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Cadernos de Ciência & Conservação

- Teoria e Contexto -

v.1 n.1, jan.2014


CADERNOS DE CIÊNCIA & CONSERVAÇÃO
- Teoria e Contexto -
v.1 n.1, jan.2014

Yacy-Ara Froner
(organização)
© 2014 Centro de Conservação e Restauração; Programa de Pós-Graduação em
Artes - EBA-UFMG.

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reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem citação
da fonte e créditos devidos.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil)
FRONER, Yacy-Ara org.
Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto. (v1, n.1. :
2014 : Belo Horizonte)
Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto . Belo
Horizonte, jan. de 2014. - Belo Horizonte: PPGA-EBA-UFMG, 2013-
333p. : il.
Inclui Bibliografia
ISSN
1. Artes, 2. Conservação-Restauração. I. Universidade Federal
de Minas Gerais. Escola de Belas Artes. II. Organizador III. Título
IV.Série
CDD: 700
CDU: 7
Cadernos de Ciência & Conservação - Teoria e Contexto

Universidade Federal de Minas Gerais


Reitor: Jayme Arturo Ramiíre
Pro-Reitor de Pós-Graduação: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte
Escola de Belas Artes
Diretora da Escola de Belas Artes: Maria Beatriz Mendonça
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes: Mariana de Lima e Muniz

Centro de Conservação e Restauração


Diretora do CECOR: Bethânia Reis Veloso
Editora: Yacy-Ara Froner

Comitê científico
Alessandra Rosado
Luiz Antônio Cruz Souza
Willi de Barros Gonçalves
Yacy-Ara Froner Gonçalves

Projeto gráfico: Daniel Monteiro

Realização
Grupo de Pesquisa ARCHE
Grupo de Pesquisa LACICOR
www.eba.ufmg.br/sppgrad
Editorial

Teoria e contexto
O Centro de Conservação e Restauração da EBA-UFMG é uma das mais
importantes intituições na área de Conservação-Restauração no Brasil,
desenvolvendo desde 1978 importantes pesquisas e trabalhos de referência
nesse campo de conhecimento.

Ciência & Conservação


A Escola de Belas Artes, ao longo de sua existência, por meio dos
programas de graduação e pós-graduação lato sensu e strictu sensu, tem
formado inúmeros especialistas, pesquisadores e profissionais na área.

Com o intuito de reforçar a presença desse campo de estudo na UFMG,


a proposta de realização de seminários direcionados à projeção das
pesquisas científicas na área considera tanto a trajetória do Centro, quanto
a formação dos grupos de pesquisa LACICOR – Laboratório de Ciência
da Conservação – e ARCHE – Arte, Conservação & História –, ambos
nascido sob a égide do programa de Pós-Graduação em Artes – área de
concentração em Arte e Tecnologia da Imagem.

A Coletânea Ciadernos de Cência & Conservação pretende, assim, apresentar o


conjunto das discussões epistemológicas e históricas que foram debatidas
durante esses encontros

Nesta publicação, o campo específico da Conservação-Restauração


foi pensado no contexto mais amplo da Ciência, reunindo cientistas,
arquitetos, curadores, historiadores de arte, conservadores e restauradores.

A realização dos seminários ocorrem por meio da parceria entre o CECOR


– Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis - o
LACICOR e o Grupo de Pesquisa ARCHE.

Esperamos, ao longo desta série, contribuir para a consolidação da área


de pesquisa da Ciência da Conservação e dar maior visibilidade às ações
institucionais.
5

Dra. Yacy-Ara Froner


Sumário

Teoria e contexto
Primeira Parte:
Ciência, Tecnologia e Epistemologia

Ciência & Conservação


Yacy-Ara Froner - Conservação e restauração: a legitimação da Ciência (09)
Marcus Granato - Teorias da conservação e desafios para acervos científicos (22)
Marilene Correa Maia - Conhecimento científico e restauração: entre análise e mé-
todo (38)
Willi de Barros Gonçalves - Arquitetura Contemporânea de museu como espetá-
culo: roteiro e atores no cenário da indústria cultural (44)
André Luiz Guedes Martins - A Contribuição da Ciência e Tecnologia à Teoria
da Conservação (67)
Ana Paula Silva - Análise de conteúdo e análise de citação: uma metodologia possível
para o estudo do patrimônio cultural (79)
Tatiana Duarte Penna - O que nos falta? (98)
Mariana Souza Bracarense - O antipolítico e as políticas de preservação no Brasil
(107)
Aloisio Arnaldo Nunes De Castro - Da Arte da Restauração à Ciência da
Conservação: a construção histórica e deontológica do profissional voltado à acervos em
papel (119)

Segunda Parte:
História da Arte Técnica, Arqueologia e Arquitetura 6
Flávio Carsalade - Teoria e contexto na preservação da Arquitetura (136)
Alessandra Rosado - História da Arte Técnica: uma contribuição no processo de
autenticação de obras de arte (153)
Ana Cecilia Nascimento Rocha Veiga - Museus: Conceitos e Reflexões (167)
Thiago Pinho Botelho e Fábio Donatio - A Pintura de Retrato no Brasil: estu-
do de caso de uma obra de Édouard Vienot e François Henri Morisset (184)
Ana Martins Panisset - A Documentação como Ferramenta de Preservação (199)

Teoria e contexto
Ana Carolina Motta, Gerusa A. Radicchi, Giulia Giovani, Marcella Oliveira,
Thais Venuto - Paisagem em Branco: protocolos de gestão em conservação (209)

Fabio das Neves Donadio - O uso de novos materiais sobre edificações históricas
de terra crua (216)

Ciência & Conservação


Valessa Costa Soares - Memorial Minas Gerais (232)

Mônica Elisque do Carmo - Trilhos e memória – preservação do acervo documental


do patrimônio ferroviário (243)

Terceira Parte:
Arte Contemporânea e Novas Tecnologias
Magali Melleu Sehn - O papel da documentação no contexto da presrvação da arte
contemporânea (256)

Carlos Falci - Memórias culturais em construção: novas formas de memória em


ambientes programáveis (263)

Anamaria Ruegger - Arte, tecnologia e memória: anastilose informática (272)

Gabriel Mallard - Arte/subjetividade – Ciência/Preservação (287)

Hélio Alvarenga - Hipótese da dupla substituição / duplo registro em um museu-


limite (297)

Gabriela de Lima Gomes - Reconhecer o risco - estratégia utilizada no arquivo


fotográfico da Rádio Nacional (312)

Arethusa Almeida De Paula - Acervo de Artista: a narrativa de uma memória


7
escondida (324)
Epistemologia
Ciência, Tecnologia e
Ciência & Conservação
8
Teoria e contexto
Conservação e restauração:
a legitimação da Ciência

Teoria e contexto
Yacy-Ara Froner
PPGA-EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Ciência & Conservação


Resumo
O estabelecimento de uma área que comporte projetos em Conservação/Restauração e
Conservação Preventiva é fundamental para o acesso desse campo de conhecimento às
instâncias promotoras da pesquisa no Brasil. Sua legitimidade perpassa pela formação em
diversos níveis – graduação e pós-graduação –, fortalecimento das associações, divulgação
dos estudos por meio de eventos e publicações e a diversificação dos agentes, considerando
a interdisciplinaridade e multidisciplinaridade desse campo de estudos. Esse artigo
aborda a mudança do paradigma do profissional da área na última década, considerando
a necessidade de expansão do ensino, da pesquisa e da extensão e a demanda de uma
maior visibilidade social. A prática científica é sedimentada em determinados critérios,
necessários ao estabelecimento de competências, ao ingresso tecnológico, à disseminação
do conhecimento e acesso aos recursos destinados à pesquisa científica no país. A face
do profissional do século XXI começa a ser estruturada nesta década, compreendê-la é
indispensável à nossa atuação.
Palavras-chave: Ciência, Conservação Preventiva, Conservação/Restauração

Abstract
The establishment of Conservation/Restoration and Preventive Conservation as a scientific area is
fundamental to access researches institutes in Brazil. Its authority requires preparation at various levels
– undergraduate and graduate –, stronger associations, dissemination of studies through events and
publications and the diversification of agents, basis on interdisciplinary and multidisciplinary studies. This
article discusses professional’s model changing in the last decade, considering education expansion, research
and extension grow and its demand of social visibility. The scientific practice is made upon specific models,
whose are necessary for the establishment of technological skills, knowledge’s dissemination and its access to
resources for scientific research in the country. The face of XXI century professional begins to be structured
in this decade, and we must understand what it means for our action.
Key words: Science, Preventive Conservation, Conservation/Restore

9
Introdução
No ano de 2010, a CAPES realizou sua avaliação trienal dos cursos de
Pós-graduação no país. Centenas de programas por todo o Brasil, nas
diversas áreas de conhecimento, foram submetidos à mais criteriosa análise
em relação à sua produção de conhecimento, extroversão, formação e
inovação científica. Há 40 anos, havia perspectiva de desenvolvimento da
pós-graduação no Brasil diferente da que existe hoje. O país já ganhou

Teoria e contexto
respeito no exterior na área da produção científica, afirmou o presidente
da CAPES Jorge Guimarães durante a sessão que apresentou estes dados
ao MEC. “O Brasil está em 13º lugar no ranking da produção científica
mundial. A expectativa é alcançar a 9ª ou a 10ª posição nos próximos
anos”1. Na comparação entre a avaliação trienal de 2010 e a anterior, 19%

Ciência & Conservação


dos cursos conseguiram aumento nas notas e 71% a mantiveram; o número
de alunos que receberam títulos de mestre e doutor chegou a cento e trinta
e nove mil e o total de publicações científicas foi de trezentos mil entre
2007 e 2010.
Hoje, ocupamos a 13ª posição no ranking internacional em produtividade
de pesquisa, fato destacado por inúmeros editoriais e estudos publicados
em revistas, fóruns e organismos internacionais. Desde a abertura
democrática, o investimento em infraestrutura, a contratação de pessoal
e a qualificação nas universidades e centros de pesquisa possibilitou que
o Brasil saltasse do 37º lugar para a posição atual, além disso, ferramentas
e dispositivos sérios de avaliação qualitativa e quantitativa orientados
à ascensão de carreiras de magistério e de pesquisa impulsionando a
produtividade científica no país.

Ciência da Conservação: a base prática e a base acadêmica do


conhecimento
Bem, o que estas questões têm a ver com a área de Conservação-
Restauração? Cada um de nós, de uma maneira ou de outra, presta serviços
aos órgãos públicos ou é vinculado à arquivos, bibliotecas, museus,
universidades ou outras instituições governamentais. Somos, como
conservadores e restauradores, cada vez mais cobrados em relação ao nosso 10
nível de qualificação, formação e experiência. Em inúmeros editais, sem
um técnico especializado as empresas particulares não podem concorrer à
licitação. Em inúmeros concursos públicos, um dos critérios de avaliação
é a análise de currículo, o que inclui a apreciação não apenas da produção
técnica, mas também da formação e da produção intelectual contemplada
por meio de publicações, apresentação em fóruns especializados –
seminários, congressos, colóquios –, produção e gestão de pesquisas, bem
como a atuação em cursos, workshops etc. Estas cobranças asseguram às
instituições um profissional capaz de desenvolver propostas direcionadas

Teoria e contexto
às redes de fomento, como as Fundações de Amparo à Pesquisa estaduais
– FAPESP, FAPERJ, FAPEMIG etc. –, instituições federais – CNPQ,
CAPES, MINC, FUNARTE etc. – ou editais desenvolvidos por empresas
particulares a partir de leis de incentivo fiscal, bem como a contratação
de um conservador/restaurador com perfil de pesquisador e produtor de

Ciência & Conservação


conhecimento.
O que isso significa? O modelo do profissional da conservação-
restauração modificou-se de uma maneira contundente. Não se fala mais
de “receitas de bolo” direcionadas à limpeza, consolidação e apresentação
estética das obras. Hoje, o profissional deve questionar o desempenho dos
procedimentos caso a caso e ajustar percentuais, materiais e metodologias
conforme a complexidade do trabalho; esse mesmo profissional deve
dialogar de maneira sistemática com profissionais de outras áreas e,
por meio da interdisciplinaridade, encontrar mecanismos cada vez mais
seguros para sua prática; tem por princípio de formação a compreensão
dos paradigmas conceituais que validam a área e suas transformações no
campo da teoria do conhecimento. Não basta mais citar Camille Boito2,
Brandi3, ou May Cassar4 como personagens deslocados de uma linha de
pensamento, nem tampouco as Cartas Patrimoniais ou a Legislação voltada
à Proteção do Patrimônio Cultural como fundamentos superficiais. É
imprescindível o domínio da epistemologia, saber o lugar do qual emerge
o campo teórico do conhecimento científico que sustenta as bases da
Ciência da Conservação.
É preciso que cada vez mais nós compreendamos nossa inserção em um
universo de trabalho ampliado, para além do atelier ou laboratório, mas
potencializado por uma vasta rede de produção de pesquisa, conhecimento,
ensino e extensão: a Ciência. 11
De simples oficiais mecânicos, técnicos subalternos ou mão de obra,
passamos a assumir o papel de pensadores, pesquisadores, intelectuais e
cientistas. Não é arrogância intelectual ou distanciamento do nosso foco
de ação, mas a percepção de que cada vez mais é necessária uma mudança
de postura e hábitos, principalmente em uma sociedade altamente
tecnológica, instrumentalizada por redes de disseminação de informação
e que demanda a visibilidade de nossas ações. Todo e qualquer trabalho
de conservação e restauro sofre a pressão desta visibilidade: expostos aos
olhos críticos da sociedade, nossas ações devem ser amplamente amparadas

Teoria e contexto
pelos sistemas de conhecimento, pelas instâncias normativas e pelos fóruns
institucionais.
Quantos conservadores/restauradores efetivamente expõem em espaços
de extroversão – congressos, simpósios, seminários – os resultados das
pesquisas e das práticas desenvolvidas em ateliês e laboratórios? Quantos

Ciência & Conservação


publicam em periódicos científicos e acadêmicos? Quantos participam de
fóruns com competência e visibilidade na área? A invisibilidade da prática
a torna invisível para a sociedade. A incapacidade de atuar conjuntamente,
por meio de associações reconhecidas, torna o campo de saber incapaz de
se instalar em um sistema de forças estruturado.
Bourdieu (1996) define esse campo de forças por meio da compreensão
da atividade intelectual construída a partir da elaboração de uma lógica
específica, a partir dos sistemas de elaboração e de reprodução social,
expressos nos princípios ideológicos e científicos desenvolvidos no campo
de atuação, formação e pesquisa. Ele aponta que o espaço social intelectual é
um espaço de lutas, disputas e divergências construído através da disposição
dos agentes em dados espaços sociais e em tempos distintos.
A área de Conservação-Restauração, compreendida por meio de categorias
sociológicas de análise, pode ser examinada a partir das noções de espaço
social, espaço simbólico e hierarquia, tornando-se sistemas reconhecidos
pela comunidade científica. O desenvolvimento e a evolução desses
discursos determinam os princípios geradores de práticas distintas e
distintivas, expressões de opiniões semelhantes e diferentes, constituindo
uma rede de trocas de capital simbólico.
Lembrar a dimensão social das estratégias científicas não é
reduzir as demonstrações científicas a simples exibicionismos
retóricos; invocar o papel simbólico como arma e alvo 12
de lutas científicas não é transformar a busca do ganho
simbólico na finalidade ou na razão de ser únicas das condutas
científicas; expor a lógica agnóstica de funcionamento do
campo científico não é ignorar que a concorrência não exclui
a complementaridade ou a cooperação e que, sob certas
condições, da concorrência e da competição é que podem
surgir os controles e os interesses de conhecimento que a
visão ingênua registra sem se perguntar pelas condições
sociais de sua gênese5.

Cada vez mais, práticas e políticas de preservação de acervos demandam

Teoria e contexto
uma ação integrada entre pesquisadores de diversas áreas. Nesse sistema,
a interdisciplinaridade promove a excelência em todos os níveis, tanto
no estudo dos bens culturais e sua contextualização cultural extraindo
dele, portanto, as informações necessárias à sua compreensão, quanto em
relação à sua integridade física a partir de intervenções subsidiadas por um

Ciência & Conservação


conhecimento profundo das interações físico-químicas da matéria e do
ambiente circundante. Com a introdução de uma metodologia científica
oriunda de outros campos de conhecimento, os avanços técnicos e os
protocolos de preservação de acervos científicos e artísticos tornam-se
cada vez mais determinantes para manutenção da qualidade das pesquisas.
Nesse sentido, do planejamento à coleta; do processamento ao estudo
laboratorial; da armazenagem à exposição, o campo da conservação
também se torna cada vez mais especializado.
Partindo desses princípios, qualquer projeto de Conservação-Restauração
e Conservação Preventiva demanda bases metodológicas que sustentem as
ações relacionadas às intervenções. Parte da premissa que é indispensável
uma pesquisa em torno de publicações que discutam os modelos
científicos para o uso de determinados solventes, adesivos, consolidantes
e materiais de preenchimento e reintegração cromática, bem como
estudos específicos relacionados aos protocolos de processamento,
critérios de armazenamento e exposição. O arcabouço metodológico,
teórico e conceitual é o aparelhamento normativo, cognitivo e tecnológico
necessário à construção de uma práxis respaldada na pesquisa científica.
A demanda por um profissional qualificado por cursos de formação
na área – tanto ao nível de graduação quanto em pós-graduação –
promove a alteração do perfil profissional no país. Não basta mais a
experiência adquirida no atelier ou cursos de formação de curta duração, 13
é indispensável uma formação sustentada pela construção de uma carreira
sólida, sedimentada na práxis e na pesquisa, no aprimoramento e na
capacidade de extroversão e interlocução.
Essas mudanças vêm sendo sentidas paulatinamente: no Brasil, na entrada
do século XXI pouco mais de cinco pesquisadores da área possuíam pós-
graduação ao nível de doutoramento e os poucos especialistas lato sensu
eram formados pelo CECOR – Centro de Conservação e Restauração - da
Escola de Belas Artes da UFMG, pelo CECRE – Centro de Conservação

Teoria e contexto
e Restauração – da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, ou
por cursos no exterior; hoje há mais de setenta pesquisadores cadastrados
na Plataforma Lattes do CNPq atuando no campo da preservação com
formação em diversas áreas, incluindo Antropologia, Arqueologia,
Arquitetura, Arquivologia, Artes Visuais, Educação, Etnologia, Engenharia,

Ciência & Conservação


Turismo, História, Química, entre outras; cursos de formação em
graduação específica foram abertos e vários programas de pós-graduação
têm proposto linhas de pesquisa nesta área de conhecimento, além de
aceitar projetos de pesquisa relacionados à preservação, conservação e
restauração, tanto ao nível de mestrado como doutorado.
A base de formação de especialistas gestada no CECOR-EBA-UFMG
(1980) e CECRE-UFBA (1981) possibilitou a diversificação de linhas de
pesquisas nos programas de pós-graduação strictu-sensu das instituições
de origem desses centros – como a área de concentração em “Conservação
e Restauro” do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da FAU-UFBA, com mestrado implantado em 1983 e doutorado em 2000;
e a linha de pesquisa em “Criação, Crítica e Preservação da Imagem” do
Programa de Pós-Graduação em Artes da EBA-UFMG, com mestrado
iniciado em 1998 e o doutorado em 2006 – bem como a introdução de
programas específicos, como o Mestrado Profissionalizante do CECRE
(2009), dirigidos à construção de pesquisas acadêmico-científicas na área.
Além dos programas específicos, a abertura do Programa de Pós-Graduação
em Museologia e Patrimônio do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
UFRJ/UNIRIO/MAST possibilitou um olhar ampliado sobre as práticas
museológicas e a gestão patrimonial. Implantado em 2006, este curso
tem proporcionado o desenvolvimento de pesquisas na área, entendendo
o Patrimônio como um conceito polissêmico e a Museologia como 14
disciplina científica. Por sua vez, inúmeros Programas de Pós-Graduação
em Arquitetura, Química, Ciência da Informação, Física e Engenharia têm
admitido pesquisas relacionadas ao desempenho de materiais, modelos
computacionais de gestão ambiental e sistemas de avaliação estrutural,
tanto para bens culturais móveis, quanto bens culturais imóveis.
Nesse mesmo caminho, a Especialização em Patrimônio Arquitetônico,
oferecida pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
desde 1998 promove pesquisas sobre as bases epistemológicas e estudos
dirigidos na área. O Curso de Especialização em Gestão do Patrimônio

Teoria e contexto
Histórico e Cultural implantado em 2010 pela UFMG, também responde
pela demanda de formação especializada instaurada na última década,
junto com os cursos de Especialização em Patrimônio Arqueológico da
Amazônia da UFPA (2010), Especialização em Patrimônio Cultural em
Centros Urbanos da UFRGS (2003) e o Programa de Especialização em

Ciência & Conservação


Patrimônio do IPHAN (2000).
Nos últimos anos, cursos de graduação tecnológica foram abertos em
todo o país, como o Curso Superior de Tecnologia em Conservação e
Restauro do Instituto Federal Minas Gerais, em Ouro Preto (2008),
o Curso Superior de Tecnologia em Conservação de Bens Culturais da
UNIEURO, em Brasília (2008), e o Curso de Conservação e Restauro
do ICH/UFPEL, em Pelotas (2009). Se a graduação tecnológica tem
gerado controvérsias, a integralização desses cursos por volta de três
anos determina a busca de uma formação sólida e direcionada, definida
pela interface do lócus da universidade. Apesar do posicionamento
equivocado da ANPUH, desqualificando o caráter científico e a demanda
de uma formação qualificada na área, felizmente a Secretaria de Educação
Superior do Ministério da Educação e a CAPES têm apoiado os programas
instalados, compreendendo a diversidade nos formatos, a idiossincrasia e
as especificidades da área6. Algumas correntes da área de História – na
qual eu sou formada – alheias às transformações conceituais nos modelos
de produção de conhecimento, mantêm a prerrogativa oitocentista da
escola positivista, onde o documento triunfa. O seu triunfo, expresso em
Fustel de Coulanges (1830-1889), impõe a supremacia das fontes e dos
responsáveis por sua interpretação. Dessa prerrogativa, a hierarquia das
ciências. Uma hierarquia que não se sustenta em uma sociedade pautada
pela rede de trocas, pela interdisciplinaridade, multidisciplinaridade,
pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e a demanda diversificada de 15
atuação que todos esses conceitos comportam. A incapacidade de alargar
seus horizontes e a incoerência no pronunciamento da Associação ocorrem
quando recomenda que a História da Arte, a Arqueologia e a Museologia
passem a ser reconhecidas como áreas específicas de qualificação desde
a graduação, sem distinguir a especificidade da formação da área de
Conservação-Restauração. Inúmeras universidades, museus e instituições
responsáveis pela gestão de acervos culturais têm perdido profissionais
especializados por não entender a expansão desse campo de conhecimento.
A UFMG é exemplo de agenciamento de pesquisas, tanto pela Graduação

Teoria e contexto
em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, aberta em 2007,
como por meio do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de
Belas Artes já citado. As pesquisas de iniciação científica, TCC, mestrado
e doutorado desdobram-se nos campos de estudo voltados à Conservação
Preventiva, História da Arte Técnica, Análise Científica de Bens Culturais,

Ciência & Conservação


Arqueometria, e nas pesquisas acerca dos produtos e técnicas aplicadas à
prática de Conservação e Restauração. Desde a Especialização do CECOR
até a consolidação do strictu sensu na EBA, importantes monografias de
especialização, dissertações e teses amplificam discussões relacionadas ao
desempenho de materiais, ferramentas de análise, estudos de caso e bases
conceituais.
Assim, além da formação e produção de conhecimento científico por
meio das pesquisas desenvolvidas no âmbito da graduação e da pós-
graduação, a extroversão do conhecimento e da prática produzida pela
área demanda espaços específicos de apresentação. A recente divulgação
do ranking internacional dos artigos científicos, com mais de vinte mil
papers publicados e uma participação de quase 3% no total mundial,
contrasta flagrantemente com o desempenho da área. Isto nos impõe
uma reflexão: em plena era do conhecimento, quando, mais do que nunca,
a riqueza e o crescimento dos países se consubstancia em propriedade
intelectual, por que não dispomos de revistas especializadas? Por outro
lado, os espaços institucionalizados que respondem por Congressos,
Seminários, Colóquios e demais eventos nem sempre resultam em anais ou
publicações indexadas, avaliadas pelo sistema Qualis7 e disponibilizadas
em formatos ampliados – principalmente o acesso virtual. Enquanto a
produção brasileira de artigos científicos cresceu oito vezes entre 1980 e
2006, o patamar de publicações da área de Conservação e Restauração não 16
dispõe de parâmetros quantitativos.
O estudo The Scientific Impact of Nations, publicado em
2004 pela prestigiosa revista Nature, mostra que, entre 1993-
97 e 1997-2001, as citações a artigos brasileiros aumentaram
31%, e o crescimento dos “top 1%” (o 1% superior dos
artigos mais citados) foi de 72% para o Brasil 8.
Para Nicolsky, apesar desses dados, falta-nos uma maior visibilidade social.
A explicação para isso é a frequente falta de vínculo da nossa pesquisa
científica com a vida real. Enquanto a ciência busca respostas, a tecnologia

Teoria e contexto
faz perguntas. Se não houver desenvolvimento tecnológico no país capaz
de abrir um leque amplo de indagações que instiguem a comunidade
científica, as perguntas acabam ficando por conta de cada pesquisador,
que passa a estudar aquilo que sua curiosidade individual determina. Bem,
esse problema só pode ser resolvido com o estabelecimento de fóruns

Ciência & Conservação


de discussão, instâncias de divulgação e organismos aglutinadores de
área que construam instâncias estruturadas em conformidade com os
mecanismos de gestão, visibilidade, legitimação e troca de experiências.
A prática da Conservação-Restauração no país é intensa, sistemática e
tecnologicamente repleta de questões, dúvidas, preocupações
No caso das publicações, não é mais possível a produção doméstica e
assistemática de escritos, artigos, livros e anais. É indispensável a indexação
– o ISSN e o ISBN – e a busca da qualificação na comunidade científica pelo
sistema Qualis, e por meio da busca de inserção em sistemas de excelência
internacional como a plataforma SciELO9. Para que isso ocorra de fato,
as instituições são, naturalmente, as instâncias promotoras e produtoras,
cabendo a ela essa responsabilidade. No Ranking de Periódicos e Países, o
sistema SCImago/Scopus publicou os resultados de seu último relatório
de 2008, no qual as universidades mundiais são classificadas pelo impacto
de sua produção científica. A área de Artes e Humanidades responde por
0,47% da produção no país, enquanto a área de Ciências Médicas responde
por 20,71% das produções científicas. Dos nove periódicos citados na
área de Conservação, cinco encontram-se na Inglaterra – Journal of the
History of Collections, Journal of Architectural Conservation, Icom News, Museum
International, Apollo –, três nos estados Unidos – Journal of The American
Institute for Conservation, Art Institute of Chicago Museum Studies, Preservation
– e um na Espanha – Reale Sitios10. Estes países também respondem por
políticas sólidas de ensino e qualificação profissional, bem como por 17
instituições conservacionistas de renome internacional.
A legitimação internacional demanda esforços nacionais da SBPC, CAPES,
CNPq, bem como dos programas de pós-graduação dirigidos à área.
Naturalmente, IPHAN, IBRAM, Biblioteca Nacional assumem esse papel
de uma maneira ampliada. No nosso caso, ABRACOR, ABER, APCR,
ACOR-RS têm produzido eventos, contudo, falta a essas associações uma
práxis vinculada aos critérios científicos considerados pelas instâncias
de pesquisa. Anais indexados, reentrantes e qualificados pelos sistemas

Teoria e contexto
de pesquisa nacionais são fundamentais, inclusive para a projeção dessas
instituições e sua capacidade de captar recursos junto ao CNPq, à CAPES
e às Fundações Estaduais de Pesquisa. Periódicos, jornais científicos e
revistas indexadas, preferencialmente bilíngues, também são fundamentais
para a visibilidade de pesquisa dos programas de pós-graduação, centros

Ciência & Conservação


de pesquisas e museus.
A ANPAP, Associação de Pesquisadores em Artes Plásticas, é um
modelo de instituição que ao longo de seus vinte e três anos de existência
sedimentou sua atuação e hoje conta com um reconhecimento nacional
e internacional na comunidade acadêmico-científica. Todos seus anais,
indexados, encontram-se disponíveis em sítio eletrônico, o que fornece
visibilidade à produção do conhecimento na área e receberam classificação
A2 no sistema Qualis da CAPES11. Cabe ressaltar que um dos comitês
existentes na ANPAP atende a área de pesquisa em Conservação e
Restauração, possibilitando a divulgação de resultados de pesquisas e
projetos.
A busca da excelência em nossa prática, como pesquisadores e produtores
de conhecimento, potencializa nosso fazer. Portanto, o fortalecimento
de nossas instituições representativas, sua legitimação na comunidade
científica e sua capacidade de difundir nossa produção intelectual é um
dos caminhos para introduzir o campo da pesquisa em Conservação e
Restauro no âmbito da produção intelectual, acadêmica e científica.
Retornando às questões anteriormente postas, se exercício profissional
imprime as perguntas e a ciência qualifica as respostas, o que temos aqui
não é a proposição de uma hierarquia, mas a compreensão de que a apenas
criando mecanismos de aproximação entre essas instâncias poderemos
ampliar a qualidade de nossas ações. 18
Ao ampliar a formação, a difusão por meio de publicações especializadas
e as associações de área, será possível criar os mecanismos necessários ao
estabelecimento da Conservação/Restauração como área de conhecimento
científico e, desse modo, reivindicar junto às instâncias científicas sua
fixação como campo de saber. O resultado dessa inserção incide no
apoio financeiro e logístico para a realização de eventos e publicações,
além de bolsas de pesquisa e apoio a projetos. Assim, todo o processo é
constantemente retroalimentado.

Teoria e contexto
Hoje, no CNPq, Museologia e Arqueologia ampliaram sua ingerência
e, dessa forma, o reconhecimento científico. Com isso, o incentivo aos
programas de pós-graduação, aos periódicos indexados, ao auxílio e ao
fomento de pesquisa – traduzidos no aparelhamento de laboratório e no
atendimento da demanda das pesquisas – imprimem qualidade e excelência

Ciência & Conservação


no âmbito de suas atuações.

Considerações finais
Não basta apenas o reconhecimento profissional, cujos esforços
empreendidos nos últimos dez anos são reconhecidamente louváveis, é
indispensável o reconhecimento da área como espaço de produção de
conhecimento e projeção científica. É imprescindível compreender que
o início do século XXI proporcionou as bases para uma nova relação do
conservador/restaurador. Nesse contexto, outras instâncias de legitimação
são forjadas:
• a constituição de um corpo de profissionais qualificados, em diversos
níveis, cada vez mais numeroso e diferenciado: a formação;
• o fortalecimento das instâncias de homologação, difusão e congregação
da área – as associações de representação -, pautada por práticas
legitimadas – eventos e publicações;
• a constituição de uma área de atuação mais extensa, socialmente
diversificado, capaz de proporcionar aos pesquisadores não apenas
as condições mínimas de atuação, mas construindo um princípio de
legitimação.

Todas estas questões são importantes. Traze-las em um fórum de discussão


sobre protocolos de preservação de Arte Contemporânea significa instaurar 19
a prática profissional na contemporaneidade. Assim como a proposição
poética da arte fixou novas questões ao sistema da Arte, as transformações
no meio social – em especial acadêmico e científico – implicam numa
transformação e numa transição no paradigma da prática da Conservação
e da Restauração. Compreender o lugar do qual local falamos, para quem
falamos, como falamos; ter consciência da transformação do modelo do
profissional da Conservação/Restauração; fortalecer nossas instâncias
de representação e mecanismos de difusão; buscar nossa inserção na
comunidade científica. Estes são dispositivos contemporâneos necessários

Teoria e contexto
à nossa área.
__________
Notas
1. Disponível em : http://www.capes.gov.br/servicos/sala-de-imprensa/36-noticias/4074-qualidade-
dos-cursos-de-mestrado-e-doutorado-evolui-entre-2007-e-2010. Acesso em: Agosto/2010.

