os seus olhos,
prateada e brilhante; as suas lâminas simbolizavam os perigos que a pessoa tem que passar
para chegar ao Paraíso.
Ela sabia o que tinha a fazer. As palavras despertavam claramente no seu espírito, mas
sabia que ao pronunciá-las ficaria empenhada a um caminho que teria que percorrer o resto
dos seus dias.
Tinha que o fazer. Não havia mais ninguém.
— “Eu sou o nascimento de cada esperança...”
As suas mãos ardiam. A sua vontade e a sua honra subjugavam-na; a paixão de saber e
de fazer, que a tinham trazido até ali.
— “Sou a porta de todas as paredes...”
E conseguia senti-la a mover-se rapidamente na sua direção; o peso maciço de
intenção, como se, num plano muito para além do seu, um grande peso oscilasse, e a Porta
Entre os Dois Mundos fechou-se novamente, corrigindo um equilíbrio que há muito estava
errado. O momento em que podia parar o que tinha começado passou e desapareceu e Truth
sentiu um terror de animal selvagem caído no caminho de um comboio que se aproximasse,
quando o poder que ela invocara aumentou ao máximo, explodindo dentro dela, coalizando
uma força viva, procurando a sua libertação; ela gritou com esta sensação e nas suas mãos
abriram-se bolhas. O líquido espalhou-se entre os seus dedos como lágrimas, mas finalmente
a Porta estava fechada; ela fechara-a e agora só havia uma última coisa que tinha de fazer.
— “Sou a chave de todas as fechaduras...”
E a chave era o seu corpo, a sua alma, arrancada e torcida da sua forma viva, e agora
Thorne já não podia ajudá-la.
— “Sou a fechadura para todas as portas..”.
A voz falhou-lhe. A língua sangrava com as palavras que se forçara a dizer, mas se
parasse agora, o mal não seria reparado, e toda a dor e tristeza que tinha sofrido não serviria
para nada.
— “Eu sou o mago; eu sou aquele que sela a Porta Entre os Dois Mundos.”
E estava feito. A colina desaparecera, bem como os exércitos.
A Porta tinha desaparecido das estrelas, bem como a luz.
Estava deitada na lama. Truth abriu os olhos, mas a visão fantasmagórica que a
mantivera tinha desaparecido; estava tudo preto. Tudo o que restava eram bocados
deslumbrantes da sua visão, que já se desvaneciam como um sonho. Exceto pela escolha que
fizera e com a qual teria de aprender a viver.
Estava gelada, entorpecida, molhada, com frio e doente. Ouvia a chuva ao longe; a
fúria da tempestade passara e afastava-se. Truth pôs-se de joelhos com um barulho de sucção.
Estava coberta por uma espessa camada de lama do queixo aos tornozelos.
— Pai? — disse Truth com a voz rouca. Tinha lama na boca. Cuspiu.
— Toma — disse Thorne.
Mal o conseguia ver; estava entre os dois pilares, com os braços cruzados no peito. E
segurava Venus Afflicted nas mãos.
— Tu... eu... — Ela sentou-se nos calcanhares, afastando o cabelo da cara com as
mãos sujas de lama. — Deu resultado. Conseguimos! É verdade!
As palavras eram apenas sombras do que havia a dizer sobre o que acontecera; era
assim que ia ver o mundo a partir de agora; o mundo como ele era para aqueles que tinham
visto o Paraíso e que agora tinham que viver os seus dias entre as sombras.
— Sempre o disse. — A voz de Thorne era divertida. — E agora... desculpa, querida,
mas hoje não fui muito verdadeiro contigo. Espero que um dia me perdoes, mas agora... Não
posso ficar. Aquela parte era mentira. Tenho que ir.
Ela sabia. A parte do seu ser que tinha estado em cima da colina à frente do Portão da
Roda Prateada compreendia, mas a charada tinha que ser jogada até ao fim.
— Ir para onde? — perguntou Truth. — Por que tem que ir? Pai, acabei de encontrá-
lo...
— E eu sempre te amarei, Truth. Mas, na noite em que a tua mãe morreu, vim até aqui
para a vir buscar; com o poder do meu sangue forcei o Portão e por essa loucura foi-me dada a
penitência correspondente. Adeus, querida.
— Não! — Truth atirou-se a seus pés e correu para ele, mas chegou tarde demais.
Os relâmpagos faiscavam. E no espaço entre os dois pilares onde Thorne estivera, já
não o via; apenas um grande carvalho cinzento com o símbolo do Círculo da Verdade gravado
na sua casca.
