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798-Texto Do Artigo-1276-1-10-20140212
798-Texto Do Artigo-1276-1-10-20140212
Resumo
A partir da constatação de um enfraquecimento dos debates sobre a angústia, o presente estudo procura resgatar o conceito e os
fenômenos da angústia no contexto da leitura psicanalítica sobres eles. Ele se divide em quatro partes assim nomeadas: antecedentes
filosóficos do conceito psicanalítico de angústia; a construção do conceito freudiano e as duas teorias da angústia; as vicissitudes
do diagnóstico de neurose de angústia nas sucessivas edições da Classificação de transtornos mentais e de comportamento da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID -10) e no Manual estatístico e
diagnóstico dos Transtornos mentais ( DSM); a contribuição de Lacan e os fenômenos da angústia.
Abstract
Due to a decrease in the number of debates on anguish, this study aims to bring back to discussion anguish’s concept and
phenomenon from a psychoanalytical point of view. It is divided into the following four sections: the philosophical background of
the psychoanalytical concept of anguish; the development of freudian’s concept of anguish and the two theories of anguish ; what
happened with the diagnosis of anguish neurosis in the in sucessives editions of Classification of mental and behavioural disorders
clinical descriptions and diagnostic guidelines of International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems
(CID - 10) and Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders DSM); Lacan’s contribution and the anguish phenomenon.
ta” (Quinet, 1997, p.13), ao passo que, concluiu que a leitura de Kierkegaard nos
em forma de angústia, não lhe é possível demonstraria a existência de uma escolha
escamotear a castração. entre a captura simbólica e a angústia, pois
“como viu, cantou, marcou Kierkegaard, a
Nosso objetivo, no presente texto, é
angústia aqui é o signo ou a testemunha de
indagar as razões subjacentes à supressão
uma hiância existencial” que viria a ser es-
dos debates sobre a angústia, sob quais
clarecida “pela doutrina freudiana” (Lacan
significantes, embora mascarada, ela cer-
1963/2005: 63).
tamente permanece insistindo, como vem
sendo diagnosticada e o que a psicanáli- É bem interessante constatarmos
se tem a dizer sobre as manifestações de que, desde a Introdução do livro “O concei-
angústia. Para tanto, começaremos nosso to de angústia”, Kierkegaard (1844/2007)
estudo indagando os antecedentes filosófi- adverte que, “para a Lógica, pensar o real é
cos do discurso psicanalítico sobre a an- absorver o inassimilável e cair na antecipa-
gústia. Em seguida, buscaremos acompa- ção do que apenas pode predispor” (p.16).
nhar a construção do conceito de angústia Embora se trate de um filósofo cristão, que
na obra freudiana e as duas teorias da an- trabalha com a noção de pecado, ele não
gústia. Como terceiro tópico, relataremos sobrepõe a angústia à culpa, pois declara
as vicissitudes que as Classificações Inter- a existência de uma angústia suave, não
nacionais das Doenças (CID) e os Manuais maléfica, muito próxima da curiosidade.
Diagnósticos e Estatísticos (DSM) reservam Nesse sentido, suas observações nos reme-
para o diagnóstico de neurose de angústia. tem à percepção freudiana, após elaborar
Por fim, procuraremos trazer os avanços a segunda tópica do aparelho psíquico, de
da orientação lacaniana no estudo da an- que o sinal de angústia é algo que, de modo
gústia e alguns fenômenos clínicos que a semelhante a como funcionam as vacinas,
desvelam. impede a repetição do trauma e, conse-
quentemente, impede o desenvolvimento
de uma alta intensidade de angústia.
Segundo Kierkegaard (1844/2007),
Antecedentes Filosóficos do Discur- a passagem da angústia à culpa é um sal-
so Psicanalítico sobre a Angústia to qualitativo, isto é, um movimento sem
mediação ou reconciliação. Ele conside-
ra que o negativo é necessário à Lógica e
Dos inúmeros filósofos que se ocu-
se opõe a Hegel que, conforme alega, teria
param em escrever sobre a angústia, dois
feito do negativo o “indispensável Outro”.