Ciência & Conservação


2. Camillo Boito (1836-1914) sedimenta a escola italiana de restauro tendo como base os estudos
de Riegl (1958-1905) sobre o valor estético e o valor documental do monumento e da obra de arte.
Discute o princípio da originalidade e da autenticidade como base fundamental à intervenção e
introduz a questão do restauro filológico, dando ênfase ao valor documental da obra e destacando
o valor primordial das edificações enquanto testemunho e documento histórico. Em oposição à
“Restauração“ de Eugéne Viollet-le-Duc (1870), escreveu “Os Restauradores” (1884).
3. Cesare Brandi (1906-1988) foi um dos principais teóricos da restauração, fundamentando suas
bases nos anos desde os anos 40, contribuindo ainda com a consolidação do Instituto Central de
Restauro de Roma. Suas teses, publicadas em Teoria da restauração (1945), defendem a permanência
das bases estéticas ancoradas na fenomenologia e nas teorias da percepção: para preservar a imagem
(na qual reside uma multiplicidade de valores, sendo o mais importante deles o artístico) e transmiti-la
às gerações futuras, é necessário minimizar os processos de degradação que dizem respeito à matéria,
reforçando a sua consistência física e restituir, mesmo que apenas potencialmente e naquilo que for
possível, o aspecto original ou o que seja o mais significativo da imagem.
4. May Cassar (1955- ), professora da área de Patrimônio Sustentável da UCL-London, é uma das mais
importantes teóricas da área de Conservação Prevemtiva, sendo o mais importante Environmental
Management: guidelines for museums and galleries (1995).
5. BOURDIEU, 1996, p.86
6. Declaração emitida pela ANPUH, sob a Presidência de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Por
fim, consideramos que no caso dos cursos com denominações Conservação e restauração de bens
culturais móveis e Tecnologia e conservação de restauro não são cursos que nos pareçam devam ser
oferecidos em nível de ensino superior, eles nos parecem cursos mais adequados para serem oferecidos
como cursos de formação tecnológica de nível médio, como as próprias denominações permitem
supor. No caso do Ministério e desta Secretaria avaliar que eles devem mudar de denominação e
convergirem para a nossa área, é fundamental que seja observado se os temas de formação, se os
componentes curriculares, se o perfil do egresso correspondem àqueles exigidos para a formação de
um profissional de História. Ou seja, consideramos que nestes casos não seria apenas uma questão de
convergência de denominação, mas de alteração do perfil dos cursos, se estes querem ser mantidos
como cursos de formação superior. Disponível em: http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_
CONTEUDO=314. Acesso em: Agosto/2010.
7. Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Capes para estratificação da qualidade da
produção intelectual, científica e acadêmica, principalmente da pós-graduação. 20
8. NICOLSKY, Roberto. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf2/. Acesso
em: Agosto/2010.
9. A Scientific Electronic Library Online - SciELO é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção
selecionada de periódicos científicos brasileiros. O Projeto tem por objetivo o desenvolvimento de
uma metodologia comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção
científica em formato eletrônico.
10. Disponível em: http://www.scimagojr.com/. Acesso em: Agosto/2010.
11. Disponível em: http://www.anpap.org.br/. Acesso em: Agosto/2010.

Referências

Teoria e contexto
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evolui entre 2007 e 2010. Disponível em : http://www.capes.gov.br/servicos/sala-de-imprensa/36-
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em: Agosto/2010.
Teorias da conservação e desafios
para acervos científicos

Teoria e contexto
Marcus Granato
Guadalupe do Nascimento Campos
MAST - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ciência & Conservação


Resumo
O patrimônio cultural material tem um tempo limitado de existência. Para prolongar a sua
integridade física, a conservação tem como meta estabelecer estratégias de prevenção e de
intervenção. Essas estratégias devem ser fortemente embasadas por uma fundamentação
teórica. No presente trabalho foram analisadas em caráter geral, os principais teóricos
da conservação e as linhas predominantes em cada período, à partir do século XIX até a
atualidade. O artigo em questão, também enfoca os desafios na conservação de acervos
científicos, dificuldades que são causadas seja pela quase ausência de profissionais
qualificados na área, do número crescente de objetos adquiridos para as coleções ou da
própria especificidade do acervo.
Palavras chave: patrimônio cultural, teorias da conservação, acervos científicos

Abstract
Material cultural heritage has a limited time of existence. One of the goals of conservation, designed to
prolong the physical integrity of this heritage, involves devising prevention and intervention strategies. These
strategies should be firmly rooted in theory. In this work the theoretical principles of conservation are
analyzed in broad terms, as are the prevailing approaches adopted at different times, from the 19th century
to the present day. The article also focuses on the specific challenges of conserving scientific collections, which
are variously caused by the virtual absence of qualified professionals in the area, the growing number of
objects acquired for collections and the very nature of the collections themselves.

Key words: cultural heritage, conservation theories, scientific collections

Introdução
As coleções patrimoniais são a base sobre a qual os museus constroem e 22
reforçam o seu papel social e a identidade cultural. Permitem redescobrir os
povos, as migrações, os movimentos e as idéias que criaram e deram forma
às sociedades e às civilizações. Registram e preservam as suas criações
estéticas e científicas e fornecem bases para novos desenvolvimentos.
Inspiram um sentimento de pertencimento e compreensão mútuas entre
todos os habitantes de um grupo ou país, fornecendo instrumentos para
entender o passado e as transformações sociais. O desafio consiste em
preservar esses conjuntos patrimoniais, de modo a transmitir o passado,
enriquecer o presente e construir o futuro.

Teoria e contexto
É importante esclarecer que, como apresentado por Beatriz M. Kuhl:
“na concepção contemporânea alargada sobre os bens culturais, a tutela
não mais se restringe apenas às “grandes obras de arte”, como ocorria
no passado, mas se volta também às obras “modestas” que com o tempo
assumiram significação cultural.”(2006)

Ciência & Conservação


Complementando esse esclarecimento, o que consideramos como
patrimônio cultural material, objeto de interesse da conservação, são
aqueles objetos/monumentos que se destacam dos demais por um
processo de significação, que se formaliza quando da escolha para que
façam parte desse conjunto. O que os diferencia dos demais, na moderna
concepção pelo viés da Museologia, inclui a noção de comunicação,
que pode traduzir-se de formas diferentes: significância, simbolismo,
conotação cultural, metáfora, etc.. Os objetos de interesse da conservação
têm, portanto, em comum sua natureza simbólica, todos são símbolos e
todos têm o potencial de comunicação, seja de significados sociais, seja de
sentimentais.
No entanto, o patrimônio é frágil e, como todos os bens materiais elaborados
ou reconhecidos pelo homem, tem um fim inexorável. As causas dessa
degradação vão do impacto massivo e terrível das guerras e das catástrofes
naturais aos danos provocados pela poluição, insetos, microorganismos,
condições ambientais, ações de vandalismo e pelo próprio envelhecimento
natural desse patrimônio. A conservação trabalha no sentido inverso de
todas essas forças, procurando estender a vida desses bens.
A conservação com base científica inicia-se no séc. XIX. Destacam-se os
trabalhos de Sir Humphrey Davy, presidente da Royal Society, a pedido
do rei George IV, em 1820, estudando os papiros de Pompéia, realizando
estudos sobre as causas de sua degradação; de C. J. Thomson, no Museu
23
Nacional de Copenhague, desenvolvendo técnicas para conservar objetos
arqueológicos e com Friedrich Rathgen, em 1888, ao assumir um posto
no Museu Real de Berlim. Este último criou um laboratório e desenvolveu
uma série de tratamentos de conservação, produzindo, em 1898, um dos
primeiros livros sobre o tema (Die Konservierung von Altumsfunden –
A Conservação de Antiguidades), quando a conservação tornou-se uma
disciplina profissional (GILBERG, 1987, p.106). Ainda nesse século,
temos o advento da ciência como caminho para a revelação da verdade e

Teoria e contexto
para análise da realidade, além da ampliação do acesso público à cultura
e à arte. O nacionalismo exalta o valor dos monumentos nacionais como
símbolos de identidade, o romantismo consagra o artista como indivíduo
especial e exalta a beleza das ruínas e, como resultado, as artes e os artistas
têm um reconhecimento especial.

Ciência & Conservação


É nesse contexto, também moldado pela Revolução Industrial, na
Inglaterra, e pelas guerras Napoleônicas, na França, que despontam os
primeiros teóricos da conservação, John Ruskin (1819-1900) e Eugène
Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879). Suas posições, diametralmente
opostas, relacionam-se diretamente com esse contexto.

As Primeiras Teorias da Conservação


Ruskin foi um escritor inglês com grande influência sobre os artistas e
os amantes das artes. Em 1849, Ruskin publica o livro “The Seven Lamps
of Architecture”, e dois anos depois o primeiro volume de “The Stones of
Venice”3. Neles, ele defende veementemente os valores e virtudes dos
prédios antigos. Seu amor pelo passado era tão apaixonado e exclusivo
que era acompanhado por um certo desprezo pelo presente. Aqui a
dimensão histórica do patrimônio é considerada a mais importante e
talvez única justificativa para a sua preservação. Seu seguidor William
Morris (1834-1896) partilhava de suas convicções e achava que entre os
agentes perturbadores estavam aqueles que tentavam reconstruir prédios
danificados. Criou em 1877 o Movimento Anti-Restauração e a Sociedade
para a Proteção de Antigas Edificações (SPAB).
Um dos resultados das guerras napoleônicas na França foi o dano a
diversas construções góticas e seu restauro foi considerado uma tarefa 24
nacional. Nesse ambiente, Viollet-le-Duc, arquiteto responsável por
muitas dessas obras (Notre Dame de Paris, La Madeleine de Vézelay,
Catedral de Amiens, Castelo de Pierrefonds), considerava-se autorizado
a preencher as lacunas deixadas pelos danos nas edificações. Para ele a
edificação poderia (ou deveria) ser restaurada ao melhor estado possível,
para uma condição que poderia nunca ter existido, desde que coerente
com a natureza verdadeira da concepção original da construção. Em 1866,
publica o oitavo volume do seu “Dictionnaire Raisonné de l’Architecture
Française du XIème au XVIème Siècle”, onde apresenta sua definição para

Teoria e contexto
restauração - “Restaurar um edifício não significa repará-lo, reconstruí-lo
ou mantê-lo. Significa restabelecê-lo no seu estado mais completo, que
pode até nunca ter existido” (2000, p. 17).
Para Viollet-le-Duc, o estado mais perfeito da conservação é o estado
original, o uso e o desgaste o deformavam. Para ele, o estado original não

Ciência & Conservação


era aquele do momento de sua produção, mas o da sua concepção, a idéia
original do artista, não o seu estado material original.
Entre essas duas posições extremadas, vários teóricos apresentaram idéias
intermediárias. Entre eles, destacamos o arquiteto italiano Camilo Boito
(1836-1914) que estabeleceu alguns princípios que ainda são bem aceitos,
por exemplo: a necessidade clara de diferenciações entre as partes originais
e as restauradas; a mínima intervenção ou reversibilidade. Boito (2002)
foi um entre vários teóricos que tentou encontrar um equilíbrio entre os
extremos de Ruskin e le Duc. Reuniu estas idéias contrárias numa teoria
intermediária, favorável à conservação dos acréscimos incorporados à obra
arquitetônica. Comparou ainda um monumento à crosta terrestre, com as
várias camadas superpostas, cada uma representativa de um conjunto de
valores a ser respeitado.
Em 1884, realiza-se o Congresso de Engenheiros e Arquitetos, em Roma,
e Boito propõe os oito princípios básicos do Restauro Arqueológico, onde
se aceita apenas a consolidação e recomposição das partes desmembradas
e a conservação para não ser preciso restaurar, afirmando alguns dos
princípios de Ruskin e Morris.
O historiador da arte austríaco Alois Riegl, do início do século XX,
considerava que o objeto existe enquanto um elemento a ser preservado
quando lhe é atribuído um valor histórico, artístico e cultural (CUNHA,
2006). Em 1912, o pensamento evolui com a Teoria do Restauro Científico,
25
de Gustavo Giovannoni, como sendo a operação de tão somente
consolidar, recompor e valorizar os traços restantes de um monumento.
Gustavo Giovannoni e Luca Beltrami também procuraram encontrar
um ponto de equilíbrio entre Ruskin e Viollet-Le-Duc. Avaliavam que os
complementos estruturais e as construções adjacentes não eram adequados,
pois descaracterizavam os edifícios antigos da sua forma original.
Nesse período, as várias teorias sobre a conservação de patrimônio
provocavam muitas discussões, gerando muitas divergências e críticas.

Teoria e contexto
Para tentar minimizar essas discussões, muitas instituições se debruçaram
na tentativa de normalização de procedimentos básicos, que geraram as
chamadas “Cartas”, documentos normativos que resultam do acordo
entre especialistas e conservadores profissionais. Em 1931, a Conferência
Internacional de Atenas normatiza tais critérios, dividindo o restauro

Ciência & Conservação


em trabalhos de consolidação, recomposição das partes desmembradas,
liberação de acréscimos sem efetivo interesse, complementação de partes
acessórias para evitar a substituição, e ainda inovação ou acréscimo de
partes indispensáveis com concepção moderna.
No rastro da Segunda Grande Guerra Mundial, muitos monumentos e
coleções inteiras ficaram muito danificados, gerando um movimento de
questionamento dos conceitos do “Restauro Científico” que exigiam
postura de quase neutralidade do arquiteto/conservador em relação ao
bem cultural. Uma nova postura prevaleceu, o Restauro Crítico, com uma
atitude mais flexível por parte dos profissionais, principalmente europeus,
face à pressão social e política pela recomposição de monumentos e
objetos danificados.

A Teoria de Brandi
Em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro
Científico voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta
Italiana de Restauro de 1972, por Cesare Brandi. Para Brandi, deve-se
“mirar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto
seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem
cancelar os traços da passagem do tempo”.
Nascido em Siena, Brandi foi professor universitário, crítico de arte e 26
musicólogo, assim como primeiro diretor do Istituto Centrale di Restauro,
a primeira instituição desse tipo, fundada em Roma em 1939 (PRICE e
colaboradores, 1996). Brandi produziu o primeiro sistema de pensamento
completo e orgânico na área de restauração. A sua teoria do restauro é
inspirada pela filosofia de Benedetto Croce; do historicismo derivou um
conceito fundamental que continua plenamente válido: o caráter transiente,
parcial e relativo de qualquer restauração, mesmo a mais habilidosa, por
ser sempre marcada pelo clima cultural no qual é realizada.

Teoria e contexto
Brandi dividia os objetos, em relação à restauração, em dois grupos; os
produtos industriais e as obras de arte. Em relação ao primeiro grupo
sua teoria é restrita; nela o propósito fundamental da restauração seria
restabelecer as propriedades funcionais do produto. Consequentemente,
a natureza da restauração estaria exclusivamente ligada à realização desse

Ciência & Conservação


objetivo (BRANDI, 2005). No entanto, cabe ressaltar que nesse caso
também devem ser considerados os aspectos estéticos e históricos desses
objetos, que não foram analisados em detalhe pelo autor.
Para obras de arte, mesmo que existam algumas peças que estruturalmente
possuam um propósito funcional (como na arquitetura e para os objetos
das chamadas artes aplicadas), o restabelecimento das propriedades
funcionais representaria um aspecto secundário da restauração, nunca
o fundamental. Brandi considerava imprescindível reconhecer a ligação
inseparável entre a restauração e a obra de arte, na qual esta condicionaria
a restauração e não vice-versa. Tendo isso em mente, definia restauração
como: “o momento metodológico no qual a obra de arte é apreciada em
sua forma material e dualidade histórica e estética, com uma visão de
transmiti-la para o futuro.”
Essa visão humanista, que sublinha sua concepção de restauração, é um
aspecto muito valioso da teoria de Brandi. Para ele a restauração não é
uma técnica auxiliar, mas um momento de apreciação crítica do objeto; em
outras palavras, é um aspecto da pesquisa estética e filológica em direção à
sua compreensão. Outro aspecto do pensamento de Brandi especialmente
relacionado às relações entre material e imagem parece estar além de
sensibilidades contemporâneas. Ele admitia que a imagem coincidisse com
o material, mas com hierarquia entre o material diretamente relacionado
com a imagem e aquele com papel estrutural ou de suporte. Desde que 27
a intervenção afetasse somente a estrutura e não alterasse a imagem a
intervenção era justificável. Delimita-se aqui o primeiro axioma de sua
teoria “somente a forma material da obra de arte é restaurada”.
O segundo axioma determina: “a restauração deve ter por objetivo
restabelecer a unidade da obra de arte, na medida em que isso é possível
sem produzir uma falsificação histórica ou artística e sem apagar qualquer
traço da passagem do tempo nele deixado”.
Para que a restauração seja uma operação legítima não poderia presumir

Teoria e contexto
que o tempo é reversível ou que a história poderia ser eliminada. Além
disso, o ato da restauração, a fim de respeitar a natureza histórica complexa
da obra de arte, não poderia se desenvolver de forma reservada ou
desconectada do tempo. Deveria ser enfatizada como um evento histórico
real, desde que seria uma ação humana, e faria parte do processo pelo qual

Ciência & Conservação


a obra de arte seria transmitida para o futuro.
A restauração recriaria a unidade do objeto perdida pelos efeitos do tempo
ou de restaurações anteriores. Para alcançar esses objetivos a restauração
deveria concordar com princípios históricos (não destruir os traços da
passagem do tempo e da intervenção humana) assim como os estéticos
(remover acabamentos errados e alterações inapropriadas). Na prática,
as exigências estéticas freqüentemente prevaleciam sobre as históricas
no pensamento de Brandi (PRICE e colaboradores, 1996). Publicou em
1963 a Teoria do Restauro, texto que defende a relevância de um fator
quase sempre negligenciado na conservação científica: o valor artístico
do objeto. Em sua visão, os valores estéticos são da maior importância
e devem ser levados em consideração nas decisões sobre a conservação.
Brandi é o teórico do restauro estético e considerado o autor do corpo
teórico mais consistente da conservação.

Conceitos mais Recentes


A partir da década de 1980, foram criados vários laboratórios de
conservação, espalhados por alguns museus. Ainda nesse período, o
debate sobe de tom, o arquiteto italiano Paolo Marconi (1988) questiona
se o momento presente não tem autenticidade - seria um “falso histórico”,
indigno de se incorporar à obra restaurada? Deve uma cidade se reduzir à 28
cenografia arqueológica, apenas um objeto a ser visto, alijando-se a época
presente do processo histórico de transformação?
Da Convenção do “Consiglio Nazionale delle Ricerche”, em Roma (1986),
nasce a “Carta 1987 da Conservação e do Restauro de objetos de arte
e de cultura”, cuja alteração principal das Cartas anteriores funda-se na
separação metodológica e conceitual do restauro das obras de arquitetura
dos demais objetos de arte e cultura, sintetiza-se tal questionamento
na proposta de Paolo Marconi de “fazer reentrar a arquitetura em sua

Teoria e contexto
história”.
No decorrer do século XX, algumas teorias e concepções sobre a
conservação coexistiram. A partir de meados desse século, a visão
estética coexistiu com outra contribuição significativa para a conservação,
a chamada “Nova Conservação Científica”, que foi mais uma atitude

Ciência & Conservação


em prol de técnicas e metodologias científicas de conservação do que
propriamente uma teoria da conservação. Nenhum esforço teórico foi
realizado para validar essa abordagem, mas verifica-se um conjunto de
idéias e críticas que a caracteriza e vêm sendo desenvolvidas de forma
fragmentada. Nessa concepção, os cientistas e a metodologia científica
passam a ser determinantes para o processo da preservação de acervos e,
em função dos bons resultados alcançados, essa abordagem torna-se, no
final do século XX, a forma reconhecida de lidar com a preservação de
acervos.
As últimas décadas do século XX são marcadas pelas teorias de Garry
Thomson, que propiciaram a publicação do livro The Museum Environment
(1988). São colocados pela primeira vez, de forma sistemática, os
problemas referentes à climatização em museus e a importância do
controle do ambiente onde estão colocadas as coleções. Segundo esse
autor, “um mau restaurador pode destruir uma obra, um mau conservador
pode destruir uma coleção inteira”. Também nesse período, Torraca
(PRICE e colaboradores, 1996) discute o papel da ciência na área da
conservação. Aborda as implicações do confronto entre os cientistas
das chamadas áreas exatas e a realidade com que se deparam ao atuar no
campo da conservação (poucos dados, nenhuma estatística ou modelos
computadorizados), onde tendem a transferir suas experiências e métodos
sem considerar as especificidades do bem cultural em análise, causando 29
sérios equívocos.
Salvador M. Víñas (2005), mais recentemente, faz a sistematização e a crítica
dessas idéias, classificando todas as teorias sobre a conservação como
teorias clássicas. Essas teorias teriam como pressuposto ser a conservação
uma operação de imposição da verdade, de relevância apenas para um
grupo restrito de formação específica, que acredita estar autorizado a dizer
como se deve conservar e restaurar. O objetivo da conservação para as
teorias clássicas era revelar e preservar as verdadeiras naturezas e condições
do objeto enfatizando a sua integridade física, estética e histórica.

Teoria e contexto
Viñas propõe uma teoria contemporânea da conservação onde o interesse
primário está nos sujeitos e não mais nos objetos. A objetividade na
conservação, fundamento da abordagem científica prevalente a partir do
final do século XX, seria substituída por uma forma de subjetivismo.
Nessa “teoria contemporânea” a noção de verdade é substituída

Ciência & Conservação


pela comunicação. A verdade deixa de ser o critério de orientação da
conservação. O conservador não deveria impor a verdade, mas sim facilitar
a leitura do objeto para melhor compreendê-lo. A conservação seria feita
em função dos significados do objeto, que segundo o autor poderiam
variar tremendamente de grupo a grupo. A conservação seria realizada por
pessoas para as quais o objeto tem significado. Portanto, esses interesses
(necessidades, preferências e prioridades) deveriam ser considerados
como o fator mais importante no processo de decisão. Sua autoridade
derivaria não do seu nível educacional, mas de serem diretamente afetados
pelas ações que outros realizam em objetos que lhe são significativos
(GRANATO, 2007). Dessa forma, a “teoria contemporânea” intenciona
erradicar os excessos cometidos pelos experts do passado. Faz com que
o indivíduo que será afetado pela alteração de um símbolo, o usuário
habitual, tenha todo o direito e autoridade de expressar sua opinião a
respeito, opinando com fundamento.
Em resumo, como lidar com objetos que podem ter vários significados
e vários atores envolvidos e afetados nesse processo de preservação?
Como decidir? Viñas propõe trazer a decisão para o consenso do grupo
de pessoas que está afetado por aquele objeto. O que é uma árdua tarefa
caberia, por outro lado, ao profissional da conservação responder pelas
gerações futuras, partícipes nesse processo decisório e que não poderiam
estar presentes por motivos óbvios. 30
A “teoria contemporânea” não recomenda colocar nas mãos do público
geral todas as decisões relativas à conservação e ao restauro, mas apenas
as pessoas afetadas pelo objeto. Apenas os indivíduos com relação e
intimidade com objeto podem opinar com fundamento. A teoria sugere
uma democracia conduzida por representantes sociais e profissionais
qualificados. Estabelece uma relação dialética e não impositiva entre as
idéias do conservador, do restaurador, do político, do cliente, cientista e
das pessoas afetadas. Normalmente, quando há discussões, entre esses

Teoria e contexto
diferentes pontos de vista, o mais poderoso prevalece. Nesses casos, deve-
se ter ética na negociação e no diálogo, com a finalidade de se obter um
equilíbrio, para harmonizar um maior número de opiniões, contentando
mais pessoas.
Do ponto de vista ético, Viñas diz que “uma boa restauração é a que

Ciência & Conservação


satisfaz um maior número de sensibilidades” (2003, p.177). A conservação
e a restauração do objeto devem ser realizadas para os seus usuários, para as
pessoas para qual o objeto cumpre uma função essencialmente simbólica,
documental e outras. Deverão agradar os gostos e as necessidades
intangíveis de usuários futuros. Concluindo, esses objetos são símbolos
de aspectos intangíveis de uma cultura, de um grupo social, e devem ser
conservados sem alterar a capacidade simbólica (VIÑAS, 2003).
Hoje, no início do século XXI, a conservação preventiva desponta como
fator influente na pesquisa científica. Uma abordagem mais crítica do “não
tocar” foi desenvolvida, baseada num melhor conhecimento dos problemas
de conservação e dos mecanismos de degradação dos objetos, assim
como no conhecimento do fracasso de alguns materiais modernos que
foram introduzidos nessa área. A pergunta agora é como impedir danos,
portanto limitando a intervenção direta nos objetos ao absolutamente
necessário. Essa abordagem promove o desenvolvimento de tratamentos
de conservação para assegurar, da melhor maneira possível, que nenhum
dano ocorrerá (TAGLE, 1999).
As discussões teórico-metodológicas sobre a conservação são determinantes
no processo de amadurecimento dos profissionais e possibilitam um
crescimento salutar da área no país. Por outro lado, um aspecto parece ser
de senso comum, a formação de profissionais da conservação no Brasil é
incipiente e normalmente é necessário recorrer a cursos do exterior para 31
obter uma condição mais adequada de conhecimento. Fora algumas poucas
iniciativas, como os recém-criados cursos de graduação em conservação
da UFMG e da UFPEL e o curso de especialização promovido pelo
CECOR/UFMG, a formação de profissionais da conservação no Brasil é
ainda uma estrada em construção.
Os Desafios para a Conservação de Acervos Científicos
A pesquisa científica orientada para as inovações oferece um potencial
inesgotável, em resposta à busca pela maior precisão. Os instrumentos

Teoria e contexto
científicos, em contrapartida, tornam-se obsoletos cada vez mais rápido
e o desaparecimento do seu conteúdo documental pode constituir a
perda de uma parte intrínseca do conhecimento. A noção de conservação
aparece como uma primeira etapa necessária a garantir a salvaguarda
desses instrumentos de caráter histórico.

Ciência & Conservação


Esses objetos, essenciais à astronomia, à medicina, à física, à meteorologia,
à matemática e demais ciências, apresentam técnica de fabricação
geralmente muito complexa e os diversos materiais de que podem
ser construídos exigem cuidados bem específicos e diferenciados de
conservação. A título de exemplo, a Figura 1 apresenta um instrumento
composto de diversos materiais (madeira, couro, metal e vidro). Trata-
se de um microscópio composto, de origem alemã, fabricado por G. F.
Brander, em 1765 (TURNER, 1991).

32

Figura 1 – Microscópio composto, coleção do Museo di Storia della Scienza, Florença,


fabricado por G. F. Brander, em 1765 (TURNER, 1991).
Feitos essencialmente de metal (latão e bronze, e prata em menor grau),
os instrumentos científicos históricos estão sujeitos à corrosão e a outros
problemas associados a objetos metálicos. Além desses metais, muitos

Teoria e contexto
instrumentos incorporam o vidro, a madeira, o marfim e couros diversos.
Cada um desses materiais exige um tratamento específico. As condições
de apresentação e de organização devem se ajustar às exigências de
conservação, muitas vezes contraditórias para os metais e outros materiais
com os quais vêm combinados.

Ciência & Conservação


Outras questões de como conservar artefatos científicos relacionam-se
aos componentes químicos, em especial os reagentes antigos, e outros que
também envolvem materiais com risco potencial para a saúde humana,
como o mercúrio e os materiais radioativos. O que fazer com esses
componentes? Separar os reagentes de seus recipientes e neutralizá-los
constitui-se em uma ação que descaracteriza e interfere profundamente
no objeto científico antigo. Por outro lado, a sua permanência pode
determinar riscos para outros objetos e, especialmente, para os profissionais
da documentação, da pesquisa e da conservação que os manuseiem. O
mesmo se pode dizer em relação a objetos científicos mais recentes, onde
a presença de radioatividade pode causar enormes danos, haja vista o
acidente com césio-137 (radioativo) em Goiânia.4
A partir de meados do século XX, inicia-se um movimento crescente
de introdução de materiais diversificados para a construção de artefatos
científicos e tecnológicos. Esses novos materiais, incluindo ligas metálicas
em ampla variedade de composições, plásticos e materiais cerâmicos,
apresentam novos e grandes desafios. A própria miniaturização dos
circuitos internos de muitos instrumentos e equipamentos traz problemas
de outra ordem, inclusive de identificação de materiais componentes,
geralmente protegidos por patentes e de difícil identificação.
Além de toda essa diversificação de materiais, amplia-se também a variação
de modelos e a corrida frenética dos fabricantes pela atualização constante 33
com novos artefatos sendo produzidos com mais rapidez.
Finalmente, nesse contexto, uma pergunta não quer calar. O que devemos
preservar para as futuras gerações? Claramente é impossível separar pelo
menos um objeto científico que apresente inovação para fazer parte
dos acervos de museus de C&T e documentar esse ritmo frenético em
que vivemos. Especialmente no que tange a espaços de guarda, que são
limitados. Aliado a isso, os desafios de conservação de objetos com tal
variedade de materiais são aparentemente insuperáveis. Na verdade

Teoria e contexto
observamos aqui uma característica de nossa civilização que se reflete
também em outras faces, como a enorme produção de imagens virtuais
com a popularização do uso das câmeras digitais - a espiral de produção
e de consumo rápido que interfere diretamente com a preservação de
artefatos para as futuras gerações.

Ciência & Conservação


Algumas dessas questões estão presentes também em acervos de outras
tipologias e cumpre urgentemente discutir esses problemas e agir de forma
articulada, para que as futuras gerações tenham contato não apenas com
os vestígios materiais mais antigos, mas também com aqueles produzidos
e que sejam representativos da nossa geração.

Considerações Finais
O embasamento teórico para a atividade de conservação de bens culturais
é fundamental para seu melhor exercício prático. No entanto, nas últimas
décadas, percebe-se pouca discussão e reflexão sobre o tema. Por outro
lado, o investimento nas pesquisas e em pessoal, para o desenvolvimento de
ensaios e análises que permitam conhecer mais os processos de degradação,
os constituintes dos bens a serem conservados e o desenvolvimento de
novos produtos para a conservação, é cada vez maior. A tal ponto, que
muitas vezes parece que a atividade de conservação consiste apenas em
processos objetivos de decisão e escolha. O que não é correto. Todo
processo de conservação inclui também decisões subjetivas, das quais o
conservador não pode escapar, e sobre as quais tem responsabilidade.
Cabe tentar decidir da melhor maneira possível, de preferência articulando
vários atores nesse processo decisório.
No caso dos objetos científicos, a sua preservação relaciona-se com a 34
memória científica de um país. Esses objetos têm especificidades, são
constituídos de diferentes materiais, o que torna complexa a execução de
procedimentos de conservação. A ausência de profissionais capacitados
também é um fator limitador. Mas questões teóricas importantes também
se colocam para esse tipo de acervo.
No Brasil, está em desenvolvimento um projeto que realiza um
levantamento nacional dos conjuntos de objetos que fazem parte do
patrimônio científico e tecnológico.5 O projeto se justifica, em primeiro

Teoria e contexto
lugar, pelo valor documental e histórico desse patrimônio; em segundo
lugar, por quase nada desse tema ser estudado no país; e em terceiro lugar,
por estar muito ameaçado, necessitando ser descoberto e preservado. Em
relação aos levantamentos, já foi publicado, recentemente, um texto com
resultados iniciais (GRANATO, 2009), mas estudos posteriores mostram

Ciência & Conservação


que as cerca de 30 instituições ali mencionadas são a ponta de um iceberg.
Para viabilizar o trabalho no amplo território nacional já foram elaboradas
parcerias.6 O MAST já finalizou os levantamentos no estado do Rio de
Janeiro e debruça-se nesse momento sobre São Paulo. Nesse estado,
uma outra parceria, agora com a UNESP de Araraquara7, permitirá
fazer o levantamento das escolas secundárias. Outros contatos estão em
andamento para viabilizar os trabalhos.
Finalmente, percebe-se um efeito indireto em seu desenvolvimento,
durante os contatos e visitas, aparentemente, está acontecendo uma
modificação de consciência e olhar dos responsáveis por esses artefatos,
que já pensam em preservá-los ao invés de descartá-los.
O conhecimento desses conjuntos permitirá identificar os desafios
de conservação que estarão postos e também elaborar critérios que
possibilitem a escolha do que deve ou não ser preservado.

___________
Notas
35
1. Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio
de Janeiro, RJ; marcus@mast.br. Formado em engenharia metalúrgica e de materiais pela UFRJ
(1980), Mestre (1993) e Doutor (2003) em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação da Escola
de Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ), sendo sua tese sobre Restauração de Instrumentos
Científicos Históricos. É Coordenador de Museologia no MAST e, a partir de 2006, torna-se professor
do Mestrado em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST), onde atua como vice-coordenador. A
partir de 2009, assume a coordenação do Curso de Especialização em Preservação de Acervos do
C&T, do MAST. Atualmente é Coordenador de Museologia do MAST, pesquisador 1D do CNPq e
líder de grupo de pesquisa na área de Preservação de Bens Culturais.
2. Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio de
Janeiro, RJ; guadalupecampos@mast.br. Possui Graduação em Museologia pela Universidade do
Rio de Janeiro (1996), Mestrado (2001) e doutorado (2005) em Ciência dos Materiais e Engenharia

Teoria e contexto
Metalúrgica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Consultora em Arqueologia
Histórica para a Fundação Roberto Marinho e o Banco Central. Atualmente desenvolve pesquisas a
nível de pós-doutorado no MAST sobre a conservação de artefatos arqueológicos metálicos.

3. John Ruskin, Biographical Materials. The Victorian Web: literature, history, culture in the age of
Victoria. National University of Singapore. Disponível em http://www.victorianweb.org/authors/
ruskin/ruskinov.html. Último acesso em 05/04/2010.

Ciência & Conservação


4. A contaminação teve início em 13 de setembro de 1987, quando um aparelho utilizado em
radioterapias das instalações de um hospital abandonado foi encontrado, na zona central de Goiânia.
O instrumento foi encontrado por catadores de papel, que entenderam tratar-se de sucata. Foi
desmontado e repassado para terceiros, gerando um rastro de contaminação que afetou seriamente a
saúde de centenas de pessoas.