E Venus Afflicted desaparecera finalmente do mundo dos homens.
CAPÍTULO QUINZE
SÊ VERDADEIRO CONTIGO PRÓPRIO
Thou that stupendous truth believ’d
And now the matchless deed’s achiev’d
Determined, dared, and done.15
CHRISTOPHER SMART

Truth demorou quase uma hora a descer da colina e quando finalmente chegou a
Shadow’s Gate estava tudo num perfeito caos. O cheiro a queimado sentia-se no ar e parecia
haver polícia, ambulâncias e carros de bombeiros por toda a parte, e até algumas pessoas de
Shadowkill, atraídos pelas sirenas e pelo barulho. Chegou mesmo a tempo de ver Hereward a
ser metido numa ambulância, com um enfermeiro de bata branca ao seu lado, segurando o
frasco de soro por cima da cabeça dele.
O que tinha acontecido? Certamente que Pilgrim não tinha ganho, se estas pessoas
estavam todas aqui, mas o que acontecera? Ela correu por entre os carros parados à procura de
Light, de Irene, de alguém do Círculo.
— Espere um minuto, minha senhora. Não pode entrar aí.
Um bombeiro agarrou-a junto da porta de entrada da casa; o pesado casaco dele
cheirava a fumo. As portas estavam abertas; Truth deu pela presença de grossas mangueiras
brancas no interior do edifício e charcos de água no chão de madeira. As luzes elétricas ainda
estavam acesas, dando à cena um aspecto estranho e surrealista.
— A minha irmã está lá dentro — disse Truth, tentando libertar-se.
— Não há ninguém lá dentro — disse o bombeiro.
— Olha! John! Está à procura da irmã! — gritou ele para alguém que não estava muito
longe.
Um homem com chapéu de abas largas da Polícia de Estado dirigiu-se a Truth. O
walkie-talkie no seu cinto emitia sons confusos.
— Vá com ele, ele ajuda a encontrá-la — disse-lhe o bombeiro.
— O seu nome? — disse o polícia. Pôs uma mão por baixo do braço dela e começou a
andar em direção ao seu carro. — Vive aqui?
— Truth Jourdemayne. Passei aqui os últimos dias, pois estive a fazer algumas
pesquisas. A minha irmã estava lá dentro! Sabe...
— Toda a gente saiu — disse o polícia de forma tranqüilizadora.
— Se...
— Truth! — Light deu um encontrão aem Truth, deitando-a quase ao chão.
— Oh, meu Deus, estás bem... mas vais-te molhar! — acrescentou Truth quase
instantaneamente.
A jovem médium ainda usava o traje vermelho, mas por cima dele tinha o que parecia
ser uma das bandeiras do templo. O cabelo longo e prateado estava úmido e emaranhado e
tinha marcas de fuligem na pele branca.
— Quero lá saber! — disse Light ferozmente.
Abraçou Truth com mais força, espremendo a água da roupa molhada de Truth para
cima do cetim berrante. Truth também a abraçou, sentindo uma dolorosa sensação de alívio.
Light estava salva.
15
Tu que acreditas na estupenda verdade / E agora alcançou o incomparável da escritura, / Determinado, ousou e
fez. (N. da T.)
O polícia, vendo que não fazia ali falta, afastou-se, mas Truth sabia que ele havia de
voltar. Iria haver perguntas às quais era necessário responder e que dizer quando chegasse a
altura?
Mas, agora, apenas uma coisa era importante.
— Pilgrim? Onde está Pilgrim? — perguntou Truth.
— Ele está ali — disse Michael, afastando-se dos caminhões para se juntar a Light.
Tinha um cobertor à volta dos ombros. Parecia cansado, mas nada que se parecesse
com a imagem sangrenta com a espada flamejante que Truth vira esta noite. Teria sido real?
Ela olhou para o sítio que Michael indicou e viu Pilgrim.
Cambaleava por cima da relva, sendo levado para um dos carros da Polícia por dois
homens. Seguravam-no pelos braços. Tinha as mãos algemadas atrás das costas e exprimia-se
de forma confusa:
— ... reis na escuridão as cidadelas da terra e do oceano, castelos com torres nas velas
e a chuva a cantar no escuro e rochas por cima das pedras no oceano... — Continuava a falar
sem nexo.
Não eram palavras inteligentes e, vendo sem ver, Truth conseguiu reconhecer as
correntes que o prendiam, mais fortes do que ela e Thorne poderiam ter forjado, segurando
Pilgrim com força e assegurando que a sua loucura nunca mais causaria mal a ninguém.
