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Revista Opinión Jurídica Universidad de Medellín

O avesso do sujeito:
provocações de foucault para pensar os direitos humanos*
Gabriela Maia Rebouças**
Recibido: agosto de 2014
Evaluado: abril de 2015
Aprobado: agosto de 2015

RESUMO
Este ensaio pretende discutir os modos de subjetivação propostos
por Michel Foucault e os direitos humanos. Tomando as
implicações Foucaultianas do cuidado de si e de uma estilização
da existência na constituição de nossas vidas, é possível substituir
o apelo ao universal e ao essencial por formas mais dissonantes de
subjetivação, significativamente mais singulares. O corpus deste
ensaio concentrou-se num referencial bibliográfico que contempla
obras de Foucault e sobre o autor, sobre direitos humanos, sem
perder de vista as implicações práticas e as experiências do campo
jurídico. Mais ainda, a percepção das insuficiências da teoria
tradicional dos direitos humanos de encarar as diferenciações da
subjetividade e de promover a autonomia e a emancipação dos
sujeitos evidencia o motivo pelo qual buscamos elementos novos
da subjetividade na filosofia de Foucault e em uma teoria crítica
dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos humanos, Michel Foucault, subjetividades,
teoria crítica.

*
Reflexões que partem dos estudos da tese de doutorado, publicada como livro pela Lumen Juris em 2012, sob
o título “Tramas entre subjetividades e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os sistemas
de resolução de conflitos”, com as discussões dos projetos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa no CNPq
“Acesso à justiça, direitos humanos e resolução de conflitos”, nos anos de 2012/2014, e as orientações junto
ao Mestrado em Direitos Humanos da UNIT/SE, Brasil.
**
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa Acesso à justiça,
direitos humanos e resolução e conflitos, cadastrado no CNPq. Atualmente é docente do Mestrado em Direitos
Humanos da Universidade Tiradentes (UNIT/SE) e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pós-Graduação
da FITS/AL. Brasil. Endereço eletrônico: gabrielamaiar@gmail.com; gabriela.maia@pq.cnpq.br

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El reverso del sujeto:


provocaciones de Foucault para pensar en derechos humanos

RESUMEN
Este ensayo pretende discutir los modos de subjetivación propues-
tos por Michel Foucault y los derechos humanos. Tomando esas
implicaciones Faucaultianas del cuidado de sí mismo y de una
estilización de la existencia de la constitución en nuestras vidas,
es posible substituir el llamado a lo universal y lo esencial por
formas más disonantes de subjetivación, significativamente más
singulares. Este ensayo se enfocó en un referencial bibliográfico
que contempla obras de Foucault y obras sobre el autor, sobre
derechos humanos, sin perder de vista las implicaciones practicas y
las experiencias del campo jurídico. Sin embargo, la percepción de
las insuficiencias de la teoría tradicional de los derechos humanos
de encarar las diferencias de la subjetividad y de promover la auto-
nomía y la emancipación de los sujetos, evidencia el motivo por el
cual buscamos elementos nuevos de la subjetividad en la filosofía
de Foucault y en una teoría critica de los derechos humanos.
Palabras clave: Derechos humanos, Michel Foucault, subjetividades,
teoría critica.

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INTRODUÇÃO: EM TORNO DA PROBLEMÁTICA DO se sujeito na figura do louco, do criminoso


SUJEITO e do sujeito de desejo.

Este ensaio foi construído a partir dos Não há outro caminho para a questão: se
estudos sobre subjetividades e as impli- nos incomoda a hiperinflação de discur-
cações para os direitos humanos. O foco sos sobre direitos humanos, esvaziados,
não é a subjetividade do intérprete ou sobretudo, da capacidade de transfor-
da interpretação. A pergunta principal é: mação social e emancipação dos sujeitos
qual a concepção de sujeito/subjetividade envolvidos, negando-se nas condições
a partir da qual os direitos humanos se concretas de existência, à maior parte
estruturam? Os obstáculos atuais na luta dos sujeitos, qualquer identificação com
por direitos humanos apontam para a ne- elementos deste discurso de direitos e de
cessidade de pensar outras concepções condição humana, é preciso enfrentar os
de subjetividade, empreendida aqui com fundamentos deste paradoxo e problema-
base nas provocações foucaultianas que tizar de que sujeito se fala e que sujeito
desnudaram esse sujeito em seus interdi- se deseja constituir quando se trata de
tos: loucura, delinquência e sexualidade. enunciar direitos humanos.

Há, portanto, duas linhas que se cruzam Além de uma multiplicação dissonante
neste ensaio, transversalmente alinha- de discursos sobre direitos humanos, as
vadas pela questão do sujeito universal: dificuldades de lidar com um campo de
De um lado, a legitimação filosófica dos direitos que se realiza simultaneamente
direitos humanos atrelada à modernida- na ordem internacional e nacional faz
de, concentrando-se na retórica de uma com que, pari passu, seja incrementada
imagem de homem superior e racional que a teorização dos direitos fundamentais,
sufoca formas dissonantes de subjetivida- acentuando os critérios de racionalidade
des e legitima uma prática hegemônica e sistema, na configuração de uma ordem
de vida, (neo)liberal e eurocêntrica. Por nacional alinhada a uma ordem ocidenta-
outro lado, as provocações de Foucault lizada em proporções mundiais.
que, apontando o sujeito universal como
um demiurgo, ‘um rosto de areia na orla Com efeito, concentrar-se na produção ju-
do tempo’1, um discurso recente próprio rídica a partir da concretização de direitos
a uma episteme em vias de cisão, apresenta pelos tribunais mundo afora tem relegado
em suas várias pesquisas os avessos des- a discussão dos direitos humanos para
1
Esta metáfora encerra a obra ‘As palavras e as
fora das arenas da teoria e filosofia jurídi-
coisas’ (Foucault, 1981, p. 404). Deve-se concordar ca, tendo em vista um certo consenso em
com Merquior (1985) que esta frase final tem um reconhecer que a teorização dos direitos
tom quase apocalíptico, meio vidente, exagerado.
Exatamente por isso, talvez, tenha sido tão divul- fundamentais atenderia a apelos mais
gada, seja tão significativa de sua investida contra pragmáticos de concretização de direitos,
o homem moderno, ao mesmo tempo construído
e objeto dos saberes que se nomeiam ciências
ainda que limitados pelas contingências
humanas. dos Estados (necessariamente alinhados
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a um mercado global, em tempos de que não faz sentido desconectado deste