5. Projeto “Valorização do patrimônio científico e tecnológico brasileiro”, no MAST, dentro do


Grupo de Pesquisa em Preservação de Acervos Culturais.

6. Com os Cursos de Graduação em Museologia das Universidades Federais de Pernambuco, Bahia


e Pelotas, respectivamente através de seus professores Emanuela Sousa Ribeiro e Antonio Motta
de Lima (UFPE), Suely Ceravolo (UFBA) e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira (UFPEL). Nesses
estados (PE, BA e RS), os grupos formados por professores e alunos ficaram responsáveis pelos
levantamentos, integrando o projeto a partir de sub-projetos.

7. Através da Profa. Maria Cristina de Senzi Zancul.

Referências
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36
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MARCONI, Paolo. Dal piccolo al grande restauro: Colore, struttura, architettura, Venesia: Marsilio
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Ciência & Conservação


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VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Coleção Artes & Ofícios. Cotia (SP): Ateliê
Editorial, 2000.

37
Conhecimento científico e restauração:
entre análise e método

Teoria e contexto
Marilene Corrêa Maia
EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Ciência & Conservação


Resumo
O presente texto procura evidenciar a progressiva apropriação do conhecimento científico
pelo ofício da conservação-restauração de bens culturais. A ciência, em suas diferentes
especialidades, tem contribuído para o aprimoramento das competências e possibilidades
de atuação dos conservadores-restauradores. Os princípios científicos foram incorporados
ao quotidiano dos trabalhos de conservação e restauração de bens culturais, para além da
introdução de inovações tecnológicas.
Palavras Chaves: Restauração, ciência, método, análise científica, conservação, rreserva-
ção do patrimônio

Resumé
Dans ce texte il a été question de mettre en évidence la participation du savoir scientifique para la
consevation-restauration du patrimoine. La science, dans ces différentes spécialités, est utilisée en vue
du perfectionnement des compétences ainsi que des possibilités d’actuation du conservateur-restaurateur.
Les principes scientifiques sont aujourd’hui présents au quotidien dans les travaux de conservation et de
restauration de biens culturels au-delà d’avoir apporté des innovation technologique a ce domaine.
Môts-clês: Restauration, science, méthode, analyse scientifique, conservation, préservation du patrimoine

Introdução
Ao longo do século XX, o ofício de restaurar adquiriu expressiva
complexidade. Para além das reflexões teórico-conceituais acerca dos
processos de intervenção e da definição de princípios éticos, o conhecimento 38
científico transformou-se em base fundamental e estruturante das ações
de conservadores-restauradores.
Perspectiva histórica
Originalmente o ofício de restaurador sempre esteve associado ao
fazer artístico. Obras de arte sofriam intervenções mais propriamente

Teoria e contexto
denominadas como reparos ou consertos. No caso de pinturas de cavalete,
era comum a prática de reenvernizamentos sucessivos para reavivar suas
cores e prepará-las para serem apresentadas a públicos seletos. Não era
raro que artistas de renome praticassem intervenções em obras de arte. A
restauração era, portanto, uma atividade técnica, de caráter artesanal.

Ciência & Conservação


Diferentes técnicas aplicadas em processos de restauração derivavam
de métodos utilizados na elaboração de obras de arte, principalmente
pinturas e esculturas. Tal fato fica evidente quando fazemos um breve
levantamento dos materiais empregados habitualmente em ateliês de
antigos restauradores, inclusive no Brasil. Dentre eles, poderíamos citar a
cera de abelha para reentelamentos e refixação de policromia (MOTTA e
SALGADO, 1973), a terebintina na remoção de vernizes, a resina damar
para elaboração de verniz (GETTENS e STOUT, 1942), o carbonato de
cálcio e as colas animais para a realização de massas de nivelamento.
É no transcorrer do século XIX que identificamos uma aproximação
progressiva da restauração e do conhecimento científico. Exemplos
notáveis merecem destaque. Em 1850, o físico Michael Faraday é
convidado para fazer uma análise sobre processos de deterioração sofridos
por pinturas da coleção da National Gallery de Londres (EASTLAKE,
FARADAY e RUSSEL, 1850). Em 1863, um químico e higienista bávaro,
Max Von Pettenkofer, desenvolveu uma experiência de regeneração de
verniz em pinturas de uma coleção de Munique (SCHMITT, S., 1990, 81-
84). O método, que ficou conhecido como processo Pettenkofer, consiste
em expor a pintura ao vapor de uma mistura de etanol com bálsamo de
copaíba para sensibilizar o verniz e solucionar embaçamentos e chancis.
Essas experiências, precursoras de pesquisa científica, visando soluções 39
técnicas para procedimentos de restauração, encontraram terreno propício,
de um ponto de vista teórico-conceitual. Na segunda metade do século
XIX emerge um esforço de reflexão acerca da prática de intervenções em
bens de relevância histórica, artística e cultural. Nesse contexto merece
destaque a contribuição do arquiteto francês Eugène Emannuel Viollet
le Duc, que implementou uma estruturação metodológica de exames
como suporte ao seus trabalhos práticos (VIOLLET-LE-DUC, 2000).
Um estudo aprofundado, segundo Le Duc, deveria preceder à tomada de

Teoria e contexto
decisões do restaurador. Para o arquiteto, a análise prévia da edificação,
o levantamento e a identificação das modificações por ela sofridas ao
longo do tempo deveriam ser uma condição imperativa para que fosse
definido o modo de intervenção. Em que pesem as críticas ao seu trabalho
por demais intervencionista, com a seleção de um determinado estilo em

Ciência & Conservação


detrimento de outros, seu mérito reside efetivamente na sistematização de
procedimentos metodológicos de estudo, exame, análise e documentação.
No mesmo período, e em oposição às idéias de Viollet le Duc, o literário e
crítico de arte inglês John Ruskin defendia a conservação a todo custo, como
forma de respeitar a ação do tempo sobre edificações e monumentos. Tal
postura era, portanto, contrária às intervenções diretas (RUSKIN, 2008).
Por outro lado e a posteriori, Camilo Boito, arquiteto e escritor italiano,
evidenciou a necessidade de serem estabelecidos critérios específicos para
diferentes tipos de obras: arquitetura, esculturas, pinturas (BOITO, 2002).
O arquiteto partia do princípio de que cada tipo de obra é submetido a
exercícios distintos de observação e apreensão por parte do espectador.
Sendo assim, deveriam sofrer procedimentos de intervenção compatíveis
com suas particularidades. Segundo ele, nem todas as perdas de partes
deveriam ser complementadas. No caso das esculturas, por exemplo, a
ausência de uma parte não impediria necessariamente a apreciação da obra
no seu todo. Boito evidenciou, com efeito, o caráter relativo dos critérios
de restauração de bens culturais.
Desta forma, a complexidade do ofício de restaurar evoluiu
progressivamente com a introdução de procedimentos metodológicos
cada vez mais rigorosos. A pesquisa torna-se necessária a todo processo
de intervenção, que deve estar baseada em critérios específicos e guiada
por uma orientação ética. 40
Outros fenômenos devem também ser destacados nesse processo de
apropriação do conhecimento científico pela restauração de bens culturais.
Entre as últimas décadas do século XIX e inícios do século XX, são criados
ateliês em museus europeus, como Staatliche Museen em Berlim, em 1888,
e o Museu Britânico, em 1919. No interior da estrutura dos museus, esses
laboratórios passam a ser locais privilegiados para o estudo dos objetos
constituintes das coleções. Alguns deles transformaram-se em referências,
no âmbito da pesquisa sobre procedimentos técnicos e materiais aplicáveis

Teoria e contexto
a processos de restauração. É o caso dos laboratórios de museus como
os da National Gallery de Londres ou de Nova York, do Smithsonian’s
Museum Conservation Institute nos Estado Unidos, para citar apenas
alguns exemplos.
Participam desse processo, em igual medida, as instituições de caráter

Ciência & Conservação


internacional ligadas à preservação do patrimônio. Nesse sentido, são
relevantes as ações da UNESCO, fundada em 1945 pela Organização
das Nações Unidas – ONU, do Conselho Internacional de Museus –
ICOM, criado em 1946, e do Centro Internacional para o Estudo da
Preservação e da Restauração de Bens Culturais – ICCROM, fundado em
1956. Acrescentam-se a essas iniciativas instituições que visam congregar
profissionais conservadores-restauradores e de disciplinas correlatas,
tais como o Instituto Internacional de Conservação – IIC, o Instituto
Americano de Conservação para Obras Históricas e Artísticas – AIC, ou
ainda, no Brasil, a Associação Brasileira de Conservadores-Restauradores
- ABRACOR. Tais instituições contribuem para atualizar debates e
para a divulgação de inovações e de pesquisas científicas relacionadas à
conservação e à restauração de bens culturais. Por outro lado, constituem-
se em fóruns de excelência, afirmando princípios éticos que devem nortear
as ações de conservadores-restauradores.
A dimensão científica da conservação-restauração vai igualmente ser
reforçada pela formação de profissionais em centros universitários. Um
exemplo brasileiro pertinente é o antigo Curso de Especialização em
Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, fundado em 1978
pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, e
transformado em graduação no ano de 2008.
41

Apropriando-se do conhecimento científico


É com o auxilio de diferentes disciplinas, tais como a química, a biologia, a
microbiologia, dentre outras, que se ampliam as possibilidades de atuação
do conservador-restaurador. Este profissional deve possuir um domínio
de diferentes áreas do conhecimento, para compreender e apreender o
objeto na sua multiplicidade e propor soluções adequadas, de forma a
respeitar os critérios éticos que definem e regulam as possibilidades de

Teoria e contexto
intervenções de restauração.
No que diz respeito a uma estruturação do trabalho quotidiano do
conservador-restaurador, a apropriação de princípios científicos contribuiu
para a organização metodológica de suas intervenções. O conjunto de
estudos preliminares, constituídos por exames técnicos e científicos,

Ciência & Conservação


permite ao profissional uma aproximação progressiva do objeto. Através
do preenchimento de fichas técnicas, é feito todo um levantamento de
dados, tais como a procedência, o proprietário, a data de execução, as
dimensões, as características físicas da obra. Essas informações permitem
a contextualização do objeto e a consequente identificação de seus valores
artísticos e históricos, dentre outros. Exames sofisticados podem ser
utilizados com este fim. Dentre eles poderíamos mencionar os raios-x,
para estudo da estrutura interna de esculturas policromadas ou mesmo
de pinturas de cavalete, e as análises microquímicas, para identificação de
materiais constituintes de pinturas.
Outros tipos de análises podem ser solicitados pelo conservador-
restaurador, que deve desenvolver uma competência para interpretá-
las, ou mesmo para discutir com diferentes especialistas, de maneira a
potencializar resultados e procedimentos de pesquisa com cientistas de
diferentes áreas.
Através de pesquisas científicas, técnicas inovadoras e materiais
contemporâneos foram introduzidos em processos de conservação-
restauração – como o uso de laser, para a limpeza de pedras, e o de gases
inertes, para o desenvolvimento de atmosferas controladas, aplicáveis
ao combate de microrganismos e de insetos xilófagos. Poderíamos citar
igualmente a apropriação de adesivos sintéticos e semissintéticos de 42
tipo termoplásticos, em processos de restauração, viabilizando, em certa
medida, o respeito aos critérios de reversibilidade. Abriram-se, desta
maneira, novos horizontes e perspectivas para o trabalho quotidiano de
conservação-restauração.
Contudo, merece ser ressaltado que a apropriação de princípios científicos
pela conservação-restauração encontra sentido somente a partir do
momento em que esta é entendida como um meio, um apoio na busca de
melhor compreensão das especificidades do objeto a ser restaurado. Na
mesma medida, os recursos das ciências humanas, biológicas ou exatas

Teoria e contexto
devem estar a serviço do estudo da obra, constituindo-se em suporte
à tomada de decisões, assim como à definição de procedimentos de
intervenção em bens culturais.

Ciência & Conservação


___________
Referências
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ISBN 8574800279 (broch.)
Arquitetura Contemporânea de museu como
espetáculo: roteiro e atores no cenário da

Teoria e contexto
indústria cultural
Willi de Barros Gonçalves
Doutorando PPGA-EBA-UFMG
Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Ciência & Conservação


Resumo
Este artigo discute como a Arquitetura contemporânea de museus se insere na lógica da
indústria cultural. Apresenta um histórico da evolução dos museus, procurando explicar as
origens das questões contemporâneas relacionadas a esse tema. Destaca como as rupturas
modernas ainda permeiam a visão de mundo atual e analisa como a construção de museus
se tornou um aspecto relevante do desenvolvimento urbano. Finaliza discorrendo sobre
possíveis caminhos a serem percorridos pela Museologia no séc. XXI.
Palavras chave: patrimônio cultural, teorias da conservação, arquitetura, museus

Abstract
This article argues as the Architecture contemporary of museums inserts the logic of the cultural industry.
It presents a description of the evolution of the museums, explaining the origins of the contemporaries
questions related to this subject. It detaches as the modern ruptures still sustain the vision of current world
and analyze as the construction of museums if it became an excellent aspect of the urban development. It
finishes discoursing on possible ways to be covered for the Museum studies in séc. XXI.
Key words: cultural heritage, conservation theories, architecture, museums

Introdução
No início do século XXI a museologia encontra-se em um contexto
de transformação e hibridação. Mudanças significativas acontecem
na velocidade em que os bits percorrem incontáveis redes: de fios, de
terminais, de satélites, corporativas, relacionais, neurais, conceituais,
virtuais. Na Idade da mídia, a multidimensionalidade anunciada pela teoria 44
da relatividade deixou o campo das discussões entre os físicos teóricos
para incorporar-se ao cotidiano. O espaço-tempo contemporâneo está
comprimido.
No centro dessas mudanças a Arquitetura se coloca ao mesmo tempo como
objeto e mediador simbólico das mutações sociais, econômicas, políticas:
urbanas. A cidade do século XXI é simultaneamente fato e produto. A
compreensão do fenômeno urbano não prescinde do prisma da cultura,
na acepção antropológica que o termo assume contemporaneamente.
Contudo, essa mesma é muito mais produto do que fato em sua face de

Teoria e contexto
indústria. A sociedade do espetáculo – termo cunhado por Debord (1997)
– instrumentaliza essas esferas com perversos mecanismos de reificação,
exclusão e controle social.
A que se propõem as instituições museais em uma época em que os limites
entre o real e o simulacro tendem à invisibilidade? Que lugar poderá

Ciência & Conservação


restar á memória no futuro da museologia? Teria ela forças para resistir
à voracidade da história e superar as rupturas modernas? Não há como
pensar nessas indagações sem refletir sobre a construção histórica dos
museus – sua origem, conceitos, evolução. Tal raciocínio é útil para pensar
na problemática que envolve a resignificação presente do passado e a sua
extensão para o futuro.

1. Do templo das Musas ao templo das mídias (e das massas) –


um olhar sobre a história dos museus
É possível identificar elementos da problemática dos museus
contemporâneos bem como de suas relações com os temas da memória,
da história e do patrimônio, investigando a raiz etimológica da palavra.
O termo museu vem do grego museion passando pelo latim museum e
remete aos templos que na Antiguidade foram dedicados às Musas.
Na mitologia, as Musas são representadas por jovens deusas, filhas de Zeus
e Mnemosine – a deusa da memória. Durante nove noites Zeus se deitou
com Mnemosine, que deu a luz a nove filhas, concebidas para perpetuar
e cantar a vitória dos deuses do Olimpo sobre os Titãs, filhos de Urano.
As musas cantavam o presente, o passado e o futuro, acompanhados
pela lira de Apolo, para deleite das divindades do panteão. A origem do
mito estaria associada aos cultos às ninfas dos rios e lagos originários da 45
Trácia ou em Pieria, região a leste do Olimpo, de cujas encostas escarpadas
desciam vários córregos produzindo sons que sugeriam uma música
natural, levando a crer que a montanha era habitada por deusas amantes
da música. Nos primórdios, eram apenas deusas da música, formando um
maravilhoso coro feminino. Posteriormente, suas funções e atributos se
diversificaram .
Na iconografia, cada uma delas carrega um símbolo, simbolizando sua
arte: Thalia (comédia – máscara cênica); Erato (poesia lírica – lira); Euterpe
(música – flauta); Polyhymnia (música cerimonial sacra - figura velada);

Teoria e contexto
Calliope (poesia épica - tabuleta ou pergaminho e uma pena para escrita);
Urania (astronomia – globo celestial e compasso); Melpomene (tragédia
– máscara trágica, grinalda e clava) e finalmente Clio, a musa da história
representada com um pergaminho parcialmente aberto.
O museion, na tradição clássica, era mais destinado a discussões filosóficas

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e científicas, ensino e investigação que a guarda de obras de arte. Essa função
era cumprida pelo áditon, onde era depositado o thesauros: oferendas, ex-
votos, relíquias, objetos de recordação. – gerenciado e inventariado pelos
sacerdotes, que eram remunerados e se responsabilizavam inclusive pela
conservação dos objetos. Os locais de guarda do thesauros permanecem
até hoje na arquitetura das igrejas católicas.
Segundo Froner (2001), no mundo antigo não se usou a palavra museion
para as coleções de obras de arte. Além de thesauros, foi usada a palavra
pinacotheca - de pinax –quadro pintado sobre madeira e theke – caixa.
Esse nome foi usado por Pausânias para descrever uma coleção de quadros
que existia no lado esquerdo do Propileu de Atenas . O museu científico
que vai se desenvolver no séc xxx deriva do conceito da “caixa de guardar
quadros”.
A primeira aplicação da palavra museion com o mesmo sentido que lhe
atribuímos hoje vem do museion de Alexandria. A famosa biblioteca
era uma parte integrante dessa instituição, fundada por Ptolomeu Soter,
inspirado nos templos das musas, como casa da musica, poesia, escola
filosófica e biblioteca . Não chegou a possuir uma coleção de escultura ou
pintura, mas reuniu os maiores sábios da época, contando com um parque
botânico e um zoológico, sala para estudos de anatomia e observatório
astronômico. Embora não tenha sido empregada com esse sentido, a
acepção original de museu guarda relação com a idéia de um “lugar onde 46
se cultua a memória dos vencedores”, pela acumulação de um patrimônio
e constrói-se sobre a égide da figura mitologia da história (Clio), que tudo
registra.
É interessante destacar que originariamente a concepção do “lugar onde
se guarda a memória” possui estreita relação com as bases filosóficas
da Arquitetura Grega. Nela é possível é possível observar a relevância
da dimensão espacial, em vários aspectos: na localização e implantação,
através das quais remete aos atributos das divindades da natureza a que é

Teoria e contexto
dedicada; no rigor com que se aplica a “geometria sagrada” e até mesmo
na forma como as sombras se movimentam ao longo do dia. Os templos
gregos são lugares de onde se observa a natureza, o mundo e o tempo.
As conexões entre espaço e cultura, centrais na conformação da
paisagem urbana contemporânea, são estruturais para a reflexão sobre

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as dimensões relacional e comunicativa que compõem os museus na
atualidade (SPERLING, 2005). Sobre essa dimensão espacial da memória,
fundamental para a compreensão do papel que a Arquitetura representa na
problemática dos museus contemporãneos, Seligmann-Silva observa que
na antiguidade não só não existia a impressão de livros,
como tampouco havia papel tal como nós o conhecemos
hoje; daí a importância da memória para o orador. (...)
O princípio central da mnemotécnica antiga consiste na
memorização dos textos através da sua redução a certas
imagens que deveriam permitir a posterior tradução
em palavras: a realidade (res) e o discurso final (verba)
deveriam ser medializados pelas imagens. Essas imagens
por sua vez, deveriam ser estocadas na memória em certos
locais (loci) imaginários ou inspirados em arquitetura de
prédios reais. (...) a doutrina dos loci afirma uma concepção
eminentemente visual/espacial da memória, e é aproximada
da noção de escritura. (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 33).
Sobre a forma como os thesauros gregos foram apropriados pelos
romanos, escreve Françoise Choay (2006):
Os objetos gregos espoliados pelos exércitos romanos
começam por entrar discretamente no interior de algumas
residências romanas, mas seu status muda no momento em
que Agripa pede que as obras entesouradas no recôndito
dos templos sejam expostas á vista de todos, á luz viva das
ruas e dos grandes espaços públicos. Desde então... Roma
oferece um espetáculo ambíguo, sobre o qual o olhar do 47
séc. XX fica tentado a projetar os valores e atitudes da
sociedade ocidental pós-medieval ou mesmo atual. (...)
Roma conhece um mercado de arte, especialistas, falsários,
corretores, etc.(CHOAY, 2006, p. 33, 34)
Dentre os legados romanos destaca-se a sistematização do direito, inclusive
no tocante à administração do patrimônio. De acordo com Froner (2001,
p. 3) “espaços públicos destinados à exposição ou ao culto de obras de
arte não contavam com jurisdição estadual, nem ingerência do Estado,

Teoria e contexto
sendo formados a partir da iniciativa privada e gerenciados pelo aeditus,
um conservador/inventarista nomeado pelo patronus daquela coleção
específica”, função provavelmente derivada do sacerdote que restaurava
as oferendas guardadas no áditon grego.

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1.1. A resignificação e reutilização da memória na Idade Média
Segundo Campos (apud Froner 2001, p. 4) no milênio que transcorre
da queda do Império Romano do Ocidente (476) até a tomada de
Constantinopla pelos turcos, os museus estiveram ausentes da civilização
ocidental. Os castelos feudais e abadias convertem-se no destino das
relíquias recolhidas nas Cruzadas.
Em uma Europa coberta de monumentos e edifícios
públicos pela colonização romana, esses séculos causaram
uma grande destruição. Dois fatores levaram a isso. De um
lado o proselitismo cristão. (...) De outro, a indiferença em
relação aos monumentos, que haviam perdido seu sentido
e seu uso, à insegurança e a miséria: os grandes edifícios
da Antiguidade são convertidos em pedreiras, ou então
recuperados e desvirtuados (...) ocupados por habitações,
depósitos, oficinas (...) comerciantes (...) fortalezas.
(CHOAY, 2006, p.33)
A partir do séc. XI a arte românica busca resgatar elementos clássicos,
valorizando o comércio e a circulação de obras e relíquias da Antiguidade.
Para os clérigos do séc. VIII ou XII, o mundo antigo é
ao mesmo tempo impenetrável e imediatamente próximo.
Impenetrável, pois os territórios romanos ou romanizados
tornaram-se cristãos, a visão pagã do mundo não vigora
mais, ela não é mais concebível. As expressões literárias
ou plásticas pagãs reduziram-se a formas vazias. Próximo,
pois essas formas vazias, ao alcance da vista e da mão são
48
imediatamente passíveis de transposição e transpostas para
o contexto cristão, em que são interpretadas de acordo com
os códigos já conhecidos. (CHOAY, 2006, p. 38)
Froner (2001, p. 4) destaca que
(...) sob essa ótica, a igreja medieval oferecia ao olhar uma
gama variada de objetos, sendo o único local aberto ao
público onde era possível observar as coleções antes restritas
apenas ao homem de posses. No final do século XII, o
cardeal Giordano Orsine – um dos maiores colecionadores
do período – criou em Roma um gabinete de antiguidades,

Teoria e contexto
atual Museu do Vaticano, que abria uma vez por semana ao
público com o intuito de divulgar a superioridade da arte
ocidental”. (FRONER, 2001, p. 4)

1.2. Conservação icônica e renovação metodológica: os

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humanistas e os gabinetes de curiosidades
Cândido (1998) descreve o surgimento, no Renascimento de uma
nova tipologia para a guarda dos bens culturais: o gabinete de
curiosidades, enfatizando seu caráter elitista:
O Renascimento trouxe consigo os locais de reunião de
raridades e preciosidades, organizadas para o deleite das
cortes européias preocupadas em demonstrar seu gosto
refinado. O ecletismo permanece como marca fundamental
por um longo período, onde a quantidade e diversidade de
peças é o que chama a atenção. Neste contexto, inúmeras
coleções particulares, reunidas nos chamados gabinetes
de curiosidades, foram abertas ao público, mas com um
certo tom palaciano e aristocrático. Estes museus são como
ponto de encontro e reunião dos membros dos grupos
privados que em regra os criam. (CÂNDIDO, 1998, p. 26 )
Portanto, o museu, em sua acepção original pode ser pensado como o
lugar do mito, do incorpóreo, do imaterial. As rupturas com o mundo
antigo que se iniciam no Renascimento e se consolidam nos sécs. XVIII
e XIX vão inverter essa percepção, sob uma lógica de objetividade, que
se incorporou ao longo dos três últimos séculos às bases filosóficas da
museologia e da arquitetura de museus,
os italianos do quatroccento procuraram reconciliar as
tradições pagãs da civilização da Antigüidade, adaptando-
as ao cristianismo. É nesse período que as grandes famílias 49
burguesas – os Strozzi, Pazzi, Martelli, Capponi, Mancini,
Medici, Visconti – ostentam seu patrimônio financeiro por
meio da coleção de obras de arte, antigas e contemporâneas.
(FRONER, 2001, p.5)
Os objetos passam da condição de relíquia ou maravilha para uma
condição significante, de semióforos (objetos de estudo) – objetos da
antiguidade são colecionados pelos huamanistas, sendo valorizados por
sua relação com os textos clássicos. Objetos que retratam outras culturas
são coletados em expedições e são valorizados por seu exotismo. Obras de

Teoria e contexto
arte contemporâneas do Renascimento são examinadas à luz dos tratados
que teorizam acerca do belo. E finalmente, colecionam-se instrumentos
científicos, principalmente aqueles ligados á Astronomia, pela sua
vinculação com as navegações.
Françoise Choay (2006) aborda o tema da conservação iconográfica que

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nasce no séc. XVI, o qual nos remete à importância das imagens mentais
nos primórdios da mnemônica:
após quase três séculos de estudos dedicados às antiguidades,
a forma dominante de sua conservação continua sendo o
livro ilustrado com gravuras. (...) O caso da França é típico.
A partir do séc. XVI, antiquários e arquitetos estudaram
com paixão os vestígios greco-romanos, particularmente
os de Provença. Contudo, se à época eles lamentam sua
degradação, seu estado de abandono ou sua demolição,
apenas uma ínfima minoria se preocupa com sua proteção
in situ. (CHOAY, 2006, p.81)
Criada a demanda, o mercado se organiza e negociantes especializados
fazem as intermediações. Nesse cenário destaca-se a cidade de Veneza.
O trabalho de inventário e conservação passa as mãos de artistas de fama
reconhecida, como Donatello, Da Vinci, Michelangelo, e outros. Froner
(2001, p. 7) informa que
em 1471, Sixto IV editou uma bula para proibir o êxodo
das antiguidades romanas e fundou o Museu de Arte e
Antiguidades do Capitólio. Porém, tão inócuo quanto o
édito romano que protegia a Coluna de Trajano, a bula
papal não evitou que coleções inteiras fossem parar nas
mãos de colecionadores particulares de toda Europa.

1.3. Dos museus-mausoléus aos museus monumentais:


50
rupturas modernas
No séc. XVI, a Itália permanece como a grande promotora da valorização
da arte e da cultura, através da atuação do papado e das oligarquias a
ele ligadas. A origem das rupturas modernas podem ser localizadas no
pensamento de Francis Bacon (1521-1626) e sobretudo em Descartes
(1596-1650), marcado pela noção do “saber como poder”, bem como na
crença no progresso da ciência e da técnica para o domínio da natureza.

Teoria e contexto
A dessacralização e desencantamento do mundo inaugurados com as
Navegações avançam em termos de ruptura entre sujeito e objeto –
entre o novo e o antigo, com grande progresso das ciências naturais.
Nesse período surgem os primeiros catálogos de leilões demonstrando
a existência de um público suficientemente numeroso interessado em

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peças de coleções. Ao final do séc. XVII os locais que abrigam coleções
se consolidam em duas grandes categorias: os gabinetes de curiosidades e
as galerias. A tradição dos gabinetes se reafirma no séc. XVIII e persiste
até o séc. XIX e esse período assiste a consolidação da Museologia e
Arqueologia como campos delimitados do saber. Em 1727 Nickel publica
o primeiro tratado de Museografia, dividindo as coleções em Naturalia e
Artificia. A racionalização museológica se traduz em forma de organizar
e classificar as coleções durante todo esse período. - período corresponde
ao enciclopedismo.
Aliados a uma visão positivista e tecnicista, os gabinetes de
curiosidades estabeleceram-se como registro dos avanços
da ciência (acervos de paleontologia, botânica, anatomia
e arqueologia) e do progresso humano (como o exotismo
de culturas atrasadas e objetos artísticos produzidos
para a elite). Modelos tridimensionais do conhecimento
enciclopédico, estes museus primavam pela abrangência do
acervo e detinham-se nas mínimas informações necessárias
para provocar o espanto do público”. (CÂNDIDO, 1998,
p. 27)
A Revolução Francesa e em seguida o período napoleônico consolidam
o caráter documental dos monumentos, anexando a eles o conceito
“histórico” e a transformação das coleções particulares em museus que
passam a guardar um patrimônio “público”. O primeiro traço característico
dos museus modernos é a sua permanência, em oposição à transitoriedade 51
das coleções particulares. Após um período de vandalismo a Convenção
Nacional cria quatro museus: o Museu Nacional (Louvre) (1792), o Museu
de História Natural (1794), o Conservatório Nacional de Artes e Ofícios e
o Museu dos Monumentos Franceses, (1796) com a missão de proteger e
resignificar o patrimônio francês, símbolo do poder do Antigo Regime. A
Expansão Napoleônica resulta na fundação de diversos museus nacionais.
Como alerta Gonçalves (2003), “todo e qualquer grupo humano exerce
algum tipo de atividade de ‘colecionamento’ de objetos materiais, cujo
efeito é demarcar um domínio subjetivo em oposição a um determinado

Teoria e contexto
‘outro’. O resultado dessa atividade é precisamente a constituição de um
patrimônio”.
Os gabinetes de curiosidade e os estúdios de leitura preservaram a noção
do áditon, e dos primeiros museus renascentistas, por um viés excludente,
deixando ao público uma atitude contemplativa e não participante.

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Esse viés consolidou-se reforçado pelo espetacularismo na arquitetura
contemporânea de museus, e constitui um dos paradigmas a serem
superados pela museologia no século XXI, conforme se discute adiante.
Também no séc. XVIII, coleções pertencentes à coletividade surgem no
seio das universidades, que herdam e passam a ampliar os acervos dos
nobres europeus. Em 1661, a Universidade da Basiléia já havia recebido o
gabinete completo da família Aubach. Em 1713, é fundado o Ashmolean
Museum of Oxford, agregando um laboratório de ciências naturais. Em
1753, o British Museum é criado pelo parlamento a partir da doação do
gabinete do Sir Hans Sloane.
No século XVIII os objetos são redistribuídos a partir
de critérios científicos e racionais formando coleções
vinculadas às disciplinas especializadas: objetos da técnica
para os museus sobre a técnica; pedras e borboletas para
os museus de história natural; livros para s bibliotecas;
objetos exóticos para os museus etnológicos; armas para
os museus nacionais. (...) Jóias e objetos finos foram para
os museus de arte e os objetos pré-históricos para os
museus de arqueologia. Do ponto de vista museográfico, o
Louvre introduz inúmeras inovações, como as curadorias,
as exposições especiais, as vitrines, que são colocadas no
centro das salas, a identificação e a seleção das obras, a
criação do conceito de reserva técnica, a preocupação com
o espaço e com a iluminação, a restauração, entre outras.
Além disso, as obras dos artistas vivos são separadas
daquelas dos artistas já mortos, elaboram-se catálogos para
52
serem vendidos a baixo custo. As pinturas são agrupadas
estabelecendo relações de identidades, semelhança e
cronologia (...) (LARA FILHO, 2006, p. 45, 47)
O séc. XIX assiste a um aprofundamento das descontinuidades entre
história e memória, e a consolidação das premissas modernas, traduzidas
na valorização do tempo e fragmentação do espaço, crença no progresso,
busca da inovação e da objetividade.
Os museus se tornam cada vez mais numerosos e embora do ponto de

Teoria e contexto
vista do edifício vigore a Arquitetura Neoclássica, o espaço museológico
se mostra diversificado, com exposições cobrindo desde a antiguidade à
contemporaneidade. Em termos arquitetônicos e urbanísticos a vanguarda
nesse período é marcada pelas Exposições Universais, e pela Arquitetura
do ferro e do vidro, materiais construtivos que expressam o triunfo da

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revolução industrial, porém o conteúdo das exposições curiosamente
enfoca o pitoresco e o romântico.

