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Juventude e Música: experiências devocionais além do templo em Lagoa da Conquista

Liniker Henrique Xavier1

RESUMO

O trabalho da juventude dentro das igrejas ultrapassou a fronteira religiosa. As


experiências devocionais dentro dos templos se tornaram fatores de que impulsiona a nova
juventude brasileira para externar o sagrado em forma de trabalho, trabalho este que saiu da
fronteira religiosa e abraçou também o social. Em Pernambuco, um grupo de jovens do bairro
da Ibura, um dos mais marcados pela criminalidade na cidade do Recife, tem levado a
experiência devocional para dentro de uma comunidade carente do local, Lagoa da Conquista.
Crianças e adolescentes de até doze anos vão até o pequeno templo montado pela Assembleia
de Deus para aprender música com os jovens. Muitas destas crianças, inclusive, não estão
inseridas na educação formal e não frequentam a escola, sendo o encontro musical com os
jovens assembleianos a sua principal forma de contato com o universo da educação. O
fenômeno religioso no grupo de jovens da congregação denominada “Vila do Sesi” foi além
das portas do templo e, atravessando a lama e a ausência de saneamento básico, chegou a
“Lagoa da Conquista”.

Palavras-chave: Assembleia de Deus, juventude pentecostal, IEADPE

1. INTRODUÇÃO

O Ibura é o terceiro maior bairro do Recife. O nome, em tupi, remete as muitas fontes de
águas existentes no local, significa "água que arrebenta". O censo de 2010 do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que mais de 50 mil pessoas moram no
local, em um território de 1.125,3 hectares. O bairro sofre com os altos índices de
criminalidade e a falta de saneamento, que colaboram para que o Ibura tenha o menor Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital pernambucana, 0,732. Ao todo, 21 vilas
compõem o bairro, uma delas, a Ilha das Cobras, ficou popularmente conhecida como Vila do
Sesi após a instalação de uma escola do Serviço Social da Indústria.

Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um


levantamento que colocou o Recife no 2º lugar no número de pessoas que habitam em favelas.
Eram mais de 560 mil pessoas à época, número inferior somente a Salvador, a líder, também
1
Bacharel em comunicação social com habilitação em jornalismo pela Faculdade Joaquim Nabuco, no Recife e
mestrando em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco. Contato: linikerxavier@gmail.com
uma capital nordestina, com 607 mil moradores. Vila do Sesi é um dos pontos recifenses que
faz a cidade despontar no ranking. Ali, em 2001, um grupo liderado pelo Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto invadiu uma área com cerca de dez hectares no meio da Vila. O
tempo passou e os barracos de lona preta primeiro deram espaço aos barracos de madeirite.
Mais alguns anos e começaram as construções de alvenaria. Em 2017, dezesseis anos depois e
sem projetos voltados para programa de habitação, Lagoa da Conquista – conhecida também
como Jagatá, nome da comunidade da novela Estrela-Guia, que foi ao ar no ano da ocupação
– permanece crescendo.

O número de moradores é incerto. No início, falava-se em cerca de 500 famílias, e


agora, 16 anos depois, estima-se que este número pode ter subido para 700. O que também
não parou de crescer no local foi a presença das igrejas protestantes. Já são 13 denominações
na localidade. A mais tradicional delas, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus em
Pernambuco (IEADPE), presidida pelo pastor Ailton José Alves, foi a última a instalar-se na
comunidade, em 2012. O atraso na chegada ao local é explicado. A denominação não faz
instalações clandestinas de energia elétrica. Apesar do terreno comprado e do templo em pé, a
parte elétrica teria de ser instalada por meio de ligações clandestinas na rede pública. O
impasse foi resolvido quando uma das vizinhas de fora da comunidade da Lagoa da Conquista
aceitou que a ligação fosse feita a partir do seu contador de energia, de modo que a igreja
possa pagar pelo consumo.

O templo da Assembleia de Deus em Lagoa da Conquista não é administrado como


uma congregação, mas como um ponto de pregação. Ele está ligado a um templo polo, que o
administra. Desse modo, não há um pastor ou presbítero exclusivo para o local. A Assembleia
de Deus em Vila do Sesi, congregação oficial da comunidade, é quem administra o local e a
Campanha Evangelizadora é quem faz o trabalho de busca por novos membros para o lugar.

2. QUEM É O JOVEM BRASILEIRO

A Agenda Juventude Brasil, da Secretaria Nacional da Juventude, divulgou em 2013


uma pesquisa apontando o perfil do jovem brasileiro, que representa um quarto da população
brasileira, ou seja, mais de 51 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos. Os dados mostram que
20% dos jovens têm entre 15 e 17 anos; 33% entre 25 e 29 e, a maior parcela, 47%, tem entre
18 e 24 anos. As mulheres são 50,4% dos jovens, os homens, 49,6% e, a maioria vive nas
grandes cidades, 85% deles. Quanto à religião, 55% são católicos, mas destes, 29% se
consideram praticantes, número próximo da taxa de jovens protestantes, que é de 27%.
Apenas 1% consideram-se ateus ou agnósticos e 15% acreditam em Deus, mas não seguem
religião alguma. Os kardecistas são 2% e as outras religiões somadas, 3%.