neoliberalismo). conhecimento, guardando preocupações
estéticas, críticas e constituindo, a um só
Os desdobramentos históricos de uma tempo, compromissos com a realidade e
fragmentação entre direitos humanos com a invenção do novo. “O ensaio não
e direitos fundamentais, vinculando os é um gênero literário, mas é um ‘gênero
primeiros a uma positivação internacional do intervalo’ entre o ficcional e o não-
e os segundos a uma positivação nacional ficcional, é um gênero da passagem” (Pinto,
(e garantida constitucionalmente) distan- 1998, p. 89). A propriedade de se pensar
cia ainda mais a teorização dos direitos pelo ensaio não é uma escolha aleatória,
humanos das lutas locais de emancipação eletiva, mas uma forma de empreender
e construção de novas formas de vida. uma dobra sobre si, e de se assumir na
franqueza do dito: falar de sujeitos e sub-
Portanto, desde seu nascedouro a teo- jetividades é falar de mim mesma, sujeito
rização dos direitos humanos precisa que sou, não de um objeto. Falar a partir
enfrentar sérios problemas relativos à de Foucault é assumir uma preocupação
normatividade e ao campo de ação, na- com o status da fala, com a estética da fala
cional ou internacional. Mas não é só: pre- e com a invenção do pensamento.
cisa enfrentar também o distanciamento
concreto do seu potencial emancipador As preocupações em torno dos atores
e criativo e se perguntar quais sujeitos -aqui pensados como subjetividades- de-
protege, e em que medida consegue nunciam os paradoxos de uma concepção
garantir uma vida digna, empoderando e posta de direitos humanos: moderna e
viabilizando subjetividades. liberal, esvaziada de seu potencial eman-
cipador e criativo (ou seja, humano!) e
O ensaio é a forma metodológica (Re- reduzida aos direitos fundamentais, para
bouças, 2008) para este texto no campo explorar outras cartografias na cons-
da filosofia e teoria do direito. Partindo trução de uma legitimação para o direito
de Adorno (1986) e de Foucault2 (1984A) que repense, reinvente e liberte potenciais
compreende-se o ensaio como uma ati- e práticas humanitárias adormecidas. A
tude, uma verve orientada para a crítica, aposta é explorar Foucault para refletir
para a perspectiva de um sujeito, de um as insuficiências deste sujeito universal
autor que lança mão de suas impressões como fundamento dos direitos humanos
e desafia o conhecimento dado, mas e para pensar, diferentemente, a partir de
subjetividades plurais e nômades.
2
«L’ «essai» – qu’il faut entendre comme épreuve
modificatrice de soi-même dans le jeu de la vérité
et non comme appropriation simplificatrice d’autrui
1. PROVOCAÇÕES DE FOUCAULT: A
à des fins de communication – est le corps vivant CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E SEU AVESSO
de la philosophie, si du moins celle-ci est encore
maintenant ce qu’elle était autrefois, c’est-à-dire
une « ascèse», un exercice de soi, dans la pensée»
É somente no curso L’Herméneutique du sujet
(Foucault, 1984A, p.16). (Foucault, 2001A), já no início dos anos
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oitenta, que Foucault coloca o problema tada no espaço social de uma moral que
da constituição do sujeito literalmente a associa ao pecado e ao erro, é objetiva
em evidência – no título. Mas a questão e positivamente identificada como uma
já permeava toda sua obra, para além das patologia.
relações de poder e controle. Ao olhar
novamente para esses escritos é possível O controle do indivíduo louco se insere no
enxergar que, afinal, os sujeitos estão lá, contexto mais ampliado do regramento
nas relações de poder, nos corpos disci- de uma sociedade, historicamente dada,
plinados, nos gestos da loucura, vigiando cuja liberdade e razão fazem parte de uma
e punindo. Um escrito de 1982 sobre as natureza do homem, não de sua ética,
tecnologias de si3 torna mais evidente como se pode detectar na sociedade
esta questão: “Perhaps I’ve insisted too much ocidental clássica. “A loucura não pode
in the technology of domination and power. I am ser encontrada no estado selvagem. A
more and more interested in the interaction bet- loucura só existe em uma sociedade, ela
ween oneself and others and in the technologies não existe fora das normas de sensibilida-
of individual domination, the history of how an de que a isolam e das formas de repulsa
individual acts upon himself, in the technology que a excluem ou a capturam” (Foucault,
of self” (Foucault, 1988, p.19). 2006, p. 163).

