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TERRITÓRIOS EM

96 DISPUTA: O PAPEL
DA PESQUISA
ARTIGO ETNOARQUEOLÓGICA
NOS ESTUDOS DE
IDENTIFICAÇÃO E
DELIMITAÇÃO DAS
TERRAS INDÍGENAS
GUARANI ÑANDEVA
NO SUDESTE DO
ESTADO DE SÃO PAULO
Robson Rodrigues1
1- Doutor em Arqueologia pelo MAE/USP e Pós-Doutor em Antropologia pelo CEIMAM/FCL/UNESP.
GEA/CEIMAM/FUNDAÇÃO ARAPORÃ.
robson_arqueo@yahoo.com.br
Resumo ABSTRACT
Em diferentes períodos históricos as ter- In different historical periods the lands
ras da região sudeste paulista eram habita- of the southeast of São Paulo were inhabited
das por populações indígenas Guarani e que by the Guarani indigenous population,
durante o processo de colonização foram whom, during the colonization process,
transferidas para a Terra Indígena Araribá, where transferred to the Indigenous Land
município de Avaí, região de Bauru, centro Araribá, Avaí district, Bauru region, central
oeste do estado, local da criação de um dos west of the state, place of creation of one of
primeiros aldeamentos oficiais do SPI. O the first official SPI villages. The Guarani
próprio deslocamento Guarani pelo seu Ter- movement within their territory, demon-
ritório demonstra que eles sempre foram da strates that they always have been of the re-
região estudada e que não chegaram por searched region and that they did not reach
acaso ao local. As migrações aconteciam an- this place randomly. The migrations oc-
teriormente à chegada dos europeus, consti- curred before the Europeans reached the
tuindo-se em aspectos próprios da cultura area, being part of the specific aspects of the
Guarani. O que se pretende desenvolver Guarani culture. What we intend to develop
nesse artigo é o entendimento de aspectos in this article is the understanding of aspects
da dinâmica de ocupação Guarani Ñandeva of the Guarani Ñandeva occupation dynam-
no vale do rio Itararé, além de informações ics in the Itararé river Valley, including the
sobre o grupo no que diz respeito a dados informations of the group related to ethno-
etnoarqueológicos sobre a ocupação das ter- archaeological data concerning the occupa-
ras indígenas, tendo em vista os aspectos tion of the indigenous lands, including cul-
culturais, espaciais e temporais. tural, spatial and temporal aspects.

Palavras-Chave: Guarani Ñandeva, Key-Words: Guarani Ñandeva, Terri-


Território, São Paulo. tory, São Paulo.

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INTRODUÇÃO transferidos para a região de Bauru, onde se


A construção da realidade sociocultural encontra a Terra Indígena Araribá, no mu-
do Estado de São Paulo, no contexto da nicípio de Avaí, centro oeste do estado, e
América Latina não pode ser entendida sem toda terra indígena destinada a formação do
a presença e a história dos povos Guarani. núcleo colonial, com a locação e demarca-
Este grupo étnico conhece perfeitamente a ção dos lotes no ano de 1929, realizado pelo
localização de suas áreas territoriais, estejam Departamento de Imigração e Colonização
elas no Brasil ou em outro país. Além disso, do Governo. O Hino Oficial do município
o domínio dos Guarani sobre o seu territó- também faz referência a respeito da ocupa-
rio é anterior à divisão do mesmo efetuada ção Guarani em duas estrofes:
entre portugueses e espanhóis. (...) Que num gesto de amor e grandeza
Os Guarani, na função de guias, carrega- Aos Caiuás que viviam aqui
dores, escravos, catequistas, ao longo da co- Doou tuas terras a esses brasileiros
lonização da América Latina, auxiliaram Da natureza bravos guerreiros
desbravadores, jesuítas, Coroas Portuguesa
e Espanhola a conhecerem e explorarem os Mata dos Índios foste outrora
Do rio Verde e Itararé
territórios que há muito lhes pertenciam.
Vales e serras paragens belas
Apesar da distância temporal que as afir-
Que nunca se viu por aí (...) (PMBA, 2010)
mações acima parecem ter do presente, as
pesquisas e entrevistas com moradores de Historicamente, o próprio deslocamento
Itaporanga e Barão de Antonina, região su- Guarani pelo seu território prova que eles
deste do estado de São Paulo, durante as são da região estudada e que não chegaram
pesquisas realizadas para identificação e de- por acaso ao local. As migrações aconteciam
limitação das terras indígenas1, mostraram anteriormente à chegada dos europeus,
claramente a presença dos Guarani naquelas constituindo-se em aspectos próprios da
paragens, ainda presente na memória de cultura Guarani, claro que o objetivo se
moradores vivos. Segundo estes atuais mo- transmutou devido a anos de contato com o
radores locais, os Guarani viviam ali até por não-indígena. Antes era uma busca por ma-
volta de 1950 e foram embora devido ao tas e rios, pela necessidade de renovar as
contínuo fluxo e povoamento de não-índio, fontes de alimentos e, com os anos de conta-
além das perseguições a eles infringidas to, teria se transmutado para a busca da ter-
(Rodrigues et all, 2010). ra sem mal, no intuito de evitar os cataclis-
No contexto histórico oficial do municí- mos na terra (dilúvios, desmatamentos,
pio de Barão de Antonina, anteriormente incêndios), ou mesmo a visita aos parentes.
petencente à Itaporanga e, hoje, emancipa- Afinal, aos Guarani concerne um sistema
do, em texto elaborado para a apresentação econômico e social que resguarda o ambien-
do município2 se faz a menção de que suas te ao qual se insere.
terras pertenciam aos índios Caiuás existen- Apesar de no passado terem vivido em
tes na região e que, posteriormente, foram um vasto território (boa parte do que hoje é
a região sul, sudeste e centro-oeste do Bra-
1- O grupo de pesquisa que realizou os estudos foi com- sil), atualmente, devido ao longo processo
posto por equipe multidisciplinar e contou com um arque-
ólogo, duas historiadoras, uma etnóloga, uma bióloga, um de colonização do país e a exploração capi-
engenho ambiental e um engenheiro agrimensor.
talista das terras, o sistema de aldeamentos,
2- www.baraodeantonina.sp.gov.br as perseguições de bugreiros, perseguições