A pesquisa também perguntou qual é o principal tema que eles, os jovens, devem
discutir com os pais ou responsáveis. A educação apareceu em primeiro lugar, com 45%,
seguida da violência, com 32%; drogas, 31% e desigualdade e pobreza com 27%. A religião
aparece em quinto lugar, com 24%. Mais da metade dos jovens brasileiros, 51%, já perdeu um
amigo ou familiar de forma violenta. Ainda de acordo com os dados, a espiritualidade é o
valor considerado mais importante para os jovens, somando 40%. O respeito às diferenças
aparece em segundo lugar, com 39%. A religiosidade ainda aparece com 10%.

3. AS CAMPANHAS EVANGELIZADORAS DA IEADPE

As campanhas evangelizadoras formam um movimento de evangelização. É um


grande grupo que mobiliza toda a congregação, especialmente os jovens, para a realização de
trabalhos que tem por objetivo a conversão de pessoas não evangélicas para que elas se
tornem novos membros da igreja. A principal frente de trabalho das campanhas
evangelizadores é o trabalho realizado no domingo à tarde. Em todo o estado de Pernambuco,
todos os domingos, das 14h às 16h, um verdadeiro exército de protestantes sai às ruas para
fazer visitas e entregar literaturas – pequenos folhetos com mensagens bíblicas. Cada templo
da IEADPE possui uma campanha evangelizadora e, cada campanha, possui um líder, o
dirigente, subordinado a direção da igreja e com a responsabilidade de cuidar dos trabalhos e
prestar contas ao pastor que coordena a área.

Além do trabalho do evangelismo dominical, carro-chefe da campanha, há ainda o


evangelismo noturno, feito uma vez na semana, o evangelismo no trânsito, nos hospitais, nos
presídios, nas escolas e os cultos relâmpagos, realizados na rua, com um caixa de som portátil
e um microfone. Todos estes trabalhos ficam a cargo das campanhas que, apesar de contarem
com a presença de todos os membros da igreja – de crianças a idosos –, tem a sua força na
juventude, isto, inclusive, desde a sua origem.

A primeira campanha evangelizadora do estado de Pernambuco – e do Brasil – nasceu


em 1947, no bairro de Casa Amarela. Os jovens daquela congregação da Assembleia de Deus
estavam insatisfeitos por suas tardes de domingo vazias. Pela manhã, eles frequentavam a
Escola Dominical e, à noite, o culto evangelístico. Liderados pela irmã Edite Teotônia, estes
jovens tiveram então a ideia de, durante a tarde, sair às ruas visitando os enfermos e
anunciando o evangelho. O pedido foi levado para o pastor José Bezerra, à época o presidente
da IEADPE, que aceitou a proposta e designou sua esposa, a irmã Afra, para dirigir aquele
grupo de jovens. Na primeira tarde de domingo em que saíram, duas pessoas, mãe e filha, se
converteram e passaram a integrar a Assembleia de Deus. O trabalho continuou crescendo e
deu um importante passo em 1978, quando passou a alcançar os presidiários.

Hoje, os jovens da IEADPE administram uma série de trabalhos por intermédio da


Campanha Evangelizadora. Uma vez por semana eles realizam o culto denominado Oração
para Mocidade, onde o dirigente da campanha dirige o trabalho repartindo as oportunidades
de louvores, saudações e ministração da palavra entre os jovens da igreja. Um domingo a
noite por mês a Assembleia de Deus pernambucana dedica o seu principal culto para os
jovens, é o Culto da Mocidade, onde a programação é desenvolvida pela campanha e
direcionada a eles. Em um dos sábados por mês também é realizado o Culto Jovem, onde toda
a liturgia, inclusive a direção do culto, é coordenada pela mocidade da igreja.

As experiências da juventude pentecostal assembleiana dentro do templo ganharam


proporção, trazendo a vivência devocional para fora das paredes da igreja. Em Vila do Sesi,
um grupo de jovens músicos que tocam na orquestra do bairro, a partir do incentivo da
Campanha Evangelizadora, passaram a ministrar aulas de música para as crianças de Lagoa
da Conquista. O instrumento utilizado é a flauta doce. A igreja adquiriu, por meio de doações,
30 flautas para as crianças da comunidade.

4. A JUVENTUDE DA VILA DO SESI EM LAGOA DA CONQUISTA

Todos os domingos os jovens da congregação da IEADPE em Vila do Sesi participam


da Escola Dominical no templo oficial da igreja. Eles assistem à aula das 9h30 às 11h30 da
manhã e, passado este horário, seguem para o ponto de pregação em Lagoa da Conquista. Às
11h45, cerca de 30 crianças dos 5 aos 12 anos de idade já estão os esperando com as flautas
para aprender música. Boa parte destas crianças não sabe ler ou escrever e não tem acesso a
educação formal. Os jovens de Vila do Sesi são a única ponte entre a educação e os pequenos
moradores da favela em Jagatá que, mesmo sem reconhecer os sinais ortográficos, conseguem
ler as partituras.