2. Os museus no séc. XX - arquitetura do espetáculo no contexto


da indústria cultural
As descontinuidades aprofundadas nos sécs. XVIII e XIX trouxeram
alterações profundas na escala da relação homem-natureza, mediada
pelas inovações tecnológicas em velocidade crescente: eletricidade, mídia
e comunicações (telégrafo, cinema, rádio, telefone, cinema, fotografia),
transportes (automóvel, trem, navegação a vapor), medicina, etc.
A mudança de inclinação nas linhas do progresso acarretou mudanças
radicais na tessitura tempo-espaço válida até então, tanto na vivência
cotidiana como na teorização acadêmica (teoria da relatividade).
Posições como Fordismo e Taylorismo num espaço tecido e regido
tecnocraticamente por organizações corporativas num cenário em que
ocorrem duas guerras mundiais, passaram a multiplicar e reproduzir
em série eventos de desumanização e reificação em escala global. Nesse
contexto, desenvolve-se o Urbanismo enquanto campo moderno de
conhecimento. Na Arte, Cubismo, futurismo e modernismo podem ser
pensados como frutos da impossibilidade de representação do mundo
novo com as linguagens antigas. 53
No tocante à prática museológica,
rompe-se o paralelismo entre classificação e nomenclatura
do período anterior, pois, já não se pode ‘distinguir’
segundo os mesmos critérios e as mesmas operações que
exige o ‘denominar’: a ordem das palavras e a ordem dos
seres já não coincidem senão numa linha artificialmente
definida. Classificar, e ordenar não mais se faz a partir
do visível mas sim pelas formas de organização e suas
funções. Os três ‘reinos’ (animal, mineral e vegetal) são

Teoria e contexto
substituídos por dois: o do vivo (orgânico) e do não vivo
(inorgânico), e a História Natural dá lugar à Biologia. Assim
é que a ordenação e a classificação dos objetos passam a
adotar um sistema artificial, desvinculado das árvores do
conhecimento, e cuja finalidade é guardar e recuperar.
(LARA FILHO 2006, p.52)

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2.1. Os museus no cenário da indústria cultural
Para Barbalho (2003, p. 29) a indústria cultural
refere-se não a qualquer objeto simbólico que circula no
mercado, mas àqueles que são produzidos dentro de uma
lógica industrial massiva. A cultura torna-se industrial
quando assimila as formas planejadas, racionalizadas,
de organização do trabalho. “Através da utilização
generalizada da planificação na produção, as indústrias
culturais conformam-se enquanto totalidade. (...) Como
resultado da atuação planejada do mercado na cultura e da
transformação do receptor em consumidor, as produções
da indústria cultural não apenas agregam o caráter de
mercadoria, mas transformam-se nela integralmente (...)
Os produtos da indústria cultural são incorporados pelo
mesmo conceito que qualquer bem de consumo possui no
mercado. (BARBALHO, 2003, p.13)
A racionalidade positiva construída ao longo da Idade Moderna, sustentada
na tecnocracia capitalista estendeu a dessacralização e o desencantamento
do mundo a todos os horizontes, terminando por romper, ao fim do
século, as poucas fronteiras restantes nos conflitos éticos entre público e
privado, sagrado e profano, natural e artificial, real e virtual.
Se a dimensão espacial representa um papel fundamental para a recuperação
e uso adequado das memórias do homem, pela sua relação intrínseca 54
com a dimensão temporal ela vem sendo progressivamente pressionada
e ameaçada pela compressão / redução / simplificação impostas pela
sociedade contemporânea, tecnocrática e imagética. O espaço cede lugar
ao tempo comprimido, como medida das coisas. Ao contrário do desejável,
dessa compressão resultam amnésia e alienação.
A aceleração também afetou a velocidade dos corpos que
passam diante dos objetos. (...) Para aqueles que se recusam

Teoria e contexto
a ser colocados num estado de sono ativo pelo walkman,
o museu aplica a brutal tática da superlotação que, por
sua vez, resulta na invisibilidade daquilo que se foi ver.
A aceleração também está presente (...) no marketing das
mostras estampado em camisetas, posters, cartões de natal
e reproduções preciosas. (HUYSSEN, 1994, p.44)

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Na mesma medida em que a realidade é banalizada pelas imagens, as
imagens vendidas pela mídia determinam o que é real. Emerge daí o
tema da imagem como simulacro – pretenso registro verídico do real -
e ao mesmo tempo o registro de uma realidade inexistente, imaginada.
Embaçamento de fronteiras entre razão e imaginação, arte e ciência,
saber e informação (considerando-se também aí as conseqüências para as
profissões regulamentadas, como a do arquiteto e do museólogo). “Onde
o meio é a mensagem e a mensagem é uma imagem fugaz na tela, o real
continuará sempre e inevitavelmente bloqueado. Onde a mídia é a presença
e apenas presença e a presença signifique uma transmissão ao vivo do
noticiário, o passado será necessariamente bloqueado”. (HUYSSEN,
1994, p. 53)
Na era da computação e da implantação do ciberespaço vivemos diariamente
as conseqüências das inovações tecnológicas. Essas conseqüências são, na
verdade, devastadoras se pensarmos na imagem do homem herdada da
tradicional antropologia filosófica.
Nosso corpo – submetido aos ditames dessa tecnologia
– também é marcado por essas alterações e, com ele, a
nossa visão do ser humano. (...) como evitar uma total
reformulação na nossa concepção de homem se agora
podemos finalmente construir o nosso Golem, os nossos
Franksteins ou os nossos robôs com inteligência artificial?
Como traçar o limite entre o natural e o artificial? Se a nossa
“humanidade” se torna mais frágil na medida em que é 55
submetida cada dia a uma processo de redesenhamento das
suas fronteiras (e da sua “essência”) não é de se estranhar
que uma das nossas principais características, a de ser
um “homo memor”, ou seja um “ser com memória” no
contexto da era do ciberarquivo potencialmente infinito”.
(SELIGMANN-SILVA, 2002, p.37)
Trata-se de um processo de alteração da percepção e da sensibilidade,
conforme observa Sevcenko:
(...) a aceleração dos ritmos do cotidiano, em consonância
com a invasão dos implementos tecnológicos, e a ampliação

Teoria e contexto
do papel da visão como fonte de orientação e interpretação
rápida dos fluxos e das criaturas, humanas e mecânicas,
pululando ao redor – irão provocar uma profunda mudança
na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial das
populações metropolitanas. A supervalorização do olhar,
logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas
publicitárias, incidiria, sobretudo, no refinamento da

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sua capacidade de captar o movimento, em vez de se
concentrar, como era o hábito, sobre objetos e contextos
estáticos. (SEVCENKO apud ROCHA, 2007, p. 266,)
Nesse contexto, a midiatização da cultura adentra o século XXI como a
unanimidade onipresente que nos torna mais homogêneos do que nunca,
sendo esse o ponto central da crítica dos teóricos da escola de Frankfurt,
registrada nos escritos de Adorno, Horkheimer e Benjamim. A indústria
cultural, pelo seu poder de manipulação, bloqueia o exercício da autonomia
e da independência nos indivíduos.
A atualíssima convergência tecnológica entre comunicação,
telecomunicações e informática remodela o mundo.
Nessa nova circunstância societária, as mídias transformam-
se em estrutura e ambiente da sociabilidade. Poderosas,
elas perpassam todas as dimensões sociais e deixam nelas
suas cruciais marcas. Impossível pensar hoje a cultura sem
um enlace vital com as mídias. Não por mera causalidade,
o campo de estudos da comunicação tem se tornado,
por excelência, um dos lugares mais férteis e adequados
para refletir sobre a cultura, e em seqüência, as políticas
possíveis de serem formuladas e implementadas nessa
área. A submissão da produção cultural ao capital e sua
expansão industrial acentuaram de modo crescente a
dimensão de entretenimento contida na cultura. Com isso,
o esforço exigido pelo trabalho cultural parece dar lugar a
uma assimilação leve, e mesmo plena de divertimento, da 56
cultura. A cultura parece convergir para o lazer. Não por
acaso, cultura, entretenimento e turismo conformam um
amálgama poderoso na situação contemporânea” (RUBIM,
2003, p. 24)
Huyssen (1994) apresenta uma interessante contra-crítica que pondera
e amplia a visão negativa da indústria cultural por parte dos teóricos da
Escola de Frankfurt. Para ele, a crítica de Adorno sobre a mercadorização
da memória é incompleta, diante da mudança temporal em nossas vidas,
provocada pelas mudanças tecnológicas.
A corrida das massas pela cultura nos museus não deve

Teoria e contexto
ser confundida com a reivindicação dos anos 60 pela
democratização da cultura. Nem tampouco deveria ser
vilipendiada. A censura à velha indústria cultural, hoje
dirigida aos velhos guardiões da alta cultura, não contesta
apenas a fascinação pelas novas e espetaculares exposições.
Ela também esconde a estratificação e heterogeneidade
inerentes ao interesse do público e às práticas de exposição.

Ciência & Conservação


Polêmicas contra a recém-alcançada reconciliação entre
as massas e as musas envolvem o tema principal de
como explicar a popularidade dos museus; o desejo de se
organizar exposições e eventos culturais e as experiências
que perpassam todas as classes sociais e os grupos culturais.
Isso também evita qualquer tipo de reflexão sobre a
maneira de empregar esse desejo e essa fascinação sem
entregar-se incondicionalmente a diversões instantâneas
e superproduções exibicionistas. Porque o desejo existe,
não importa o quanto a indústria cultural estimule, seduza,
manipule, atraia e explore. Esse desejo deve ser levado a
sério como um sintoma de mudança cultural. É algo que
está vivo em nossa cultura contemporânea e que deveria
ser inserido de forma produtiva nos projetos de mostras e
exposições.(HUYSSEN, 1994, p. 45)
Huyssen (1994) distingue três modelos filosóficos correntes como
tentativas de elucidar a mania contemporânea por exposições e museus.
Ele os denomina de teoria da compensação, teoria da simulação e teoria
crítica sócio-cultural (kulturgesellschaft).
Na teoria da compensação, cujos autores mais representativos Huyssen
identifica em Lubbe e Marquard, o museu compensaria a perda de
estabilidade contemporânea. Ele oferece ao sujeito moderno instável
formas tradicionais de identidade, ao simular que essas tradições culturais
não foram atingidas pela modernização.
Os argumentos de Huyssen se alinham aos de Sevcenko acima apresentados,
57
porém, como contra-crítica, ele coloca:
No campo do consumo cultural podemos observar uma
mudança na estrutura da percepção e da experiência: o
provisório tem se tornado a finalidade da experiência
cultural mais solicitada nas exposições temporárias. Mas
aí é onde o ponto crucial emerge. O velho conceito de
cultura, baseado, como ainda o é, na continuidade, na
herança, na possessão e no cânone, nos impede de analisar
o lado potencialmente produtivo e válido do provisório.
(...) deveríamos considerar o provisório como um tipo

Teoria e contexto
de experiência cultural sintomática do nosso tempo, que
reflete o processo de aceleração do nosso amplo meio e
que conta com níveis mais avançados de instrução visual.
Seria plausível sugerir que a epifania modernista altamente
individualizada se tornou um fenômeno publicamente
organizado da cultura pós-moderna do evanescimento?
E mais, será que o modernismo invadiu o cotidiano ao

Ciência & Conservação


invés de tornar-se obsoleto? (...) Será que a epifania do
museu pós-moderno também proporciona a sensação
de transcendência ou quem sabe apenas abre um espaço
para a memória e a lembrança negada fora dos muros do
museu? Será que a experiência transitória do museu deve
ser compreendida apenas como uma repetição do banal
(...)?(HUYSSEN, 1994, p. 47)
Huyssen não seria o primeiro a observar que o modernismo não acabou de
verdade. Jan Cejka (1999) concorda com ele, pois em seu quadro sinótico
da arquitetura contemporânea até 1992, subdivide-a em várias correntes
a saber: romanticismo, pós-modernismo, continuação da modernidade
e nova modernidade. Nestas duas últimas correntes esse autor inclui
os estilos High-tech, deconstrutivismo e pluralismo, que englobam os
exemplos aqui elencados como Arquitetura do Espetáculo.
Sob o prisma da teoria da simulação, que Huyssen aproxima de Badrillard
e Jeudy “beirando um já esquecido Marshall MacLuhan”, o museu nada
mais seria do que uma máquina de simulação, em nada distinguível da
televisão. Segundo ele,
para Baudrillard , a musealização e suas variantes é uma
tentativa da cultura contemporânea de preservar, controlar
e dominar o real com o intuito de esconder o fato de o real
se encontrar em agonia devido à expansão da simulação.
A musealização surge como um sintoma terminal de uma
época glacial, como um último degrau na lógica da dialética 58
e do esclarecimento, que se move da auto-preservação
através da dominação do eu e do outro, em direção ao
totalitarismo da extinta memória coletiva d nenhum eu e
nenhuma vida. (HUYSSEN, 1994, p. 50 e 51)
2.2. Museus espetaculares: não-lugares na cidade
Frente aos desafios que se apresentam para a museologia no século que se
inicia, é importante refletir sobre como a Arquitetura de museus construiu
suas relações com a cultura de massa ao longo do séc. XX. A partir dessa
reflexão é possível destacar os aspectos que a preenchem de elementos
espetaculares, carregados de virtualidade e simbolismo, construindo

Teoria e contexto
a concepção de que o museu é um “lugar de entretenimento”, entre o
parque de diversões e o shopping center. Na home page do Museu de
Arte de Milwaukee, há um link informando as regras para a realização
de casamentos nas dependências do museu, e informando o mobiliário
disponibilizado. Por proceder de maneira semelhante, o nome do Museu

Ciência & Conservação


Brasileiro da Escultura – MUBE, em São Paulo, por vezes é ridicularizado
com a pecha Museu Brasileiro de Eventos. “No atual cenário do museu,
a idéia de um templo com musas foi enterrada, surgindo no lugar um
espaço híbrido entre a diversão pública e uma loja de departamentos.”
(HUYSSEN, 1994, p. 36)
No contexto da racionalidade tecnocrática contemporânea, as premissas
do planejamento econômico são transferidas para a esfera do planejamento
urbano sob a nomenclatura de planejamento estratégico. Segundo Arantes
(2000) esse pensamento insere a cidade no mesmo contexto de conquista
de mercados em que se situam as empresas. Mecanismos como isenção de
impostos, infra-estrutura, distritos industriais, entre outros, são aplicados
nessa disputa, que vislumbra um único objetivo: multiplicação do capital.
Trata-se de visão de economia urbana, pautada apenas pelo binômio
investimento-lucratividade do capital, e que não gera, sobretudo quando
se pensa em empresas multinacionais, nenhum tipo de investimento social
efetivo.
Atualmente, é impossível se pensar no crescimento das cidades, sem
considerar a associação entre cultura e capital. Como objetos-síntese
da mercadorização da cultura e da cidade, fervilham espaços urbanos
excludentes, como as áreas vip e os condomínios fechados, destacando-se
os museus. As “cidades-negócio”, “cidades-evento”, ou ainda “cidades-
ocasionais” (ARANTES, 2000), tornaram-se mercadorias em concorrência 59
mundial por investimentos.
A inauguração de novos museus se traduz na explicitação e movimentação
de um capital simbólico, valorizado, disputado e divulgado pelas
cidades, através de estratégias de marketing. Trata-se de outra faceta do
planejamento econômico imiscuída na cultura, em que se misturam lugar,
imagem, identidade e “marca”. No jargão das corporações isso se chama
“branding” e paradoxalmente há hoje no mercado internacional muitas
empresas que não outros produtos a não ser as marcas de outras empresas.
No Brasil, a crescente falência das ações do Estado na

Teoria e contexto
manutenção e criação dos espaços públicos – quer sejam
espaços urbanos abertos, quer sejam espaços programáticos
edificados, como os museus – desloca a ação planejadora e
executora do poder público para uma ação normatizadora
e legisladora, que se estende do uso do solo até a
produção cultural. O espaço público (de praças a museus)
nasce por essa via, projetado e gestado por corporações

Ciência & Conservação


privadas, retornando para elas como ganho em imagem.
(SPERLING, 2005, p.3)
Nesse sentido, poderíamos citar como casos exemplares a construção da
marca da Estrada Real em Minas Gerais, o Museu de Arte Contemporânea
de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer (BRUNO, 2002) e o Museu Iberê
Camargo, de Porto Alegre, projetado por Álvaro Siza. Curiosamente, em
ambos se encontram ecos do Guggenheim de Nova Iorque. O MAC está
para Niterói como as orelhas do Mickey Mouse estão para a Disneylândia.
A questão amplia-se na temática do turismo cultural, perpassando as
discussões sobre a gestão dos espaços urbanos públicos e privados, o
efetivo exercício da cidadania e a elaboração de políticas públicas na área
cultural.
Os museus passaram de fontes de disseminação cultural a agentes do
desenvolvimento urbano. Nesse star system não são somente as cidades
que competem entre si. Diante de uma fragmentação das identidades
culturais em vários níveis, conforma-se o espaço para a sacralização de
ícones-estrelas, também arquitetônicos, mas principalmente de indivíduos,
construídos pela televisão e pelo cinema, situação que se estende inclusive
ao mundo cultural, intelectual e acadêmico. Essa problemática é ainda mais
ampliada e multiplicada quando pensamos nas conseqüências da criação
de uma Lista do Patrimônio Mundial e de programas internacionais como
o Monumenta. 60
Se de um lado, monumentos patrimoniais são desmaterializados e
estilizados em logotipos governamentais, de outro, os conjuntos de
narrativas contemporâneas se convertem no acervo dos museus, em
suportes que tendem à virtualidade, ao mesmo tempo em que novas
interfaces concorrem para a dessacralização dos objetos do acervo,
concomitantemente á sua desterritorialização.
A desterritorialização implica um novo estado de coisas
em livre flutuação, na qual a forma substitui o conteúdo
e as características individuais dos objetos são meras
construções de marketing. A fluidez necessária à rápida

Teoria e contexto
reprodução do capital é transferida à produção, cada vez
mais a produção imagética, e aos “objetos”, imagens que
parasitam matérias em intervalos de tempo calculados.
(JAMESON apud SPERLING, 2005, p. 3,)
Essa busca a qualquer custo por uma imagem contemporânea, por vezes
justifica ações governamentais que resultam na completa destruição

Ciência & Conservação


do passado, na busca pelo “moderno” e pela “inovação”, muitas vezes
entendendo-se que o “passado” como um obstáculo ao “futuro” e ao
“progresso”. Nessa acepção cabe o impressionante exemplo da conjuntura
em torno da construção da Nova Biblioteca de Alexandria, no Egito , em
pela era da Internet e dos livros virtuais, o governo egípcio gastou 200
milhões de dólares para construir uma obra que orgulharia aos faraós, com
área superior a 85.000 metros quadrados, e continua censurando obras
literárias.
Essa distorção é reforçada pelas relações construídas contemporaneamente
entre museu e mídia. A figura do museu para se destacar sobre o
fundo urbano multiplica imagens, textos e sons, incorporando e sendo
incorporada a produtos e processos de comunicação convenientes à cultura
de massa. Poderíamos sustentar essa linha de argumentação não só pela
observação da multiplicação de instituições museais, mas também pelo
apelo publicitário que tem provocado grandes “romarias” ás exposições
temporárias, desfocando a atenção sobre os acervos permanentes. Esses
últimos estão cada vez mais sujeitos a rearranjos temporários e em
contrapartida, as exposições temporárias geram registros em vídeo e
opulentos catálogos.
Aflora então a questão da Arquitetura como figura ou como fundo,
perante a qual os museus contemporâneos que são eloqüentes por serem
concebidos cenograficamente, como espetáculos que vendem a cidade, e
61
não são feitos para expor nada, a não ser a si mesmos, a serem apreciados,
antes das obras de arte que porventura venham a abrigar, como síntese das
novidades que o mercado disponibiliza num dado momento. Silva (2006)
os classifica como subterfúgios. De certa forma, esse aspecto da questão
insere-se na tese da simulação, abordada no item anterior.
As extensas áreas urbanas objeto de especulação dos
fluxos de capital já foram apontadas por Jameson como
o paradoxo da desterritorialização. Na outra ponta está
a construção de super-arquiteturas (quer na grande

Teoria e contexto
dimensão, quer na assinatura) para eventos culturais. Como
aplicação financeira que coaduna investimento imobiliário
e produção do imaginário, a arquitetura é duplamente eficaz
quanto aos rendimentos que reciprocamente se produzem:
valorização das áreas urbanas do entorno e valoração da
produção cultural. (SPERLING, 2005, p. 4)

Ciência & Conservação


Na verdade, a fotografia é insuficiente diante da dinâmica visual incorporada
aos exemplos mostrados. A busca pelo assombro não se dá apenas ao
nível do contraste com a paisagem urbana edificada, pela escolha de
materiais construtivos insólitos como titânio ou chapas poliéster acrílico
mas também pelo uso de dispositivos e automação com alta tecnologia
incorporada, como asas que se movimentam conforme a incidência do sol
ou uma fachada multimídia utilizando lâmpadas fluorescentes. Encorajo
o leitor a buscar na internet vídeos que demonstrem melhor esse aspecto
dinâmico, que remete ao entretenimento, á publicidade, ao ócio, à mise-
en-scéne e ao espetáculo .
Esse é um dos lugares aonde conduzem, por vias diferentes, tanto
a pretensa neutralidade técnica da arquitetura modernista quanto à
prometida inovação tecnológica da arquitetura pós-moderna, em seus
tortuosos percursos no século passado.
Outro tema relevante para uma investigação fora do propósito deste
artigo é o quanto a Arquitetura espetacular de museus falha em um dos
compromissos básicos do museu, que é o da conservação preventiva dos
objetos do acervo. De uma maneira geral, materiais construtivos como
o aço e o vidro (ou até mesmo o titânio) aumentam o potencial de risco
sobre os acervos, ao permitiram uma maior amplitude microclimática no
interior dos mesmos.
A construção de um museu é um processo que revela um aguerrido
62
jogo de interesses variados, em que os agentes envolvidos estão também
preocupados com a construção da própria imagem, o que, frequentemente,
prejudica a própria essência artística e cultural da instituição. Abaixo,
são enumerados graficamente alguns exemplos em que as imagens,
previamente evocadas como meio e finalidade da concepção e recepção
arquitetônica contemporânea, ilustram a temática abordada acima.

Teoria e contexto
2.3. Novas funções para os museus no século XXI
A superação das condições levantadas no item anterior coloca, para
a museologia e a Arquitetura de museus do século XXI, o desafio de
redimensionar a própria experiência museal, possibilitando, pela mediação
tecnológica, novas formas de percepção, visibilidades e uma apropriação

Ciência & Conservação


mais participativa do conhecimento, explicitando o museu como um
espaço de ambigüidades e contradições, um espaço para explicitação de
conflitos sociais. A Museologia vem demandando museus dinâmicos,
cujo desenvolvimento se dê com a participação da comunidade e que
mantenham os acervos em seus contextos originais.
Bertotto (2007, p.14) fala em um museu integral: “um novo conceito
de ação museológica, que propõe à comunidade uma visão de conjunto
do seu meio material e cultural –, para melhor conhecer o universo e a
relação das casas museais com as políticas públicas específicas para a área
da Museologia”.
Já para Rocha (2007, p. 260),
Nos últimos anos, para além dos museus tradicionais,
assistimos à emergência de outras instituições de memória,
com propostas distintas das que pontuaram grande
parte de nosso imaginário social. Presenciamos um novo
movimento, que revitaliza o museu como um centro de
práticas culturais contemporâneas, a partir da introdução
das tecnologias comunicacionais e informacionais. Essas
práticas reconfiguram a experiência museal, pois, mais
do que possibilitar um redimensionamento nas formas
de percepção e visibilidade, viabilizam um processo mais
interativo e participativo do visitante. Tal processo é
potencializado pelo lúdico, o que, entre outros aspectos,
provoca um “reencantamento” pela técnica. (ROCHA,
2007, p 260) 63
As práticas culturais propostas acima estariam vinculadas às temáticas de
interesse do museu, e superam a prática expositiva, abrindo novos espaços
de interação, como cursos, oficinas, palestras, etc. A autora destaca, como
exemplo de museu emergente neste novo cenário, o Museu da Língua
Portuguesa, inaugurado em 2006, em São Paulo.
Ademais, é necessário repensar o papel dos museus na indústria de turismo
cultural para deixar de ser uma mera atividade de lazer, a qual, dentre
outros impactos perversos produz o aprofundamento das dicotomias

Teoria e contexto
entre o centro e a periferia das cidades, na medida em que normalmente
as áreas escolhidas para receberem os investimentos são aquelas que já
dispõem de infra-estrutura implantada. Transformadas em balcões, as
cidades disputam as fichas na roleta financeira e as hordas de turistas que
circulam pelo mundo.

Ciência & Conservação


Museus e site museums (...) realizam encenações do
passado, que se constituem em atrativos turísticos. Essas
encenações muitas vezes estão descaracterizadas pela
banalização de rituais, ou apresentam uma visão congelada
no tempo de uma história que é, por natureza, dinâmica,
ou passam uma visão folclórica (...) esquecendo as penúrias
derivadas da pobreza, das doenças e das contradições
sociais. (BARRETO, 2004, p.44)

Considerações finais
No contexto de mediação tecnológica, uma questão relevante é a
digitalização dos acervos e a preservação dos novos suportes digitais,
o que coloca o foco nos problemas de interface, enquanto que para a
museologia e a preservação tradicionais, o foco recai sobre os objetos. A
própria estruturação da hiper-mídia e do hiper-texto está mais próxima
dos mapas e vínculos em redes neurais que construímos para interpretar
a realidade, constituindo um avanço na representação dos processos da
consciência e da imaginação. Nesta fronteira difusa entre materialidade e
virtualidade caminhará a museologia do século XXI.
A arquitetura contemporânea de museus, ação indutora
e representação sensível, tem cumprido muito bem
sua parte na questão central para a estética idealista, a
associação de uma beleza – espetacularizada e normativa
- ao desenvolvimento progressivo da história. Para Tafuri, 64
a perda de força crítica da arquitetura marca o final de sua
missão; a promessa de resolução dos problemas da cidade
é substituída pela promessa de resolução das questões de
mercado. E, como aponta Arantes, o arquiteto urbanista
conscientemente convertido em ‘urban imagineer’, tem se
tornado um dos operadores-chave dessa máquina, reunindo
num só personagem o manager (o planejador-empreendedor
identificado por Peter Hall) e o ‘intermediário cultural’.
(SPERLING, 2005, p. 6)
Para quem frui a Arquitetura somente pelo sentido da visão, os museus
contemporâneos espetaculares são cenários para fotos memoráveis,
símbolos da vanguarda, talvez. No entanto, para a população que

Teoria e contexto
ambiciona espaços de afirmação, participação e apropriação cultural, eles
não dizem muito, ou não dizem tudo o que poderiam.

Ciência & Conservação


___________
Referências

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Ciência & Conservação


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66
A Contribuição da Ciência e Tecnologia à
Teoria da Conservação

Teoria e contexto
André Luiz Guedes Martins
Mestrando PPGA-EBA-UFMG
Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Ciência & Conservação



Resumo
Este artigo pretende refletir acerca de bases filosóficas concernentes à elaboração de
modelo de ação gerencial amplo e flexível capaz de comportar as contribuições científicas
e tecnológicas ao campo da conservação, buscando estabelecer análise crítica de atuação
entre os profissionais originais, como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e
arquitetos, com os profissionais da área de conhecimento científico, especialmente físicos,
químicos e engenheiros.
Palavras-chave: Ciência, Tecnologia, Filosofia, Conservação, Gerência

Abstract
This article attempts to reflect about the philosophical basis concerning to build a flexible managerial action
that allow the scientific and technical contribution to conservation. The model pursues to settle a critical
action among all the practitioners, just as historians, art historians, archaeologists, architects and physicals,
chemists and engineers
Key words: Science, Technology, Philosophy, Conservation, Management

Introdução
A Carta de Veneza, divulgada em 1964, estabelece que a conservação e
o restauro dos monumentos devem recorrer a todas as ciências e a todas
as técnicas que possam contribuir para o estudo e para a salvaguarda do
patrimônio cultural. A admissão de profissionais da área de conhecimento 67
científico traz um importante questionamento filosófico acerca do modelo
gerencial desejável e eficaz para a contribuição das ciências, buscando
estabelecer clima propício para abordagem de temas e interação cognitiva
sinergética de todos os profissionais envolvidos no novo desenho constitutivo
da conservação. Tal é a proposta deste artigo que busca referência teórica
em fontes filosóficas variadas e divergentes, porém sólidas e consistentes.
Estratégias contemporâneas

Teoria e contexto
A Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro dos Monumentos
e dos Sítios, conhecida como Carta de Veneza, divulgada em 1964 e
adotada pelo ICOMOS em 1965 defende que os monumentos históricos
de gerações passadas devem permanecer como testemunha viva de suas
antigas tradições e como patrimônio comum a ser salvaguardado na

Ciência & Conservação


totalidade de riqueza e autenticidade. Destaca que devem ser estabelecidos
princípios orientadores de conservação em escala internacional que
reconheçam e levem em consideração a história, a cultura e a tradição de
cada sociedade envolvida.
O documento estabelece no artigo dois que a conservação e o restauro
dos monumentos deve recorrer a todas as ciências e a todas as técnicas
que possam contribuir para o estudo e para a salvaguarda do patrimônio
cultural. O significado da mensagem é claro e admite de maneira ostensiva
a introdução da ciência e da tecnologia ao campus da conservação. No
artigo dez, afirma que quando as técnicas tradicionais forem inadequadas,
deve-se empregar qualquer técnica moderna, cuja eficácia tenha sido
demonstrada por dados científicos e comprovada pela experiência.
A admissão de profissionais da área de conhecimento científico traz
um importante questionamento filosófico acerca do modelo gerencial
desejável e eficaz para a contribuição das ciências, especialmente a física
e a química, buscando estabelecer praxe sinergética com os profissionais
originais, tais como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e
arquitetos.
Tal é o desafio que agora inicia-se, buscando a colaboração de reconhecido
profissional da Química e avançando depois em direção a filósofos
e sociólogos que auxiliem na elaboração de um modelo viável, de
conformação gerencial, capaz de suportar todos os campi de conhecimento.
Reconheçamos desde o começo que a ciência está aqui
68
para ficar. A busca da ciência e da tecnologia representa
uma forte subcultura em nossa sociedade, isto para dizer
o mínimo. Ambos artista e historiador da arte têm sido
e continuarão sendo por algum tempo apreciavelmente
influenciados pela prática e filosofia do cientista e do
engenheiro. Considerando esta circunstância, o humanista,
tão bem quanto o tecnólogo, devem fazer o melhor
possível. Devemos utilizar as ferramentas aproveitáveis da
ciência e da tecnologia para apoiar as ações rumo às metas
que a sociedade considera valiosas. A palavra de ordem é

Teoria e contexto
auxiliar. (FELLER em WHITMORE, 2002, p. 620)

A afirmativa inaugural providencia recursos para discussão ideológica


proveitosa, que vindo acompanhada de consistente embate de interesses
vigorosos, leva a formulações desejáveis, úteis e colaborativas aos objetivos
da conservação. O debate inicia-se com a questão conceitual de ciência e

Ciência & Conservação


tecnologia e como, hoje em dia, sendo tomadas em contínuo, parecem
ser coisa única, inseparáveis em gênese e ação. Outro questionamento
relevante é a consideração inexorável da representação científica como
subcultura, ou melhor, dizendo, nicho de uma cultura dominante. É
intrigante, portanto, aprofundar-se nesta análise que certamente é pedra
angular de uma ideologia compacta.
Braverman, em sua obra Trabalho e Capital Monopolista, afirma que “a
ciência é a última – e depois do trabalho a mais importante – propriedade
social a converter-se num auxiliar do capitalismo.’’ Prossegue afirmando
que a conexão entre ciência e capital “era indireta, geral e difusa – não
apenas porque a ciência não estava ainda estruturada diretamente pelo
capitalismo nem dominada pelas instituições capitalistas, mas também
devido ao importante fato histórico de que a técnica desenvolveu-se antes
e como um requisito prévio para a ciência.” Continua, alegando que “em
vez de formular significativamente novos enfoques das condições naturais
de modo a tornar possíveis novas técnicas, a ciência, em seus inícios sob o
capitalismo, no mais das vezes, formulou suas generalizações lado a lado
com o desenvolvimento tecnológico ou em conseqüência dele.’’
Atentando ao pensamento de Braverman encontramos a chave de
entendimento para a distinção entre ciência e tecnologia, rompendo o
incômodo posicionamento de nexo inquestionável; a tecnologia é algo 69
diverso da ciência e se hoje estão tão intimamente ligadas, isto deve-se à
força do capitalismo, pois que a ciência tem origem mais quintessenciada,
buscando sua gênese na filosofia, enquanto a tecnologia surge das fontes
viscerais da economia. Compreender, pois, tão notável diferença é mais
que um dever profissional é um compromisso ético, que deve esmerar-
se sempre em reconhecer a diversidade de conceitos e sua implicação,
principalmente no que refere-se à dignidade humana. Daí pode-se conceber
que a ciência, aliada a princípios filosóficos genuínos, possa achegar-se à
teoria da conservação como contribuinte solidária e igualitária, respeitando

Teoria e contexto
a diversidade de conhecimentos. Quanto à colaboração da tecnologia,
independentemente de seu viés capitalista, deve-se considerar sua
contribuição, desde que não seja tomada como mandatória de pensamento
e ação reducionista.
Ainda resta a questão de análise e compreensão da representação científica

Ciência & Conservação


e tecnológica como forte subcultura em nossa sociedade atual. Novamente
Braverman indica-nos linha de raciocínio consistente ao afirmar que
a revolução técnico-científica do final do século XIX tinha um caráter
consciente e proposital, transformando a ciência em mercadoria comprada
e vendida como outros implementos e trabalhos de produção; a ciência
deveria, portanto, ser compreendida, a partir de então, em sua totalidade,
como um modo de produção. A ciência, antes tomada como propriedade
social, tornou-se propriedade capitalista e passou a marcar sensivelmente
a cultura contemporânea como meio de propaganda e de adaptação ao
novo estilo acirrado de vivência humana.
A citação inicial encerra-se com a afirmativa de que artista e historiador
da arte continuarão algum tempo ainda influenciados pela prática e
filosofia do cientista e do engenheiro, que representando o modo
pensante fortemente capitalista, causam um desequilíbrio na valorização
dos conhecimentos de cada especialidade profissional partícipe; deve-
se, pois, após a lembrança deste processo histórico, buscar alternativas
de conduta que possibilitem um novo modelo de ação sistêmica e mais
dinâmica. É necessário estabelecer a visão e a praxe perenes não apenas
para alcançar índices de desempenho, resultantes de algum arbítrio
institucional, mas para equilibrar e reconhecer igualmente o poder das
forças atuantes, para acordar a objetivos comuns e para esclarecer o
sentido da causa conservacionista. 70
Este é um dos pontos que eu gostaria de indicar: a ciência
não é monolítica; há muitos caminhos para sua prática.
Além disto, alguns profissionais da equipe estão em melhor
posição para assistir ao conservador do que outros. O
cientta é apenas mais um membro da equipe; a ciência é
apenas uma das várias disciplinas que podem ser invocadas.
(FELLER em WHITMORE, 2002, p. 621)

A construção de um modelo filosófico básico para sustentação das

Teoria e contexto
contribuições científicas e tecnológicas ao campo da conservação é
mister para todos os profissionais de áreas de conhecimento que se
tornem afim à atividade em questão, desde os colaboradores mais antigos,
como historiadores, historiadores da arte, arqueólogos e arquitetos até
aqueles ulteriormente chegados, como físicos, químicos e engenheiros.