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várias e a própria tutela realizada pelo go- nos parâmetros exigidos por sua cultura.
verno brasileiro, através da criação, em Ao longo da pesquisa pretendeu-se des-
1910, do órgão SPI (Serviço de Proteção aos tacar como se manifestou a presença Guara-
Índios) e, em 1967, da FUNAI (Fundação ni na localidade ora reivindicada com a de-
Nacional do Índio), os Guarani encontram- nominação de Terra Indígena Itaporanga e
-se confinados, recolhidos, em pequenas al- Terra Indígena Barão de Antonina, bem
deias reconhecidas ou não pela administra- como, as muitas perseguições e imposições
ção federal. dos não-indígenas àquele povo, fruto do et-
O sistema capitalista, caracterizado prin- nocentrismo e do sistema capitalista (Rodri-
cipalmente pelo individualismo, pela explo- gues et all, 2010).
ração do meio ambiente e pela propriedade No decorrer da pesquisa desenvolvemos
privada, avançou em quase toda parte das uma análise caracterizando o Território
antigas terras Guarani, deixando-lhes pouca Guarani, explanando a localização geográfi-
ou nenhuma opção de vida e de movimento ca e histórica deste povo no Brasil e em ou-
relacionado com sua forma étnica. tros países, as suas migrações míticas e an-
Por meio de sua organização política, cestrais por esse Território, a sua presença na
por sua vez, passaram a lutar pela manuten- região atualmente reivindicada e que consta
ção de sua identidade e retomada de seus desde o período pré-colonial, os embates
territórios, aldeias e aldeamentos, em geral com os não-índios e o confinamento em al-
usurpados pelos não-indígenas e, muitas ve- deamentos, apresentando a vida no aldea-
zes, regularizados pelos Governos Estaduais mento de São João Baptista do Rio Verde em
(caso ocorrido em Barão de Antonina e Ita- paralelo ao controle ou tentativa de controle
poranga), em um franco desrespeito a ime- efetuado pelos não-índios. Além de discutir
morialidade desses povos quanto ao seu di- sobre o povoamento não-indígena e a reto-
reito originário às terras indígenas que lhes mada dos territórios Guarani, com base na
são necessárias para sua sobrevivência física memória oral de depoentes Guarani e não-
e cultural à qual têm direito conforme artigo -índios, para relatar a questão fundiária na
231, da Constituição Federal de 1988, na Terra Indígena Itaporanga e Terra Indígena
qual é enfática e clara: Barão de Antonina, propondo uma delimita-
São reconhecidos aos índios sua organização social, cos- ção territorial que dará conta de possibilitar
tumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originá- a reprodução física e cultural dos grupos
rios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com- Guarani que hoje ocupam a região do vale
petindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar do rio Itararé (Rodrigues et all, 2010).
todos os seus bens.
Informações a respeito da ocupação
Em um movimento recente e para fazer Guarani Ñandeva no contexto do vale do
valer este artigo da CF/1988, os Guarani rio Itararé, além de informações sobre o
Ñandeva se deslocaram da Terra indígena grupo no que diz respeito a dados históri-
Araribá, para as Terras Indígenas de Itapo- cos sobre a ocupação das terras indígenas,
ranga e Barão de Antonina no intuito de re- tendo em vista os aspectos espaciais e tem-
tomar parte de seu antigo território. porais. Elementos a respeito do território
Durante esses longos e sofridos séculos e ocupado pelo povo Guarani Ñandeva na
apesar das perdas, os Guarani continuaram região de Itaporanga e Barão de Antonina,
lutando por sua liberdade de ir e vir e pela enfatizando sua permanência habitacional,
manutenção da identidade e do território foram sistematizados para caracterizar sua

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efetiva ocupação deste território paulista.


Tratando das atividades produtivas,
abordamos aspectos presentes nas aldeias
organizadas nas respectivas Terras Indíge-
nas para desenvolver um amplo estudo da
caracterização regional a partir de um diag-
nóstico ambiental, apontando as condições
observadas e as possibilidades de utilização
dos recursos naturais no contexto das terras
reinvindicadas, abordando aspectos do
modo de vida Guarani e sua reprodução fí-
sica e cultural.
Este caminho foi percorrido para chegar-
mos a análise da questão fundiária observa-
da no processo histórico e apresentarmos
uma proposta de delimitação das Terras In- FIGURA 1: Desenho da viagem feita pelos Guarani entre
Araribá e Itaporanga realizado por Claudemir Marcolino
dígenas Itaporanga e Barão de Antonina.
Em todos os momentos do trabalho de
pesquisa houve a participação consciente da O OLHAR ETNOARQUEOLÓGICO NA DE-
comunidade indígena, permitindo que seus FINIÇÃO DO TERRITÓRIO GUARANI NA
membros tivessem controle das informa- BACIA DO ALTO PARANAPANEMA
ções recolhidas e que, futuramente, a utili- O grupo étnico Guarani, presente na me-
zem no dia a dia das aldeias e no trato com mória, na história e na cultura material da
seu território. região pesquisada, apresenta como principal
Na época da chegada dos Guarani na re- característica identitária uma grande mobi-
gião, em agosto de 2005, saídos da Terra In- lidade por seus territórios, outrora relacio-
dígena Araribá, se instalaram em locais que nados à sua sobrevivência física e posterior-
ofereciam condições mínimas para a sobre- mente a questão mítico-religiosa.
vivência do grupo. Este movimento contou Atualmente a área onde se encontra inse-
com a participação de Claudemir Marcolino, rida as TIs Barão de Antonina e Itaporanga
importante liderança Guarani da TI Araribá é banhada pelas águas do lago da UHE Xa-
que documentou e reproduziu em um mapa vante que foi construída nos anos 70 do sé-
a viagem dos Guarani Ñandeva entre a TI culo XX. Nesse período se realizou pesqui-
Araribá e Itaporanga e Barão de Antonina. sas arqueológicas que foram coordenadas
De acordo com as informações recolhi- por Igor Chmyz, pesquisador da Universi-
das pelo Grupo Técnico que realizou as pes- dade Federal do Paraná (Araújo, 2001).
quisas na região, os motivos que levaram os As pesquisas associadas a Arqueologia
Guarani Ñandeva saírem da TI Araribá para Guarani no alto curso da bacia do rio Para-
Itaporanga e Barão de Antonina foram fato- ná, no estado de São Paulo, apresentam da-
res ecológico-ambientais e conflitos sociais dos materiais sistematizados a respeito das
internos, aspectos atuais da constante movi- áreas onde, no passado, já se movimentaram
mentação que historicamente se ocupam grupos domésticos do povo Guarani (Ro-
esse povo e que caracteriza seu modo de ser drigues, 2001). O vale do rio Paranapanema
(Rodrigues et all, 2010). em sua junção com o alto Paraná é conside-