Por outro lado, a obra de Foucault está A história daria conta de várias formas de
completamente espiralada, e a crítica à loucura, não necessariamente situadas
constituição do sujeito moderno inicia na episteme de uma doença mental, já que
pela exploração arqueológica da loucu- tanto na Idade Média quanto no Renasci-
ra. O gesto da loucura é captado pelas mento, a loucura está presente de forma
conexões historicamente situadas com estética ou cotidiana, como manifestação
o determinismo de uma razão natural, e revelação (do bobo da corte à loucura
mas que, com muita ambiguidade, impõe lúcida de Lady Macbeth de Shakespeare).
como processo transformador a punição Em seguida, atravessa um período de
moral, o castigo. A loucura, embora tra- silêncio, de exclusão, com a internação
3
He must understand that there are four major types
no século XVII, para no século XVIII ser a
of these “technologies,” each a matrix of practical loucura reduzida a um fenômeno natural,
reason: “(1) technologies of production, which per- ligada à verdade do mundo, num ato de
mit us to produce, transform, or manipulate things;
(2) technologies of sign systems, which permit us posse positivista (Foucault, 2006, p. 163).
to use signs, meanings, symbols, or signification;
(3) technologies of power, which determine the
conduct of individuals and submit them to certain
Assim, a História da loucura (Foucault, 2005)
ends or domination, an objectivizing of the subject; é a arqueologia, a escavação dos arquivos
(4) technologies of the self, which permit individuals que permitem visualizar e perceber o sta-
to effect by their own means or with the help of
others a certain number of operations on their own tus, a mudança e o espaço de inscrição da
bodies and souls, thoughts, conduct, and way of loucura na sociedade ocidental. Perceber
being, so as to transform themselves in order to
attain a certain state of happiness, purity, wisdom,
as rupturas líricas e aproximações patoló-
perfection, or immortality” (Foucault, 1988, p.18). gicas de uma ação, antropologicamente
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falando, que confronta a razão, em seu Mas não basta definir o sujeito pelo binô-
nascedouro, como razão moderna. E mio normal/anormal, são/louco. É preciso
aproximações que permitem, a um só avançar sobre o sujeito que, embora não
tempo, inscrever esta ação no espaço da seja louco, não se submete às interdições
punição moral, do castigo, da disciplina, normativas da maneira desejada pelas
da normalização e do controle. Loucura instituições e dispositivos de poder. É
domesticada: identidade, o ser mesmo preciso definir para o sujeito outro aves-
da razão. so – o criminoso, e constituir sobre ele
não apenas controle e disciplina, mas
O itinerário inscrito na História da loucura sua própria positividade e interdição. É
(Foucault, 2005) ressalta a construção dos preciso vigiar e punir.
limites de uma subjetividade -aquela mo-
derna- e das profundezas desta mesma Uma pausa epistemológica é necessária:
subjetividade, ligada a uma tradição a espiral que está sendo construída não
filosófica, religiosa e moral. O cérebro tem nenhuma pretensão de ser uma sínte-
como o lugar da razão é também o lugar se ou resumo da obra de Foucault, e uma
da consciência, do pecado, da falta, do perspectiva muito mais aprofundada da
ilícito. E lá, onde falta razão, reforça-se a constituição do sujeito em Foucault pode
punição. Mas a falta de razão não isen- ser encontrada em Fonseca (1995) ou
taria o sujeito de seus pecados? É de um ainda, nas implicações desta constituição
misto, portanto, de razão e desrazão que para o direito em Rebouças (2012). O que
a loucura vai ser construída. Ela não pode se deseja, por agora, é aproveitar as in-
em todo o seu significado ser a ausência tensas reflexões de Foucault para pensar
completa da razão. Ela precisa ser, de no sujeito e mais além, pensar no sujeito
algum modo, conectada e avaliada pela que fundamenta os direitos humanos.
razão, precisa preservar a possibilidade
de julgamento externo. O sujeito louco, Logo no início de Vigiar e Punir, Foucault
que oscila entre a inocência e a monstruo- explicita como objetivo da obra “uma
sidade, entre a desrazão e a demência, genealogia5 do atual complexo científi-
vai ser constituído neste cruzamento co Judiciário onde o poder de punir se
paradoxal4.
cionam a sua existência, suas escolhas subjetivas
4
“Um homem corpo, biológico, dissecado, talhado, e possibilidades de ser. Ela se inscreve no espaço
meticulosamente medido, de seus vapores à suas de normalização do normal, do indivíduo saudável
entranhas, descrito pelo olhar médico, vigiado e mantém, pelo simbólico do olhar, do vigia e da
pelo olhar médico, punido pelo olhar médico. Um verticalização produzida pelo saber, uma estreita
homem alma, espírito, desrazão, loucura, degene- relação com a normalização da loucura” (Rebouças,
rescência, tratado pela terapêutica dos sentidos, da 2012, p. 42).
dor, dos banhos e também das correções morais, 5
A genealogia parte de uma descrição de como os
da penitência, do flagelo, da exclusão e do silêncio. saberes surgem e se relacionam na configuração
A clínica médica consagra, assim, a possibilidade de uma episteme, também as implicações de poder
de se construir um discurso científico sobre o que tais saberes produzem. A genealogia repudia
sujeito, objetificante de sua natureza, mas cujo as metanarrativas, a ordem do discurso, para fazer
domínio prende-o a um conjunto de determinações emergir a singularidade dos acontecimentos e das
morais, de julgamentos e de interdições que condi- relações de poder (Revel, 2005, pp. 52-53).

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apóia, recebe suas justificações e suas se passe na clausura, é preciso remodelar