Ciência & Conservação


A questão primordial é a construção de um modelo de ação gerencial
amplo e flexível capaz de comportar as contribuições individuais e
coletivas de cada participante. Aqui, portanto, deve-se atentar ao conceito
de habitus, defendido por Pierre Bourdieu, que apresenta uma alternativa
ao sentido histórico antagônico sujeito-objeto e também ao conceito
estruturalista, buscando a visão criativa e participativa do agente.
Habitus é compreendido como: “(...) um sistema de disposições duráveis
e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a
cada momento como uma matriz de percepções, de aspirações e ações – e
torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças
às transferências analógicas de esquemas (...)” (BOURDIER, 1983, p. 65)
Ora, o conceito exposto é bastante valioso, pois estabelece um lugar
de alternativa às teorias antagônicas do individualismo, do marxismo e
do estruturalismo; busca identificar o indivíduo, depois a sociedade
e finalmente a mediação filosófica para a elaboração teórica de cada
participante, conciliando a forte oposição entre a realidade solidamente
constituída do mundo exterior com as realidades, ou talvez, melhor
dizendo, com as percepções e com as ações decorrentes de cada
mundo individual e profissional. Este pensamento conduz a elaboração
primorosa de coincidência do indivíduo e sua subjetividade ao social e
coletivo instituído, ou seja, é o reconhecimento do conjunto percepção-
ação que é praticado dialeticamente, conforme as condições estimulantes 71
dos vários campi envolvidos. Pressupõe-se a existência de um elo dialético
entre sujeito e sociedade, entre habitus individual e a estrutura de cada
campus, socialmente constituído, sendo apenas uma forma de ajustamento
ou desajustamento de um sistema aberto e alterado continuamente. Em
outras palavras, o conceito de habitus contesta que a ordem social funcione
apenas pela lógica da reprodução e defende que sua constituição deve-
se dar através de estratégias e práticas nas quais os indivíduos reagem,
adaptam-se e contribuem para fazer a história. “Eis o porquê que a ciência
e a tecnologia foram admitidas (na conservação): na esperança que possíveis

Teoria e contexto
benefícios pudessem vir. E note que antes usou-se a palavra auxílio;
agora, esperança. Não há garantia de que fazendo-se tudo pelo caminho
científico, necessariamente serão feitas da melhor maneira.” (FELLER em
WHITMORE, 2002, p. 621)
A admissão da ciência à conservação exige o reconhecimento de um modelo

Ciência & Conservação


de pensamento relacional, tal como em outras interações semelhantes,
capaz de estabelecer a hipótese de existência de homologias estruturais
e funcionais entre esses campi de conhecimento. Tal modelo busca uma
eficiência heurística, munindo a ciência do sentido de construção do
objetivo coletivo junto à conservação, satisfazendo à necessidade de
composição do novo campus.
Conforme Bourdieu,
a ciência deve apreender a obra de arte na sua dupla
necessidade: necessidade interna desse objeto maravilhoso
que parece subtrair-se à contingência e ao acidente, em
suma, tornar-se necessário ele próprio e necessitar ao
mesmo tempo do seu referente; necessidade externa do
encontro entre uma trajetória e um campo, entre uma
pulsão expressiva e um espaço dos possíveis expressivos,
que faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que
ela é produto, as supere.(BOURDIEU, 1983, p. 70)

A ciência deve assim tomar consciência de seu papel que não é outro
senão aquele de fazer-se integrante da história e em especial de reconhecer
a história da arte, em sua autonomia de relações objetivas com outros
campi de conhecimento, no passado, presente e futuro. Deve-se aproximar
a ciência e também seu aparato tecnológico, mesmo conhecendo sua
origem capitalista, do princípio filosófico genuíno.
Pode-se agora retornar a Hegel, citando os seguintes trechos: 72
Bem sabemos que a ciência parte do sensível individual
e pode possuir uma idéia do modo como este particular
existe diretamente com a sua cor, sua forma, sua grandeza
individuais, etc. Mas este sensível particular não tem
qualquer relação com o espírito, porque a inteligência
procura o universal, a lei, a idéia, o conceito do objeto e,
em vez de o abandonar à sua individualidade imediata,
sujeita-o a uma transformação íntima no termo da qual o
que era um sensível concreto aparece como um abstrato,
como uma coisa pensada, totalmente diversa do objeto
enquanto sensível. Tal é a diferença que separa arte e

Teoria e contexto
ciência. (HEGEL, 1996, p.57)

O pensamento de Hegel aparece claro nestas citações nas quais o conceito


de individualidade sensível é marcantemente distinto na arte e na ciência;
para a primeira, o sensível constitui-se no aspecto imediato, estético por
excelência, podendo ou não avançar além do próprio objeto, já para a

Ciência & Conservação


segunda, propõe-se à busca da essência e da natureza íntima deste sensível.
A distinção indica a necessidade da ciência em revelar a constituição
íntima de todas as coisas, buscando na razão a universalidade de
conceituação, enquanto o interesse da arte atende aos gostos, sentidos
e sentimentos humanos e vai além, buscando o aspecto histórico e os
valores estético-artístico e filosófico.
Até o momento, a tentativa de elaboração de modelo gerencial
multidisciplinar capaz de comportar as contribuições individuais e coletivas
de cada área partícipe tem angariado defesas significativas, mas também
alguma controvérsia. A posição de Hegel abre um questionamento acerca
da ligação da ciência à arte e para o qual deve-se atentar à inteligência
e ao espírito como pontos de união. Tanto inteligência como espírito
atêm-se ao contínuo de conhecimento que mantém unidas arte e ciência,
através da característica da materialidade, entendida diversamente em
exterioridade estética, histórica e filosófica e interioridade constituitiva.
Faz-se necessário, pois, também aqui, estabelecer o papel da ciência e
equilibrar as ações das variadas disciplinas cooperadoras básicas, nesta
expressão de materialidade.
Interessante buscar agora a colaboração de Nietzche, registrada no
texto de Flávio Senra. O texto afirma que “a racionalidade científica
atua como qualquer religião que exige o sacrifício de si em benefício da 73
investigação. A investigação científica é o fim em si e substitui os antigos
ideais ou ídolos, impondo a renúncia a tudo que seja estranho. O sacrifício
pedido aos crentes faz com que a ciência seja animada por ideais não-
científicos e, portanto, adote o mesmo modo de atuar dos velhos ídolos.
A nova fé inaugura um novo estilo que, por sua vez, fundamenta o
conjunto das relações dos homens entre si, o que constitui uma maneira
de compreender-se e de compreender seu estar no mundo.” O artigo
apresenta o pensamento de Nietzche, “criticando a cultura de seu tempo,
alertando para o significado do abandono das questões fundamentais

Teoria e contexto
da existência que são desprezadas em prol da assimilação de uma massa
de conhecimentos genéricos e superficiais. Assim, o sopro originário
de libertação dos velhos ídolos acaba por transformar-se na repetição
do mesmo e velho modo de negação do mundo. A mesma debilidade
encontra na ciência sua nova justificação.” Continuando, “denuncia os

Ciência & Conservação


“senhores” da nova fé, os comerciantes, o Estado e os sábios em sua
complacência pelo superficial, utilitário e prazeroso. A nova fé, nascida
de uma frustrada desmistificação daquele mundo verdadeiro e sustentada
pelas antigas crenças, oculta e vela os sacrifícios idênticos aos da velha fé.”
(SENRA, 2008, p. 7)
A intervenção de Nietzche abala os conceitos apresentados até o
momento, pois revela os ideais não-científicos da ciência, melhor
chamados ideológicos, antes indicados em Braverman. Ao compreender
os caminhos da ciência, sempre engajada ao poderio econômico e político,
pode-se reconhecer o modo de dominação imposto à sociedade. A
ruptura da essência da vida configura-se irrepreensível, abalando a frágil
conexão estabelecida entre arte como expressão humana e, em suma, a
própria vida e ciência como extensão capitalista. O pensamento de Hegel,
visto em ótica diferente, aponta a divergência de princípios de análise
dos campi de conhecimento; a arte, com visão exterior, considerando
os aspectos individuais do objeto e a ciência, com visão universalizada
de conceito, detendo-se em constituição e desempenho. A arte, como
expressão humana, ata-se à história e estética, conformações sensíveis de
nosso universo dimensional, enquanto a ciência, como tradução da razão
e lógica, relaciona-se ao micro-universo, presumível em alguns conceitos e
questionável em algumas práticas ainda incertas.
Como então elaborar um modelo filosófico para aporte das contribuições 74
científicas ao campo da conservação já que o embate ideológico consome
as tentativas ensaiadas? Parece aceitável, se bem que certamente não seja
esta a palavra mais adequada, pesquisar algum conhecimento teórico que
assista melhor ao objetivo aqui pretendido. O conceito de habitus, de
Pierre Bourdieu, parece bastante válido, mas carece de apoio basal, que o
possibilite consolidar-se em meio aos conceitos apresentados. É razoável
retornar o pensamento à fundamentação filosófica de Aristóteles,

Teoria e contexto
certamente um repositório original de idéias, na tentativa de esclarecer
e dar consistência às elucidações aqui propostas. Em Ética a Nicômaco,
afirma o filósofo:
Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente,
intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto

Ciência & Conservação


produzida quanto ampliada pela instrução, exigindo,
conseqüentemente, experiência e tempo, ao passo que
a virtude moral ou ética é o produto do hábito, sendo
seu nome derivado, com uma ligeira variação da forma,
dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das
virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma
vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser
alterada pelo hábito. (ARISTÓTELES, 2007, p. 67)

O apoio cognitivo citado passa a distinguir claramente o sujeito como ator


predominante, proporcionando-lhe autonomia excepcional para assumir
a condução do processo de elaboração do modelo filosófico de ação
gerencial capaz de comportar as contribuições individuais e coletivas de
todos os campi de conhecimento envolvidos. Atam-se, portanto, as idéias
de Aristóteles, Hegel e Bourdieu em defesa da autonomia do sujeito que
deve ter predominância na modelagem da ação gerencial, que deve ser
conduzida de maneira descentralizada, sem extremos burocráticos ou
excessos pessoais de poder. A colaboração nietzchiana torna-se especial
pela relevância da crítica contumaz aos ideais não-científicos da ciência,
identificados como ideológicos ou apenas como arroubos personalistas.
Esta indicação de descaminhos da ciência, conectada ao modo de
dominação social, evidencia a ruptura com a essência da vida humana e
conduz à formulação crítica quanto aos seus limites e também aos limites
de ação individual.
Há, portanto, uma ação ética a ser erigida e mantida fortemente na atuação
75
da ciência no campus da arte, que passa a ser base para o modelo filosófico
e gerencial. Não basta mais simples cognição, exige-se atuação ética que
estabeleça virtude no próprio pensamento, antes de consolidá-lo em ações
dialéticas pela causa da conservação.
Setton dá consistência à exposição anterior, afirmando:
Reitero a necessidade de considerar o habitus um sistema
flexível de disposição, não apenas resultado da sedimentação
de uma vivência nas instituições sociais tradicionais, mas
um sistema em construção, em constante mutação e,

Teoria e contexto
portanto, adaptável aos estímulos do mundo moderno: um
habitus como trajetória, mediação do passado e do presente;
habitus como história sendo feita; habitus como expressão de
uma identidade social em construção. (Setton, 2002, p. 67)

O modelo de ação gerencial multidisciplinar, flexível e ético almejado para

Ciência & Conservação


o aporte científico e tecnológico deve refletir a plena autonomia de cada
campus e cada habitus, tomados em equipes interdependentes e ligadas ao
todo organizacional do campus da conservação, tendo na coordenação da
atividade o campus que estiver na posição mais estratégica de negociação
tanto com o ambiente interno como com o externo. É importante que
seja alcançada a atenuação de hierarquia e o compartilhamento de poder e
responsabilidade, com a evidência de valores vivenciados e de comunicação
intensiva. A estrutura gerencial de coordenação deve estar constantemente
ligada ao meio social originário da atividade desenvolvida no momento,
buscando neste manancial os valores e a inspiração para a sinergia de ação.
É certo que concepções rígidas, faceadas a modelos de organização
autoritários, quer em aspecto institucional ou mesmo em caráter pessoal,
trazem apenas a redução da amplitude de colaboração humanística e
profissional de todos os campi envolvidos; os habiti envolvidos deixam a
condição de concorrência para se concertarem em objetivo maior que é a
conservação de patrimônio cultural.
O alcance deste modelo de ação gerencial está condicionado ao sucesso apenas
como expressão clara de uma identidade social, em que todos compartilhem
poder e responsabilidade em benefício da causa conservacionista.

Considerações Finais 76
A admissão de profissionais da área de conhecimento científico traz um
importante debate filosófico acerca do modelo gerencial desejável e eficaz
para a contribuição das ciências, buscando estabelecer ação sinergética
com os profissionais originais da área.
É necessário atentar ao conceito de habitus, defendido por Pierre Bourdieu,
que apresenta uma alternativa ao sentido histórico antagônico sujeito-
objeto e também ao conceito estruturalista, buscando a visão criativa e

Teoria e contexto
participativa do agente. Este pensamento conduz a elaboração primorosa
de coincidência do indivíduo e sua subjetividade ao social e coletivo
instituído, ou seja, é o reconhecimento do conjunto percepção-ação que é
praticado dialeticamente, conforme as condições estimulantes dos vários
campi envolvidos.

Ciência & Conservação


A ciência deve assim tomar consciência de seu papel que não é outro
senão aquele de fazer-se integrante da história e em especial de reconhecer
a história da arte, em sua autonomia de relações objetivas com outros
campi de conhecimento, no passado, presente e futuro.
O pensamento de Hegel questiona a ligação da ciência à arte e para
o qual deve-se atentar à inteligência e ao espírito como pontos de
união. Tanto inteligência como espírito atêm-se ao contínuo de
conhecimento que mantém unidas arte e ciência, através da característica
da materialidade, entendida diversamente em exterioridade histórica e
estética e interioridade constituitiva.
O pensamento de Nietzche afirma que a ciência é animada por ideais não-
científicos e, portanto, adota o mesmo modo de atuar dos velhos ídolos.
Ao compreender os caminhos da ciência, sempre engajada ao poderio
econômico e político, pode-se reconhecer o modo de dominação imposto
à sociedade. A ruptura da essência da vida configura-se irrepreensível,
abalando a frágil conexão estabelecida entre arte como expressão humana
e, em suma, a própria vida e ciência como extensão capitalista.
O apoio cognitivo apresentado no pensamento de Aristóteles distingue
claramente o sujeito como ator predominante, proporcionando-lhe
autonomia excepcional para assumir a condução do processo de elaboração
do modelo filosófico de ação gerencial. 77
Há, portanto, uma ação ética a ser erigida e mantida fortemente na atuação da
ciência no campus da arte, sendo necessário virtude no próprio pensamento,
antes de consolidá-lo em ações dialéticas pela causa da conservação.
O modelo de ação gerencial multidisciplinar, flexível e ético almejado
para o aporte científico e tecnológico deve refletir a plena autonomia
de cada campus e cada habitus, tomados em equipes interdependentes e
ligadas ao todo organizacional do campus da conservação. É importante
que seja alcançada a atenuação de hierarquia e o compartilhamento de

Teoria e contexto
poder e responsabilidade, com a evidência de valores vivenciados e de
comunicação intensiva.
O modelo concebido reflete a filosofia de valorização do indivíduo e
da sociedade, adotando-se os limites da crítica dialética como recurso
arbitral, que, mesmo assim, é incapaz de deter as atitudes e procedimentos

Ciência & Conservação


desviados destes objetivos. Apenas a plena consciência da ética de todos
os participantes pode delimitar seguramente a contribuição da ciência e
da tecnologia, sem o imperdoável comportamento de exclusividade de
conhecimento técnico e de dominação ideológica.

___________
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 2ª. ed. São Paulo: Edipro, 2007.319 p.

BOURDIER, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX.


Tradução de Nathanael C. Caixeiro. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Zoar Editores, 1981. 379 p.

HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o belo na arte. Tradução de Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro.
São Paulo: Martins Fontes, 1996. 666 p.

SENRA, Flávio. Ética e conhecimento científico. VI Simpósio do ICH PUC Minas, setembro de 2008.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura
contemporânea. Revista Brasileira de Educação, número 20, p.60 – 69, mai - ago 2002.

WHITMORE, Paul M. Contributions to conservation science: a collection of Robert Feller’s published


studies artists’ paints, paper and varnishes. Pittsburgh: Carnegie Mellon University Press, 2002. 665 p. 78
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Tradução de Martha Calderaro. São Paulo: Círculo
do Livro, 1974. 296 p.
Análise de conteúdo e análise de citação:
uma metodologia possível para o estudo do

Teoria e contexto
patrimônio cultural
Ana Paula Silva
Doutoranda PPGCI-ECI-UFMG
Alcenir Soares dos Reis (Orientadora)

Ciência & Conservação


Resumo
A história do conhecimento não se dá de forma linear, ela avança na medida em que
os homens produzem conhecimento e os registram. A produção de conhecimento pode
ser apreendida através de técnicas e de saberes em que é possível ao homem visualizar
qualitativamente e quantitativamente a produção de científica, através de suas publicações
e de sua produção intelectual. Através da análise da sua literatura podem-se definir
suas características principais a partir de seu corpus. Este trabalho tem como objetivo
estabelecer para a área de patrimônio cultural a utilização da análise de conteúdo e de
citação, como um meio para delimitar o referencial teórico e possibilitar o entendimento
do termo patrimônio e de suas relações como outros campos disciplinares.
Palavras-chave: Patrimônio, análise de citação, análise de conteúdo, conhecimento.

Abstract
The history of the knowledge not if of the one of linear form, it advances in the measure where the
men produce knowledge they register and them. The knowledge production can be apprehended through
techniques and to know where it is possible to the man to visualize qualitatively and quantitatively the
production of scientific, through its publications and of its intellectual production. Through the analysis of
its literature its main characteristics from its corpus can be defined. This work has as objective to establish
for the area of cultural patrimony the use of the citation and content analysis, as a way to delimit the
theoretical referencial and to make possible the agreement of the term patrimony and its relations as other
fields to discipline.
Key words: patrimony, analysis citation, content analysis, knowledge.

Introdução
79
A história do conhecimento não se dá de forma linear, ela avança na medida
em que os homens produzem conhecimento e os registram em diferentes
registros; com o passar do tempo altera sua estrutura de produção e de
organização social. A produção de conhecimento pode ser apreendida
através de técnicas e de saberes em que é possível ao homem dimensionar
qualitativamente e quantitativamente a produção de conhecimentos,
através de suas publicações e de sua produção intelectual. Segundo, Rocha
e Deusadrá (2005),

Teoria e contexto
com efeito, a constituição de novos paradigmas científicos
impõe uma outra dinâmica, qualquer que seja o campo
de saber em que nos situemos. De modo geral, as
transformações sucessivas por que têm passado as ciências
demonstram irregularidades e rupturas, em vez de um
movimento contínuo e retilíneo. Sobretudo no que tange

Ciência & Conservação


às ciências humanas e sociais, o que se dá não é a mera
substituição de um caminho enganoso por caminhos
promissores de novas verdades. Trata-se antes de novas
perspectivas, que vêm participar da cena, de opções teóricas
diversas daquela em relação à qual se produz uma ruptura
ou do desejo de redimensionar o objeto de estudo.”

A literatura é a materialização de divisão de campos do conhecimento


humano, através da análise da sua literatura podem-se definir suas
características principais a partir de seu corpus, ou de seu core. A ciência
da conservação carece de manter, e fortalecer o seu espaço específico
diante dos diferentes campos científicos. Ao se estudar espaços científicos,
não muito abertos como a ciência da conservação, a utilização das técnicas
de análise de conteúdo e análise de citação, oferecem meios para delimitar
o referencial teórico e possibilitar o entendimento do termo e de suas
relações como outros campos disciplinares.
Este trabalho tem como objetivo estabelecer uma análise de conteúdo e
análise de citação, sobre o tema patrimônio cultural. Tal estudo foi realizado
como trabalho final da disciplina “Análises no Processo Classificatório
para Sistemas de Recuperação de Informação” ministrada pela professora
Lídia Alvarenga, no curso de Pós-graduação em Ciência da Informação
da Universidade Federal de Minas Gerais em 2009. Naquele momento,
pretendia-se analisar a aplicação dos métodos sob o enfoque do patrimônio
cultural, tema central da tese, ainda em curso, que possui como objeto de 80
pesquisa a trajetória informacional percorrida por Mário de Andrade, no
período anterior ao Anteprojeto de 1936, que seria o documento basilar
para a fundação do Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN)
no início do século XX. Tal tema oferece espaço de debate para avaliar os
avanços e as transformações que ocorreram no plano das políticas voltadas
à proteção do patrimônio cultural. A adequação do trabalho sob o enfoque
da ciência da conservação, na oportunidade de apresentá-lo na disciplina
“Princípios históricos e filosóficos da ciência da conservação” ministrado
pela professora Yacy-ara Froner (2º semestre de 2010), possibilitou refletir

Teoria e contexto
sua aplicação e utilidade da metodologia, uma vez que a oportunidade de
aplicar as técnicas de análise de conteúdo e análise de citação sobre este
tema proporciona determinar as categorias existentes dentro do campo
em discurso e também a dispersão e a produção do tema em diferentes
campos de conhecimento, neste caso sob a luz da ciência da conservação.

Ciência & Conservação


A seguir apresentamos as definições das técnicas e os resultados obtidos
na aplicação das mesmas no conjunto dos artigos selecionados para o
experimento.

Análise do Conteúdo
Segundo Laurence Bardin análise de conteúdo é definida como,
conjunto de técnicas de análise das comunicações visando
obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de
descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/
recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN,
1977).

Análise de conteúdo prevê o estudo das bases epistemológicas da


construção dos textos. Nela o objeto é a palavra e analisam-se o aspecto
individual (sujeito) da linguagem e o tratamento da informação contida
nas mensagens. Operam-se em sua construção análises lexicais e análise
de categoria. A aplicação da análise conteúdo pode ser em qualquer tipo
de texto permitindo abordagens quantitativas e qualitativas. A análise
de conteúdo é considerada uma técnica para o tratamento de dados que
visa identificar o que está sendo dito a respeito de determinado tema
(Vergara, 2005, p. 15). A finalidade da análise de conteúdo é produzir 81
inferência, trabalhando com vestígios e índices postos em evidência por
procedimentos mais ou menos complexos. As fases que fazem parte da
análise de conteúdo são três: a pré-análise; a exploração do material; o
tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.
Na Pré-análise ou leitura superficial do material e escolha dos documentos:
nesta fase a Leitura Flutuante requer do pesquisador o contato direto e
intenso com o material de campo, em que pode surgir a relação entre as
hipóteses ou pressupostos iniciais, as hipóteses emergentes e as teorias

Teoria e contexto
relacionadas ao tema. A Constituição do Corpus é a tarefa que diz respeito
à constituição do universo estudado, sendo necessário respeitar alguns
critérios de validade qualitativa, como a exaustividade, a representatividade
e a homogeneidade. A formulação e reformulação de hipóteses ou
pressupostos se caracterizam por ser um processo de retomada da etapa

Ciência & Conservação


exploratória por meio da leitura exaustiva do material e o retorno aos
questionamentos iniciais. (MINAYO,2007).
A fase de exploração e análise do material refere-se a codificação,
quantificação ou enumeração, e categorização: O investigador busca
encontrar categorias que são expressões ou palavras significativas em
função das quais o conteúdo de uma fala será organizado. Há o recorte
do texto em unidades de registro que podem constituir: palavras, frases,
temas, personagens e acontecimentos, indicados como relevantes para
pré-analise.
A fase da Interpretação dá-se a partir da categorização, o pesquisador
propõe inferências e realiza interpretações, inter relacionando-as com o
quadro teórico desenhado inicialmente ou abre outras pistas em torno
de novas dimensões teóricas e interpretativas, sugerida pela leitura do
material.

Análise da Citação
O conjunto de referências bibliográficas (citações) utilizadas na
elaboração de um documento mostra relacionamento de um documento
com outro, evidenciando “elos entre indivíduos, instituições e áreas de
pesquisa” (Rodrigues, apud, Noronha, 1998). Sua função é dar autoridade
e credibilidade para os fatos citados no texto, além de permitir aos 82
pesquisadores da área a oportunidade de conhecer trabalhos que tratam
do tema de seu interesse. Assim, a análise das citações de um trabalho
contribui para avaliar a informação coletada pelo tipo de literatura
utilizada, dirigir o leitor para outras fontes de informação sobre o assunto,
além de contribuir para o reconhecimento de um cientista em particular,
entre os pares.
Segundo LEAL (2005) as citações têm uma relação direta com as condições
de produção do trabalho científico, técnico ou artístico. Escolhem-se de

Teoria e contexto
maneira simbólica as passagens dos autores para ajudar:
• a refletir sobre a questão proposta;
• para legitimar o pensamento;
• para dar segurança em passagens polêmicas;

Ciência & Conservação


• por questões ideológicas;
• pelas afinidades com determinados grupos de autores que
têm posições teóricas semelhantes às nossas.
As análises de citações podem dar credibilidade e reconhecimento aos
autores uma vez que o caminho realizado pelos pesquisadores, através
das citações, pode ser refeito por outras pessoas, conferindo a veracidade
das informações coletadas. Os estudos tendo a análise de citação como
método possibilitam refletir o desenvolvimento de um campo científico, e
extrair dados informacionais sobre uma área de conhecimento e sobre um
determinado assunto debatido nas comunidades acadêmicas e científicas.
No presente trabalho usamos como base a análise de citações 5 artigos, estes
foram selecionados tendo o princípio da diversidade do tema patrimônio
cultural. A seguir serão apresentados os materiais e os métodos utilizados.

Materiais e Métodos
Foram selecionados previamente 5 artigos focalizando o tema: patrimônio
cultural. Além do assunto central também foi considerado textos que
representassem a relevância dos autores no assunto no Brasil, bem como
as relações estabelecidas com outros fatores que são inerentes, ou mesmo
complementares para a elaboração e o entendimento do conteúdo teórico
do patrimônio cultural como domínio do trabalho. Tais artigos deveriam 83
ser relevantes para a compreensão do tema. Os artigos selecionados foram:
1. LEITE, Rogério Proença. Patrimônio e consumo cultural em
cidades enobrecidas. Sociedade e cultura, V. 8, N. 2, JUL./DEZ.
2005, P. 79-89.
2. SANTOS, Maria Célia Teixeira M. . A preservação da memória
enquanto instrumento de cidadania. Cadernos de museologia
Nº 3 - 1994.
3. SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma
perspectiva histórico-cultural. Educação & Sociedade, ano

Teoria e contexto
XXI, nº 71, Julho/00.
4. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio
cultural no Brasil. História, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 257-268,
2007.
5. PELEGRINI, Sandra C. A.. A gestão do patrimônio imaterial
brasileiro na contemporaneidade. História, São Paulo, 27 (2):

Ciência & Conservação


2008.

A escolha destes artigos deve-se ao fato de constituir o referencial teórico


utilizado na elaboração do projeto de tese. Eles contemplam a discussão a
respeito das políticas públicas de proteção ao patrimônio cultural material.

A metodologia de análise de conteúdo


Antes de determinar as categorias e suas definições, foi elaborada uma tabela
relacionando os 5 artigos a termos ou palavras-chave contidos no corpo
dos textos, a fim de determinar a freqüência ou ocorrência no conjunto
da amostra. Este exercício teve como objetivo verificar a diversidade de
termos presentes no conjunto e dimensionar quantitativamente o emprego
dos termos. Foi construída com o software EXCELL, uma tabela de
freqüência. A partir da análise das freqüências determinamos os termos
associados ao assunto patrimônio. São os seguintes termos:
1. Bando de dados
2. Comunicação
3. Conservação
4. Cultura
5. Cultura coletiva
84
6. Educação patrimonial
7. Formação
8. Gestão
9. Informação
10. Inventário
11. Memória
12. Memória coletiva
13. Patrimônio

Teoria e contexto
14. Patrimônio cultural
15. Patrimônio histórico
16. Política cultural
17. Preservação

Ciência & Conservação


18. Restauração

A partir destes termos elencamos os mais frequentes, que foram:


ASSUNTO OCORRÊNCIA
Memória 277
Patrimônio 185
Cultura 93
Preservação 61
Patrimônio cultural 50

Tabela 1: Ocorrências de palavras chave no conjunto dos artigos selecionados

A quantificação das ocorrências orientou a melhor visualização do


uso do termo, porém, apenas quantificar as ocorrências no corpo dos
textos não constitui análise de conteúdo, foi preciso criar uma tabela que
possibilitasse a visualização dada o uso dos termos e suas definições e
relacioná-los em categorias.
Em seguida, foi realizada uma leitura completa de todos os artigos,
objetivando selecionar as partes mais significativas e que apresentavam
definições sobre os termos. O próximo passo foi a realização da leitura
flutuante, a fim de obter os termos que expressassem o conteúdo dos
documentos. Após esta, foi selecionado dois assuntos: “preservação” e
“políticas públicas de preservação”. Estes assuntos estão presentes em todos 85
os artigos e constituem o foco de análise da proposta de estudo da tese.
A organização das categorias é justificada em função da contextualização
do tema “noção de patrimônio” e “políticas públicas de preservação do
patrimônio”, neste sentido os artigos devem expressar estas dimensões.
No que se refere à categoria 1 “patrimônio cultural”, foi proposto a sub-
categoria “bens culturais tangíveis”. Para a segunda categoria “Políticas
públicas” foi definida a subcategoria “preservação” pois são um tipo de
ação relacionadas ao patrimônio cultural material. Todas estas categorias

Teoria e contexto
são compreendidas e encontradas nos artigos e abordam os temas de
conceito de patrimônio cultural e as políticas públicas de preservação.
A tabela a seguir apresenta a relação dos termos com os artigos:
ARTIGOS
LEITE SANTOS SMOLKA NOGUEIRA PELEGRINI

Ciência & Conservação


Categoria 1
X X X X X
patrimônio cultural
subcategoria1– Bens
X X X X
culturais tangíveis
Categoria 2 –
X X X X
políticas públicas
Subcategoria 2 –
X X X X X
preservação

Tabela 2. Definição de categoria por artigo

Resultados
No que concernem as categorias e subcategorias apresentadas
apresentaremos as percepções de cada autor sobre as mesmas, apresentando
as semelhanças de análise e pontos discordantes.
A grande categoria patrimônio cultural, nos artigos selecionados, por
definição engloba as noções de memória e cultura. Nos cinco artigos
selecionados o conceito de memória advém da área da antropologia
cultural e da história, principalmente na nova histórica advogada por
Pierre Nora, tal concepção de memória associada ao patrimônio cultural
está presente nos textos, podemos fazer a interpretação desta leitura,
como o fato de que os autores dos artigos selecionados possuem a mesma
contextualização do conceito de patrimônio cultural.
Memória e cultura são assuntos guarda-chuva, pois são orientadoras dos 86
trabalhos voltados à cultura material cultural, linha teórica adotada após a
década de 1970 e refletida nos artigos selecionados.
SMOLKA, realiza uma leitura que difere dos outros autores, a autora
prioriza que o patrimônio cultural está inscrito na memória coletiva e neste
sentido a linguagem é um dos meios que propagam a noção de patrimônio.
Ela diz:
Os lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas,
os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou

Teoria e contexto
as arquiteturas, lugares simbólicos como as comemorações,
as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares
funcionais como os manuais, as autobiografias ou as
associações: estes memoriais têm sua história. estes são
os lugares de externalização da memória, a memória
nas coisas, nas (manifest)ações coletivas. São muitos os
sentidos de memória, muitos os sentidos de lugares da

Ciência & Conservação


memória. Assim, aspectos do que conceituamos como
“hitórico-cultural”, “ideológico” podem se tornar visíveis
em uma análise da materialidade da língua, que constitui
e estabiliza modos de ação e de elaboração mental, como
práticas inscritas e instituídas na cultura.