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rado pelos pesquisadores como sendo a chado, 1973 apud Noelli, 2000:250),
porta de entrada dos Guarani para os atuais 1.195+/-80 (Brochado, 1973 apud Noelli,
estados de São Paulo, Paraná e sul do Brasil. 2000:250) e 850+/-150 (Brochado, 1973
Quando da chegada dos europeus na região apud Noelli, 2000:250). Estas informações
da bacia do Paraná, estimava-se que exis- apontam para uma continuidade ocupacio-
tiam mais de duzentos mil indígenas ocu- nal desta área, só sendo interrompida com a
pando toda a região (Mota, 2007; Noelli, presença européia no período colonial.
2000 e Brochado, 1984). Os Guarani realizam seus movimentos,
Como bem indicam as pesquisas arqueo- seja para visitar parentes ou mesmo religio-
lógicas, assentamentos de grupos Guarani sos em direção a serra do mar no litoral pau-
ocorreram ao longo de todo Paranapanema lista desde tempos imemoriais. Entre o povo
e seus afluentes e várias evidências apontam Guarani, o deslocamento populacional num
para uma grande intensidade de sua ocupa- determinado território, constitui-se numa
ção. Prospecções extensivas desenvolvidas das características de sua forma de vida, de
na região levaram à identificação de mais de sua forma de ser. As migrações acontecem
cem sítios arqueológicos, não deixando dú- dentro de limites geográficos que lhes são
vidas quanto a intensidade com que se pro- muito claros e se realizam em caminhadas e
cessou a ocupação de todo o vale por parte em visitas aos parentes, principalmente (Ro-
deste povo (Robrahn-González, 2000; San- drigues, 2001).
tos E Faccio, 2007). O contato com os não-índios teve influ-
Associado ao elemento material das pes- ência sobre os povos indígenas, especial-
quisas arqueológicas, definido pelas cerâmi- mente sobre os seus deslocamentos popula-
cas e líticos polidos, pesquisas etnobiológi- cionais. Doenças como a gripe, o sarampo, e
cas e de história indígena vem demonstrando outras, adquiridas pelo contato com “civili-
que os territórios de domínio de alguns po- zados” bem como a forma de vida capitalis-
vos Tupi eram lentamente conquistados, ta-individualista, empecilho à realização do
manejados e longamente usufruídos (Noelli modo de ser Guarani, provocaram a depo-
E Dias,1995). Noelli (1993), ao analisar os pulação, certo sedentarismo nas periferias
processos de ocupação territorial do povo de centros urbanos que se construíram em
Guarani, apresenta como termo mais ade- seus antigos territórios e, de certa forma,
quado para definir os deslocamentos deste acentuou o deslocamento geográfico dos
povo pelos territórios que iam ocupando, o que são sobreviventes para áreas menos pro-
conceito de expansão territorial. curadas pelos não-índios.
É certo, porém, que as datações arqueo- A frequência desses deslocamentos, de-
lógicas associadas aos elementos materiais terminada também pelas más condições de
da cultura Guarani mostram que este povo realização do ser Guarani, se modificou ge-
já estava instalado na bacia do Paranapane- rando também ajuntamento de grupos que
ma, desde 2.000 AP (Morais, 2000:215). antes tinham seus espaços próprios.
De acordo com as datações já realizadas Toda a sorte de dificuldades à realização
para o contexto do município de Itaporan- do modo de ser Guarani, causadas pelo con-
ga, o processo de ocupação espacial através tato com os não-índios, estimulou a busca
do tempo por parte do povo Guarani, desde da terra sem males no plano da realidade
a data mais antiga até a mais recente, corres- objetiva e não apenas da espiritualidade
ponde às principais datas 1870+/-100 (Bro- Guarani. Grupos de Guarani deixaram de

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Subiram lentamente pela margem direita do Paraná,


voltar para lugares que lhes era familiar de-
atravessando a região dos Apapocúva até chegar à dos
vido à penetração e à apropriação desses lu- Oguauíva, onde seu guia morreu. Seu sucessor, Ñande-
gares pelo sistema capitalista, realizada pe- ruí, atravessou com a horda o Paraná – sem canoas,
los não-índios (Rodrigues et all, 2010). como conta a lenda -, pouco abaixo da foz do Ivahy, su-
No início do século XX, o etnólogo e fun- bindo então pela margem esquerda deste rio até a região
cionário do governo federal no Serviço de de Villa Rica, onde, cruzando o Ivahy, passou-se para o
Tibagy, que atravessou na região de Morros Agudos. Ru-
Proteção aos Índios – SPI, Curt Nimuendaju
mando sempre em direção ao leste, atravessou com seu
Unkel, que viveu e acompanhou por mais de grupo o rio das Cinzas e o Itararé até se deparar, final-
40 anos os povos Guarani e seus desloca- mente, com os povoados de Paranapitinga e Pescaria na
mentos, principalmente no Estado de São cidade de Itapetininga, cujos primeiros colonos nada
Paulo, registrou as vicissitudes e as migra- melhor souberam fazer que arrastar os recém-chegados
ções Guarani ocorridas no século XIX e para a escravidão. Eles, porém, conseguiram fugir, per-
severando tenazmente em seu projeto original, não de
princípio do século XX, período de acirra-
volta para o oeste, mas para o sul, em direção ao mar.
mento da apropriação dos territórios Guara- Escondidos nos ermos das montanhas da Serra dos Ita-
ni em São Paulo pelos fazendeiros do café, tins fixaram-se então, a fim de se prepararem para a
incluindo dentre esses o Barão de Antonina. viagem milagrosa através do mar à terra onde não mais
Segundo Curt Nimuendaju, se morre (Nimuendaju, 1987:9-10).