nomes merecem destaque pelo reconhe-
Então, por meio do repúdio à ideia de que
cimento que receberam no seio da dou-
se passaria da angústia à culpa por uma
trina psicanalítica. Em particular, dentro
espécie de continuidade afetiva, seu texto
da orientação lacaniana. São eles Soren
Kierkegaard (1803- 1855) e Martin Heideg- acaba sugerindo, não apenas a existência
ger (1889-1976).O primeiro, filósofo e teólo- de um corte, sem o qual não haveria o tal
go dinamarquês de renome mundial, ficou salto qualitativo, como também a função
conhecido como o “pai do existencialismo da pressa, pois, sem antecipação, não há
cristão”. Em 1844 Kierkegaard publicou saída da angústia. Nesse ponto, é impos-
um livro intitulado “O conceito de angús- sível não nos lembrarmos do texto de La-
tia” cujo texto se tornou uma das mais im- can (1945/1998) sobre o tempo lógico, cuja
portantes referências de “O Seminário, li- conclusão poderia ser expressa nos seguin-
vro 10: a angústia” de Jacques Lacan, nos tes termos: “Apresso-me a me afirmar como
anos de 1962 e 1963. Nessa ocasião, ele branco [portanto, homem], para que esses
brancos [homens], assim considerados por de o espírito imortal ser determinado como
mim, não me precedam, reconhecendo-se genus.” Podemos então dizer que suas pa-
pelo que são” (p. 206). Ou não mais pode- lavras antecipam a declaração de Freud
ria eu concluir a minha cor [ou seja: minha (1920/1976), em “Além do princípio de
existência humana]. prazer”, de que somos apenas os veículos
temporários de uma substância imortal.
Kierkegaard (1844/2007) menciona
Nessa ocasião, tomando por base a Biolo-
que
gia de sua época, Freud (1920/1976, p.75)
a angústia é de tal modo fundamen- salienta que o soma se acha sujeito à morte
tal na criança que ela não deseja natural, mas as células germinais são po-
dispensá-la [...] a criança mostra-se tencialmente imortais. Observação que o
encantada com essa suave inquie- levará a propor que a vida resulta do per-
tação. Em todos os povos em que a manente conflito entre a libido e a pulsão
infância mantém-se como uma dis- de morte, esta última se desvelando como o
posição fantasiosa do espírito, exis- paradoxal ponto de partida da vida, desde
te essa angústia [...]. Interpretá-la que sua energia seja “amansada” pelos in-
como desorganização não é senão vestimentos libidinais dos Outros primor-
prosaísmo estúpido. (p.51) diais e resulte em um amálgama de forças
contrárias.
Trata-se, em seus termos, da procu-
ra da aventura, do monstruoso, do misté- Para Kierkegaard (1844/2007), ha-
rio. Portanto, a angústia propulsiona a fan- veria dois ápices da angústia: a concepção
tasia, mas não estabelece a diferença dos e o nascimento, posto que, em ambos, o
sexos, a qual depende do pudor. espírito estaria distante. A angústia sua-
ve, que corresponde ao erotismo inocente e
No capítulo intitulado “Angústia belo, seria a que é cantada na poesia, pois,
Subjetiva”, Kierkegaard (1844/2007, p.80- como ele próprio se expressa, chega-se à
85) afirma que a angústia pode ser com-
“conclusão terrível [de que] a angústia do
parada à vertigem, a qual advém tanto do
pecado produz o pecado” (p.86-87). Esta
olhar quanto do abismo, impossível de ser
corresponde à impotência de que o indiví-
tamponado. Algumas linhas adiante, ele
associará a diferença sexual a uma diferen- duo padece. Por entender que a angústia é
ça na intensidade da angústia. Ele assim uma medida da grandeza humana, Kieke-
escreve: gaard não poderia deixar de indagar qual é
o seu objeto. Nesse ponto, ele e Heidegger
A mulher acumula mais angústia
enunciam quase com as mesmas palavras
do que o homem: isto não está rela-
que, uma vez que se costuma dizer que se
cionado com a inferioridade de sua
está “angustiado por nada”, isso significa
força física etc. (aqui não é o caso
que o objeto da angústia é o nada.
dessa espécie da angústia); existe
mais angústia na mulher porque Embora não tenhamos a intenção
ela é mais sensual e tem, conco- de nos aprofundarmos em questões de or-
mitantemente, um destino espiri- dem filosófica, queremos acentuar que, “tal
tual, como o homem. (Kierkegaard, como em Kierkegaard, a angústia assume
1844/2007, p.80-81). em Heidegger um cunho existencial es-
sencialmente humano” (Werle, 2003, p.4).