regras, estende seus efeitos e mascara esse indivíduo em corpo dócil e adaptado
sua exorbitante singularidade” (Foucault, ao sistema: um corpo que, em primeiro
2004A, p. 23). lugar, se submete ao regime de verdade
que lhe obriga a confessar, a expor sua
Vigiar e punir está dividido em quatro par- alma, sua intenção, dolo e culpa; depois,
tes. O suplício, a primeira, ressalta o ritual um corpo remodelado para o trabalho,
e o corpo do condenado. Em seguida a trabalho braçal, físico, subalterno; ainda,
punição, compreendendo a mitigação das um corpo que reza, busca a salvação;
penas e a punição generalizada. A terceira enfim monástico, celibatário, reprimido
parte concentra-se na disciplina, é a maior em sua sexualidade, um corpo esvaziado,
e mais detalhada: estão em evidência os portanto, em sua potência de liberdade
corpos dóceis, adestrados, a vigilância e domesticado, até as últimas entranhas,
e o panoptismo. A quarta e última parte pelo e para o sistema e suas engrenagens.
é dedicada à Prisão, como instituição
completa e austera, explicitando a relação O corpo que é supliciado, a alma
ente ilegalidade e delinquência e guar- cujas representações são mani-
puladas, o corpo que é treinado;
dando uma observação especial sobre o temos aí três séries de elementos
papel do carcerário. que caracterizam os três disposi-
tivos que se defrontam na última
Foucault então percebe que, de um pa- metade do século X V III. Não
drão de punição que significava o suplício podemos reduzi-los nem a teorias
de direito (se bem que eles lhe
do corpo, cruel e sanguinolento, para uma
sejam paralelos) nem identificá-
privação da liberdade, medida e limitada los a aparelhos ou instituições (se
no tempo, há mais do que um movimento bem que se apóiem sobre estes),
de humanização das penas ou do sistema nem fazê-los derivar de escolhas
penal. O que se pretende, não é mais morais (se bem que nelas en-
contrem eles suas justificações).
expiar a culpa pelo flagelo da dor, punir
São modalidades de acordo com
simplesmente, mas corrigir e vigiar. “O as quais se exerce o poder de
essencial da pena que nós, juízes, infli- punir. Três tecnologias de poder
gimos não creiais que consista em punir; (Foucault, 2004A, p. 106).
o essencial é procurar corrigir, reeducar,
‘curar’” (Foucault, 2004A, p. 10). As proximidades com as demais insti-
tuições de formação e cura são inevi-
No seio das instituições panópticas, os táveis, e na microfísica6 do poder, os
dispositivos disciplinares recompõem o dispositivos de controle são cambiáveis:
corpo numa nova mecânica do poder: não punir, curar, educar, salvar, produzir
para exercer sobre eles dominação, pura e 6
É sempre bom lembrar ao leitor não familiarizado
simples, mas para sobre os corpos exercer de Foucault que este não é um livro seu, mas uma
coletânea de textos organizada por Roberto Ma-
poder e com isso, controlar os indivíduos. chado que só tem edição em língua portuguesa.
Importa não simplesmente que o tempo Cf. Foucault (1979).

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torna aterrorizantemente semelhantes A história da sexualidade nos três volu-


instituições como escola, hospitais, mes publicados é mais do que a tentativa
mosteiros, prisões e fábricas. A prática de historiografar o conjunto de práticas
disciplinar atravessa toda a sociedade. e escolhas morais em torno do sexo
empreendido pelo ocidente. Em seu
A prisão e seus desdobramentos não primeiro volume, Foucault percebe mais
descuidam de, independente de domes- uma vez que ao tempo em que se cons-
ticar ‘para o sistema’, tatuar os indivíduos tituiu a prisão e o manicômio como uma
com a marca indelével do criminoso, instituição disciplinar, uma moral sexual,
esse avesso do sujeito de direito, esse uma econômica e higiênica prescrição
contra-lei, desordeiro, a pedir a correção, pretendeu distinguir quais escolhas deve-
o castigo. E se a loucura, enquanto des- riam constituir o campo da normalidade,
razão e doença, permite o contorno do controlando o desejo ao limite do produ-
sujeito racional e são, a delinquência tivo: nem a ausência nem o exagero eram
reforça as instituições jurídicas, a lei produtivos quando se tratava de desejo.
como interdição, a negatividade do mal Mas, diferente das demais interdições,
para constituir a virtude ética do homem que tinham suas instituições centrais, a
de bem. O sujeito moderno está quase sexualidade deveria ser controlada a um
completo: normal7, racional, livre, porque só tempo por todas elas e, sobretudo,
pode escolher, necessitando apenas res- pelo próprio indivíduo. E não somente do
saltar sua virtude, moderando os desejos ponto de vista do corpo, mas fundamen-
e submetendo sua natureza ao controle talmente do ponto de vista da alma. Seria
moral. O alvo agora é a sexualidade8. o caso de “proporcionar uma sexualidade
economicamente útil e politicamente
conservadora?”9.
7
A norma não se reduz à lei, mas se soma à natu-
reza, funde arbitrário e necessário, prescrição e Por isso, os discursos sobre a sexuali-
constituição. O normal junto ao anormal constitui dade10 não estavam dirigidos a todos,
um campo de normalidade, e somente dentro indistintamente, pretendiam distinguir
deste campo podem se diferenciar. Então, quanto
mais o discurso sobre esta subjetividade padrão com certa estirpe a burguesia. Foucault
do homem moderno se mostra neutro, natural, identifica um corte de classe na consti-
necessário, correto, mais contraste produz com as
desigualdades reais, sufocando, pelos dois lados,
as possibilidades de diferenciação do sujeito. A
noção de norma que Foucault usa não é aquela do 9
No original : « bréf aménager une sexualité
juízo hipotético, do dever-ser. O normal delineia é c o n o m i q u e m e nt u t i l e e t p o l i t i q u e m e nt
reciprocamente o patológico. Para uma abordagem conservatrice? » (Foucault, 1976, p. 51).
das perspectivas de Foucault sobre o direito, Cf. 10
Sobre a sexualidade: « C’est le nom qu’on peut donner
Fonseca (2002) y Ewald (2000). à un dispositif historique : non pas réalité d’en dessous sur
8
“O empreendimento de uma sociedade de controle laquelle on exercerait des prises difficiles, mais grand réseau
sobre os indivíduos, sobre as populações não seria de surface où la stimulation des corps, l’intensification
tão bem sucedido se não se pudesse encerrar, no des plaisirs, l’incitation renforcement des contrôles et des
cotidiano de qualquer indivíduo, e não só do louco résistances, s’enchaînet les avec les autres, selon quelques
ou do delinquente, o elo permanente com a culpa grandes estratégies de savoir et de pouvoir » (Foucault,
e a normalização” (Rebouças, 2012, p. 51). 1976, p. 139).