Pajés, inspirados por visões e sonhos, constituíram-se Os não-indígenas, sabendo da proximi-


em profetas do fim iminente do mundo; juntaram à sua dade destes índios, se prepararam para ex-
volta adeptos (...) e partiram em meio a danças rituais e pulsá-los. Os Tañyguá, por sua vez, com o
cantos mágicos, em busca da “Terra sem Mal”; alguns a auxílio de Avavuçú, seu melhor guerreiro,
julgavam situada, conforme a tradição, no centro da ter-
revidaram armando uma emboscada na de-
ra, mas a maioria a punha no leste, além do mar. So-
sembocadura do Rio do Peixe no Itariri,
mente deste modo esperavam poder escapar à perdição
ameaçadora (Nimuendaju, 1987:8 e 9). “infligindo-lhes perdas que os rechaçaram”.
Posteriormente, com a mediação do guarani
Nesse período, o interior do Estado de chamado Capitão Guaçú, estabeleceu-se “re-
São Paulo e outras regiões do Brasil, eram ob- lações amistosas” entre os Tañyguá e os não-
jeto de conhecimento e registro pelas Comis- -índios, recebendo, os Tañygua, “em 1837,
sões Geográficas e Geológicas e pelas equipes do Governo Imperial, uma légua quadrada
de reconhecimento de território e de povos de terra no rio do Peixe e no rio Itariry” (Ni-
dirigidas pelo Marechal Rondon. Comissões muendaju, 1987:10).
e equipes que preparavam o espaço, derru- Como resultado dos contatos entre Tañy-
bando florestas, reconhecendo cursos de rios, guá e não-índios notou-se a diminuição
montanhas, instalando telégrafos e contatan- quase imediata do grupo, devido às epide-
do povos indígenas para que pudessem então mias e à miscigenação, bem como a poste-
receber agricultores e extrativistas nacionais. rior perda das terras indígenas Guarani do
Toda essa gente trazia para os Guarani, doen- Itararé para os grupos de não-índios.
ças e devastação, tornando a realidade para Elliot (apud Lima, 1978) verificou que
esses indígenas ameaçadora e apocalíptica. em 1830 apareceu, nas vizinhanças da Vila
Segundo registros de Nimuendaju, no de Itapetininga (distrito de Itapeva), uma
século XIX, a marcha dos Guarani Tañyguá porção de índios Guarani, provenientes da
(1820), vizinhos meridionais dos Guarani área compreendida entre os Rios Ivinhema e
Apapocúva, liderados pelo pajé-chefe Ñan- Iguatemy (ao sul do Mato Grosso). Apesar
deryquyní, seguiu a rota descrita abaixo: de a referência citar, genericamente, índios

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Guarani, é bem provável que sejam os Tañy- sendo esses dois últimos afluentes do pri-
guá em sua migração. meiro. No ano de 1843, no município de Ita-
Em 1833, um outro grupo de índios Gua- peva, havia uma aldeia situada à margem
rani foi localizado nas matas do rio Juquiá esquerda do Rio Verde (“aldeia indígena do
(sul da Província de São Paulo). Estes índios, Capitão Manal”) e outra à direita do Rio Ita-
na década de 1840, também foram confina- raré. Estas aldeias distavam uma légua entre
dos no aldeamento de Itariri, em Iguape, li- si e doze léguas da residência do Barão de
toral da então Província de São Paulo. Antonina. “Esta aldêa com vinte e tantas ca-
Nimuendaju destacou que os Tañyguá sas está vantajosamente situada no lado es-
ao passarem pelo território dos Oguauíva (o querdo do rio Verde, tendo a poente uma ou-
Mbaracaý) perceberam que aqueles não sa- tra aldêa pouco menor debaixo dos mesmos
biam as danças religiosas relacionadas ao auspícios”. Na Comarca de Coritiba, um
mito da “terra sem mal”. Ao aprenderem pouco distante do Rio Itararé, havia uma ter-
com os Tañyguá, logo em seguida os Oguauí- ceira aldeia Guarani, que foi destruída num
va iniciaram a sua migração. embate com os “Guayanazes”. Do embate
Em 1830 a sua caminhada foi igualmente interrompida sobreviveram 28 índios que se juntaram a
na grande estrada de São Paulo ao Rio Grande do Sul, uma das aldeias citadas (Nimuendaju, 1987).
na região de Itapetininga. Os Oguauíva então retrocede- Assim, os deslocamentos dos Guarani,
ram um pouco na direção oeste, até entre os rios Taqua- no século XIX, para a região do Itararé foi
ry e Itararé, vivendo em bons termos na fazenda Piritu-
influenciado pela presença de seus parentes
ba, do Barão de Antonina, que solicitou ao governo um
por aquelas paragens, pois, as aldeias men-
missionário para eles. Em 1845 este chegou, na pessoa de
Frei Pacífico de Montefalco, que fundou no Rio Verde a cionadas e os muitos vestígios arqueológi-
missão São João Baptista, atual Itaporanga (Nimuenda- cos indígenas nessa área sugerem diferentes
ju, 1987:10-11). datações para os povoamentos indígenas. É
Os índios que caminhavam pela Comar- importante frisar a importância do desloca-
ca de “Coritiba” estabeleceram três aldeias mento Guarani em busca da Terra Sem Mal
próximas uma das outras nas adjacências e das visitas aos parentes, pois esses fatos
dos Rios Paranapanema, Itararé e Verde, ocorrem em terras reconhecidas na memó-
ria desses povos, se con-
figurando em seus anti-
gos territórios.
De acordo com as in-
formações registradas
por Nimuendaju (1987)
em seu mapa etno-histó-
rico, os Guarani já esta-
vam ocupando as terras
entre os rios Itararé e
Verde, onde hoje está o
município de Itaporanga,
no período anterior ao
ano de 1830.
FIGURA 2: Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju identificando o território Guarani A área em questão,
onde hoje se encontra o município de Itaporanga
durante o século XIX, es-