Religião e educação estão intimamente ligadas no Brasil desde muito tempo. Para o
sociólogo francês Forquin (1993), a educação supõe a comunicação, a transmissão e a
aquisição de alguma coisa. Desse modo, ao falar de educação, é possível descentralizar o
processo dos espaços formais, estabelecendo uma conexão com outros fatores culturais, entre
eles a religião, que é adotada enquanto território educacional:
Quer se tome a palavra ‘educação’ no sentido amplo, de formação e socialização do
indivíduo, quer se a restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário
reconhecer que, se toda educação é sempre educação de alguém por alguém, ela
supõe sempre também, necessariamente, a comunicação, a transmissão, a aquisição
de alguma coisa: conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que
constituem o que se chama precisamente de ‘conteúdo’ da educação (Forquin, 1993,
p.10).

Desta forma, apesar de criarmos o eixo escola-educação quase que automaticamente


quando falamos de ensino, precisamos considerar também os demais territórios educacionais
que adotam diferentes formações de eixo. Sobre este deslocamento, Brandão afirma:

Tal como a educação, a religião é um território de trocas de bens, de serviços e de


significados entre as pessoas. Tal como as da educação, as agências culturais de
trabalho religioso envolvem hierarquias, distribuição desigual do poder, inclusões e
exclusões, rotinas, programas de formação seriada de pessoal e diferentes estilos de
trabalhos cotidianos (Brandão, 2002, p.152).

A experiência devocional que jovens da IEADPE tiveram em Vila do Sesi é o motor


do projeto musical em Lagoa da Conquista. O trabalho faz parte do Evangelismo Infantil
ligado a campanha evangelizadora. O principal propósito é levar o devocional, o divino e o
transcendente aos pequenos moradores da comunidade, mas, os próprios jovens chegaram ao
entendimento de que a entrada dos trabalhos no local não seria eficiente somente a partir dos
métodos utilizados no evangelismo com adultos. Após observar a rotina das crianças, ficou
constatado não somente uma necessidade espiritual, mas outro elenco de questões que
precisava ser desenvolvido. A educação surgiu no topo destas necessidades.

A partir dos encontros, os pequenos alunos tiveram acesso à alfabetização por meio da
leitura de textos bíblicos, que sempre são feitos antes do início da aula. Após constatar os
graves problemas relacionados a falta de saneamento, foi necessário também que os jovens
trabalhassem a questão da higiene pessoal e o processo de higienização dos instrumentos de
sopro. Noções de responsabilidade foram repassadas aos alunos quando eles se tornaram
portadores e cuidadores das próprias flautas que utilizavam e, a cada encontro dominical, o
trabalho foi sendo remodelado para atender as demandas identificadas, como a escolha de
músicas com letras que tratassem da importância de uma cultura de paz.

O conceito de educação trabalho por Forquin aborda exatamente a perspectiva


utilizada pelos jovens pentecostais da Vila do Sesi. Apesar de estar fora do ambiente formal, a
modalidade trabalhada se encaixa perfeitamente na proposta educacional, já que há
comunicação e transmissão de conhecimentos e valores. Sobre a questão da educação formal
e não-formal, Gadotti (2005) afirma:
A educação formal tem objetivos claros e específicos e é representada
principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz
educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e
burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos
ministérios da educação. A educação não formal é mais difusa, menos hierárquica e
menos burocrática. Os programas de educação não-formal não precisam
necessariamente seguir um sistema sequencial e hierárquico de “progressão”. Podem
ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem”.
(p.02).

5. CONCLUSÃO

A experiência da juventude pentecostal fora dos templos ganhou uma proporção além
do devocional, mas também social. Com a música cristã utilizada como instrumento de
mudança na vida dos moradores da Lagoa da Conquista, o principal objetivo dos encontros
com as crianças passou a ser, por meio da educação não-formal, tentar diminuir a influência e
a prática da educação informal. Quando tratamos aqui de educação informal, falamos do
conjunto de experiências aprendidas de forma até mesmo involuntária, por assimilação de
práticas e costumes de acordo com o meio social em que se vive. Não é incomum, por
exemplo, encontrar crianças e adolescentes fazendo uso de entorpecentes na comunidade de
Jagatá.

O encontro com as crianças serve também como um combate ao que, informalmente, é


repassado como padrão de vida para os pequenos da comunidade. Por meio destes encontros,
muitos dos pais dos alunos tiveram acesso ao templo da IEADPE em Lagoa da Conquista.
Alguns se converteram ao evangelho, outros abandonaram as drogas e alguns despertaram
para a importância do investimento na educação dos seus filhos.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Israel. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.

BRANDÃO, C.R. A educação como cultura. Campinas: Mercado de Letras, 2002.

CONDE, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: CPAD,
2000.

FORQUIN, J.C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento


escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GADOTTI, Moacir. A Questão da Educação formal/não formal. Sion: IDE, 2005.

OMENA, Eraldo. Síntese Histórica da Assembléia de Deus em Pernambuco. Recife. 1993.

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