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tuição de uma moral sexual, tanto para As conclusões deste primeiro volume
caracterizar positivamente a burguesia, da história da sexualidade – La Volonté
a elite, quanto para resgatar uma certa de Savoir (Foucault, 1976), obrigam Fou-
superioridade, uma nobreza, em relação cault a rever seu projeto e a buscar, nos
às massas. Mas os dispositivos de sexua- volumes seguintes, que só saíram oito
lidade, que incluem desde a histerização anos depois, a compreensão da criação
do corpo da mulher, a pedagogização do deste dispositivo da sexualidade, onde a
sexo das crianças, a socialização das con- confissão da verdade implica na renúncia
dutas de procriação até a psiquiatrização do sujeito.
do prazer perverso tem a função também
de constituir um regime de verdade sobre L’Usage des Plaisirs (Foucault, 1984A) e Le
os indivíduos e obrigá-los a expor suas Souci de Soi (1984B) pretendem retomar às
subjetividades ao controle dos padrões práticas antigas para perceber a constitui-
de normalidade. ção do sujeito num quadro mais geral de
práticas que, com implicações éticas e po-
Foucault vai tornando claro que o poder líticas, prestavam-se a empoderar os su-
se expressava não apenas como poder jeitos e modelar subjetividades, antes que
disciplinar, mas também como biopoder: a racionalidade moderna e as interdições
não apenas o controle pelo não, mas tam- cristãs tivessem dominado na criação
bém o controle pelo sim, interdição versus dos dispositivos da sexualidade tal qual
incitação. Para atingir as populações, não vistos no primeiro volume. Já estamos nos
apenas os indivíduos, o biopoder elege primeiros anos da década de oitenta do
não a norma jurídica como instrumento século passado, que correspondem aos
de controle, mas a normalidade. Com o últimos de vida de Foucault. Os últimos
surgimento do biopoder – poder sobre a cursos proferidos no Collège de France tam-
vida, não mais sobre o nascimento, mas bém enfrentam esta temática, sobretudo
sobre a natalidade; não mais sobre a L’Herméneutique du sujet.
doença, mas sobre a saúde; a prevenção,
antes da cura, os processos de subjeti- A subjetividade é tomada, a partir de Fou-
vação ganham proporções globais, em cault, “como a maneira pela qual o sujeito
busca de padrões de normalização. E a faz a experiência de si mesmo em um
sexualidade pode ser este elo essencial jogo de verdade, no qual ele se relaciona
que nos liga a uma natureza, instintiva, consigo mesmo” (Foucault, 2004C, p. 236).
corpórea e animal, alojada na interiorida- Portanto, situada no campo da ação, do
de da alma. A multiplicação de discursos cuidado de si, no campo da experiência.
sobre a sexualidade faz do sujeito seu
próprio vigia e carrasco, seu médico e A emergência do sujeito ganha a di-
líder religioso. No final das contas, a partir mensão de uma estética da existência,
do diagnóstico de Foucault, o dispositivo quando em relação ao uso dos prazeres
da sexualidade nos condena a papéis na Antiguidade grega, ou um cuidado
desejáveis e produtivos. de si, no período romano. Nesta pers-
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pectiva, Foucault tenta resgatar formas dos valores de uma classe, a burguesia,
de subjetivação antes da hegemonia de é preciso investigar os efeitos de situa-lo
um sujeito universal, antes que a razão nos fundamentos dos direitos humanos
cartesiana pudesse separar a razão do e enfrentar os paradoxos de um discur-
próprio sujeito para defini-lo. so sempre mais e mais inflacionado de
direitos que se realiza cada vez menos
Neste ponto, as práticas gregas antigas para as massas.
mostram que o conhecimento de si é uma
parte de uma experiência maior que é a 2. DIREITOS HUMANOS E SUBJETIVIDADE(S):
espiritualidade, ainda entendida como ENTRE O POSTO E A (RE)INVENÇÃO
sabedoria e prática de uma vida boa. E o
cuidado de si não apenas prepara o indi- Neste tópico, o que estará em jogo é a ar-
víduo para governar, para a vida pública, ticulação que o direito vai engendrar com
mas para a vida toda, a velhice, a morte, esta perspectiva solipsista da subjetivi-
a completude. dade na construção da categoria dos di-
reitos humanos. Apesar de se vislumbrar
O que chama a atenção de Foucault, es- a modificação conceitual entre direitos
pecialmente, é que os registros filosóficos subjetivos (entendidos como naturais e/
da antiguidade não se apressam em eleger ou racionais), direitos humanos e direitos
um critério que possa definir o sujeito. fundamentais, o que permanece como
O que ele encontra é um apanhado de fio condutor é a perspectiva filosófica de
práticas, exercícios com o corpo e com a uma subjetividade que confere ao homem
alma, com os sentidos e com a razão, do uma posição não só singular, como tam-
sujeito com os outros e com ele mesmo. bém superior na ordem das coisas, cujo
Não havia um modelo de subjetividade substrato é tão forte que permite, a partir
que definisse o sujeito, mas modos de deste homem, supor conteúdos da razão
viver que implicavam em subjetivações ou da natureza humana, e daí derivar
e subjetividades diferentes. Ou seja, normas e conteúdos jurídicos. É a força
haveriam formas plurais de subjetivação do argumento da segurança e da verdade
que permitem uma originalidade, inédita no mundo jurídico que nos seduz com a
e precária, de maneiras de construir a ilusão de uma igualdade irrealizável, como
existência. Contra a experiência de um legitimadora e redentora.
sujeito universal, desse sujeito e seu
avesso, é possível encontrar, na história A modernidade constrói-se sob o signo
do ocidente, formas diferentes. do individualismo antropológico e solip-
sista de um homem superior, ao qual é
Enfim, os itinerários de Foucault nos reconhecida uma dada subjetividade, tal
levam a perceber que, se o sujeito moder- qual denunciada por Foucault. A subjeti-
no é uma criação recente e atrelada aos vidade pode ser, na perspectiva moderna,
dispositivos de controle, muito próprio esta realização da própria razão como
e adequado à produção e à reprodução interiorização de um modo de pensar e
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O avesso do sujeito: provocações de Foucault para pensar os direitos humanos 55