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tava sob a órbita do que seria, a partir de rios Itararé, Verde, Apiaí, Apiaí-Mirim, Ita-
1853, divisa entre as duas províncias – São petininga, Turvo e Taquari (todos eles com
Paulo e Paraná – território tradicionalmente nomes de origem Guarani) perceberam a
Guarani. Os interesses dos não-índios eram vantagem do uso dos históricos conflitos ét-
vários: apossar-se das terras dos indígenas nicos entre Kaingang e Guarani para, literal-
para estabelecimento da lavoura e da pecuá- mente, ganharem terreno. Os Kaingang so-
ria capitalista; transformação do indígena breviventes do conflito desse período, século
em mão-de-obra barata; criação de rotas de XIX, uniram-se aos grupos de Salto Grande
comunicação, transporte e comércio entre do Paranapanema e àqueles que viviam nos
Mato Grosso, São Paulo e Paraná; proteção Vales dos rios Feio Aguapeí e do Peixe (Ro-
das fronteiras face aos vizinhos estrangeiros. drigues, 2003).
Região de aldeias e de caminhadas Guarani, No entanto, no decorrer do relaciona-
essa era objeto de implantação de políticas mento, as contrapartidas do não-índio fo-
capitalistas. ram rareando. Dessa forma, os Guarani per-
Para poder se fixar naquelas paragens, os ceberam que haviam sido enganados pelos
não-índios, tendo conhecimento dos confli- não-índios, pois esses queriam apenas a li-
tos deles com os grupos indígenas Kaingang, beração de mais terras e a expulsão dos
que também viviam nesse território, aliam- Kaingang. Conseguido esse intento descui-
-se aos Guarani e expulsam os Kaingang. daram da aliança e das promessas feitas aos
Isso feito, os não-índios rompem o pacto Guarani. Por outro lado, os Guarani, após a
celebrado e passam a expulsar, perseguir e aliança feita, precisavam muito mais da as-
escravizar os Guarani que já se encontra- sistência, pois estavam doentes, sujeitos à
vam enfraquecidos devido às doenças, da vingança dos Kaingang e com dificuldades
qual não possuíam imunidade. para viverem conforme suas premissas cul-
Segundo Frei Nelson Berto (1983:01), as turais (economia, língua, imaginário, costu-
tentativas do governo de criar missões indí- mes, pensamento) devido à presença cres-
genas para controlar os deslocamentos indí- cente e constante dos colonos (fazendas e
genas na Província de São Paulo fez com que cidades), suas plantas (café, cana) e seus ani-
os parentes Guarani viessem da Comarca de mais (gado bovino, eqüino, cachorros).
Coritiba, devido aos conflitos que travaram A aliança dos Guarani com os não-índios
com os Kaingang por lá. teve como conseqüências, entre outras, as
Em relação ao conflito Kaingang e Gua- doenças já mencionadas e a escravidão, ób-
rani, o que se observa é a rivalidade dessas via ou dissimulada, de Guarani na região de
duas etnias, com os Kaingang muitas vezes Itapetininga, Salto Grande e Itapeva (Pinhei-
vencendo os Guarani. Entretanto, isso não ro, 1992; Saint-Hilaire, 1972; Lima, 1978).
ocorreu na região de Itapetininga, pois os Famílias Guarani ou indivíduos viviam
Guarani uniram-se aos não-índios com o agregados às terras que se tornaram pro-
intuito de manter longe os grupos indígenas priedades dos não-índios, servindo às famí-
Kaingang, também habitantes da região, que lias na casa ou na fazenda. Alguns grupos,
se tornaram “o inimigo comum” para Gua- mais isolados, deixaram até hoje vestígios,
rani, posseiros, fazendeiros e agrimensores dessa fase do relacionamento, que podem
(Rodrigues et all, 2010). ser vistos na denominação de Mata dos Ín-
Os colonos não-índios do Médio e Alto dios para uma propriedade onde eles então
Vale do rio Paranapanema, dos Vales dos viviam.

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Essa região denominada Mata dos Índios gião se intensificou a partir dos anos 80 do
é bem conhecida pela população da região século XIX, o que desencadeou uma sequ-
do município de Itaporanga. Assim que os ência de iniciativas com a finalidade de ex-
atuais proprietários souberam do retorno propriação total do território Guarani.
dos Guarani para a região, eles removeram a De acordo com Mendes (1996), Jorge Se-
placa, mas deixaram os palanques que fo- ckler identifica a fertilidade do solo e lamen-
ram fotografados por esse Grupo de Traba- ta a ocupação indígena por não explorá-lo a
lho (Rodrigues et all, 2010). contento: “Entre o Itararé e o rio Verde há um
A comissão técnica da Inspetoria de Ter- extenso terreno de superior qualidade, muito
ras, Colonização e Imigração, criada pela próprio para a cultura do café, todo livre de
Secretaria de Agricultura para evitar um geada. Mede 33 quilômetros de comprimento
conflito maior entre índios e posseiros, sobre 3 quilômetros de largura. Este terreno é
identificou e delimitou um grande terreno ocupado pelos índios que pouca plantação fa-
conhecido por Mata dos Índios que “inicia- zem” (Mendes, 1966:78).
va-se aproximadamente a dois quilômetros A ocupação indígena nesta região sem-
da cidade do Rio Verde, estendendo-se até a pre foi contínua e ininterrupta e o processo
confluência dos rios Verde e Itararé. Coberto de expropriação das terras Guarani se deu
de espessas matas era habitado nas margens em etapas e durou mais de vinte anos.
dos dois rios por índios e invasores brancos” Segundo Nimuendaju (1987), e outros
(Mendes, 1996:79). documentos consultados, os Guarani aceita-
O mapa etnográfico organizado por ram o “auxílio” oferecido pelo latifundiário
Hermann Von Ihering (1911) identifica a e político Barão de Antonina pelo temor que
Mata dos Índios e outros assentamentos da os Guarani tinham em relação aos Kain-
ocupação Guarani na área definida entre os gang, pois haviam estabelecido aldeias pró-
rios Itararé e Verde, hoje município de Ita- ximas aos rios Verde e Itararé, durante a re-
poranga. alização do seus movimentos migratórios
O interesse em ocupar terras indígenas proféticos. Mas, segundo Amoroso, o conta-
por parte da expansão colonizadora na re- to do Barão com os Guarani e o patrocínio
de aldeamentos “foram concebidos como
uma solução para o povoamento do sertão
meridional, perigosamente desguarnecido às
vésperas da Guerra do Paraguai” (Amoroso,
1998:41). Sendo, portanto, de interesse do
governo manter os Guarani na região.
Hoje encontramos por todas a áreas dos
dois municípios relatos da população local
sobre a presença dos Guarani na região, bem
como outras evidências como o apareci-
mento de objetos e utensílios arqueológicos,
plantas sagradas e medicinais usadas por
esse antigo povo e, que após a sua passagem
pelo local, elas nascem, espontaneamente,
FIGURA 3: Mapa etnográfico de Von Ihering identificando o ter- por toda parte, especialmente onde eles vi-
ritório Guarani onde hoje se encontra o município de Itaporanga
veram mais intensamente, como é o caso da