Logo em seguida ele comenta que a Contudo, diferentemente de Kierkegaard,
sexualidade tem sido tratada de maneira para quem a angústia revelaria o nosso ser
insuficiente e argumenta que “o sexo ex- finito, o nada de nossa existência diante da
prime a enorme contradição (wiederspruch) infinitude de Deus, considera-se que Hei-
Freud concluiu que o riso dos ven- Retomemos nossa linha de racio-
dedores na segunda cena fizera com que cínio, pois queremos destacar uma nova
ela se lembrasse do sorriso do homem da perspectiva teórica sobre a angústia. Conti-
confeitaria. A lembrança despertou o que nuemos com Freud, em 1926[1925]/1996,
ela seguramente não fora capaz de experi- ano em que publica seu texto intitulado
mentar na primeira ocasião: uma liberação “Inibição, sintoma e angústia”. Foi nesse
sexual que se converteu em angústia. Sua texto que ele reformulou sua teoria da an-
angústia, portanto, expressava o temor de gústia. Até então considerada como libido
que os vendedores da loja pudessem repe- transformada após o recalque, a angústia
tir o que já lhe havia acontecido. Repetição passa agora a ser reconhecida como mola
de uma experiência sexual infantil e trau- propulsora do recalque. Em outros termos,
mática. é também o recalque que passa a ser mais
claramente enunciado como movimento
Nos primeiros escritos de Freud so-
que visa à saída da angústia, defesa contra
bre a clínica, o afeto da angústia se arti-
ela. Melhor dizendo, como ultrapassagem,
culava privilegiadamente à discussão em
sempre precária, dos estados de angústia.
torno da neurose do mesmo nome. Naquela
Não só. Freud também define a angústia
que reconhecemos como a primeira Noso-
como “sinal de perigo no eu”, espécie de
grafia freudiana, a qual vigorou até 1915,
alerta contra a repetição de uma situação
há somente dois grandes quadros: as neu-
traumática. Ele chega mesmo a fazer uma
roses atuais e as psiconeuroses. As neu-
analogia da angústia com a vacina médica,
roses de angústia compõem o quadro das
propondo que a liberação de uma pequena
chamadas neuroses atuais, que incluem
dose de angústia impede a liberação des-
também a neurastenia e a hipocondria,
controlada da mesma. Em outros termos,
sendo afecções associadas à vida sexual do
sua experiência clínica lhe sugere a exis-
adulto, enquanto as psiconeuroses se refe-
tência de uma angústia a ser dita, parado-
rem explicitamente à sexualidade infantil.
xalmente, benéfica.
As neuroses de angústia proporcio-
Nessa ocasião, ele define o neurótico
nam duas formas de manifestação: como
como alguém cujos determinantes de an-
ataques de angústia ou como estado crôni-
gústia são situações da infância. E inda-
co. Este último corresponde a uma angús-
tia mais branda e de emergência flutuante. ga o motivo pelo qual, diferentemente dos
Nos termos de Freud (1895[1894]/1996), outros afetos, a angústia se mostraria tão
a sintomatologia da neurose de angústia imprópria à situação externa, tão contrá-
abrangia um amplo espectro. Na sequên- ria ao movimento da vida. Isso o levará a
cia, destacaremos apenas os sintomas que enumerar a série de perdas que compõem
compõem os chamados “ataques de angús- o advir do sujeito, bem como as três or-
tia.” São eles: distúrbios respiratórios, tre- dens de fatores que instauram os conflitos
mores, calafrios, acessos de fome, diarreia intrassubjetivos. Na primeira série temos
sobrevindo em acessos, vertigem locomoto- a separação biológica da mãe, a perda do
ra, acordar à noite em pânico e com suores objeto (seio) e a perda do amor do objeto
etc. Concordamos com Leite (2011) em que (Mãe simbólica). Nas três ordens de fatores
a definição freudiana dessa modalidade determinantes da neurose, temos a pre-
neurótica se assemelha ao que é designa- maturidade do filhote do homem, a origem
do pela psiquiatria contemporânea como bifásica da sexualidade e a cisão entre as
“transtornos de ansiedade”, que abrangem instâncias do Eu e do Isso, três ordens cha-
os ataques de pânico e a ansiedade gene- madas, respectivamente, de fator biológico,
ralizada. fator filogenético e fator psicológico.
reno comum em cuja base se tor- to de vista clínico, quanto das pesquisas. A
ne compreensível a consequência partir daí, a American Psychiatric Associa-
do distúrbio físico e mental. Com tion sugeriu uma nova classificação para os
esse objetivo em vista, a psicanálise distúrbios mentais: o American Psychiatric
deve manter-se livre de toda hipóte- Association Diagnostic and Statistic Manu-
se que lhe é estranha, seja de tipo al of Mental Disorders (DSM). Naquele mo-
anatômico, químico ou fisiológico, e mento, o modelo se inverteu e o DSM pas-
deve operar inteiramente com ideias sou a influenciar a CID e toda a psiquiatria
auxiliares puramente psicológicas. mundial. (Paoliello, 2012).