Michael... ou aquilo que Michael servia, tinha feito isto quando Julian perdera o poder
da Porta e Truth não conseguiu sentir pena. Olhou Michael nos olhos e viu por fim aquilo a
que ele tentara poupá-la: saber o que ela era e a responsabilidade que acompanhava a senda
em que se lançara.
Truth tomou consciência de um sentimento desolador de perda. Agora que finalmente
compreendia a verdade, seria bom contar com a amizade de Michael. Mas não. Ela e Michael
tinham escolhido caminhos diferentes há muito tempo.
A Igreja Cristã mantinha que o homem não era suficientemente forte para agüentar a
experiência de um Conhecimento Superior e assim os seus ensinamentos diziam que se devia
abdicar desse conhecimento. Julian Pilgrim decidira que todo o conhecimento pertencia ao
homem, independentemente do fato de ele estar preparado para recebê-lo.
— Está encharcada — disse Michael, ralhando. — Vai gelar.
Pegou no cobertor que tinha à volta dos ombros e embrulhou-a nele. Estava quente do
seu corpo e Truth sorriu-lhe tristemente. Hoje à noite ela e Michael tinham estado no mesmo
lado, contra um mal maior, mas da próxima vez que se encontrassem poderiam ser inimigos.
Michael estendeu o braço e Light juntou-se a ele.
— Eu vou tomar conta de Light e garantir que os seus dons não lhe causarão mais dor.
Posso... Ainda tem tempo para escolher, Truth. Vem conosco?
— Não, Michael — disse Truth suavemente. — Já fiz a minha escolha.
Existia um meio termo entre o caminho de Michael e o de Pilgrim; um caminho que
não era nem preto nem branco, mas que era cinzento como a neblina: o caminho de Thorne,
que agora também era o dela. Um caminho que Pilgrim rejeitara e que Light não podia seguir
por não ser suficientemente forte.
Truth reprimiu lágrimas de perda, sabendo que o tempo a afastaria de Light, até que
no final não teriam nada em comum. Mas Michael podia protegê-la de uma forma que ela não
podia. E Light amava-o. Se aquilo que Truth e Thorne e Michael tinham feito esta noite servia
para alguma coisa, era para garantir a liberdade de fazer tais escolhas. Virou-se.
— É melhor eu ir ver se consigo encontrar os outros — disse ela.
— Então vai com Deus, Truth — disse Michael em voz baixa e ela sabia que estas
palavras não eram ocas: eram uma oração à qual não podia responder.
Truth afastou-se.
Ao contrário da última vez que a casa ardera, a desolação de Shadow’s Gate não era
total desta vez, embora o templo no centro da casa tivesse ficado destruído; se não pelo fogo,
pela água com que os bombeiros a tinham encharcado para salvá-la.
Os carros dos bombeiros afastavam-se em direção à cidade, por isso já não devia haver
perigo. Truth pensou egoisticamente se alguma parte da casa poderia ainda ser habitada;
estava desejosa de tomar um duche quente. Sentia o frio até aos ossos, os seus dedos
dormentes.
Encontrou Donner e Irene juntos. Ele tinha o braço à volta dela. Irene estava sentada
num banquinho que alguém lhe trouxera. Ambos estavam embrulhados em cobertores. As
lágrimas vincavam as suas faces e parecia horrivelmente velha.
— Quem for meu irmão ou irmã na Arte, será meu irmão ou irmã em todas as coisas
— disse Donner com um sorriso maldoso ao ver Truth. — Como está? — acrescentou ele
cuidadosamente.
Tal como Light, Donner ainda usava as vestes do ritual e estava sujo de fuligem.
Parecia que tinha envelhecido dez anos nas últimas horas e os seus olhos castanhos estavam
cansados.
— Estou bem — disse Truth, igualmente cautelosa. — Tia Irene, está bem?
Ajoelhou-se à frente da mulher mais velha, segurando o cobertor à sua volta.
— Estava errado... tudo errado — disse Irene, chorando baixinho. — Ele destruiu
tudo... tudo! Tornou-o horrível...
— Não — disse Truth com firmeza. — Pilgrim não destruiu nada que não possamos
arranjar. Faremos isso juntas. Preciso de si, tia Irene. Preciso que me ensine. Fá-lo-á?
Ela não sabia que ia dizer isso, mas não duvidou que fosse verdade. A arte da magia
era um poder inato ligado à disciplina e ao treino e a ela faltava o treino.