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planta do tabaco, usada nos rituais sagrados minhadas Guarani. Sendo território por
e encontrada pelos pastos da região, bem eles reconhecido, permaneciam o tempo
como outras apontadas pelos moradores lo- que quisessem no local que lhes era de di-
cais como medicinal e que seu uso foi apren- reito (Rodrigues et all, 2010).
dido com a tradição Guarani (Rodrigues et Vários grupos Guarani seguiram o ca-
all, 2010). minho dos Tañyguá e dos Oguauíva, entre
No entanto, há outros documentos que eles, em 1870, estavam os Apapocúva. Se-
destacam que os Guarani da região foram gundo Nimuendaju (1987, p. 12) os pajés
procurados pelo Barão de Antonina, que Apapocúva Guyracambí e Nimbiarapoñý
possuía o interesse claro em utilizá-los como rumaram para leste. Guyracambí tentou,
mão de obra em sua fazenda e como guias por duas vezes, ir em direção ao mar, mas
nas expedições exploradoras que promovia. foi impedido pelas autoridades brasileiras,
Segundo Pinheiro, o ato adicional de assim, ficou um período no aldeamento de
12/08/1834 deu às Assembléias Legislativas Jatahy, na província do Paraná, “onde fazia
Provinciais o direito de legislar sobre cate- oposição aberta à catequese” do missioná-
quese e civilização dos índios, juntamente rio Timotheo de Castelnuovo, talvez devi-
com o Governo Central. Esse fato transfere do à exploração da mão de obra indígena e
para a iniciativa privada local a conquista imposição do modo de vida do não-índio
dos territórios e o controle das comunida- aos Guarani, liderada pelo missionário
des tribais (Pinheiro, 1992:196). cristão.
Em 1845, foi fundado pelos Guarani, No Jatahy uma grande parte do seu bando desligou-se,
com apoio do Barão, o aldeamento de São buscando voltar para o rio Verde. Este novo bando esta-
João Baptista do Rio Verde, na confluência va sob a chefia de Honório Araguyraá, neto do afamado
dos rios Verde e Itararé. Além de viverem guerreiro Papaý que no princípio do século XIX foi o
terror do Kaingýgn. Até o ano de 1892 ele estava na vi-
nesse local, alguns o utilizaram como lugar
zinhança dos Oguauíva, mas sem se misturar com estes,
de passagem em suas caminhadas e outros
morando na parte mais setentrional do território indí-
ainda, como local de abastecimento de gena do rio Verde (Nimuendaju, 1987:12).
“bens civilizados”.
No final do século XIX, nota-se uma eu- Nimuendaju (1987) afirmou que a docu-
foria para que fosse povoada por não-índio mentação da terra doada pelo Barão de An-
e utilizada sob a forma capitalista a área ter- tonina para a formação do aldeamento de
ritorial que até então estava sob domínio da São João Baptista foi perdida, e, isso auxiliou
forma de uso indígena. O Barão, a Igreja os não-índios nas usurpações que se segui-
Católica, a constituição de vilas e cidades e ram. Parte desses índios, após dizimações
os agrimensores e bugreiros eram os atores por epidemias, mestiçagem e o desgaste das
da transformação almejada pelo poder pú- lutas contra as usurpações de suas terras,
blico e particular. estabeleceram-se no Posto Indígena de Ara-
O aldeamento de São João Baptista foi ribá, em 1912.
criado, bem como, outros na região do vale O aldeamento de São João Baptista do
do rio Itararé, mas, o movimento mítico- Rio Verde (1845) foi o primeiro a ser criado
-profético desse povo permanece ao longo no Vale do Paranapanema. Depois dele, fo-
dos séculos XIX e XX. Como já foi aponta- ram estabelecidos o de São Sebastião do Pi-
do, os aldeamentos criados seriam utiliza- raju (1854) e o de São Sebastião do Tijuco
dos como ponto de apoio e parada nas ca- Preto (1864).

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As áreas dos aldeamentos eram normal- zando e delimitando o território Guarani