A noção de patrimônio dada pela autora é associada a de memória coletiva


estudando os meios, os modos, os recursos criados coletivamente no
processo de produção e apropriação da cultura. A autora não apresenta
considerações sobre a subcategoria “bens culturais tangíveis”, em função
de sua discussão estar relacionada a linguagem ser instrumento da memória
em diversos aspectos.
SANTOS realiza uma leitura onde discute a categoria patrimônio cultural,
como utilizar a memória preservada, testemunho da História entendida
como forma de existência social, nos seus diversos aspectos, econômico,
político e cultural, bem como o seu processo de transformação. Para a
autora a memória preservada constituindo patrimônio cultura contribui
para a formação de cidadãos e tem sido um dos objetivos dos programas
de ação cultural desenvolvido no país. A autora apresenta considerações
sobre a subcategoria “bem culturais tangíveis” para ela:
O conceito de bem cultural no Brasil, em sua leitura o
patrimônio ainda continua muito restrito aos bens móveis e
imóveis: Permeando essas duas categorias existe uma vasta
gama de bens - procedentes sobretudo do fazer popular - 87
que por estarem inseridos na dinâmica viva do cotidiano
não são considerados como bens culturais nem utilizados
na formulação das políticas econômicas e tecnológica.
No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se
reconhece a vocação e se descobrem os valores mais
autênticos de uma nacionalidade. Além disso, é deles e de
sua reiterada presença que surgem expressões de síntese de
valor criativo que constitui o objeto de arte.

A categoria patrimônio cultural aparece em todos os textos e está associada


às duas vertentes de contextualização: sua noção conceitual e sua inserção

Teoria e contexto
como política pública. Entretanto, no que se refere aos objetos protegidos
pelo patrimônio cultural como produção material, podemos perceber
que todos os textos selecionados referem-se a estes materiais como bens
culturais tangíveis, com exceção do texto de Smolka, que trata além deste
conjunto de objetos, do patrimônio imaterial, ou seja, das manifestações

Ciência & Conservação


folclóricas, das celebrações religiosas, dos cantos, costumes alimentares, etc.
Desta forma podemos fazer a categorização de bens tangíveis como
sendo: peças, objetos, registros bibliográficos, iconográficos, documentos
arquivísticos e coleções de bibliotecas. A todos estes objetos, amplamente
denominados bens culturais tangíveis os autores dos artigos, os definem
dentro de um grupo denominado patrimônio cultural, já que a inclusão
destes objetos como sendo vocacionados e pertencentes ao patrimônio
cultural e que sua preservação implica um processo de interpretação da
cultura, como produção material e simbólica da sociedade.
LEITE amplia o conceito de patrimônio cultural e bem cultural voltado não
apenas às rememorações da memória coletiva, mas também de usos mais
pragmáticos da cultura, ele diz que “devemos tentar definir o patrimônio
em função do significado que possui para a população, reconhecendo que
o elemento básico na percepção do significado de um bem cultural reside
no uso que dele é feito pela sociedade” para o autor a sociedade preserva
aquilo que tem valor de uso e, portanto só se viabiliza o patrimônio se este
uso estiver cercado de valores simbólicos e valores pragmáticos. Sobre a
noção de bem cultural ele coloca que:
noção de uso que recupere os sentidos atribuídos pela
sociedade aos bens culturais deveria conjugar o “valor
efetivo”, que recupera o sentido de “pertença” dos
indivíduos, e o “valor pragmático”, que implica o uso 88
qualificado dos bens sem operar qualquer redução a um
único uso específico. Negligenciar essa noção ampliada
de uso pode contribuir para uma redução do espectro
valorativo de um bem cultural, na medida em que o
consideraria apenas como uma mercadoria passível de
troca, com base em uma necessidade específica.

Para o autor é preciso que haja políticas de preservação que torne a


assimilação e o entendimento da população aos bens culturais de forma
a garantir a preservação do patrimônio. PELEGRINI coloca que numa
perspectiva valorativa, o patrimônio cultural do país foi definido como

Teoria e contexto
conjunto de bens de natureza material e imaterial (tomados individualmente
ou em sua totalidade) portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Entre
tais bens se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e
viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos,

Ciência & Conservação


documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; sítios de valor histórico, urbanístico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Essa
dinâmica acepção de patrimônio, inspirada numa percepção antropológica
de cultura, marcou os reptos do “Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial” e concretizou-se a partir do Decreto no. 3551/2000.
NOGUEIRA compartilha do mesmo conceito de contextualização ampla
da noção do conceito de patrimônio cultural “Ou seja, é um sentido amplo
de cultura que opera a noção de arte patrimonial, daí que a distinção entre
o que é material e imaterial não cabe em uma concepção que tem como
foco o conhecimento e o processo criativo” para o autor a experiência
e a trajetória de vida de Mário de Andrade como precursor da efetiva
institucionalização da defesa do patrimônio averiguado com a existência
dos inventários de bens culturais e da inclusão do patrimônio cultural
imaterial.
Já a categoria “políticas públicas” pode ser uma categoria independente,
pois se refere de sobremaneira a algumas ações governamentais adotadas
no que tange à proteção do patrimônio cultural brasileiro, incluindo a
legislação pertinente. Políticas públicas estão presentes em todos os artigos,
para os autores as ações de preservação devem ser alvo de formulação
e implementação de políticas, já que são essenciais e devem ser tomada
como garantia de preservação de tais objetos e de seu efetivo acesso á 89
sociedade.
O processo de formulação de uma política envolve a identificação dos
diversos atores e dos diferentes interesses que permeiam a luta por
inclusão de determinada questão na agenda pública e, posteriormente, a
sua regulamentação, através de publicização e da ação do estado e/ou de
instituições que as monitorem e a coloquem na agenda pública, inclusive
com dotação orçamentária e etc. As políticas públicas de preservação vão

Teoria e contexto
além dos cuidados relativos à estabilização física dos documentos, elas
referem-se ao acesso e a guarda dos objetos como forma de manter a
memória para a prosperidade.
A associação entre políticas públicas de patrimônio e preservação está
presente no texto de SANTOS Para a autora ao debater sobre esta

Ciência & Conservação


relação devemos, “volta-se a, traçar algumas considerações sobre os
pressupostos básicos que têm norteado as ações de preservação, até o
presente momento, bem como apontar alguns problemas relacionados
com a política de preservação em nosso país, no tocante à participação do
cidadão e da preservação da nossa identidade cultural”
Para ela a preservação com um sentido funcional não deve ser uma
precondição da democracia e da participação, deve ser parte, fruto
e processo da sua construção. Conferir um papel ativo e crítico à
preservação e à educação é necessário, buscando assim a construção de
uma nova sociedade, onde o homem possa, sem preconceitos, assumir o
seu verdadeiro papel como cidadão, sujeito que faz e exerce a política. A
relação de preservação e políticas públicas viabiliza-se através de práticas
pedagógicas. “A análise do passado, a utilização dos acervos preservados
como recurso didático, objetivando a integração do indivíduo em seu
meio, de forma dinâmica e reflexiva não tem sido uma prática efetivada
por nossas instituições educativas e culturais.” (SANTOS, 1994).
A fim de quebrar o distanciamento da sociedade ao patrimônio cultural a
autora defende que é preciso criar uma nova estrutura e uma redefinição
da articulação entre os órgãos centrais das áreas da cultura e da educação.
Tentando dar um novo sentido às ações culturais e educativas, o propósito,
nesse momento, é traçar algumas considerações sobre os pressupostos 90
básicos que têm norteado as ações, até o presente momento, bem como
apontar alguns problemas relacionados com a política de preservação no
país, no tocante à participação do cidadão e da preservação da identidade
cultural.
A subcategoria “preservação” está associada aos métodos de conservação
e de restauração, bem como as ações de tratamento informacional como
os inventários e banco de dados. A subcategoria preservação torna-se um
conjunto dependente da categoria políticas públicas, pois ela está diretamente
relacionada aos objetos e dependem da estrutura de gestão e de políticas que

Teoria e contexto
assegurem tais ações. Para NOGUEIRA, apenas coma instalação do livro
de registros onde é possível elencar através dos inventários e dimensionar as
ações de preservação e formular políticas mais concretas.
Com exceção de SMOLKA, todos os textos relacionam políticas publicas
de patrimônio à preservação. Esta associação dá-se pelo reconhecimento de

Ciência & Conservação


bem público e, portanto de objeto de custódia e defesa.

A metodologia de análise de citação


A partir dos artigos selecionados foi alimentado um banco de dados, criado
pela aluna do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação
Daniela Lucas. A base de dados foi desenvolvida em software ACCESS.
A alimentação dos dados deu-se a partir dos artigos apresentados nas
referências bibliográficas dos artigos selecionados. As tabelas a seguir
apresentam os dados coletados, apresentam-se as 10 primeiras ocorrências
de cada consulta, tal decisão foi motivada pelo fato de o universo de artigos
ser pequeno e, portanto na aferição constatou-se que ocorreram várias
únicas ocorrências. A análise de citação apresenta neste momento dados
quantitativos e qualitativos, a respeito dos autores citados e dos assuntos
abordados, nas referências e nas citações.
a) Consulta de ocorrência citação de autor
Num total de 117 autores, 89 possuem uma citação. Dezessete (17)
apresentam duas ocorrências. A tabela a seguir apresenta a quantificação de
ocorrências em relação ao total dos artigos citados.
OCORRÊNCIA NÚMERO DE ARTIGOS
5
4
3
2
91
3 9
2 16
1 87
total 117

Tabela 3: relação ocorrência número de artigos


No que se refere à consulta dos autores citados, a consulta apresenta que
os autores citados pertencem a textos tradicionais da área de patrimônio

Teoria e contexto
cultural. Sandra Pelegrini forma um grupo de estudos voltados para o
patrimônio cultural da UNICAMP, ela encabeça junto ao professor Pedro
Paulo Funari estudos sobre a arqueologia do Brasil. Mário de Andrade surge
em todos os textos, como foi um dos precursores do estudo do patrimônio
cultural e principal referência do patrimônio no Brasil.

Ciência & Conservação


VYGOTSKY e FREUD surgem apenas no texto de SMOLKA, por
tratar da definição de memória e linguagem ampliando o conceito de bem
cultural. ADORNO e GIDDENS aparecem no texto de NOGUEIRA, ao
debater políticas públicas de patrimônio e direitos do cidadão. Já LEITE e
GONÇALVES são autores tradicionais da literatura de patrimônio cultural
e são leituras clássicas da área, elas apresentam definições e apresentam a
trajetória das instituições de memória do país A presença de referências
oficiais é constante, pois são nelas que encontramos as definições oficiais e
as determinações legais de proteção ao patrimônio cultural. A Constituição
Federal de 1988 (Brasil) é citada no que diz respeito ao conceito de
patrimônio cultural no país, em âmbito legislativo federal. A tabela seguinte
apresenta a relação entre ocorrências de citação e autor.

Ocorrência Citação Autor


Nome Completo Ocorrência
Sandra Pelegrini 5
Mário de Andrade 5
L.S.Vygotsky 5
Theodor Adorno 4
BRASIL 4 92
Rogério Proença Leite 3
S. Freud 3
Anthony GIDDENS 3
J. R. S Gonçalves 3
UNESCO 3

Tabela 4 Ocorrência citação-autor


b) Consulta de ocorrência citação por referência

Teoria e contexto
Ocorrência Citação Referência
Ano de
Titulo da Referência Ocorrência
Publicação
Produzindo o passado: estratégias de construção
1984 2
do patrimônio cultural

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Convention on the protection and promotion of the
2003 1
diversity of cultural expressions
A arqueologia do saber 1969 1
Destradicionalização e imagem da cidade: o caso
1996 1
de Évora
Declaration of the principles of international cultural
1966 1
co-operation
De profundis, valsa lenta 1998 1
De Magistro 1984 1
Da memória e da reminiscência 1
Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania 1992 1
Cultura de consumo e pósmodernismo 1995 1

Tabela 5. Ocorrência-Citação-Referência

A ocorrência de maior número cinco (5) está um conjunto de documentos


que não possuíam data expressa nas referências. A presença de duas
obras de 1984 refere-se ao trabalho de Fonseca, a sua tese “Produzindo o
passado: estratégias de construção do patrimônio cultural” é considerado
um texto clássico da área. As demais 116 referências só obtiveram uma (1)
ocorrência. Entretanto, pode-se agrupar o conjunto por ano e podemos
perceber que a dispersão de produção ocorre desde 1934 até 2008,
entretanto há um lapso de produção ente 1937 a 1966, tal espaço indica
a baixa produção de estudos voltados ao patrimônio cultural, e carecem 93
então de maiores investigações, pois não é possível fazer alguma inferência
sobre este fato com esta amostra.
c) Consulta de ocorrência por ano

Teoria e contexto
Citação ano
Ano de Publicação Ocorrência
1996 13
1984 11
1995 11
1997 10
1987 8

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2000 8
1998 8
1988 7
1992 7
1986 6

Tabela 6 Citação-ano

A maior parte das referências que corresponde a 34 obras é da década de


90, sendo 13 de 1996, 11 de 1995 e 10 de 1997. Outro grande escore é de
1984 com 11 ocorrências. Aliás, podemos perceber que a partir de 1984
há um crescente nas publicações. É possível assegurar que tal profusão
de ocorrências seja associada ao processo de democratização do país e
as publicações decorrentes de estudos e de encontros que compuseram
a organização de grupos que articularam junto à assembléia constituinte
e que culminou com a inclusão da proteção ao patrimônio no corpo da
Constituição Federal de 1988.
d) Consultas de ocorrência de citação por idioma
Língua Referência
Idioma Ocorrência
PORTUGUÊS 130
INGLÊS 17
FRANCÊS 10
ESPANHOL 5
94
Tabela 7. Língua-referência

A maior parte das ocorrências, 130 títulos, foi publicada em idioma


português, seguido do inglês (17 obras), do francês (10) e no idioma
espanhol 5 ocorrências.
Pode-se concluir que as tradições inglesas e francesas são ainda muito
elevadas, por serem locais onde estão os maiores centros de pesquisa

Teoria e contexto
patrimonial, os maiores museus e as instituições normatizadores da
proteção ao patrimônio, como a UNESCO, ICROM e o ICOMOS.
O Brasil tem publicado várias obras no campo do patrimônio, seja de
autores brasileiros ou não, em especial os portugueses, principalmente a

Ciência & Conservação


proteção do patrimônio arquivístico.
e) Consulta de ocorrência de citação por país
Publicação País
País Ocorrência
Brasil 127
França 10
Inglaterra 9
Eua 6
Portugal 4
México 2
Espanha 2
Suécia 1
Rússia 1

Tabela 8. Publicação País


Esta tabela apresenta algumas conclusões interessantes. Na tabela anterior
há 17 publicações em inglês e 10 em francês. Como explicar na relação
ocorrência de citação por país, há mais publicações francesas em segundo
lugar do que as em inglês. O fato só faz sentido se considerarmos nas
ocorrências por língua devem-se somar as ocorrências da Inglaterra e dos
Estados Unidos, que somadas dão 15, e as duas restantes são publicações
publicadas na Inglaterra, porém em outras línguas. a publicação em o
espanhol, é relativa ao autor Nestor Garcia Canclini.
95
e) Consulta referências por assunto e referências relacionadas
A Análise dos títulos para se fazer referências aos assuntos, não foi possível
de realizar, porque infelizmente os títulos são retóricos e poéticos e não
expressam os assuntos o qual tratam diretamente no título da publicação na
referência. Desta maneira seria preciso analisar cada artigo separadamente.

Teoria e contexto
Considerações Finais
Ao realizar a aplicação das técnicas de análise de conteúdo e análise de
citação, foi possível criar uma categorização e visualizar as semelhanças de
conceitos entre os autores. O assunto patrimônio é diverso tanto quanto
os diferentes aspectos de cultura o qual pretende preservar. Entretanto,

Ciência & Conservação


as relações sobre a condição de objeto de políticas públicas ainda há
interpretações que divergem entre a ação junto aos cidadãos e a agenda
de política do país. O método se mostrou eficaz, e se não foi possível
averiguar outras categorias, foi certamente porque os textos selecionados
não contemplarão o todo da noção de patrimônio e, portanto deverá ser
aplicado a outro conjunto de documentos;
Como método de pesquisa a análise de conteúdo se mostrou
potencialmente eficiente na construção de referencial teórico a fim de
determinar com exatidão o corpus ou o domínio a ser analisado. No que se
refere à análise de citação o uso das tabelas para quantificar as referências
tanto qualitativamente (quando se trabalha as ocorrências de assunto),
ou quantitativamente (como nas outras evidências) o método se mostrou
eficaz para categoriza e ampliar análise por categorias, (língua, local de
publicação, ano de publicação, autoria x citação, referências x citação)
mostrando-se útil para ser aplicado em um novo estudo abrangendo um
número maior de publicações.
Tal método/estudo poderá contribuir de modo significativo ao corpo
teórico do projeto da tese, e servirá de apoio para construção do referencial
teórico, norteador das futuras análises que serão incorporadas no trabalho.
Por outro lado sua aplicação em outras categorias presentes na área da
Ciência da Conservação servirá como mecanismo eficaz para dimensionar
96
e qualificar o corpo de referências e de produção intelectual auxiliando
a delimitar o espaço desta ciência possibilitando a visualização de sua
evolução e dispersão dos principais assuntos tratados na área.
___________
Referências

Teoria e contexto
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. 226p.
LEAL, Igor Campos. Análise de citações da produção científica de uma comunidade: a construção de
uma ferramenta e sua aplicação em um acervo de teses e dissertação do PPGCI-UFMG / 2005 - Belo
Horizonte: UFMG. Dissertação de mestrado.
LEITE, Rogério Proença. Patrimônio e consumo cultural em cidades enobrecidas. Sociedade e
cultura, v. 8, n. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 79-89.

Ciência & Conservação


MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? , v. 9,
supl.1, p. 239-262, 1993.
MINAYO, M.C.S. Pesquisa qualitativa em saúde. 10. ed. São Paulo:HUCITEC, 2007. 406p.
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São
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NORONHA, Daisy Pires. Análise das citações das dissertações de mestrado e teses de doutorado em
saúde pública (1990-1994): estudo exploratório. Ciência da Informação, Brasília, v. 27, n. 1, p. 66-75,
jan./abr. 1998
PELEGRINI, Sandra C. A.. A gestão do patrimônio imaterial brasileiro na contemporaneidade.
História, São Paulo, 27 (2): 2008.
ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e
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SANTOS, Maria Célia Teixeira M. . A preservação da memória enquanto instrumento de cidadania.
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SILVA, Daniela Lucas da. Uma proposta metodológica para construção de ontologias: uma perspectiva
interdisciplinar entre as ciências da informação e da computação. 2008. 286 f. Dissertação (Mestrado
em Ciência da Informação)- Escola da Ciência da Informação,
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultural.
Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/00.Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2008.
VALENTIM, M. L. P. Métodos qualitativos de pesquisa em Ciência da Informação. São Paulo: Polis,
2005. 176p.
Vergara, Sylvia Constant. Métodos de pesquisa em administração. São Paulo: Editora Atlas, 2005. 287p

97
O que nos falta?
Tatiana Duarte Penna

Teoria e contexto
Mestranda PPGA-EBA-UFMG
Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo

Ciência & Conservação


Diante de novos paradigmas no campo expandido das artes, com a inserção de novos con-
ceitos, premissas e modelos, qual seria o caminho que o campo da conservação-restauração
deveria se propor a seguir? Os processos de construção agora fazem parte da obra de
arte e como lidar com tais registros? Como conserva-los? Qual seria a melhor maneira de
preservar essas memórias para que pudéssemos garantir sua transmissão a gerações futu-
ras? Nessa nova dinâmica contemporânea, os paradigmas da preservação também devem
ser modificados, expandidos, discutidos dentro dessa rede de atores sócias envolvidos na
preservação da memória.
Palavras-chave: Educação e Política; Ciência e Epistemologia

Abstract
In the course of towards of new paradigms in the fields of the expanded arts, whith the insertion of new
concepts, assumptons and models, wich way, the path of conservation/restauracion should propose itself to
follow? The constuction process is now part of the work of art it self, how to deal with this records? How
to preserv then?Wich would be the best way to preserv this memorys so we can guarntee theye transmission
to the future generation? In this new contemporary dynamics, the preservation paradigma also need to be
modified, expaner, discussed around this web of social actors involved in the preservation of memory.
Key-words: educacion and politics; Science and epistemology

Introdução

Fico imaginando se os principais teóricos da conservação-restauração


fizessem uma viagem no tempo e se encontrassem em um de nossos 98
museus de arte moderna e contemporânea. Quais seriam suas impressões?
Provavelmente ficariam impressionados com a arquitetura moderna, os
jardins deslumbrantes, as galerias monumentais. Deparar-se-iam com um
novo sistema de arte, menos voltado para as questões do belo, do juízo de
gosto. Ver-se-iam diante de uma arte conceitual, exposta e representada
de diversas formas. Talvez ficassem perplexos diante da gama inusitada de
materiais e formatos, da arte efêmera...
Ficariam satisfeitos em saber que as pesquisas que realizaram , as
experiências que sintetizaram, e os conceitos que desenvolveram,

Teoria e contexto
fundamentados em princípios coesos e sólidos, estabeleceram diretrizes e
normas que se acumularam durante o decorrer do tempo e permaneceram
sendo utilizadas e seguidas até hoje por nós, restauradores. Porém, diante
de uma realidade em que o reconhecimento da função do conservador-
restaurador ainda é incipiente, ficariam surpresos.

Ciência & Conservação


Para fazer uma reflexão sobre o reconhecimento da profissão do
restaurador-conservador e de sua atuação nesse novo campo expandido
das artes hoje, é necessário fazer essa viagem de volta.
Busquemos algumas referências a respeito do nascimento dessa disciplina.
Quando um ceramista grego refazia a alça de uma
ânfora partida ou mesmo quando um monge retocava as
iluminuras medievais, a prática da restauração encontrava-
se presente. Porém, a atuação desses profissionais tornou-se
mais especializada à medida que grandes coleções privadas
e públicas foram sendo formadas, necessitando, assim,
de pessoas capacitadas na manutenção desses acervos
(FRONER, 2005, p.1).

A partir do século XIX até a década de 60 no século XX, com o marco


simbólico em 1964, ano de redação da Carta de Veneza, foram vários
os acontecimentos importantes relativos à conservação dos monumentos
históricos, como relaciona Françoise CHOAY (2001, p. 125):
Contribuições originais e sucessivas dos diferentes países
europeus para a teoria e prática da conservação; o avanço
na reflexão britânica mantém-se até as últimas décadas do
século XIX, quando a Itália e os países germânicos tomam
as rédeas da inovação. É o caso também das descobertas 99
das ciências físicas e químicas, das invenções das técnicas
ou ainda os progressos da história da arte e da arqueologia
que, em conjunto, marcaram o desenvolvimento da
restauração dos monumentos como disciplina autônoma.
E ainda da evolução das artes e do gosto, cujos interditos
determinariam fases distintas no tratamento e seleção dos
monumentos históricos a serem protegidos.
Após a Revolução Francesa, as Guerras Napoleôncias e os conflitos
relacionados à construção do Estado moderno, os vandalismos e
espólios de guerra, as atividades de restauração se intensificam (Cf.

Teoria e contexto
FRONER, 2001, p.88).
Em meados do século XIX, duas vertentes surgem em relação à prática da
conservação-restauração. Eugenne Viollet Le Duc, arquiteto-restaurador,
faz largo uso de reconstituições, com o objetivo de alcançar o estilo
original. Para tanto, se parte do monumento tivesse que ser sacrificado,

Ciência & Conservação


não hesitaria em fazê-lo. “Restaurar um edifício é restitui-lo a um estado
completo que pode nunca ter existido num momento dado”, escreve
(BOITO, 2003, p.17).
Em oposição a Le Duc, John Ruskin e William Morris preconizavam
um enorme respeito pela matéria original, pelas marcas da passagem do
tempo na obra, aconselhando manutenções periódicas. Defendiam um
anti-intervencionismo radical. Em agosto de 1877 escrevem o “Manifesto
da Sociedade para a Proteção do Edifício Antigo”, contrário à restauração.
Posteriormente, Camilo Boito procuraria estabelecer uma política de tutela
respeitosa em relação às obras, propondo critérios de intervenção em
monumentos históricos. Daria ênfase ao valor documental do monumento,
evitando acréscimos e renovações, respeitando as fases do monumento,
registrando as obras através das fotografias do antes, durante e depois da
intervenção. Os conceitos de autenticidade, hierarquia de intervenções,
e estilo de restauração permitiram a Boito estabelecer os fundamentos
críticos da restauração como disciplina (CHOAY, 2001, p.167).
Podemos notar que as intervenções dos restauradores passam a exigir não
apenas conhecimentos seguros, históricos e técnico-metodológicos, sendo
necessária a aquisição de novo e amplo conhecimento científico sobre a
degradação de materiais.
Alois Riegl, historiador vienense (1858-1905), realiza um trabalho ainda
100
mais ambicioso. Encarregado de esboçar uma nova legislação para a
conservação de monumentos, publica, em 1903, Der Moderne Denkmakultus
(O culto moderno aos monumentos), contemplando o respeito ao original
e o critério de seleção dos monumentos históricos a serem restaurados.
Riegl chama a atenção para a necessidade de o conservador-restaurador
conhecer a História, mais ainda a História da Arte, para que se evitassem
erros, excessos e ações que pudessem danificar a qualidade estética ou
documental dos monumentos cultuados.

Teoria e contexto
Em 1931, a Carta de Atenas estabelece diretrizes para a preservação do
patrimônio, sendo um marco no conceito moderno de patrimônio cultural.
Essa carta, baseada no trabalho de Gustavo Giovannoni (1873-1943),
arquiteto-urbanista italiano, apresenta princípios relativos à restauração e à
conservação de sítios e monumentos.

Ciência & Conservação


Cesare Brandi e Paul Phillipot fundam o Instituto Central de Restauro,
em Roma, em 1956, num período bastante conturbado da história. Ambos
desenvolvem as bases teóricas desse instituto, que irão influenciar toda
uma geração através de treinamentos e atividades de cooperação. Sua
Teoria do Restauro foi publicada em 1963. Brandi constrói sua teoria a
partir de questões tais como: o que é restauração, qual a sua relação com a
obra de arte, como essa última se manifesta, o que é testemunho histórico.
Reconhece-se, na longa e apaixonada pesquisa conduzida
por Brandi, a contribuição, cada qual por sua vez, das
atuais formulações filosóficas (partindo, segundo uma
ascendência kantiana, do idealismo e do espiritualismo de
Benedetto Croce, em direção, no início, à fenomenologia
de Edmund Husserl, e depois ao estruturalismo e também
ao existencialismo de Jean Paul Sartre, sem excluir, por fim
Martin Heidegger.(CARBONARA, 2004,p.14)

Segundo PHILLIPOT (1996,p.216), a conservação deixa de ser uma


disciplina baseada no conhecimento empírico e passa a ser uma disciplina
baseada na metodologia; saindo do nível da artesania, passa ao nível das
humanidades e das ciências exatas. No Brasil,
vai ser na década de 1920 que a temática da preservação do
patrimônio- expressa como preocupação com a salvação
dos vestígios do passado da nação e mais especificamente
com a proteção ao monumento e objetos de valor histórico
e artístico, começa a ser considerada politicamente relevante
101
(...), implicando o envolvimento do Estado. (CASTRIOTA,
2009, p.71).

Ressalte-se que não vão ser os setores conservadores, mas, sim, os


intelectuais modernistas a elaborarem e implementarem as políticas de
preservação do patrimônio. Ao mesmo tempo em que mantêm estreito
contato com as vanguardas europeias, os modernistas desenvolvem uma
peculiar relação com a tradição, recusando a idéia de rompimento radical
com o passado (Cf. CASTRIOTA, 2009, p.71).

Teoria e contexto
O SEPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico Nacional- foi criado em
1937, tendo como diretor o jornalista, escritor e historiador Rodrigo Mello
Franco de Andrade. No início de 1947, Edson Motta, pintor, fundador do
Núcleo Bernadelli- núcleo que reunia artistas tais como Milton Dacosta e José
Pancetti-, vai aperfeiçoar seus estudos sobre técnicas de pintura na Europa.

Ciência & Conservação


Ao retornar ao Brasil, é convidado a organizar o Setor de Recuperação de
Obras de Arte do SEPHAN. Durante a implantação do setor, percebe dois
caminhos de atuação: em bens móveis e em bens integrados aos monumentos.
Cria, então, ateliês para bens móveis ligados aos museus do SEPHAN e
ateliês móveis, para os bens integrados, funcionando estes nos próprios
monumentos em processo de restauração. Todos os ateliês subordinavam-se
ao ateliê central do SEPHAN, no Rio de Janeiro. Realizando e coordenando
todos os trabalhos, Edson Motta encontraria dificuldades na aquisição de
equipamentos e materiais, dificuldades proporcionais ao tamanho do Brasil
(Cf. RAMOS FILHO, 1987).
Em 1964, o professor e diretor do Instituto Real do Patrimônio Histórico
e Artístico da Bélgica, Paul Coremans, vem ao Brasil propor o projeto
de uma política de restauração de bens móveis e integrados que previa a
ampliação do ateliê central do SEPHAN, transformando-o em laboratório
físico-químico. Colocar-se-ia então, um restaurador em cada regional
do SEPHAN, montando-se um ateliê composto por uma equipe de
profissionais. A formação desses profissionais seria solucionada através
de bolsas de estudos de especialização na Bélgica. Para lá foram Jair
Inácio, restaurador em Minas Gerais, e Fernando Barreto, restaurador em
Pernambuco (Cf. RAMOS FILHO, 1987).
Estabelece-se, assim, uma nova organização para a restauração de bens 102
móveis e integrados, com Jair Inácio, em Minas Gerais, Fernando Barreto,
em Pernambuco, João José Rescála, na Bahia, e Aldo Malagoli, no Rio
Grande do Sul (este não chegou a assumir). Esses foram os pioneiros
da restauração no Brasil. Os restauradores com formação universitária
em Belas Artes tornaram-se professores das disciplinas de restauração
nos estados onde trabalhavam, buscando aumentar o contingente de
profissionais nessa área (Cf. RAMOS FILHO, 1987).
Em meados da década de 1960, período politicamente conturbado, a área
de conservação e restauração no Brasil encontrava-se num verdadeiro

Teoria e contexto
marasmo, agravado com a saída e Rodrigo Mello Franco de Andrade do
SEPHAN. Em 1970, cria-se, na Fundação de Artes de Ouro Preto, o
primeiro curso regular para a formação de restauradores, ministrado por
Jair Inácio. Sem exigência de formação anterior, o curso funcionava como
um ateliê, em que, a partir de um ano ou pouco mais, o aluno podia ser

Ciência & Conservação


dado como pronto pelo professor. Nessa época começam a ser criados
os órgãos estaduais de patrimônio, que se mostrariam mais ou menos
atuantes na sistematização de uma política de bens móveis e integrados,
enquanto o SEPHAN restringia-se à função de repasse de recursos a esses
órgãos (Cf. RAMOS FILHO, 1987).
O restaurador havia então se tornado um operário especializado, sendo
chamado a executar tarefas artesanais, sem participação na definição de
posturas, num processo desarticulado, sem metodologias sistematizadas,
sem projetos, sem estudos aprofundados sobre as causas da degradação
e deterioração de materiais, e sem registros dos trabalhos realizados (Cf.
RAMOS FILHO, 1987).
É somente após a criação de setores específicos que o restaurador passa a
ter suas atividades organizadas de forma sistemática. Esses setores foram
criados no Instituto do Patrimônio Estadual do Patrimônio Artístico e
Cultural da Bahia (1976), na Empresa Sergipana de Turismo (1978), e
no Instituto Estadual do Patrimônio Artístico de Minas Gerais (1979),
estando o primeiro e o último sob a direção de Orlando Ramos Filho.
A partir de então, a restauração passa a ser executada a partir de diagnósticos
mais aprofundados, projetos melhor delineados, prazos definidos, custos
especificados. Surgem pesquisas na área, relatórios técnicos com registros
de todo o processo de restauração passando o restaurador a ser um técnico, 103
transformando-se a sua postura enquanto profissional. Devido à ausência
de definição de funções e atribuições, o restaurador e o arquiteto viviam
em atrito constante, o que somente se diluiu após a delimitação dos seus
campos profissionais e espaços de atuação, alcançando-se maior respeito
no momento de entrelaçamento dos trabalhos.
O Centro de Conservação e Restauração de Bens Móveis – CECOR- e
o Centro de Restauração da Bahia – CERBA- foram criados em 1978.
A professora Beatriz Coelho funda o CECOR com o objetivo de criar
um centro de formação e pesquisa na área da conservação e restauração.