Devagar, o olhar de Irene Avalon afastou-se do seu desgosto interior e focou a cara de
Truth, virada para cima. Com dedos trémulos, estendeu as mãos e acariciou a cara de Truth.
— Sim — disse ela com uma voz mais forte. — Sim, fá-lo-ei.
Truth levantou-se e olhou para Donner.
— Onde estão os outros?
Ele encolheu os ombros.
— Levaram Hereward numa ambulância, e também Julian — a voz dele tornou-se mais
fraca. — Michael e Light estão por aí algures e vi Gareth e Fiona...
Que, Truth tinha a certeza, já estaria bem longe daqui. De todos os que tinham estado
no Círculo esta noite, apenas Pilgrim e talvez Fiona soubessem exatamente o que estavam a
fazer. Ela esperava apenas que Gareth não sofresse muito nas mãos de Fiona, mas o que quer
que acontecesse a Gareth, fora ele que o escolhera.
— Donner, o que aconteceu esta noite? — perguntou Truth, não para confirmar as suas
ideias (ela sabia o que tinha visto), mas para testar as ideias dos outros, agora que tinha que
viver em dois mundos.
Donner fixava Truth e depois desviava os olhos novamente, mas não conseguia olhá-
la nos olhos.
— Eu não sei — disse ele e depois acrescentou — Estávamos todos bastante bêbados.
— Bêbados? — disse Truth espantada.
— Claro! — disse Irene com firmeza, embora não como se acreditasse naquilo. — Foi
assim que o fogo começou. As velas caíram ao chão com as brincadeiras dos rapazes. Se não
estivéssemos todos tão ocupados com o fogo, tenho a certeza que teríamos ouvido Julian a dar
um tiro em Hereward.
— Sim — disse Donner aliviado, rejeitando a realidade em favor da mentira mais
suavizante. — Foi isso.
Truth abanou a cabeça. Imaginou o que os outros tinham realmente visto, e se seriam
realmente responsáveis pelas suas ações quando o ritual começara.
— Eu já volto — disse ela a Donner e a Irene. — Vou ver se encontro alguém que me
diga se é seguro entrarmos lá dentro.
Olhou à volta até encontrar o chefe dos bombeiros junto do carro.
— Sou Truth Jourdemayne — disse ela, apresentando-se — e gostaria imenso de tomar
um duche quente. Existe alguma hipótese de entrar dentro de casa?
— Bem, assim de repente diria que não há problema — disse o chefe dos bombeiros,
empurrando o boné para trás. — Aquilo lá dentro está com bastante mau aspecto, mas acho
que não há nenhum estrago na estrutura. Mas não entre na sala em que o fogo começou, até o
pessoal dos seguros ter feito a sua inspeção.
— Não há problema — disse Truth. — E... obrigada por terem vindo.
— É o nosso trabalho, senhora Jourdemayne — disse ele a sorrir. — Foi uma noite
terrível, não foi?
“Só que não sabe da missa a metade”, disse-lhe Truth silenciosamente.
Quando regressava para dizer aos outros que podiam entrar, ouviu uma buzina a
apitar. Virou-se na direção do som e viu um Datsun castanho, mudando de repente de direção,
com os faróis acesos, enquanto o condutor girava o volante de um lado para o outro.
Dylan.
Truth correu para o carro, que já estava a parar. Dylan saiu de trás do volante quase
sem abrir a porta, muito preocupado.
— Dylan, está tudo bem... o equipamento não ficou estragado e... — começou Truth.
— As caixas que vão para o inferno! — disse Dylan, agarrando-a, só lhe faltando
abaná-la. — E tu?
E ela? Truth pensou no assunto. Tinha feito uma longa viagem para chegar a este
lugar, uma viagem muito longa, que não se podia traduzir em milhas e horas. E que a fizera
encontrar não apenas o pai, mas a si própria.
— Estás bem? — perguntou Dylan. — Voltei a Shadowkill... queria estar aqui... E
depois vi o incêndio...
Ela afastou-se um pouco apenas para enfiar o seu braço no de Dylan.
— Estou bem. Vamos lá para dentro, vamos arranjar um sítio para passares o resto da
noite, mas agora acho que não vais ter sorte nenhuma em encontrar fantasmas. E sabes, por
falar em fantasmas, acho que tenho um ponto de vista totalmente novo em relação à biografia
que vou escrever sobre o pai — disse Truth, levando Dylan para junto dos outros. — Não
como o mundo queria que ele fosse, mas como ele era um homem que, afinal, tinha
descoberto que a perfeição é por vezes a escolha errada.
E chamar-lhe-ia Venus Afflicted.

FIM

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