mente pequenas, pois a concepção que pre- onde hoje se encontram os municípios de
dominava junto aos responsáveis pela polí- Itaporanga e Barão de Antonina (Mendes,
tica que os introduzia, era de que os índios 1996).
não necessitavam de tanta terra para sobre- O Barão afirmava que os índios ficariam
viver, bastava uma porção suficiente para o acostumados com os hábitos civilizados, a
desenvolvimento da lavoura familiar e da ponto de se recusarem a voltar à “vida erran-
pecuária de subsistência. Segundo docu- te”, preferindo fixar-se em um local dotado
mento oficial, do funcionário da província das benesses da civilização. Aponta que o
de São Paulo, responsável pela Diretoria Ge- acolhimento destes índios em um aldea-
ral dos Índios, José Joaquim Machado de mento continuaria garantindo a proteção
Oliveira, o aldeamento de São João Baptista dos moradores locais em face de outros gru-
do Rio Verde possuía duas léguas de largura pos indígenas, considerados ferozes, bem
e 3 a 6 de comprimento, o de São Sebastião como serviria de exemplo para que outros
do Piraju era formado por “meia légua qua- índios, ao perceberem as vantagens de habi-
drada, pouco mais ou pouco menos” e o de tar neste estabelecimento, o procurassem
Itariri também era constituído da mesma também como moradia.
quantidade de terra que o de Piraju (Rodri- O próprio Barão, em 1845, enviou uma
gues et all, 2010). expedição para explorar os rios Verde, Itara-
O Barão de Antonina, em 1843, comuni- ré, Paranapanema, Paraná, Tibagi, Ivahy e
cou ao Governo Imperial a existência de al- seus afluentes, assim como os sertões do en-
deias Guarani próximas a sua fazenda e a torno. O relatório produzido, a partir dessa
necessidade de fazê-las progredir. A idéia de expedição, apresentou pormenores dos con-
progresso convergia com o estabelecimento tatos delineados entre índios e não-índios e
de aldeamentos, comandados por freis ca- a significativa presença indígena constatada
puchinhos, com o objetivo de catequizar e pela expedição reforçou a idéia do Barão, de
civilizar os indígenas. Ao Governo cabia, estabelecer aldeamentos na região (Rodri-
então, “animar este estabelecimento, dar-lhe gues et all, 2010).
a consistência e o prestígio” necessário para Em relação à realidade dessa época e que
tornar-se auto-suficiente e criar condições perdura até hoje, Nimuendaju afirma:
de inseri-los na sociedade civilizada. O Barão de Antonina presenteara os índios com a ponta
No intuito de convencer o Governo Im- de terra entre os rios Itararé e Verde; mas os documentos
perial, Antonina apresentou os benefícios pertinentes desapareceram muito a propósito, e assim,
que proporcionaria um aldeamento de ín- também aqui os intrusos rapidamente prevaleceram,
transformando a terra dos índios em trunfo no jogo sujo
dios na região. Para tanto, sugeriu que as
da politicagem regional. Todas as queixas por parte dos
três aldeias constituíssem um único aldea-
índios em São Paulo e Rio somente pioraram a sua pró-
mento, próximo ou do Rio Verde ou do Rio pria situação (Nimuendaju, 1987:11).
Itararé, constituído de todos os empregos
que se fizesse necessário para o desenvolvi- Várias foram as expedições patrocinadas
mento do indígena ao encontro à civiliza- pelo Barão de Antonina que convergiram na
ção, ao seu “bem-estar” e, principalmente, atração de muitos índios Guarani que cami-
ao seu posterior auxílio à sociedade. A pedi- nhavam, aparentemente dispersos pela re-
do do Barão de Antonina, João H. Elliot, em gião ou mesmo vindos de outras Províncias,
1845, elabora um mapa da região, espaciali- por exemplo, do Mato Grosso. O objetivo

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era estabelecê-los em aldeamentos controla-


dos pelo Governo, nas províncias de São
Paulo e Paraná.
Fundado em 1845 o aldeamento de São
João Baptista do Rio Verde será utilizado
como ponto de apoio estratégico para o
abastecimento e para a formação de outros
aldeamentos, na província do Paraná, no en-
torno dos rios Paranapanema e Tibagi.
Em 1854, vieram para o aldeamento de
São João Batista da Faxina (ou do Rio Verde)
200 Guarani do aldeamento de São Jerôni- FIGURA 4: Quadro populacional do aldeamento Guarani de
São João Batista do rio Verde entre o século XIX e início do XX
mo do Jatahy, localizado na Província do (Mendes, 1996:81)
Paraná, fugindo dos Kaingang. A chegada
de tal número de pessoas, equivalente a um SPI e LTN, continuaram a reconhecer a exis-
grande agrupamento, causou conflitos den- tência das terras indígenas do antigo aldea-
tro do aldeamento, no entanto, ao serem in- mento localizadas em Itaporanga, mas tam-
quiridos a partirem do local, relutaram afir- bém admitiam a inoperância do órgão em
mando que possuíam parentes e amigos que administrar bens dos seus tutelados (Rodri-
ali moravam. Dois anos depois, a população gues et all, 2010).
do aldeamento de São João Baptista da Faxi- Os Guarani, por sua especificidade, con-
na registrou 130 índios. sidera todas as terras indígenas Guarani
Em 1869, o Diretor Geral dos Índios como parte de um único Território, bem
Francisco Antonio de Oliveira apontou a como, apresentam uma grande mobilidade
ocorrência de onze aldeamentos na provín- dentro deste, haja vista, que pertence a todos.
cia: “Pinheiros, Mboy, Carapicuíba, Barueri, O fato desta terra ser pequena, como a
S. Miguel, Escada, S. João de Queluz, Itaqua- maioria das terras Guarani, também justifi-
quecetuba, S. João Baptista, Itariri e Tijuco ca a migração destes indígenas para territó-
Preto” (Rodrigues et all, 2010). rios reconhecidamente de suas etnia – devi-
No final do século XIX, os Guarani esta- do a ancestralidade. É o caso das famílias
vam sem apoio do Governo e pressionados Ñandeva que reocuparam junto com seus
pelos imigrantes europeus que chegavam familiares provenientes de Araribá as terras
cada vez em maior número, munidos de ora reivindicadas em Itaporanga e Barão de
todo um aparato legal que os favoreciam na Antonina, no estado de São Paulo.
legitimação enquanto proprietários das ter- Assim, observa-se, que o Governo Esta-
ras, até então, de pobres e humildes possei- dual aliado aos interesses da propriedade
ros ou de índios Guarani. privada da terra, efetivou projeto de coloni-
Como se pode observar, devido às amea- zação, por meio da expulsão e do esbulho
ças dos fazendeiros e posseiros, que invadi- dos povos nativos, os Guarani, de suas terras
ram o território Guarani, o Serviço de Pro- tradicionais e originárias. Colocando em
teção aos Índios não garantiu a posse seu lugar o não-indígena brasileiro e estran-
indígena ao seu território, deixando que os geiro para por em prática a agricultura e a
intrusos se fixassem no local. Além disso, pecuária capitalista. Na desculpa de evitar a
funcionários da Inspetoria de São Paulo, do sua extinção, causada por agentes epidemio-