(Freud, 1916[1927]/1996, p.30).
Nos dias de hoje, o “Manual Estatís-
tico e Diagnóstico” (DSM), instituído origi-
Freud (1916[1927]/1996) acrescen-
nalmente para o uso de instituições de in-
ta que os médicos só são adversários da
sanos, abrange um número considerável de
psicanálise porque não prestam suficiente
categorias diagnósticas. A necessidade de
atenção no que lhes dizem seus pacientes.
recolher informação estatística foi o impul-
Donde se conclui que ele os conclama a ou-
so inicial para a ampliação de uma classifi-
vir o dizer, ato de fala, e os ditos subjetivos,
cação dos transtornos mentais nos Estados
desdobramentos do dizer, na esperança de,
Unidos. Verificamos que a primeira tenta-
com isso, diminuir a resistência à psicaná-
tiva oficial foi o censo de 1840, que descre-
lise. Ao abordar esse tema, Freud afirma
veu um só binômio diagnóstico: idiotice ou
sugestivamente que a psiquiatria não se
insanidade. Quarenta anos depois, o censo
opõe à psicanálise, quem o faz são os psi-
distinguia as seguintes categorias: mania,
quiatras. É certo, então, que o presente mo-
melancolia, monomania, paralisia, demên-
vimento de desaparecimento das entidades
cia e alcoolismo (Dunker & Neto, 2011). O
clínicas descritas pela psicanálise dos ma-
número de possíveis diagnósticos passara,
nuais estatísticos de diagnóstico e das clas-
assim, de dois para seis.
sificações internacionais de doenças(DSM e
CID) tolhe a proposta de interconexão dese- A primeira versão do DSM, ou seja,
jada por Freud entre a psiquiatria e a psi- o DSM-I de 1952 teve como marca a noção
canálise. Vejamos a seguir como isso vem de “reação”, termo que indica que a psi-
acontecendo. quiatria, à época, percebia a doença mental
como uma resposta aos problemas da vida.
Como indicam Russo & Venâncio (2006),
além desta noção, podemos considerar o
As Classificações Internacionais uso frequente, ao longo daquele Manual, de
de Doenças e os Manuais Diagnósti- expressões como “conflito neurótico”, “me-
cos e Estatísticos canismo de defesa” e “neurose”. O DSM-I
sofreu forte influência do psiquiatra Meyer,
que trouxe grandes contribuições ao cam-
A partir do século XVII, devido à dis- po da psiquiatria. Sua influência resultou
paridade da linguagem médica e dos crité- inclusive na distinção diagnóstica entre a
rios de diagnóstico usados nos diversos pa- neurose e a psicose.
íses, julgou-se necessário criar um sistema A classificação dos fenômenos de
único de classificação. Essa ideia deu ori- angústia foi se modificando desde a primei-
gem à Classificação Internacional de Doen- ra edição. No DSM-II, em 1968, a noção de
ças, conhecida pela sigla CID, atualmente reação perdeu o seu valor. Começava a sur-
em sua décima versão. Em 1952, a CID foi gir a influência dos pesquisadores em psi-
avaliada como inadequada, tanto do pon- quiatria biológica. O termo “neurose” ainda
III, o grupo das “Neuroses” submergiu e se afeto que não engana. Não há como enganar
diluiu, no mínimo, em três agrupamentos que o encontro com a castração do Outro
distintos, com um total de 18 transtornos. ou, se preferirmos, com o Outro faltante e,
No DSM-IV, o número de transtornos que consequentemente, desejante, afeta profun-
ingressaram “no lugar” das neuroses subiu damente o sujeito, a ponto dele ser levado
para 24. (Russo &Venâncio, 2006). a indagar se o outro o deseja morto, se ele
quer a sua morte. Partindo do real, ela se
Como localizar o afeto de angústia –
alastra pelo imaginário, povoando-o de fan-
afeto do sujeito - nesse modelo padrão da
tasmas. Uma de suas manifestações preva-
psiquiatria? Gostaríamos de marcar que
lentes acontece no registro do olhar, ou seja,
não pretendemos desconsiderar a clínica
está particularmente ligada à pulsão escó-
psiquiátrica, mas indagamos se não seria
pica, nos assim chamados fenômenos do
mais produtivo que, em situações clínicas
duplo, nos desmaios e despersonalizações e
específicas, a psicanálise e a psiquiatria
nos atos de exibicionismo e voyeurismo.