Teoria e contexto
Dois anos após a criação do CECOR, cria-se o curso de especialização
em conservação e restauração de bens móveis, com professores vindos do
exterior, um currículo estruturado, exigência de conhecimentos básicos,
carga horária extensa e um laboratório já equipado. Em 2008 foi criado o
primeiro curso de graduação em conservação e restauração no Brasil, com

Ciência & Conservação


duração de 4 anos.
A ABRACOR ( Associação Brasileira de Conservadores e Restauradores)
surge em meados de 1980, sendo uma associação de direito privado, sem
fins lucrativos criada para dignificar e proteger, como órgão de classe, os
profissionais conservadores e restauradores de bens culturais.
Recentemente , o projeto de lei № 4042 de 2008 que dispõe sobre a
regulamentação da profissão do conservador-restaurador e de técnico
em conservação e restauração de bens culturais móveis e integrados foi
aprovado junto a câmara de educação do Senado Federal esperando ser
sancionada pelo Presidente da República.
O projeto de lei apresenta alguns equívocos, porém não seria um passo no
sentido da regulamentação de nossa profissão?
Apesar de todos esses avanços na área da conservação- restauração,
encontramos ainda profissionais não qualificados, atuando no mercado
,muitas vezes de forma inadequada , instituições museológicas que não
possuem em sua equipe um conservador-restaurador; colegas em ateliês
ou em obras sem condições nenhuma de trabalho ou ainda exercendo a
função de apagadores de incêndio.
Feita essa viagem, pergunta-se: a que concepções de conservação-
restauração filiavam-se aqueles pioneiros do campo no Brasil? E, hoje,
como a conservação-restauração no Brasil posiciona-se em relação aos
104
teóricos citados, tendo diante de si a complexidade das obras e produtos
da cultura e da arte contemporâneas?
Os paradigmas da arte foram alterados, seus modelos, seus conceitos
também. Sabemos que a conservação-restauração é constituída de um
saber, resultante de uma história, de reflexões, de indagações. Nossa
atuação diante dessa complexidade também tem que ser expandida.
Precisamos atuar de forma interdisciplinar através de discussões com
todas as partes envolvidas na preservação do patrimônio cultural .

Teoria e contexto
As informações e registros relativos a processos de restauração e
conservação desenvolvidos no Brasil deixam a desejar. Pesquisas são
feitas, novas tecnologia utilizadas, mas e o acesso a elas? O conhecimento
não deve ficar restrito a um grupo pequeno de profissionais. Precisa ser
expandido, divulgado, discutido, registrado para que um número maior de

Ciência & Conservação


profissionais tenha acesso a ele.
Não podemos nos esquecer das questões políticas que envolvem a
preservação no Brasil. Uma maior consciência pública em relação ao
nosso patrimônio se faz necessária.
Segundo Bordieu, atores sociais estão inseridos em determinados campos
sociais e o habitus de cada um condiciona o seu posicionamento espacial
e, na luta social identifica-se com sua classe social. Afirma ainda que para o
ator social tentar ocupar um espaço é necessário que ele conheça as regras
do jogo dentro do campo social e que esteja disposto a lutar.
Fica aí um pergunta: O que nos falta?

___________
Notas
I - Com relação ao artigo de Orlando Ramos Filho, não fica muito claro como estas
restaurações eram realizadas, quais critérios eram utilizados, inclusive na escolha de bens a
serem restaurados. Seria necessário realizar um estudo mais aprofundado uma vez que os
registros eram feitos sem uma sistematização, para que tais questões fossem esclarecidas.
II - “O que Edson Motta fez a vida inteira foi trabalhar em benefício dos valores culturais
do país, seja como pintor de muita sensibilidades e raro apuro técnico, alheio a falsos
modismos, seja como ardoroso defensor da permanência de obras alheias. A humildade 105
do restaurador, de formação científica exemplar casava-se nele com a chama do artista.
Mas esta foi, muitas vezes impedida de exercitar-se porque Edson Motta consumia o seu
tempo na ressureição da arte dos outros. Um estilo de recuperação de obras de arte foi
implantado no Brasil por esse homem discreto, probo, que só deixa saudades. Manter-se
criador, sem egoísmo, antes dedicando-se aos outros, do passado como do presente –
quantos serão capazes de realizar esse destino da maior simplicidade e pureza?”
ANDRADE, Carlos Drummond de ( Texto introdutório) .In: Motta, Edson, O pintor
Edson Motta , Rio de janeiro, MNBA , 1982. P3
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106
O antipolítico e as políticas de preservação no
Brasil

Teoria e contexto
Mariana Sousa Bracarense
Mestranda PPGH - FAFICH-UFMG
Resumo
O presente trabalho aborda as elaborações e utilizações do conceito de memória por Mário
de Andrade entre as décadas de 1920 e 1930. Para isso, foram utilizadas como fonte as

Ciência & Conservação


cartas trocadas entre Mário e interlocutores que ocupavam lugar de destaque no universo
intelectual brasileiro durante o período. O poeta modernista ocupou o papel de peça
chave do movimento iniciado na década de 20 e, posteriormente, o lugar de intelectual
absorvido pelo sistema político instaurado na década de 30. Durante sua carreira formulou
e reelaborou o conceito que permeou toda sua trajetória.
Palavras-chave: memória, modernismo, Mário de Andrade.

Abstract
This work paper discusses the elaboration and use of the concept of memory by Mário de Andrade in
the decades between 1920 and 1930. For that were used as sources the letters exchanged between Mário
and partners who occupied a prominent place in the brazilian intellectual universe during the period. The
modernist poet, during his career, from a key part of the movement started in the 20’s, to an intellectual
absorbed by the political system established in the 30’s, formulated and reworked the concept that permeated
throughout his trajectory.
Key words: memory, modernism, Mário de Andrade.

Músico de formação, jornalista, crítico de arte, escritor, pesquisador,


fotógrafo, viajante, poeta, são as muitas facetas de Mário da Andrade. O
Mário de Andrade modernista, viageiro em busca dos lugares de memória
(NORA, 1993) e propositor do anteprojeto de criação do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que deu origem à legislação
protetiva do patrimônio no Brasil é o objeto da ação investigativa deste
artigo. A pesquisa proposta busca abordar as elaborações e utilizações do
conceito de memória por Mário de Andrade.
107
A proposta abrange a forma como esse conceito foi formulado pelo
autor e pensador da arte e da cultura brasileira e como foi aproveitado nas
idéias acerca do que é preservar e da necessidade da constituição de um
corpo estatal e intelectual responsável por essa preservação. O sentido do
patrimônio, que informa uma memória estética e histórica que buscam ser
comuns em todas as unidades de um território, é indicativo da construção
de uma memória coletiva.
O recorte temporal inicia-se em 1919, ano em que o autor executou sua
primeira viagem por Minas Gerais, que deu origem ao seu interesse em

Teoria e contexto
viajar pelo Brasil para o desenvolvimento de estudos etnográficos. Os
roteiros de viagem, iniciados em Minas Gerais, tiveram o sentido de
incorporar as diversas regiões ao projeto nacional modernista, procurava-
se estabelecer a unidade nacional através da cultura. É o conceito de
desgeografização sintetizado em Macunaíma. Na representação do

Ciência & Conservação


anti–herói, Mário buscou a síntese do brasileiro através de sua memória
materializada nas lendas, tradições, costumes, epigramas.
O ano de 1938 encerra a atuação no Departamento Municipal de Cultura
de São Paulo e o espaço investigativo desse artigo. Esse recorte se justifica
pela trajetória desenvolvida por Mário entre suas diversas viagens, a
proposta e o universo modernista e a apropriação e uso de suas idéias
como mecanismo legitimador da política nacional do Estado na década de
30. Aqui, a consciência nacional e a idéia de nação ganham os contornos
de uma elite intelectual preocupada em reinventar o Brasil.
As fontes primárias utilizadas são as correspondências trocadas entre Mário
e Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Henriqueta Lisboa, Murilo Miranda
e Prudente de Moraes Neto. Essas fontes compõem um repertório que
transita entre a literatura e o documento histórico. Essas características são
frutos da veia literária do escritor e da consciência do papel documental
pelo intelectual. Prova disso é sua determinação de que as cartas recebidas
por ele e guardadas em pastas permanecessem fechadas à consulta e à
publicação durante cinqüenta anos após sua morte (ANDRADE, 2001).
Essa foi sua forma de resguardar a intimidade alheia exposta no objeto
histórico produzido.
A correspondência enviada por Mário de Andrade recolhe fortes diálogos
e espelha a recepção de suas idéias pelos interlocutores. A correspondência 108
recebida é composta por cópias de cartas que demonstram o interesse de
Mário em documentar determinadas situações e de fazer história.
Esse intelectual que cultua a discrição, ao vedar a consulta
às suas cartas ou no gesto de retirar, cortando, uma
palavra ou um fragmento em uma folha recebida, caminha
harmoniosamente ao lado do defensor do patrimônio
cultural, quando apõe notas esclarecendo situações,
identificando correspondentes e completando datas, de
modo a indicar que ele preservou esses documentos porque,
sabendo-os de grande importância, desejava, mais uma vez,

Teoria e contexto
servir, partilhar conhecimento (ANDRADE, 2001).

A partir do século XIX, a abolição da escravatura, o advento da República,


a introdução da mão de obra imigrante, o processo de industrialização e
urbanização, constituíram e sinalizaram o processo de modernização do
Brasil. Os anos 20 são simbólicos na história política e cultural brasileira

Ciência & Conservação


por sintetizarem os desdobramentos destas transformações através
da legitimação da sociedade de classes no Brasil e da formação de uma
burguesia ligada ao setor cafeeiro e industrial. Encontra-se aí a gênese
do Brasil moderno, que contou com os esforços de intelectuais em
compreender a nação e a cultura brasileira.
Os ideais literários, assim como as demais ambiências da sociedade,
manifestaram o desejo de acabar com as estruturas passadistas da
República Velha. A arte pura e desinteressada foi abandonada por uma
nova linguagem que exprimisse a realidade nacional. Esse projeto se
encontra no cerne do movimento modernista, que pretendia romper com
a linguagem que refletia a realidade política do antigo poder oligárquico.
Como ponto de partida seria necessário o desenvolvimento de uma arte
brasileira em formação. A idéia não era substituir os velhos modelos e
antigas técnicas artísticas por novidades, mas pela pesquisa incessante e
desprecoinceituosa.
A brasilidade idealizada pelos modernistas, ponto de partida da curiosidade
de Mário, constitui a matéria-prima para a sua busca pelo registro e
preservação do patrimônio para a construção de uma cultura nacional.
Sua trajetória à procura da ontologia do brasileiro trouxe em seu bojo a
premissa de que a memória e a tradição são fundadores das manifestações
artísticas nacionais (NOGUEIRA, 2005). 109
Em 1919, Mário despertou para a valorização do patrimônio, ao partir
em viagem para Minas Gerais em busca da tradição, indo ao encontro
do passado arquitetônico colonial. Do itinerário dessa primeira viagem,
sobressai o desejo de Mário de conhecer o poeta simbolista Alphonsus
Guimarães e observar a herança colonial barroca. Deslumbrado com a
riqueza da arte colonial religiosa declarou que sua missão seria classificar
o fóssil que havia encontrado. Escreveu, então, Arte Religiosa do Brasil
(ANDRADE, 1993), que enfatiza a importância do barroco como motivo

Teoria e contexto
de inspiração para a arte nacional moderna. Essa primeira iniciativa relativa
à tentativa de Mário de criar uma tipologia histórica da arte colonial
manifesta seu interesse pela memória nacional.
No ano de 1924, organizou-se a viagem da caravana paulista, composta por
Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e seu filho,

Ciência & Conservação


Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, René Thiollier, Godofredo da Silva
Telles e Blaise Cendrars, que teve como objetivo o experimentalismo
estético. Seu principal resultado foi a projeção de Minas Gerais na rota
da modernidade. E, a partir daí, a proposta modernista assumiu a ampla
dimensão de projeto de cultura nacional, encabeçado por Mário de
Andrade. A cultura nacional passou a ter enfoque político.
Os membros da caravana tomaram consciência do desconhecimento da
cultura brasileira. Aleijadinho e Ataíde passam a representar um foco de
resgate obrigatório para a construção de uma trajetória da arte e cultura
nacionais. É da necessidade de uma revisão do acervo tradicional que
podemos encontrar nas problemáticas modernistas a preocupação com o
patrimônio cultural.
A tensão entre sensibilidade artística e a missão de formar uma cultura
brasileira livre de regionalismos e de influências externas passa a ser
identificada a partir deste momento. Segundo Mário, toda tentativa
de modernização implicaria a passadização da coisa que se pretende
modernizar. Tais preocupações colocaram as tradições no centro da
discussão, o passado e seus desdobramentos singulares receberam a
importância de formativos do particular.
As cartas de Mário de Andrade, testemunhas de sua trajetória, são
demonstrativas da importância que o autor e pensador da cultura brasileira 110
deu ao resgate da tradição cultural do país como forma de preservar e cultuar
sua memória. O autor não descartava a idéia de estar fazendo história e
invocava a correspondência como fonte de pesquisa substancial para seus
estudos. Em carta a Anita Mafaltti chegou a afirmar que “Tudo será posto
a lume um dia, por alguém que se disponha realmente a fazer história. E
imediato, tanto correspondências como jornais demais documentos não
opinarão como nós, mas provarão a verdade” (MATILDES, 1998).
As cartas entre Mário e Manuel Bandeira ilustram a perspectiva de memória
desenvolvida pelo autor na década de 20, além de aferir o que Mário e seus

Teoria e contexto
companheiros modernistas estavam pensando e fazendo naquele tempo.
Com o poeta desenvolveu uma amizade sincera e devota através das
cartas, mesmo antes de se virem pessoalmente. De 1922 a 1935, Manuel
foi fiel correspondente de Mário, aparentemente o único a conhecer seus
pensamentos mais íntimos. Mário dava inclusive notícias de sua máquina

Ciência & Conservação


de escrever, Manuela, em homenagem ao correspondente.
Meu querido Manuel, hoje és, e não te ofenderás com a
metáfora, és uma propriedade minha. És uma fazenda
que eu comprei. Comprei com minha alma. O que prova
que não foi propriamente uma aquisição: foi troca. Creio
poder passear, de pijama, com a simplicidade desvestida
dos meus sentimentos nos carreadouros do meu cafezal.
Tenho inteira confiança em ti. Confiança ensilvada de amor
e reconhecimento(ANDRADE, 2000).

Posteriormente, Mário aumentou seu leque de correspondentes e passou a


se manifestar de forma mais aberta com os antigos interlocutores. Com o
avançar do tempo precisou dividir seus sofrimentos e sua doença, da qual
se queixou durante toda a vida, com o maior número possível de amigos.
Mário de Andrade, durante o início da década de 20, vivia do montante de
artigos escritos. Sua condição de indivíduo de classe média, diante de seus
companheiros modernistas pertencentes às elites paulistas, foi marcante
em suas idéias e elaborações. É provável que esta seja a principal causa da
diferenciação entre sua trajetória e a de seus companheiros e, também, o
motivo de muitos dos conflitos no campo intelectual, que deram origem a
calorosas discussões. Em carta ao amigo, Manuel Bandeira, em 19 de maio
de 1924, expõe suas angústias:
111
Creio que o que está me fazendo mal são as companhias.
Meu grupo, amigos, camaradas, todos ricaços, sem
preocupações. Há um eterno conflito entre mim e eles.
Isso deprime. Creio que me conheces: sou incapaz de
invejas dessa natureza. Deus lhes conserve a riqueza. Mas
há conflito (NOGUEIRA, 2005).
No que diz respeito às perspectivas sobre a memória, inicialmente, Mário
apresentou observações a partir de seu universo particular e pessoal, da
memória individual e recente, relacionada ao cotidiano. Em carta a Manuel

Teoria e contexto
Bandeira, em fevereiro de 1923, comenta:
tendo perdido tantas coisas no carnaval, não perdi a máquina
fotográfica, antes cinematográfica do subconsciente. Aqui
estou na vida cotidiana. Pois não é que ontem começaram
a se revelar as fotografias e fotografias dentro de mim!

Ciência & Conservação


Pois não é que, no écran das folhas brancas, começou
a se desenrolar um filme moderníssimo dum poema!
(ANDRADE, 2000)

Além desta perspectiva, neste período, Mário desenvolveu a busca por


uma memória, síntese dos acontecimentos simbólicos na história política
e cultural brasileira, a partir da proposta modernista. Mário buscava a
fruição do momento artístico do modernismo europeu, mas conclamava
a memória visual local brasileira, que deveria ser tematizada pelos
modernistas. Em carta a Tarsila do Amaral, de 15 de novembro de 1923,
manifesta sua preocupação:
Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswaldo,
Sérgio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris
como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi!
hi! hi! Choro de inveja! Mas é verdade que considero vocês
todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na
epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro
de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de
criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona
Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não há
arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA
VIRGEM. Criei o matavirginismo. Sou matavirginista.
Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima
Tarsila precisam. (ANDRADE, 2001) 112
Em fins da década de 20, Mário apresentou opiniões que refletem a
experiência vivida nas viagens. A perspectiva passadista, de recuperação
da trajetória de uma memória cultural e artística brasileira, encontrou eco
na figura de Aleijadinho. Em carta a Manuel Bandeira em 31 de março de
1928:
Como achou o Aleijadinho. Eu por mim tenho cada vez
mais admiração por ele. Acho mesmo que é um verdadeiro
gênio. Você reflita no tempo nas condições dele e dentro

Teoria e contexto
da paisagem mineira, a solução de igreja que o Aleijadinho
inventou e me diga! É extraordinário (...). Aquilo é mesmo
a maior das maravilhas da escultura brasileira e se fosse na
Europa, não vê que o Aleijadinho havia de estar assim sem
já um dilúvio de monografias sobre! (ANDRADE, 2000).

A década de 30 é um marco da ação do Estado para as coisas da cultura

Ciência & Conservação


com a entrada destes intelectuais, os modernistas, na repartição. É em
torno de 1927, que Mário participa das primeiras reuniões do Partido
Democrático em companhia de Paulo Duarte. Via na articulação com a
classe política a possibilidade de colocar em prática a idéia de construção
de uma identidade nacional. Foi nessa conjuntura que muitos intelectuais
do movimento modernista viram nas propostas do Partido Democrático
a possibilidade de construção da nação agenciada pelo Estado. Deveriam
participar do governo, para realizar suas propostas com o dinheiro público.
Segundo Antônio Cândido, esse período é caracterizado pela “rotinização
do Modernismo” (CÂNDIDO, 2000).
É interessante observar que essas iniciativas de organização da cultura
por projetos públicos se reuniram em torno do partido contrário ao
projeto varguista na disputa de 1932. O Partido Democrático ocupava
a prefeitura de São Paulo, centro econômico e de grande efervescência
cultural. Além disso, as representações de Brasil dos modernistas e de
Vargas se aproximavam. Partidos políticos adversários não impediram a
aproximação de idéias convergentes.
Segundo Geertz, certas idéias surgem com ímpeto no panorama
intelectual, são utilizadas em cada conexão, para todos os propósitos até
perderem seu status de novidade e tornarem-se parte do suprimento geral
dos conceitos teóricos dos indivíduos. “Se foi na verdade uma idéia seminal, ela 113
se torna, em primeiro lugar, parte permanente e duradoura do nosso arsenal intelectual”
(GEERTZ, 1978). Assim, a década de 30 assistiu ao crescimento das
práticas literárias e artísticas com a transformação das manifestações
dos grupos de vanguarda em padrão da época e a absorção das práticas
iniciadas na década anterior.
Em 1936, Mário de Andrade, a pedido do ministro da Educação e Saúde
Pública, Gustavo Capanema, elaborou o projeto que serviu de base para
o decreto-lei 25/37 que deu origem ao Serviço do Patrimônio Histórico

Teoria e contexto
e Artístico Nacional – SPHAN. Capanema buscava colocar-se acima
de disputas partidárias e, assim, foi o responsável pela participação
instrumentalizadora de Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de
gabinete, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa Lobos, Cecília
Meireles, Lúcio Costa, Vinícius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco,

Ciência & Conservação


Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade na estrutura
política getulista. Estes incorporaram ao governo a noção de patrimônio
concebida como processo de construção da nação, vista como base da
identidade nacional.
Quando da elaboração do anteprojeto para o Iphan, a perspectiva a respeito
da memória elaborada por Mário de Andrade envolveu a teorização do que
seria e de quais os mecanismos para preservação do objeto de memória,
o patrimônio. Constituindo-se patrimônio histórico e artístico nacional “o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por
seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, como se
apresenta no Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.
De nítida orientação etnográfica, pode-se vislumbrar uma perspectiva
antropofágica de cultura, tendo em vista a preocupação de Mário em
apreender os processos de constituição e reinvenção dos elementos que
compõem a memória coletiva informadores de nossas matrizes européias,
africanas e ameríndias. Nas oito categorias de arte que fundamentam
sua concepção de patrimônio, incluía, entre arte arqueológica e a arte
ameríndia, os fetiches, instrumentos de caça, de pesca, de agricultura,
indumentárias, vocabulário, cantos, lendas, magias e culinária. Entre as
manifestações da arte popular definia a cerâmica em geral, arquitetura
popular, cruzeiros, capelas e cruzes mortuárias de beira-de-estrada, 114
jardins, paisagens, música popular, contos, histórias, lendas, superstições,
medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas.
Envolver os diferentes setores da opinião pública na lógica do Estado foi
essencial para a construção de uma propaganda governamental sistemática.
Para alargar as bases sociais do poder e restringir a área de tomada de
decisão, o controle do meio social é uma aposta importante na intenção
de obter consenso, ativo ou passivo (ROLLAND, 2006).
Em 1936, Mário foi convidado a exercer o cargo de diretor do Departamento

Teoria e contexto
de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo. A aceitação manteve
a perspectiva de sistematizar o credo modernista, porém as cartas dos
últimos anos apresentam um intelectual cético em relação aos antigos
companheiros e angustiado pela política autoritária do Estado Novo. Seu
engajamento foi, portanto, marcado pela aflição e reação à idéia de que

Ciência & Conservação


estaria colaborando com o poder vigente. Ao assumir o cargo confessou
que havia percebido a possibilidade de suicídio satisfatório e se suicidou
(ANDRADE, 1981).
Em maio de 1938, foi afastado do Departamento de Cultura, acusado de
má administração de verbas. Foi obrigado a deixar São Paulo, mudando-se
para o Rio de Janeiro, e abandonando o curso do projeto de melhoria do
nível cultural e artístico do país.
Vivia-se a centralização autoritária do regime de Getúlio Vargas e o início
da Segunda Guerra Mundial. Revoltado Mário esbravejava contra as
ditaduras e o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, acusando
o governo de agir arbitrariamente e prender pessoas sem critério algum.
Em carta a Henriqueta Lisboa, no ano de 1940, Mário afirmou:
Estou sofrendo menos hoje, os jornais noticiaram a saída
da cadeia de vários amigos meus e me sosseguei mais um
bocado. Mas cresceu em mim um ódio medonho. A notícia
foi fornecida pela própria polícia. Foram soltos porque se
averiguou que não havia nada contra eles!!! Com o cinismo
das ditaduras, dos totalismos, dos fachismos (sic) a polícia
confessa isso! Desmantela-se uma família, se assombra de
susto uma sociedade inteira, se martiriza centenas de mães,
mulheres, filhos, manos, amigos na defesa de quê, meu
Deus! De um regime? De uma safadez? De um homem? 115
Sim, especial e principalmente de um homem; se avacalha,
se acanaliza centenas de pessoas e de organismos familiares,
só para prevenir a serventia hipotética de um homem que
está no poder!!!(ANDRADE, 1991)

Em sua maturidade, Mário passou a não redimir sua trajetória dentro


do movimento modernista em que foi um esteta voltado à pesquisa
e ao experimento artístico. A utilização do conceito de memória
progressivamente como individualização, busca de identidades, mecanismo
de preservação, cedeu lugar ao amargor de não ter imprimido em sua obra

Teoria e contexto
a luta por grandes causas políticas. Em 1942, ao fazer um balanço sobre
o movimento modernista, Mário chegou a afirmar “Não me vejo uma só
vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando
muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz”
(ANDRADE, 1974).

Ciência & Conservação


Considerações finais
A memória não é somente um meio de criar vínculos ou consagrar a
continuidade, mas, também, uma busca de recriar a origem e para isso
é necessário lidar com a instabilidade das imagens e com o risco do
desaparecimento ou ficções de conservação. A angústia gerada pela perda
dos signos de cultura se extravasa na preservação, impulsiona a mudança
da memória. Em toda sua trajetória, Mário conceitua essas questões e
estabelece propostas de conservação, inicialmente, através da perspectiva
modernista e, posteriormente, com o repertório oferecido pelo Estado
Novo.
Mário de Andrade lidou e reelaborou suas práticas através das experiências
vividas. Desde a Semana de Arte Moderna, com a visualização da obra
de arte como fato estético e do poema como resultante das projeções
individuais; das viagens de descoberta do Brasil e das viagens etnográficas,
através da consciência da necessidade de participação do intelectual nas
vivências de seu tempo; até a absorção pelo Estado e a consciência da
função social da arte. Aí se centraliza a hipótese proposta, o conceito de
memória e suas propostas para a preservação dessa memória nacional
procurada, construída, reestruturada se modificaram durante sua trajetória.
A experiência foi mecanismo responsável pela impulsão de mudanças na 116
trajetória e na consciência de seu papel social.
___________
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Teoria e contexto
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Ciência & Conservação


118
Da Arte da Restauração à Ciência da
Conservação: a construção histórica e

Teoria e contexto
deondológica do profissional voltado à
acervos em papel

Aloisio Arnaldo Nunes de Castro

Ciência & Conservação


Doutorando PPGA-EBA-UFMG
Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo
Este artigo pretende analisar o perfil histórico e conceitual do profissional atuante na
conservação e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro. Para tanto, faz-se a
contextualização histórica da conservação e restauração de acervos no Brasil, investigando
origens, influências históricas, sociais e culturais. Na perspectiva de análise de Pierre
Bourdieu, enfoca o conservador-restaurador como “ator social”, bem como a maneira com
que as práticas e narrativas preservacionistas são construídas, legitimadas e apropriadas
pelos agentes e instituições sociais.
Palavras-chave: História da Conservação, Epistemologia, Conservador-Restaurador,
Papel, Documentos Gráficos

Abstract
This paper analyses the historical and conceptual profile of the professional whose work involves conservating
and restoring paper collection in Brazil. With this end in view, a historical contextualization of conservation
and restoration of collection in Brazil is presented seeking out the origins and the historical, social and
cultural influences. From the perspective of Pierre Bourdieu’s analysis it focuses on the conservator-restorer
as a “social actor” as well as the way by which preservationist practices and narratives are constructed,
legitimized and appropriated by the social institutions and agents.
Keywords: History of Conservation, Epistemology, Conservator-Restorer, Paper, Graphic Documents.

As reflexões apontadas neste estudo procuram delinear, em perspectiva


diacrônica, uma breve radiografia do profissional atuante na conservação 119
e restauração de acervos em papel no âmbito brasileiro, investigando o
perfil de formação, formas de conduta, bem como a participação deste
sujeito na construção do espaço social preservacionista.
Ao longo das últimas décadas do século passado, esperou-se dos
conservadores-restauradores de bens culturais, o domínio das técnicas
intervenção no bem cultural deteriorado, o estudo científico sobre a
constituição material dos bens culturais, assim como o conhecimento
dos procedimentos metodológicos de conservação preventiva. Todavia, o
debruçar sobre o conhecimento acerca da história da própria disciplina em

Teoria e contexto
que trabalham ou em que pesquisam - em suas distintas temporalidades
– ainda não pôde ser constatado no âmbito preservacionista ou no meio
acadêmico. Nesse sentido, como bem assinalou Beatriz Kühl em seus
estudos sobre história e ética da conservação, as ações cotidianas de
conservação e restauração, compelidas por razões de cunho pragmático,

Ciência & Conservação


dedicam pouco tempo à análise dos princípios teóricos que regem as escolhas
dos meios técnico-operacionais que utilizamos para atingir os objetivos da
preservação. Portanto, muitas questões teóricas são negligenciadas e, de
outra parte, a fé cega ao tecnicismo demarcado nas últimas décadas pode,
muitas vezes, culminar em intervenções equivocadas1.
Assim, aponta-se para a necessidade de uma discussão mais aprofundada
no que diz respeito ao estudo dos critérios teóricos, históricos e éticos que
norteiam as ações de conservação e restauração dos bens culturais móveis,
em particular aquelas demarcadas no cenário preservacionista brasileiro.
Do artista-restaurador ao pós-graduado em Ciência da Conservação, esta
pesquisa busca identificar os contextos históricos nos quais os atores sociais
dedicados à conservação e restauração de acervos em papel forjaram a sua
atuação profissional, bem como objetiva examinar a formação e capacitação
profissional, as atribuições e os princípios éticos que nortearam suas ações
ao longo do tempo. Numa estratégica de investigação dos interstícios,
das narrativas e representações culturais2 preservacionistas, este estudo
enfoca o processo de desenvolvimento semântico e o perfil conceitual do
profissional brasileiro atuante na conservação e restauração quais sejam:
“conservador de pinacoteca”, “ajudante de conservador”, “conservador”,
“conservador-restaurador”, “conservador de biblioteca”, “técnico-
restauradores”, “conservador do patrimônio histórico e artístico”,
“restaurador de livros e documentos”, “técnico em assuntos culturais’, 120
“conservador-restaurador de bens culturais móveis” e, por fim, “cientista
da conservação”.
Tendo em vista a construção do recorte temático apresentado, as
categorias analíticas com as quais Bourdieu pensa a sociedade são adotadas
como viés interpretativo. Desse modo, temos a opção de colocar em
paralelo os conceitos de campus e habitus com a trajetória e a construção
do pensamento preservacionista brasileiro. Para Bourdieu, a sociedade é
configurada por vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos

Teoria e contexto
por regras próprias3. O conceito de habitus propõe identificar a mediação
entre o indivíduo e sociedade. Habitus é, então, “uma forma de disposição
à determinada prática de grupo ou classe, ou seja, é a interiorização de
estruturas objetivas das suas condições de classe ou grupos que gera
estratégias, respostas ou proposições objetivas para a resolução de

Ciência & Conservação


problemas postos de reprodução social”4.
Desse modo, os conceitos de campus e habitus são utilizados com ferramentas,
como fundamentos metodológicos na investigação e no deciframento do
espaço social demarcado pela preservação do patrimônio cultural, bem
como para o entendimento do percurso deontológico do profissional da
conservação e restauração de acervos em papel.
Situado – na arena preservacionista - o campo de conflito, de disputa,
da deterioração versus preservação, do efêmero versus permanência, da
obsolescência versus modernidade, da memória versus esquecimento,
poderíamos indagar à luz do pensamento bourdieusiano: Quem são
estes atores sociais que se dedicam à preservação do patrimônio cultural
constituído por acervos em suporte de papel? O que eles fazem? Como eles
se articulam (jogam) dentro do campo social? Que capital eles apresentam?
O habitus faz com que o indivíduo eleja preferencialmente grupos que
compartilham das mesmas escolhas, agrupando-os a partir do capital que
os mesmos dispõem. De acordo com Bourdieu, “os agentes constroem
a realidade social; sem dúvida, entram em lutas e relações visando impor
sua visão, mas eles fazem sempre com pontos de vistas referenciais
determinados pela posição que ocupam no mesmo mundo que pretendem
transformar ou conservar”5. Desta forma, os conservadores-restauradores
de acervos em papel poderiam ser categorizados como atores sociais e,
assim, munidos do capital intelectual (conhecimento, técnica, códigos 121
culturais) e do capital social (relacionamento e redes sociais) agrupam-se
em torno da problemática da preservação do patrimônio cultural.
Num exame epistemológico, encontramos, na literatura dos oitocentos,
várias referências que fazem alusão à prática da “Arte da Restauração”.
Em 1846, é publicada a obra Essai sur l´art de restaurer les estampes et les
livres, autoria de Alfred Bonnardt que apresenta a “arte de restaurar”, sob
forma de receituário, com a descrição de variados métodos de remoção
de manchas, clareamento de papel e de reconstituição de gravuras e livros

Teoria e contexto
raros6. No ano de 1853, o restaurador do Museu do Prado, Vicente Poleró
y Toledo, publica a obra “Arte da Restauração’, na qual defende o conceito
de que “la restauraciòn és hermana cariñosa de la pintura” e, neste sentido,
o artista-restaurador deveria ter, além dos dotes artísticos como o domínio
do desenho e da mistura de cores, “perseverança e força de vontade”,

Ciência & Conservação


para praticar a “arte da restauração”, então desenvolvida nos porões dos
museus europeus7. Manuel de Macedo, conservador do Museu Nacional
de Belas Artes, em Lisboa, publica, em 1885, um livro de conservação e
restauração de pinturas e gravuras - que se incumbe de divulgar “noções
e preceitos da arte de restaurar” - no qual designa a restauração como
“apenas um ofício” e que “exige um conhecimento cabal dos processos
de pintura”. Ademais, Macedo, ao definir o perfil do então restaurador,
salienta que o retoque “constitui a parte artística de mister do restaurador,
pois o bom restaurador não pode deixar de ser um pintor consumado e
possuidor de talento”.
Reflexos desta concepção de restauração podem ser observados no
cenário brasileiro, no período correspondente ao Segundo Reinado,
conforme evidenciam os registros encontrados na Academia Imperial de
Belas Artes. Em 1855, Manuel Araújo Porto-Alegre, apoiado por D. Pedro
II, iniciou uma ampla reforma de modernização na Academia Imperial
de Belas - AIBA, buscando ajustar a instituição aos progressos técnicos
assinalados nos oitocentos, conhecida como Reforma Pedreira. Dentre
as várias ações inovadoras realizadas, Porto-Alegre instituiu o cargo de
“Restaurador de quadros e Conservador da pinacoteca”, disponibilizando
uma vaga correspondente. Tal iniciativa exemplifica, de modo pioneiro,
a inserção do profissional nos quadros de uma repartição pública do
governo, visto que não se consta a presença do referido funcionário nos 122
estatutos anteriores da instituição. Nesse contexto, há que se considerar a
possibilidade de que Porto-Alegre, durante a sua temporada de estudos na
Europa tomara conhecimento da “Arte de restaurar”, praticada em centros
franceses. Como se pode interpretar, inicia-se, portanto, a construção do
espaço social do profissional conservador na esfera pública. Dentre as suas
funções o “Conservador da Pinacoteca” deveria “fazer manter o asseio e
a ordem da Pinacoteca (...)” ou seguir a orientação que “A Pinacoteca
deve ser conservada sempre no maior asseio possível e será franqueada
diariamente a qualquer pessoa, ainda mesmo estranha, que a quiser

Teoria e contexto
visitar”8. Depreende-se que o “Restaurador de quadros e Conservador da
Pinacoteca” trabalhava com uma extensa variedade de acervo, inclusive
com papéis, considerando-se que além de pinturas e painéis havia também
desenhos, gravuras e demais técnicas em suporte de papel que integravam
o acervo da pinacoteca9.