exteriorização da moral como um modo aparecem inicialmente com um sentido


de agir. político preponderante sobre o próprio
sentido jurídico. Não obstante a impor-
Como interiorização, vimos de que manei- tância histórica e política, o lastro de
ra os avessos do sujeito empreendem o subjetividade que tais direitos preservam
controle sobre o indivíduo, sua alma, seu ainda se circunscreve numa perspectiva
desejo, seu corpo natural. Como exteriori- de construção de um super-homem irrea-
zação, caberá ao direito a explicitação dos lizável, reforçando os antagonismos entre
modos de agir de maneira privilegiada nos discursos e práticas e evidenciando as
Estados modernos e contemporâneos. vantagens pragmáticas de um discurso
de direitos fundamentais11.
Os direitos subjetivos serão, inicialmente,
o foco de realização desta subjetividade O que se pretende mostrar, por ora, é
moderna no sistema jurídico. Legitiman- que o direito, sendo um dos pilares deste
do a subjetividade moderna, caberá ao projeto de modernidade, e nela tendo
direito garantir-lhe a força, poderes e uma posição central, sustenta-a a qual-
direitos na construção de uma sociedade quer custo. Aproveitando e reforçando
ordeira e livre, ‘apenas’ sujeita ao Estado, a noção de subjetividade moderna o
sendo esta lógica determinante para o direito vai se firmar como um sistema
nascedouro do discurso sobre direitos racional, alicerçado em conceitos como
humanos que se estabelece no séc. XIX direito subjetivo, autonomia da vontade e
e XX e permanece em muita evidência obediência à lei.
atualmente.
Nesse sentido, os direitos subjetivos, no
Vários diplomas legais e políticos vão qual se baseia a teoria dos direitos hu-
responder pelo que o Ocidente vem, manos hegemônica, presta um vigoroso
historicamente, denominando direitos auxílio na articulação de uma subordi-
humanos. A primeira fase de internaciona- nação da política à moral para a cons-
lização (Comparato, 2003) destes direitos
tem início na segunda metade do séc. XIX
e se prolonga até a segunda grande guerra 11
Muitos autores falam até em direito humano
mundial, marco histórico que delimita a fundamental (cf. Ferreira, 2000), construindo uma
simbiose, a nosso ver negativa, entre direitos hu-
segunda fase de internacionalização, cujo manos e direitos fundamentais, ou criando uma
símbolo é a Declaração Universal dos redundância desnecessária. Em geral, quem adota
esta linha acaba por restringir a discussão jurídica
Direitos Humanos (1948). dos direitos em tela ao espaço nacional, reforçando
as dicotomias clássicas entre ordem nacional e
Partindo de uma natureza humana cen- internacional, e destaca as instituições de justiça
como guardiões desses direitos. Assim, aqueles
trada na ideia de dignidade, e tendo em indivíduos e grupos que, da parte da sociedade
vista a união dos povos (estabelecida civil, lutam construindo um protagonismo que
quebra o status quo, acabam por ter sua luta crimi-
definitivamente como valor após a segun- nalizada, sempre recebida pelo poder instituído
da grande guerra), os direitos humanos como contraordem.

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trução de um imaginário burguês. E, com Seu itinerário será aquele de pensar ima-
isso, reforçaríamos a perspectiva de uma gens, cegueiras, espelhos e obscuridades
projeção ideal e metafísica do sujeito. sobre os direitos humanos, passando pela
análise das intervenções humanitárias
Por outro lado, é perceptível que a dis- violentas em nome dos direitos humanos,
cussão de direitos humanos surgida em a chegar aos paradoxos do universal para
um solo filosófico típico da modernidade, propor, enfim, que na confluência entre fi-
ganha uma funcionalidade mais política cção e ciência, se possa repensar os dire-
do que jurídica (acontece o inverso no dis- itos humanos para além da modernidade,
curso dos direitos fundamentais), portan- reconstruindo a própria característica do
to adjacente à legitimação como direitos. humano a partir de um referencial de sub-
É como se o discurso de direitos humanos jetividades nômades (Rubio, 2007, p. 11).
funcionasse como uma válvula redentora
ou legitimadora da concretização do Esta- A ideia de subjetividades mutantes, nôma-
do liberal sem, contudo, aliviar as tensões des, trazida por Rubio se conecta com o
conflituosas dentro dele. uso que Rosi Braidotti (2002) propõe ao
defender uma perspectiva feminista, não
Ao mesmo tempo, as perspectivas teóri- simplória, da relação entre diversidade
cas postas de direitos humanos bebem cultural e gênero. Braidotti (2002) discute
das concepções de direitos subjetivos, re- a propriedade da adjetivação nômade
forçando os atributos de universalização. para significar esta outra perspectiva da
Direitos humanos viram, nesta perspec- subjetividade, que privilegia a diferença,
tiva, normatização, pautas e standards que privilegia o movimento de deslocar o
da subjetividade moderna, instâncias olhar histórico e reinventar a existência,
contrafáticas de sua própria realização. e não mais a identidade, o mesmo e o
Neste sentido, os direitos humanos são progresso. Abandonando a subjetividade
frágeis instrumentos de concretização do moderna, “a renúncia a isto tudo seria
direito de muitos. uma posição mais confortável, em favor
de uma visão descentralizada e multi-
Por isso, quando David Sánchez Rubio dimensionada do sujeito como entidade
propõe repensar os direitos humanos, ele dinâmica e mutante, situada em um
parte da perspectiva que se encontram contexto, em transformação constante”
os direitos humanos hoje, tanto em sua (Braidotti, pp.9-10).
prática quanto em sua construção teórica,
anestesiados. Rubio chama a atenção Inserida no caldeirão da discussão da
para o fato de que “em la época actual, y pós-modernidade, a subjetividade nôma-
dentro del contexto de la cultura occidental, el de “tem a ver com a simultaneidade de
imaginário sobre el cual se fundamenta y se identidades complexas e multi-dimensio-
asienta nuestra manera de entender derechos nadas. (...) O sujeito nômade é um mito,
humanos es insuficiente, bastante reducido y ou ficção política, que me permite pensar
demasiado estrecho” (Rubio, 2007, p. 11). sobre e mover-me através de categorias
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estabelecidas e níveis de experiência” a luta, resistem e repensam sua existên-