trabalhassem juntas contra o sofrimento
psíquico. Mas isso requereria um retorno Foi como psiquiatra que Lacan se fez
à psiquiatria clássica, aquela que dava voz conhecer inicialmente nos meios médicos e
ao sujeito. Seja como for, a psicanálise não intelectuais, mas foi a partir da leitura dos
pode deixar de reconhecer a anterioridade textos de Freud que ele fez a sua entrada na
lógica da medicina em relação a seu cam- psicanálise. Para compreendermos o lugar
po. Freud nunca deixou de reconhecer que que o tema da angústia ocupa em sua obra,
a psicanálise poderia se beneficiar de suas é importante termos em mente a premissa
conexões com outros campos de saber, po- de que o ser humano é caracterizado, des-
rém ressaltou, em particular, a literatura, de o princípio, pelo desamparo e pela de-
a poesia e os estudos filosóficos e antropo- pendência do Outro, como lugar dos ditos
lógicos. primordiais que entabulam uma história,
Conforme menciona Alberti (2006), que entretecem um sujeito como história.
Freud dizia não desejar que a psicanálise Desde o início da vida, estamos enlaçados
fosse devorada pela medicina ou viesse a em uma rede de significantes. Eis o que de-
encontrar sua última morada nos manu- termina a psicanálise e que nos conduz à
ais de psiquiatria. Nesse sentido, é possí- interrogação: Quando, então, surge a an-
vel dizer que seu voto vem se realizando. gústia no meio dessa história?
A psicanálise já não mora nos manuais de Podemos começar nossa reposta,
psiquiatria das organizações internacionais citando uma passagem de “Subversão do
de saúde, principalmente porque foi sobe- sujeito e dialética do desejo no inconsciente
jamente expulsa deles. freudiano”, texto com o qual Lacan contri-
buiu, em 1960/1998, para o Colóquio fi-
losófico internacional de Royaumont. Após
acentuar o fato de que, entre a demanda
A Contribuição de Lacan e os Fenô- e do desejo, o neurótico dá preferência à
menos da Angústia primeira, ele prossegue dizendo que fazer a
análise deslizar para o manejo da frustra-
ção só serve para “esconder sua angústia
Desde a contribuição de Jacques La- do desejo do desejo do Outro, impossível de
can (1901-1981), dizemos não apenas que a desconhecer quando é encoberto apenas
angústia é o afeto do sujeito por excelência, pelo objeto fóbico, e mais difícil de compre-
como também que, diferentemente do sinto- ender nas outras duas neuroses” (LACAN,
ma neurótico, e até de alguns afetos, ela é o 1960/1998, p. 838).
negação simples. Podemos ver essa questão novo conceito psicanalítico de angústia
emergindo na releitura que Lacan (1956- o conduzirá à construção do conceito de
1957/1995) fará do caso do Pequeno Hans objeto a.
(Freud, 1909/1996), acerca do qual comen-
É possível dizermos que, na teoria la-
ta que o objeto que vem para o lugar da an-
caniana, como na freudiana, a angústia é
gústia é na verdade um significante. Mais
também um sinal. Porém ela é o sinal de que
adiante, no seminário RSI, particularmente
há um inevitável momento em que o sujei-
na aula de 17 de dezembro de 1974, Lacan
to, para advir enquanto tal, tenta encontrar
(1975-1975) propõe localizar a inibição, o
uma resposta simbólica, lançando mão de
sintoma e angústia, os três heteróclitos de
recursos imaginários. Trata-se de uma ope-
Freud, em seu nó borromeano. Ele localiza
ração que deixa um resto, sob a forma de
a angústia entre o real e o imaginário, não
uma incessante divisão. Um resto de angús-
referindo-a mais ao desejo, e sim ao real
tia faz função de causa de divisão. Quando
(Soler, 2012).
se alcança operar a passagem do Real pe-
Na ocasião do seminário sobre a an- los desfiladeiros do significante, conforme a
gústia, ele tratara como primeira questão bela expressão de Lacan (1964/2008), en-
a castração, relembrando que ela jamais tão o afeto deixa de ser angústia. Tem lugar
termina. Lacan conclui que, ao enfatizar a uma pausa. Talvez um álibi.
