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pedro dolabela chagas
o Major Weissmann
ou: racionalidade e horror em O arco-íris da gravidade
No último inverno da Segunda Guerra Mundial os alemães foram derrotados em sua
última ofensiva, e o colapso do 3o. Reich se tornou questão de tempo. A partir daí, contra
confraria
o relógio e contra os soviéticos, americanos e ingleses partiram em busca dos cientistas
do vento
alemães que haviam revolucionado a tecnologia da guerra, e do material que eles haviam
produzido. Hoje sabemos que a mais temida das invenções, a bomba atômica, jamais
esteve realmente perto de ser produzida pelos nazistas; porém a tecnologia de
lançamento de mísseis era uma realidade, e os V-2 caíam sobre Londres todos os dias.
Nas últimas semanas da Guerra, comandos aliados saíram em busca dos cientistas e das
instalações de produção do armamento avançado alemão e encontraram a Mittelwerke,
notória instalação subterrânea em forma de S localizada próxima à cidade de
Nordhausen, no centro da Alemanha. Comandada por von Braun – que depois viria a se
tornar um alto encarregado da pesquisa tecnológica das forças armadas americanas e da
NASA – a fábrica produzira e armazenara milhares de mísseis com a tecnologia que
ditaria os rumos da aerobalística do pós-guerra, e com o horror característico da
engenharia de produção nazista (pois para tanto contava com um campo de concentração
construído exclusivamente para lhe fornecer trabalhadores: calcula-se que, para os cerca
de 5000 foguetes produzidos, 10000 prisioneiros tenham morrido pelo excesso de
trabalho e pelas condições inimagináveis de alimentação e higiene).
Os fatos acima foram ficcionalizados por Thomas Pynchon em seu romance de 1973. Von
Braun pode ser aproximado à figura do major Weissmann, personagem que representa
um pouco de tudo o que houve de pior no processo de constituição da Alemanha de Hitler
– porém de uma maneira imprevista. A noção de Mal Absoluto corriqueiramente associada
ao nazismo está presente em Weissmann; entretanto, ele mantém uma relação apenas
indireta com o nazismo, pois é indiferente à sua ideologia, e a sua ação é
substancialmente autônoma ao regime. Portanto não surpreenderá que Weissmann –
assim como von Braun – venha posteriormente a servir aos EUA, encarnando o horror da
união entre a guerra e a racionalidade científica no Século XX. Desideologizado, o saber
científico-militar tem como único interesse encontrar quem lhe patrocine. Se von Braun e
a sua equipe temiam tanto os soviéticos, era porque sabiam que seriam forçados,
torturados a colaborar com um regime tirânico (muito melhor seria embarcar no conforto
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da vida americana). O que decerto não impedirá que outros ajam de forma diferente,
permitindo que após um curtíssimo intervalo de tempo também os “vermelhos” tenham
construído bólidos espaciais, caças Mig, mísseis terra-a-terra, e a ogiva nuclear.
Ter este quadro em mente é necessário para que compreendamos a relação íntima que se
estabelece, em O arco-íris da gravidade, entre a ficcionalização da Segunda Guerra
Mundial e o cenário da Guerra Fria, contemporâneo à escritura e lançamento do romance.
Neste artigo acompanharemos a construção da personagem Weissmann, figura que por si
mesma ou pelo seu trabalho obseda várias outras personagens do livro, transtornando
suas vidas para sempre, ou levando-as a se dedicarem obsessivamente a encontrá-lo
(numa ficcionalização da competição em busca dos cientistas alemães pelos aliados).
Weissmann é um eixo que organiza O arco-íris da gravidade, romance de narrativa
fragmentada, porém entrecruzada por linhas que apontam em direções discerníveis, ainda
que inconclusivas. Além de direcionar o fluxo do enredo, Weissmann encarna a crítica
engendrada pelo romance às relações entre as racionalidades burocrática, militar e
científica no século XX – cabendo ressalvar que esta interpretação lineariza o enredo, e
evidentemente estabiliza as possibilidades de sentido nele presentes. Outra possibilidade
de abordagem poderia advir da contraposição entre a sua carreira respeitável como oficial
do Exército alemão e a perversão que acompanhara tanto o seu passado quanto a
atmosfera grotesca que o circunda nos últimos momentos da Guerra, que parece apontar
para a inevitabilidade daquela perversão. Aquele amálgama do poder político, da
competência técnica, do carisma pessoal e da vontade de dominação do outro, que leva a
um fetichismo sexual mórbido, parece ter um norte que o orienta. Por questões de
espaço, não falaremos dele aqui; contamos porém que, para o leitor de O arco-íris da
gravidade, talvez fique clara a nossa intuição de que a centralidade de Weissmann está
ligada à sua capacidade de despertar nos demais a ação da potência subjetiva mais
intensa e inominável: o desejo.
Qual é o motivo da mediação? Weissmann decerto é um louco; mais do que isso, porém,
no nosso entender ele é um “desviante”, e a estratégia de apresentá-lo à distância
contribui para caracterizá-lo como tal. Um desvio só pode ser abordado mediante a
apresentação da normalidade que lhe serve de referência, impondo à narrativa delinear o
referente ético que caracteriza tal normalidade. A norma aparece na medida em que é
agredida, transparecendo em O arco-íris da gravidade através dos demais personagens
em seus déficits de compreensão quanto às motivações de Weissmann: se Katje,
Thanatz, Greta Erdmann, Pökler, Enzian e Gottfried não conseguem compreender os seus
atos, tal incompreensão é per se reveladora das normas que ele transgredira. A
impossibilidade mediana de compreensão do seu desvio o torna uma espécie de análogo
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do Capitão Kurtz de Joseph Conrad, um mente inacessível aos seus circundantes, e
mesmo para aqueles que o apreciam, reduzidos que estão à condição de “fiéis”,
“seguidores” ou “crédulos”.