(Braidotti, 2002, p.10). cia, na criação de relações humanas que
superem as condições atuais de exclusão,
No sentido aqui proposto, Rubio com- exploração, dominação, marginalização e
partilha a crítica de se reduzir os direitos as transformem em relações de inclusão
humanos aos direitos fundamentais e participação, horizontais e solidárias
constitucionalmente previstos, como um (Rubio, 2007, p. 119).
elemento de esvaziamento do potencial
transformador dos sujeitos envolvidos, Esta perspectiva mitigada dos direitos
acirrando o abismo entre normativida- humanos que denunciamos é tanto cas-
de e efetividade de tais direitos. “Pese a tradora das diferenças quanto inaudita
existir um reconocimento de la importancia de para as lutas e sofrimentos de populações
los derechos fundamentales o derechos humanos inteiras excluídas das sociedades ociden-
constitucionalizados, los mecanismos de no tais em suas bandeiras universalizantes.
aplicabilidade y la ausencia de garantías con- É preciso (re)inventar novas práticas e
vincentes estarían a la orden de todos los días” legitimar esta outra perspectiva sinestési-
(Rubio, 2007, p. 23). ca dos direitos humanos. Importa, então,
explorar o imaginário de Joaquin Herrera
A construção de uma identidade a partir Flores (2009A).
da qual a subjetividade é pensada como
lastro para os direitos humanos e, por Flores situa inicialmente os direitos hu-
conseguinte, para os direitos fundamen- manos como “a afirmação da luta do ser
tais, de onde se extrai critérios para clas- humano para ver cumpridos seus dese-
sificar gênero, sexo, raça, classe, etnia, jos e necessidades nos contextos vitais
religião, são critérios a um só tempo para em que está situado” (Flores, 2009A,
a igualdade formal discursiva como para a p. 25). Por isso, opõe-se a categorizar
desigualdade material concretizada. Para os direitos humanos como privilégios,
enfrentar esta anestesia paradoxal, torna- declarações de intenções ou postulados
se fundamental compreender a democra- metafísicos apriorísticos. Contrapõe-se
cia entendida como um modo de vida e os a identificar o universal como transcen-
direitos humanos “como procesos de creación dência ou racionalidade lógico-dedutiva.
continua de tramas sociales de reconocimiento y Antes, o universal dos direitos humanos
subjetividades a timpo completo y em todo lugar” deve ser compreendido na imanência do
(Rubio, 2007, p. 27). fortalecimento de indivíduos, grupos e
organizações que buscam acesso a bens
Assim, repensar os direitos humanos que “fazem com que a vida seja digna de
importa em explorar a ciência-ficção na ser vivida” (Flores, p. 25).
construção de um imaginário social e de
uma prática emancipatória por novas for- Para tanto, é preciso superar o discurso
mas de dignidade humana, sinestésicas, dos direitos inalienáveis, de uma conce-
de grupos e coletividades que enfrentam pção clássica de direitos humanos como
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o direito de ter direitos, que em ambos os dadas, como capacidade para elaborar
casos, encerram a discussão dos direitos uma visão alternativa do mundo, para
humanos num catálogo ou plataforma de além de suas atuais contingências. Por-
direitos reconhecidos formalmente ou tanto, o pensamento crítico e realista é
normativamente. Mas, se esses direitos também um pensamento criativo e propo-
não são transformados em empode- sitivo, e é preciso abrir a possibilidade das
ramento dos sujeitos envolvidos nos pessoas se defenderem de acordo com
processos de luta, o que adianta vê-los os seus próprios critérios de dignidade
reconhecidos retoricamente em diplomas humana, conforme o contexto cultural,
legais ou textos jurídicos? Este simplismo ético, político e social. A teoria crítica dos
de visão sobre os direitos humanos é de- direitos humanos não fundamenta nem se
nunciado por Flores (2009A, p. 33) como serve, portanto, de um sujeito universal.
um círculo vicioso, paralisante.
Surgem então os cinco deveres básicos
Reconhece Flores (2009A) que, para (re) para os que pretendem (re)inventar com
inventar os direitos humanos, é preciso Herrera (Flores, 2009A, pp. 67-69) os dire-
enfrentar a complexidade cultural, empí- itos humanos: a partir de uma plataforma
rica, jurídica, científica, filosófica, política de compromissos e deveres para construir
e econômica que os envolve, isso porque zonas de contato emancipadoras, importa
toda cultura está contaminada por muitas em Reconhecimento, Respeito, Reciproci-
culturas e racionalidades. Daí a necessi- dade, Responsabilidade e Redistribuição.
dade de se propor a interdisciplinaridade, Com isso, seria possível construir uma
a interculturalidade e completude dos nova cultura dos direitos humanos que
direitos humanos, no seu incessante contempla a abertura social triplamente
processo de construção, desconstrução caracterizada: abertura epistemológica,
e reconstrução de conceitos. intercultural e política (para a democracia
participativa), atualizando a esperança na
Esta complexidade multifacetada só condução da ação humana.
poderá ser enfrentada com uma teoria
crítica e realista dos direitos humanos, Por outro lado, para uma compreensão
que envolva uma perspectiva integrado- definitiva das contribuições de uma teoria
ra e contextualizada em práticas sociais crítica dos direitos humanos, é preciso
emancipadoras. Ou seja, para ser realista, evidenciar a ética da alteridade de que
importa saber onde estamos e que camin- fala Dussel (1995), na construção de sua
hos podem ser propostos, olhando a vida filosofia da libertação. A condição primei-
em sua imanência, em suas condições ra da alteridade, que é o encarar o outro
concretas. em sua singularidade, exige uma ética,
no sentido de que viver é conviver. E vai
Por outro lado, para ativar uma teoria crí- além: significa compreender as condições
tica, é preciso reconhecê-la como atitude imanentes dos excluídos, a dor em sua
de resistência e combate das condições exclusão, na superação da intolerância de
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ver o outro como o oposto de si, o inimi- forma de paranoia unitária e totalizante,
go; significa não criminalizar o diferente, fazendo crescer a ação, o pensamento e
reduzindo-o sempre ao mesmo; significa os desejos por proliferação, justaposição
sim, tomar consciência da história e dos e disjunção, liberando-se das velhas
diferentes protagonistas da história, com- categorias do Negativo (a lei, o limite,
preendendo as lutas por emancipação a castração, a falta, a lacuna), ligando
como âmago de uma sociedade libertária o desejo com a realidade, utilizando a
e democrática. prática política como um intensificador
do pensamento, e não exigindo da ação
Neste mesmo sentido, quando Santos política que ela restabeleça os “direitos”
(2013) confronta a luta dos direitos huma- do indivíduo, superando uma perspecti-
nos com as religiões, encontra o cinismo va tradicional de direitos humanos pela
das concepções hegemônicas de direitos poética de uma crítica.
humanos, e propõe uma concepção pós-
secularista dos direitos humanos que 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: OU ATIVAR A CRÍTICA
alia as lutas contra-hegemônicas por PARA REALIZAR DIREITOS HUMANOS
direitos às teologias progressistas, tal
qual a teologia da libertação, de Freire, A perspectiva de uma subjetividade mo-
Boff e Dussel. “Se Deus fosse um ativista derna que criticamos reside no fato de se
de direitos humanos, ele ou ela estariam estruturar a partir da razão, mantendo a
definitivamente em busca de uma con- universalização e naturalização de uma
cepção contra-hegemônica dos direitos forma de vida, sujeitada ao Estado. Esta
humanos e de uma prática coerente com perspectiva da subjetividade moderna
ela” (Santos, p. 142). sufoca a liberdade e cria um acento
muito forte em uma identidade padrão.
Enfim, é preciso garantir aos sujeitos que Nesta linha, é possível perceber como
os modos de subjetivação propostos por pode significar, ao contrário de liberar
Foucault, as tecnologias de si, possam o indivíduo, sujeitá-lo cada vez mais aos
ativar não apenas o outro do sujeito, mas controles do Estado, sejam na esfera de
diferentes sujeitos, nômades, mutantes, uma microfísica disciplinar, seja na pers-
dissonantes, sujeitos empoderados que pectiva macro de um biopoder que incide
criam e lutam por suas condições de vida sobre as populações.
digna. Os direitos humanos, enfim, não
podem estar a serviço do opressor ou A partir da crítica a esta imagem de sujeito
apenas como instrumento pós-violatório, denunciada que sustenta uma parte subs-
precisam constituir a ação transforma- tancial dos discursos e concepções de
dora das sujeições e opressões. Tem que direitos humanos, aponta-se para a ideia
servir, como Foucault (2001B) pensou de subjetividades nômades, transitórias,
em relação ao Anti-édipo de Guatarri e libertas, na construção de uma ethos que
Deleuze, para constituir uma vida não implique em uma dimensão política e éti-
fascista, liberando a ação política de toda ca, uma dimensão da própria liberdade. O
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direito, incluindo os direitos humanos, no aos seus fundamentos, colocando para