angústia de castração, Freud (1924/1996)
Segundo Lacan (1962-1963/2005), o
enfatizara a angústia da falta, enquanto lhe
conceito de angústia produzido por Kierke-
parece que ela emerge justamente “quando
gaard assinala com exatidão a existência de
a falta, falta” (Lacan, 1963/2005, p.52). A
uma escolha. Como dissemos acima, para o
angústia é exterior ao sujeito, embora seu
sujeito há uma escolha entre a captura sim-
objeto compareça de forma invisível. O su-
bólica ou a angústia. E Lacan também recor-
jeito não ouve, não vê e não sente o objeto
re ao “Caderno de Notas” de Tchecov (1860-
da angústia (Quinet, 2012). Há uma rela-
1904)5, ensaio que havia sido traduzido em
ção essencial da angústia com o enigma do
francês por Frayeurs (Pavores), para exempli-
desejo do Outro. Na urgência de decifração,
ficar a diferença entre a angústia e o medo.
o sujeito se interroga sobre o que ele é e
o que representa no desejo do Outro, mas Trata-se do relato de três situações
encontra o silêncio. Então, ele pode imagi- em que o jovem se surpreende diante da
nar, como dissemos acima, que o outro, si- manifestação de algo que ele desconhece,
tuado no lugar do Outro enigmático, deseja não sabe explicar, mas não se vê implicado
apenas a sua morte. no mais íntimo do seu ser. Não há amea-
ça, salienta Lacan, logo não há angústia,
No ano seguinte ao seminário so-
mas medo. Na primeira situação, o rapaz
bre a angústia, ou seja, em “O Seminário,
enxerga um clarão no alto de uma torre,
livro 11: os quatro conceitos fundamen-
que ele conhece o suficiente para saber que
tais da psicanálise”, Lacan (1964/2008)
ninguém tem acesso àquele lugar onde re-
declara que quando o objeto está em fun-
luz o que não tem a menor possibilidade de
ção de causa, quando ele causa desejo, ser um reflexo. O texto avisa que o sol já
ele está camuflado. Em outras palavras, se pôs. Na segunda situação, ele vê passar
o objeto é causa do desejo, porém não é um vagão de trem que corre sobre os trilhos
causa da angústia. Cabe destacar que, sem que alguém o dirija. Na terceira situa-
no ano anterior, a teoria do objeto a não ção, é a misteriosa presença de um cão de
havia sido elaborada. Portanto, não é ela raça, em um local e em uma hora que nada
que vai ajudá-lo a construir a teoria da permite explicar. O jovem suspeita apensa
angústia, justo o contrário, elaborar um que se trate do cão de Fausto.
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Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Original de
no- Rio de Janeiro.
1964).
ROUDINESCO, E. & PLON, M. (1998). Di-
LACAN, J. (1988) De nossos antecedentes.
In: Escritos. (V. Ribeiro, trad.).(pp. 69- cionário de psicanálise. (V. Ribeiro & L.
70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Magalhães, trad.). Rio de Janeiro: Jorge
(Original de 1966). Zahar Editor.
1
Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do
Campo Lacaniano; Professora adjunta da Programa de Mestrado
e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade
Veiga de Almeida. Endereço: Rua Benjamim Batisa 15 apt. 101,
Jardim Botânico, cep: 22.461-120, Rio de Janeiro - Telefone:
2266-0445. E-mail: verapollo8@gmail.com
2
Sandra Chiabi. Psicóloga, psicanalista, membro dos Fóruns
do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, pós-graduada em
psicanálise clinica pela PUC-RJ, mestre em Psicanálise, Saúde
e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida. End: Av. Vieira
Souto, 490 - apt. 402. Ipanema , cep- 22420-000, Rio de Janeiro.
Tel: 86394503. E-mail: sandrachiabi@gmail.com
3
Expressão proposta por Lacan em 1966 no prefácio intitulado
“De nossos antecedentes”. In: Escritos, p.70.
4
Freud a cita em latim, referindo-a a Plauto, A sinaria, II, iv, 88.
5
Anton Pavlovitch Tchecov foi médido, dramaturgo e escritor
russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.
Aos 26 anos ganhou o Prêmio Pushkin pela coleção de histórias
Ao anoitecer. Suas peças A Gaivota, Tio Vânia, Três Irmãs e O
Jardim das Cerejeiras são até hoje consideradas um desafio para
ao atores, por se tratar de um “teatro de humores” e de “uma vida
submersa no texto” (Disponível em: http://www.pt.wikipedia.org/
wiki/Anton_ Tchecov. Acesso em: 19/01/2013).