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lógicos, perseguições, assassinatos, humi- as perseguições de bugreiros, perseguições


lhações, imposição de um modo de ser e várias e a própria tutela realizada pelo go-
viver que negava o ser Guarani, foram con- verno brasileiro, através da criação, em
finados em pequenos espaços de terras a se- 1910, do órgão SPI (Serviço de Proteção aos
rem protegidas por servidores públicos sem Índios) e, em 1967, da FUNAI (Fundação
poder para reagir à política de colonização Nacional do Índio), os Guarani encontram-
em andamento. Nesse espaço continuaram -se confinados, recolhidos, em pequenas al-
a sofrer com as ações dos não-indígenas, deias reconhecidas ou não pela administra-
mas, assim mesmo, conseguiram manter, a ção federal.
custo, a sua identidade e cresceram popula- Através de sua organização política, por
cionalmente (Rodrigues et all, 2010). sua vez, passaram a lutar pela manutenção
de sua identidade e retomada de seus terri-
PARA CONCLUIR tórios, aldeias e aldeamentos, em geral usur-
O território indígena se caracteriza como pados pelos não-indígenas e, muitas vezes,
um espaço fortalecedor de sua identidade regularizados pelos Governos Estaduais
étnica e de reconhecimento enquanto per- (caso ocorrido em Barão de Antonina e Ita-
tencente a um universo diverso. Nesse con- poranga), em um franco desrespeito a ime-
texto, o modo de ser Guarani Ñandeva se morialidade desses povos quanto ao seu di-
configura pelo sentimento de pertencimen- reito originário às terras indígenas que lhes
to a terra e aos elementos viventes nesse são necessárias para sua sobrevivência física
meio, pelo qual concebem a sua visão de e cultural à qual têm direito conforme artigo
mundo. Retomar o território de domínio in- 231, da Constituição Federal de 1988, na
dígena passa a ser, na atualidade, uma ação qual é enfática e clara.
fundamental na estruturação das condições O povo Guarani sempre foi da região in-
necessárias para a própria continuidade da cerida no vale do rio Itararé onde hoje se
diversidade étnica presente no Estado de encontram os municípios de Itaporanga e
São Paulo. Barão de Antonia, haja vista, o território ser
Apesar da distância temporal que as afir- por eles reconhecido.
mações do presente sugerem, as pesquisas e Pelas diversas informações se pode veri-
entrevistas com moradores da região de Ita- ficar os anos de exploração, perseguições e
poranga e Barão de Antonina, no estado de preconceitos pelos quais passaram os sujei-
São Paulo, mostram claramente a presença tos desta história – os Guarani. Esse antigo
dos Guarani naquelas paragens, ainda em aldeamento se faz presente na memória
tempo de memória de moradores vivos. Se- identitária desse povo, como território an-
gundo eles, os Guarani viviam ali até por cestral, o que é percebido através de seus
volta de 1950 e foram embora devido ao depoimentos, da documentação histórica
contínuo fluxo e povoamento de não-índio, analisada, da vegetação local, dos objetos ar-
além das perseguições a eles infringidas. queológicos ali encontrados e demais aspec-
Apesar de no passado terem vivido em tos de sua cultura, observados por historia-
um vasto território (boa parte do que hoje é dores, antropólogos, biólogos, arqueólogos
a região sul, sudeste e centro-oeste do Bra- que realizaram a pesquisa no contexto do
sil), atualmente, devido ao longo processo vale do rio Itararé.
de colonização do país e a exploração capi- A região do outrora aldeamento de São
talista das terras, o sistema de aldeamentos, João Batista do Rio Verde continuou a servir

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de passagem de indígenas que saíram da TI Retomar os seus antigos territórios


Araribá em direção ao Paraná e do Paraná que foram usurpados pelos não-indíge-
em direção do litoral do Estado de São Pau- nas é mais que um direito do povo Gua-
lo, configurando os deslocamentos naturais rani no Estado de São Paulo, garantido
de grupos Guarani por seu território. pela Carta Magna, a Constituição Fede-
Hoje, à alternativa de se esconder na ral, é um dever da sociedade atual fa-
mata virgem vê-se apenas a de retomada dos zendo justiça histórica com aqueles que
territórios ancestrais, lugar da identidade e tiveram muito a perder para que as ci-
da história, da reprodução de seu modo de dades fossem criadas e abrigassem seus
viver e da possibilidade de existência como atuais habitantes tornando-se o lugar
sujeitos de fato. que são.
Na memória da população local ainda
se recordam do momento no qual os últi-
mos Guarani, que viviam nas matas das
proximidades das propriedades rurais, fo-
ram embora, devido às pressões dos pos-
seiros e proprietários da região que por
meio de cercas e intimidações impediam o
acesso do Guarani às terras, rios e matas
imprescindíveis à realização de seu modo
de ser.
Também é importante destacar que os
Guarani possuem uma história de terem
sido confinados em pequenos espaços de
terras. Partindo da história regional, obser-
va-se que na Terra Indígena Araribá (SP),
os Guarani não possuem terras suficientes
para minimamente sobreviver, que dirá de-
senvolver demais aspectos da sua cultura.
No caso da Terra Indígena Araribá, a situa-
ção se configura pior, tendo em vista, a con-
vivência compulsória de várias etnias indí-
genas completamente diferentes entre si,
além da falta de matas, rios, animas e terra
para produzirem, muito frisado nas falas
dos Guarani.
A alternativa encontrada pelos Guarani
tem sido justamente a retomada de seus ter-
ritórios ancestrais, na qual, possuem identi-
dade étnica e histórica e que apresentam
características físicas, geográficas e biológi-
cas para reprodução de seu modo de viver e,
assim, dar continuidade a sua vivência his-
tórica como sujeitos de fato.

TERRITÓRIOS EM DISPUTA: O PAPEL DA PESQUISA ETNOARQUEOLÓGICA NOS ESTUDOS DE IDENTIFICAÇÃO E ... Robson Rodrigues
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