Compreenderemos então que se trata de uma fratura do ethos que sustentara a sua
prática profissional. O que a sua loucura faz é dar um curso pessoal ao horror que, na
medida em que era normalizado pela praxis científico-militar institucionalizada, não teria
como transparecer a partir da praxis mesma. O conluio entre a diretriz militar e o ethos
científico-tecnológico contava com que este último se mantivesse na sua posição
tradicionalmente desideologizada, continuando a encontrar satisfação na própria praxis, e
não se interessando por nada mais além disso (idéia que é largamente explorada em O
arco-íris da gravidade como forma de tematizar a politização da ciência, tão
autodeclaradamente isenta, mas que muitas vezes se coloca com dócil presteza a serviço
do Estado). Apenas quando a loucura transtorna a rotina pode a irracionalidade da
instituição vir à tona; sem a erupção da anomalia, a fratura ética daquele
empreendimento não teria como aparecer. Mas de que forma ela se evidencia no caso em
questão? Da maneira como é apresentada dentro do enredo para as próprias personagens
do livro, a loucura de Weissmann não vem para denunciar nada. Ela não é politizada,
muito longe disso (a sua valência crítica se coloca para os leitores de O arco-íris da
gravidade, e não para as suas personagens). No que se restringe à economia do enredo,
o seu desvario não é carregado criticamente, mas sim reside na formulação de uma
crença pessoal mítico-religiosa, que como tal é racionalmente articulada – apesar de
irracional. Trata-se de um “credo” formulado a partir de elementos pertinentes aos
objetivos oficiais da sua prática profissional, que deles se desgarram adquirindo uma
conotação imprevista. Para apresentá-la, é preciso destacar uma forma em particular das
apresentações da morte em O arco-íris da gravidade, aquela em que, na condução da
guerra, a morte é tomada como um mero dado a ser equacionado num cálculo estatístico.
A América era mesmo a beira do Mundo. Uma mensagem para a Europa, do tamanho de
um continente, inescapável. A Europa havia encontrado o lugar para o seu Reino da
Morte, aquela Morte especial inventada pelo Ocidente. Os selvagens tinham suas regiões
desérticas, Kalaharis, lagos tão enevoados que era impossível divisar a outra margem.
Mas a Europa mergulhara mais fundo – na obsessão, no vício, afastando-se de todas as
inocências selvagens. A América era uma dádiva das potências invisíveis, uma maneira de
retornar. Mas a Europa recusou-a. Não foi o Pecado Original da Europa – o nome mais
recente para designá-lo é Análise Moderna – porém acontece que o Pecado Subseqüente
é mais difícil de expiar.
Esse “Estado Ideal Europeu” – perfeita inversão da utopia iluminista – será consumado
com o sacrifício do amado no notório 00000, faustoso “berço funerário” encomendado e
minuciosamente projetado para tanto. Ainda ignorante em relação ao que lhe esperava,
Gottfried ouve de seu mestre: “Quero sair – romper com este círculo de infecção e morte.
Quero ser tomado em amor: de tal modo que você e eu, e a morte, e a vida, sejamos
reunidos, inseparáveis, na radiância do que nos tornaremos...”. O sacrifício de Gottfried
será o momento sublime a promover a libertação da morte “desencantada” e o alcance da
Morte perfeita, ideal, sublime: a morte-vida.
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imprevista. Quando cessa o seu acesso de loucura, é justamente a sua racionalidade que
derramará terror para a realidade que o cerca, pois ficamos sabendo a insanidade de
Weissmann não perdurou para sempre: apesar de seu amor à morte, terá uma vida longa
e afortunada na América. Na leitura do seu tarô, seu futuro nos é informado: “Se você
quer saber onde ele se enfiou, procure entre os acadêmicos bem-sucedidos, os
assessores do presidente, os intelectuais que fazem figuração nas diretorias. É quase
certo que ele esteja lá. Olhe para cima, não para baixo”. A mesma situação já aparecera
em O arco-íris da gravidade centenas de páginas antes, quando um ex-integrante do
projeto dos V-2 é interrogado e revela ficcionalmente o destino da principal referência
não-ficcional tomada para a construção de Weissmann. Desta personagem ouvimos: “Eu
não pude ir com von Braun... ir para os americanos, a coisa ia simplesmente continuar
como antes... eu quero é que acabe de uma vez, só isso...”. Lembremos que o mesmo
Von Braun tem uma frase que serve de epígrafe à Parte 1 de O arco-íris da gravidade – e
a semelhança entre a sua trajetória e a de Weissmann é eloqüente demais para deixar
dúvidas quanto à referência à História recente, e que em 1973 era atualíssima: a ciência
militar alemã sendo sorridentemente incorporada pela “Morte Americana”, que, como
Weissmann observara, “aprendeu as táticas de império com sua antiga metrópole”.
PEDRO DOLABELA CHAGAS é Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), com dissertação intitulada “Mímesis e criticidade na obra de Luiz Costa Lima”. Atualmente, é
doutorando em Literatura Comparada da UERJ, e em filosofia da UFMG. Em ambos desenvolvo o mesmo
projeto, procurando identificar semelhanças epistemológicas nos trabalhos de Thomas Pynchon, de
Wolfgang Iser, e da dupla Gilles Deleuze e Félix Guattari.
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