entanto, ainda é um campo demasiada- os direitos humanos o desafio de expe-
mente apegado à racionalidade moderna, rimentar uma dimensão ética e política
o que reforça os elementos dessa subjeti- diferente, comprometida no campo da
vidade criticável, que se apresenta como imanência, da ação, da vida, e não mais
universal, essencial e identitária. no campo puramente normativo. Porque
os direitos humanos podem ser, para além
As teorias do direito na contemporanei- de cartas e tratados, a realização de vidas
dade precisam enfrentar a crítica aos emancipadas.
aspectos exageradamente formais ou
instrumentais desta racionalidade. Os REFERÊNCIAS
estudos em torno dos direitos humanos
apontam para uma prevalência hegemô- Adorno, T. W. (1986). O ensaio como forma.
nica de uma visão tradicional, normativa In: Cohn, Gabriel. Theodor W. Adorno
e pós-violatória, pouco sensível às mo- sociologia (pp.167-187). São Paulo:
dulações da subjetividade. É em parte Ática.
porque direcionado a um sujeito universal
que os direitos humanos se tornam insen- Braidotti, R. (2002). Diferença, diversidade e
subjetividade nômade. In: Abrys, Estudos
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unb.br/ih/his/gefem/labrys1 _ 2/rosi1.
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formas de constituir aquilo que somos, Saraiva.
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Dussel, E. (1995). Filosofia da libertação: crítica
existência, criando um repertório de à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus.
possibilidades de si, vai obrigar o direito a
repensar seus fundamentos, e a recolocar Ewald, F. (2000). Foucault, a norma e o direito, (2
para o sujeito o problema da diferença, Ed.). (Antônio Fernando Caiscais, Trad).
de uma alteridade que compartilhamos, Lisboa: Vega.
e não apenas toleramos.
Ferreira, M. G. (2000). Direitos humanos
No debate discursivo e ideológico, a teo- fundamentais, (4 Ed.). São Paulo: Saraiva.
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Flores, J. H. (2009A). A (re) invenção dos direitos
ênfase na emancipação e resistência dos humanos. Florianópolis: Boiteux.
grupos oprimidos em constituir as con-
dições para uma vida melhor e mais digna, Flores, J. H. (2009B). Teoria crítica dos direitos
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