Ciência & Conservação


A carência de pessoal especializado nos trabalhos de conservação e
restauração de acervos no âmbito brasileiro, bem como a necessidade
de buscar uma formação específica na Europa, já se fazia notar desde o
Segundo Reinado, conforme se verifica em correspondência, datada de
1859, de Tomás Gomes dos Santos, então diretor da AIBA, dirigida ao
Ministro dos Negócios do Império. Nesse ofício é salientado a necessidade
do candidato em de conhecer “as obras dos grandes mestres da arte e
de aperfeiçoar-se nas ciências das escolas e estudar os novos meios que
porventura se tenha descoberto na arte de restaurar painéis”10. Com vistas
à obtenção dos recursos necessários para o “Restaurador de quadros e
Conservador da Pinacoteca”, observa-se, na estratégia de argumentação
do diretor da AIBA, a ênfase dada à qualificação artística de Carlos Luiz
do Nascimento11 visto que “(...) A falta de um homem especial nestes
conhecimentos se tem feito contra por vezes na Academia, e ninguém
melhor que o Conservador da Pinacoteca, poderia ser aproveitado (...)”.
Mais adiante, a narrativa associa a qualificação artística do pintor aos
traços de caráter e de personalidade “(...) por que o seu talento não vulgar
como pintor histórico e restaurador de painéis, reúne um espírito sagaz e
ilustrado12.”
Como se poder notar nos documentos administrativos da AIBA, a atuação
do Conservador da Pinacoteca na estava dissociada da condição de artista
e do fazer artístico. Nesse sentido, em 1860, Carlos Luiz do Nascimento, 123
“Conservador da Pinacoteca”, é nomeado Cavaleiro da Ordem da Rosa
em razão de suas obras exibidas na Exposição Geral, assim como pela
prestação de trabalhos de restauração da AIBA13.
Outro elemento profissional da conservação e restauração encontrado
na AIBA é o “Ajudante de conservação”. Nos documentos analisados
verifica-se que eram os próprios alunos da AIBA que ocupavam tal posto,
como Belmiro de Almeida, Pereira de Carvalho e João José da Silva14. Tal
constatação contribui para a interpretação de que, sob a perspectiva da

Teoria e contexto
relação mestre e aluno, as atividades de conservação e restauração estavam
presentes no bojo da instituição, integrando-se, assim, à formação dos
alunos.
Nos documentos analisados, observa-se para que a ocupação do cargo de
“Conservador da pinacoteca”, era mister a formação artística, a condição

Ciência & Conservação


de ser artista, não revelando, portanto, qualquer formação específica para
o cargo. Outrossim, nota-se que tal ocupação gozava de certo prestigio
no interior da AIBA, visto que o “Conservador da pinacoteca” ocupava a
terceira posição na hierarquia de pessoal, recebendo vencimentos somente
abaixo dos professores titulares e do diretor do AIBA.
Após a Proclamação da República, em 1890, a AIBA passa a denominar-se
Escola Nacional de Belas Artes – ENBA, ocorrendo a reformulação dos
estatutos da instituição. No que diz respeito ao pessoal administrativo,
os estatutos referem-se à figura do “Conservador”, com o abandono da
nomenclatura “Conservador de Pinacoteca” anteriormente empregada,
apontando o aumento de uma vaga para o referido cargo. Desse modo, a
ENBA passa a contar com duas vagas o que sugere o aumento do acervo
da pinacoteca, bem como a demanda das atividades de conservação e
restauração. Em relação aos deveres do pessoal administrativo, nota-se
que não havia a especialização do “Conservador”, corroborando com o
entendimento de que conservação e restauração de papel realizava-se em
meio às outras categorias do acervo. Desse modo, constata-se o perfil
multifacetado do então “Conservador” que trabalhava com uma extensa
variedade tipológica de acervos, conforme se verifica no detalhamento
das atribuições do estatuto: “(...) a conservação e a restauração dos
quadros, das gravuras e estampas de arquitetura, dos fragmentos de
decorações arquitetônicas, das coleções de esculturas, e outros que lhe 124
serão confiados”15.
Em 1911, ocorrem novas modificações nos estatutos da ENBA.
É interessante notar o surgimento de um grau de especialização,
considerando-se que dentre as duas vagas para o cargo de “Conservadores-
restauradores” uma delas seria destinada para a pintura e gravura, ao
passo que a outra seria para a categoria de escultura. Outro aspecto
observado é a hierarquização dos serviços de conservação e restauração,
estabelecendo-se que “os ajudantes competirão os serviços ordenados

Teoria e contexto
pelo conservador”16.
Ao longo da Primeira República, verificamos práticas realizadas no interior
da AIBA que exemplificam que os profissionais ainda trabalham sob a
égide do conceito de “Arte de Restaurar”. Desse modo, encontramos num
relatório datado em 1919, dirigido ao Diretor da ENBA no Rio de Janeiro

Ciência & Conservação


e assinado pelo “restaurador e conservador” Sebastião Vieira Fernandes17,
uma relação de dezenas de obras de arte (pinturas, desenhos, aquarelas e
esboços) de autoria de Vitor Meirelles que haviam restauradas na “Sala de
restauração desta Escola”18.
Em outros moldes institucionais e distanciando-se do conceito da “arte de
restaurar” observa-se, nas décadas de 1920 e 1930, ações educativas que
tangenciam a formação de profissionais para o trabalho de conservação
e restauração de acervos em papel, prenunciando-se, assim, a adoção
de um caráter mais técnico. No contexto do desenvolvimento de uma
política e de uma ideologia de tendências nacionalistas, se dá a criação
do Museu Histórico Nacional, em 1922, por Gustavo Barroso. Com o
diretor do Museu, Barroso cria o Curso Técnico de Museus com o
objetivo de formar “técnicos-conservadores” para trabalhar com o acervo
deste mesmo Museu, àquela época, já numeroso e eclético. É interessante
observar nas ementas das disciplinas do curso de Museologia a inclusão
do temário da conservação e restauração de pintura, escultura e papel. As
aulas práticas de conservação e restauração eram praticadas nas Seções de
conservação e restauração do Museu Histórico Nacional e Museu Nacional
de Belas Artes19. Observamos na narrativa barrosiana que a restauração da
“relíquia do passado” aproxima-se dos aspectos ditos técnicos e, portanto,
é metaforizada como um ato médico compreendido por dois momentos
distintos: diagnóstico e terapêutica. Outrossim, Barroso esboça o perfil 125
do restaurador como sujeito que deveria possuir duas virtudes essenciais:
paciência e modéstia20.
Em se tratando de acervos bibliográficos e documentais, verificamos,
na década de 1920, a atuação funcionários de órgãos públicos na
sistematização de trabalhos de conservação. Em 1923, é aprovado um
novo regulamento para o Arquivo Nacional no qual surge a denominação
do “Conservador da biblioteca” para o funcionário incumbido do “asseio
das respectivas salas, e de limpeza e conservação de móveis, livros e mapas

Teoria e contexto
(...)”, além da aplicação de inseticidas à documentação contaminada, sendo
seu salário correspondente a um terço do que era pago aos arquivistas. O
relatório do Arquivo Nacional de 1934 faz menção aos “nossos operários
da Oficina deste Arquivo” indicados que são para a prática de serviços
de conservação de documentos. Conforme analisou Adriana Cox Hollós

Ciência & Conservação


em sua dissertação de mestrado, “esses auxiliares não possuíam sequer
o ensino médio concluído”, denotando, por conseguinte, “identidade
artesanal” à preservação documental21.
Na Era Vargas, destaca-se a atuação pioneira de Edson Motta no campo
da conservação e restauração do patrimônio cultural, inaugurando a fase
científica da restauração no Brasil, o que lhe conferiu a denominação do
“Pai da restauração científica no Brasil”. Em 1945, a pedido de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, Edson Motta obtém uma bolsa de estudos pela
Fundação Rockefeller a fim de realizar estágio no Fogg Art Museum22 da
Universidade de Harvard23. Em 1947, Edson Motta retorna ao Brasil e
inicia a organização do Setor de Recuperação da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Em 1948, Edson Motta sistematiza as
atividades de conservação e restauração de papel na Biblioteca Nacional.
É interessante verificar no detalhado relatório dirigido ao então Diretor
da Biblioteca Nacional, Josué Montello, a preocupação do restaurador em
implementar no Brasil o que, provavelmente, foi o primeiro laboratório de
conservação e restauração especializado somente em papel, com a adoção
de metodologia e moldes ditos científicos24. Cria-se, assim, um divisor
de águas no campo da conservação e restauração de papel, contrapondo-
se, portanto, aos métodos calcados na “arte de restaurar” ou aqueles
considerado empíricos, ambos praticados nas décadas anteriores.
Em 1958, é instituída da “Seção de Restauração” do Arquivo Nacional, 126
incumbida de “reparar e restaurar os documentos que com esse fim
lhe forem destinados”25, no entanto, não se verificou na documentação
administrativa a categorização do profissional incumbido de tal tarefa.
Nos anos de 1960, encontramos os cargos de “Conservador do Patrimônio
Histórico e Artístico” e de “Auxiliar de Conservador do Patrimônio
Histórico e Artístico”, lotados na então Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional - DPHAN do Ministério da Educação e Cultura26.
Em 1962, estabeleceu-se a sistematização do “Setor de Recuperação de

Teoria e contexto
Pintura, Escultura e Manuscritos”, subordinada à Divisão de Conservação
e Restauração - DCR27. Deve-se notar, nesse momento, que a restauração
de papel encontra-se incluída sob a denominação de “manuscritos” e
podemos depreender, também, que a restauração de obras de arte em
suporte de papel estaria, provavelmente, inserida sob a denominação

Ciência & Conservação


de “pinturas” do dito Setor. Há que se analisar, ainda, o emprego da
terminologia “Recuperação” do referido Setor, o que denota a atribuição
de significado à atividade profissional muito mais focada, portanto, à
prática e aos métodos de recuperação, reparos curativos do bem cultural
do que propriamente em ações de conservação dos acervos culturais
brasileiros.
No âmbito educacional, o pioneirismo da inserção da conservação e
restauração como disciplina no Curso de Belas Artes da então Universidade
do Brasil, pelo Prof. Edson Motta, é destacado no discurso de formatura
da turma de 1961 da ENBA. Mesclando a relação entre arte e ciência,
Liana Silveira, oradora da turma, alude ao Prof. Edson Motta como “(...)
iniciador, o fundador, o desbravador no Brasil de uma nova ciência dos
quadros: restauração e conservação da pintura”. Mais adiante, em sua
narrativa, a formanda ressalta, em tom de ineditismo, o aprendizado em
“restaurar e conservar as obras dos artistas da pintura, do afresco, da
gravura e do desenho. (...) aprendemos a química das tintas, a composição
dos suportes e a cura do papel para evitar a ação do tempo sobre os
trabalhos executados28.
No que tange à formação de conservadores-restauradores de papel,
verifica-se na década de 1960, dentre as ações do início da gestão de
Renato Soeiro na DPHAN, a elaboração de um projeto encaminhado à
Comissão de Educação da Organização dos Estados Americanos – OEA, 127
relativo à criação de um Laboratório-Atelier a ser localizado no Brasil com
“o fim especial de atender os estudantes oriundos dos países situados na
região sul da América, bem como os trabalhos de conservação a serem
realizados no país”29. Dentre outros acervos, havia previsão para o ensino
de gravuras, livros e documentos, observando-se uma vertente de cunho
tecnicista na listagem de equipamentos indispensáveis à instalação do
Laboratório-Atelier como o pedido de um Laminador Barrow”30, o que
reflete, de fato, a adoção de uma linha americana de restauração de papel.

Teoria e contexto
Em 1973, o cargo de “Conservador do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional’’, juntamente outros cargos do Ministério da Educação e Cultura,
é transformado em “Técnico em Assuntos Culturais”31. Em 1973, dá-se
o nome de “Setor de Conservação e Restauração de Pinturas, Esculturas,
Manuscritos e Códices do IPHAN”.32 Tais nomenclaturas indicam a

Ciência & Conservação


supressão da terminologia “Recuperação” anteriormente adotada na
denominação do Setor pela DPHAN, em 1966. Portanto, a adoção dos
termos “conservação e restauração” indica avanços conceituais na prática
preservacionista e ilustra o perfil do “Técnico em Assuntos Culturais”,
atuante em abrangente variedade tipológica de obras em suporte de papel,
ou seja, gravuras, manuscritos, livros, códices e impressos. No âmbito da
Biblioteconomia, Lindaura Alban Corujeira reclama o lugar científico da
conservação e restauração de papel. Em artigo publicado em 1973, na
Revista de Biblioteconomia autora sustenta que “o empirismo cedeu lugar
a processos técnico-científicos que colocam a restauração dentro dos mais
recentes progressos da ciência e técnica”33.
Em fins da década de 1970, constata-se a mudança de nomenclatura
do “Setor de Conservação e Restauração de Pintura, Escultura, Talha,
Manuscritos e Códices” - para “Centro de Conservação e Restauração de
Bens Culturais”. Tal mudança coaduna as influências do ideário de Aloísio
Magalhães, ocasião em que ele substitui a noção de valor de “patrimônio
histórico e artístico” por “bem cultural”. Por conseguinte, depreende-se
que a política de conservação e restauração não estaria voltada apenas para
objetos de relevância histórica e artística, ao contrário, deveria abranger a
extensa variedade tipológica de bens culturais, dentre as quais se incluiriam
os acervos documentais e bibliográficos 34.
128
É nessa perspectiva de renovação do Setor que, em novembro de 1978,
Maria Luiza Guimarães Salgado apresenta ao Núcleo de Recursos
Humanos do Departamento de Assuntos Culturais – DAC, um estudo
sobre a definição de atribuição de Técnico de Assunto Cultural – Área
Restauração. Há nesse estudo uma descrição detalhada sobre o perfil do
restaurador de papel no qual verificamos o empenho da autora em justificar
a importância da atividade laboral e, conseqüentemente, a reinvidicação do
status e do reconhecimento profissional no contexto do serviço público:
Os técnicos que se ocupam da restauração de papéis

Teoria e contexto
recebem um tipo de formação muito específica, na qual
habilidade manual é fator absoluto para a execução de sua
tarefa, sem falar na vocação inata. A obturação de falhas
numa gravura e eventuais compensações é um trabalho que
exige grande sensibilidade, agudo senso crítico e destreza

Ciência & Conservação


manual. (...) Dentro da conservação e restauração de bens
culturais, é a área mais carente em recursos humanos, pois
requer um número maior de requisitos do que aqueles
que são exigidos em outras áreas da especialização. (...)
As pesquisas científicas efetuadas na área de papéis estão
ligadas de um modo geral ao laboratório científico. Nele,
serão investigados vários fenômenos que atuam sobre a
permanência do suporte (...).

As décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo tecnicismo na conservação


e restauração, nas quais verificamos a ênfase no arsenal tecnológico, o
restauro de massa e a montagem de laboratórios pioneiros nas instituições
detentoras de acervos e nas universidades. Podemos conceber - no
contexto do final da década de 1970 e ao longo das décadas de 1980 e
1990 - a implantação dos laboratórios de conservação e restauração como
a consolidação de um campus específico no qual os atores sociais dão lugar
às suas atividades profissionais, às suas práticas culturais. Nesta fase de
cunho tecnicista, detecta-se a o perfil do conservador-restaurador de papel
voltado para a discussão em torno do diagnóstico do estado de conservação
dos acervos deteriorados, bem como para os critérios, técnicas e
metodologias aplicáveis à restauração dos bens culturais deteriorados. Para
tanto, o arsenal tecnológico, os equipamentos científicos, as instalações e
mobiliários específicos atuam como elementos constituintes de um espaço
simbólico e de afirmação do habitus profissional, do capital intelectual. 129
Nesse sentido, os laboratórios são interpretados como representações
coletivas pois além de atuarem como locus, como arcabouço científico
necessário aos procedimentos científicos da conservação e restauração
dos documentos gráficos, são também legitimadores de uma categoria
profissional que buscava, de modo insistente, um lugar de reconhecimento
no espaço social preservacionista. Por ocasião do 1º. Seminário Nacional
da ABRACOR, realizado em novembro de 1985, foi realizado um
levantamento intitulado “Quadro atual dos laboratórios de restauração
de papéis” no qual é contabilizado 18 laboratórios de restauração em

Teoria e contexto
funcionamento, além do total de 100 profissionais atuantes nos referidos
laboratórios.
Na década de 1990, marcam-se mudanças de paradigmas conceituais
motivadas pelo despertar da conservação preventiva35. É nesse contexto
que as ações da preservação documental pautam-se, notadamente,

Ciência & Conservação


em referências bibliográficas de autores norte-americanos, conforme
evidenciado no Projeto “Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos”
- CPBA36. Desse modo, a adoção da conservação preventiva promoveu
uma revisão nas políticas de trabalho das instituições públicas detentoras
de acervos, na atuação profissional dos conservadores-restauradores, nas
ementas das disciplinas dos cursos de graduação e de pós-graduação e
na pesquisa de técnicas e materiais aplicáveis à conservação preventiva.
Como isso, tem-se a quebra de paradigma, mudando o foco da atuação do
profissional, anteriormente dirigido ao bem cultural deteriorado e agora
à conservação dos estoques informacionais. Outrossim, na perspectiva
contemporânea, estabelece-se a proposição de “compreender a disciplina
Conservação e Restauro no âmbito da Ciência – A Ciência da Conservação
- , procurando não restringí-la apenas à atividade técnica mas percebê-la
enquanto um saber constituído, resultante de paradigmas, de reflexões e do
desenvolvimento histórico, capaz de reunir todas as premissas necessárias
à categoria científica”37.
Em convênio com a Escola SENAI Theobaldo de Nigris, a ABER criou,
em 1990, o Curso de Conservação-Restauração de Documentação Gráfica,
considerado o único em nível técnico na América Latina, verificando-
se a importância da criação do primeiro Laboratório-escola em âmbito
nacional. O curso tem como finalidade preparar auxiliares na preservação,
conservação e restauro de documentação gráfica. Ao longo dos seus 20 130
anos de funcionamento, encontra-se na 32ª turma, tendo formado cerca
de 300 técnicos representantes de diversas regiões brasileiras e de países
vizinhos na América Latina.
Considerações Finais
Não obstante o discurso e metodologia científica que se pretendeu
implementar no Brasil, a conservação e restauração de acervos em
papel no Brasil foi interpretada, ao longo das cinco últimas décadas do
século passado, como uma prática curativa, pontual e intervencionista,

Teoria e contexto
voltada para o bem cultural deteriorado. Em razão da carência de
mão-de-obra especializada, o contexto brasileiro delineou a atuação um
profissional de natureza múltipla, ou seja, esperou-se a sua performance,
simultaneamente, em três grandes áreas da memória cultural expressa no
suporte de papel: acervo bibliográfico, documental e obras de arte em

Ciência & Conservação


suporte de papel. Além disso, o conservador-restaurador de papel era
concebido como um indivíduo paciente, meticuloso e dotado de virtudes
e de habilidades manuais e artísticas – notadamente oriundo da formação
acadêmica em Artes Plásticas - e sua atuação estava caracterizada por
um fazer operacional, bem como por um labor silencioso e isolado em
núcleos de conservação e restauração. Esta prática reducionista deve ser
extinta e atualmente pode-se constatar o direcionamento para uma linha de
menor intervenção, além do chamamento ao diálogo no planejamento de
trabalho norteado, portanto, nos conceitos estabelecidos pela conservação
preventiva. Tal constatação é evidenciada nas ementas das disciplinas de
preservação de papel ministradas dos cursos universitários e nas grades
curriculares dos cursos de graduação e pós-graduação.
Ao percorrer a trajetória do profissional da conservação e restauração
de papel, verificou-se o processo de constituição dos espaços simbólicos
de atuação profissional: desde a Pinacoteca da AIBA, as “Salas de
Restauração” que funcionaram na Escola Nacional de Belas Artes do Rio
de Janeiro na década de 1910, os incipientes ateliês de restauro localizados
nos porões dos museus e na Escola de Museologia sediada no Museu
Histórico Nacional nas décadas de 1940 e 1950, os locais improvisados
como corredores e banheiros desativados nas instituições públicas nas
décadas de 1960 até a implantação dos Laboratórios de Conservação e
Restauração em instituições públicas detentoras de acervos nas décadas 131
de 1970. Por último, a implantação, nas últimas décadas, dos Laboratórios
da Ciência da Conservação e dos Laboratórios de Conservação Preventiva
nas universidades.
Com relação ao modelo educacional, cabe ressaltar que a inexistência de
uma formação sistemática por meio da graduação acadêmica, na área de
preservação de papel, constituiu-se num grave fator que comprometeu,
sobremaneira, o desenvolvimento da disciplina no âmbito brasileiro.
Conforme se pode observar, foram as instituições detentoras de acervos

Teoria e contexto
que, ao longo das últimas décadas, por meio de um ensino informal,
acabaram por oferecer treinamentos práticos, estágios supervisionados
e cursos de curta duração com vistas a suplantar a evidente lacuna
educacional. Todavia, a área apresenta ainda aspectos muito vulneráveis no
campo da formação profissional, o que possibilita o desenvolvimento de

Ciência & Conservação


trabalhos equivocados sob o ponto de vista conceitual e técnico praticados,
mormente, por mão-de-obra inadequada e amadora, comprometendo,
em conseqüência, a integridade o patrimônio cultural. Por outro lado,
as recentes implantações da graduação acadêmica em Conservação e
Restauração, assim como a consolidação de programas de mestrado
e doutorado na respectiva área, contribuirão, em consequência, para a
formação profissional, o desenvolvimento da pesquisa científica e a
aplicação de metodologias específicas em consonância com o país de
clima tropical.
Reclamando os preceitos estabelecidos pela Ciência da Conservação,
observa-se a ampliação das atividades e da atuação do conservador-
restaurador de papel no Brasil, ou seja, muda-se o perfil do ator social
outrora centrado numa ação de caráter micro, para o emergir de um
novo profissional – o Cientista da Conservação - pautado numa visão
ampla, interdisciplinar, comprometida, portanto, com aspectos culturais,
científicos, políticos, gerenciais e administrativos. Assim, como professara
Paul Philippot, o desenvolvimento da restauração só se dará, de fato, na
medida em que o âmbito da sua função cultural seja compreendido e
sustentado pela sociedade38.

132

___________
Notas
1 KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação de Monumentos Históricos. In:
Revista do Patrimônio Cultural. USP: São Paulo, v.1, n.1, pp. 16-40, nov. 2005/abr.206, p.17.
2 CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A História Cultural
– entre práticas e representações, Lisboa:DIFEL, 1990. p.14.

3 SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do “habitus” em Pierre Bourdieu: uma leitura

Teoria e contexto
contemporânea. São Paulo: USP, 2002, p. 64.

4 AZEVEDO, Mário Luiz Neves de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e Conceito de Classe
social em Pierre Bourdieu. São Paulo, 2003, p. 1.

5 BOURDIEU, Pierre. La noblesse d`Etat. Grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les editions
de Minuit, 1989 apud AZEVEDO, Mário Luiz de. Espaço Social, Campo Social, Habitus e
Conceito de Classe Social em Pierre Bourdieu, p. 2.

Ciência & Conservação


6 BONNARDOT, Alfred. Essai sur l´art de restaurer les estampes et les livres, ou Traité sur les
meilleurs procedes pour blanchir, détacher, décolorier, réparer et conserver les estampes, livres
et dessin. Paris: Chez Castel, Libraire Editeur, 1858. 2ª ed..

7 RUIZ DE LACANAL, Maria Dolores. El conservador-restaurador de bienes culturales:


historia de la profesión. Madrid: Editorial Síntesis, As. A,, 1999. p. 167.

8 Decreto nº. 1603 de 14 de maio de 1855 – Da novos Estatutos à Academia das Belas Artes.

9 FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperal


de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v.II, n. 3, jul. 2007. p. 6, 23 Disponível em:http://www.
dezenovevinte.net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm.

10 Documento nº. 866 do Arquivo do Museu D. João VI, Escola de Belas Artes da UFRJ.

11 Pintor histórico, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da AIBA.

12 Idem

13 Documento n.º. 860 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.

14 Documento nº. 4268 do Arquivo do Museu D. João VI - Escola de Belas Artes da UFRJ.

15 Decreto N º. 983 de 8 de novembro de 1890 – Aprova os estatutos para a Escola de Belas


Artes.

16 Decreto n. 8964 de 14 de setembro de 1911

17 Pintor, ocupante do cargo de “Conservador da Pinacoteca” da ENBA.

18 Arquivo Noronha Santos – IPHAN. Série Centro de Restauração de Bens Culturais. Caixa 04,
pasta 05, envelope 04.

19 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Legislação. Ministério da Educação e Saúde, Serviço de


Documentação, Folheto nº. 46: Impressa Nacional, Rio de Janeiro.

20 BARROSO, Gustavo. Introdução à Técnica de Museus. Vol. I, Gráfica Olímpia: Rio de Janeiro,
133
1946. pp. 13-14.

21 HOLLÓS, Adriana Lúcia Cox. Entre o passado e o futuro: os limites e as possibilidades da


preservação documental no Arquivo Nacional. (Dissertação de Mestrado em Memória Social).
Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2006. p. 57.

22 Aberto ao público em 1895, o Fogg Art Museum é o mais antigo museu da Universidade
de Harvard, em Cambridge, Massachusets. O “The Center for Conservation and Technical
Studies” foi criado em 1928 por Edward W. Forbes, então diretor do Fogg Museum e é
considerado o mais antigo centro de conservação, pesquisa e treinamento dos EUA.

23 EDSON Motta – Pinturas. op. cit..

Teoria e contexto
24 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Caixa 11,
Pasta 03.

25 Por meio do Decreto Nº. 44862 de 25/11/1958.

26 Lei Nº. 3780 – de 12 de julho de 1960. Dispõe sobre a Classificação de Cargos do Serviço Civil
do poder Executivo, D.O.U. 12/07/1960.

Ciência & Conservação


27 “Resumo das decisões tomadas nas reuniões convocadas pelo Diretor Geral, Rodrigo Mello
Franco de Andrade, realizadas na sede do DPHAN nos dias 3, 4 e 5 de dezembro de 1962, com
o fim especial de estabelecer normas e planos para ordenação dos trabalhos de recuperação de
obras de arte”. Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Centro de Restauração de Bens Culturais
da SPHAN, Módulo 68, caixa 58, pasta 48.

28 Discurso da oradora da Turma de 1961, proferido na solenidade de Formatura da Turma de


1961 do Curso de Professores da Escola Nacional de Belas Artes. In: Universidade do Brasil.
Arquivos da Escola de Belas-Artes, 12 de agosto de 1962, Número VIII, Universidade do Brasil.

29 Arquivo Noronha Santos - IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN,
Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.

30 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série: Centro de Restauração de Bens Culturais – SPHAN,
Caixa 58, Pasta 48, Documento de 05/02/1968.

31 Decreto Nº. 72.493/ 19 de julho de 1973.

32 Arquivo Noronha Santos – IPHAN, Série Centro de Restauração de Bens Culturais, Módulo
36, Caixa 36, Pasta 2.

33 CORUJEIRA, Lindaura Alban. Métodos de prevenção e eliminação de fungos em materiais


bibliográficos. Revista de Biblioteconomia, Brasília: 1,jan./jun.1973.

34 Arquivo Noronha Santos – IPHAN , Série Centro de Restauração de Bens Culturais


(Laboratório), Módulo 36, Caixa 3, Pasta 2.

35 Cf. GUICHEN, Gaël de. La conservation preventive: un changement profond de mentalité.


Study series, Bruxelas: ICOM-CC/ULB, v.1, nº1. p. 4-5, 1995.

36 Pelo alcance dos resultados obtidos o Projeto CPBA recebeu, em 1998, o Prêmio Rodrigo
Melo Franco de Andrade.

37 FRONER, Yacy-Ara. Princípios históricos e filosóficos da conservação preventiva/ Yacy-Ara


Froner, Alessandra Rosado. Belo Horizonte:LACICOR, EBA, UFMG, 2008. 134
38 PHILIPPOT, Paul. Restoration from the perspective of the humanities. In: Historical and
Philosophical Issues in the Conservation Cultural Heritage. Los Angeles: GCI, 1996, p. 216-
229.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
História da Arte Técnica,
Arqueologia e Arquitetura
135
Teoria e Contexto na preservação em
Arquitetura

Teoria e contexto
Flavio de Lemos Carsalade,
NPGAU-EA-Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO
O artigo discorre sobre as questões epistemológicas da preservação sob a luz da

Ciência & Conservação


fenomenologia para examinar a pertinência dos fundamentos da teoria da preservação
vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história (objetivismo histórico) e artes
(imanência da arte) visando discutir sua validade no campo da preservação e restauro do
patrimônio construído.
Palavras-chave: Conservação e Restauro. Patrimônio Cultural. Preservação

ABSTRACT:
The article discuss about epistemological issues on preservation in function of the phenomenological ap-
proach in order to exam the pertinence of the principles of the actual heritage preservation theory in the
fields of culture (cultural stability), history (historical objectivism) and arts (artistic immanence) in order
to discuss its validity in issues on preservation and restoration of the built heritage.
Key words: Conservation and restoration. Cultural Heritage. Preservation.

Introdução
O surgimento da chamada “disciplina do restauro” se situa historicamente
no final do século XIX, início do século XX, portanto bastante
contaminada pelo pensamento positivista. Influenciadas pelo espírito
da época, as bases mais comuns para a abordagem do problema se
relacionariam, então, prioritariamente ou com questões estéticas ou com
uma tentativa de aplicação de um método científico. Nos seus primórdios,
se excetuarmos a presença crítica de Ruskin (Inglaterra, 1819-1900),
todo o resto da evolução inicial do restauro parece se dirigir por uma
matriz objetiva, característica da época. Mesmo o idealismo esteticista de 136
Viollet-le-Duc (França, 1814-1879) é marcado por uma forte concepção
“científica” baseada em uma suposta unidade estilística, resultante da
compilação iluminista, enciclopedista e sistematizada que permitia a
compreensão do modus faciendi de cada forma de expressão artística. Os
que o sucederam, conforme consta na literatura correlata à história do
restauro (exceção para o austríaco Alois Riegl, 1858-1905), mantiveram a
preocupação de abordar o restauro como ciência, com a mesma e forte
influência positivista. Foi assim com os italianos Camillo Boito (1836-
1914) e Gustavo Giovannoni (1873-1943) que procuraram superar a

Teoria e contexto
preocupação estética de Le-Duc e, influenciados pelo pensamento de
Ruskin, resgataram a importância da história marcando a “ciência” do
restauro com as duas instâncias que até hoje lhe delineiam os eixos, em
grande parte das abordagens: a estética e a histórica. Nessas abordagens,
a instância estética, marcada pelo restauro estilístico da vertente francesa

Ciência & Conservação


procurou tratar as intervenções através de um critério analógico, enquanto
a instância histórica se notabilizou pela indução filológica, cada uma com
seu entendimento do que seria a recuperação da “verdade” do monumento.
Apesar de manter a dupla polaridade estética e histórica, foi apenas com
Brandi que o restauro ensaiou novas posições filosóficas. Cabe, portanto,
neste artigo, lançar algumas luzes sobre a atividade da Conservação e
Restauro (ou da intervenção no patrimônio edificado) liberta dos liames
da ciência e procurar identificar a pertinência da filosofia no seu trato,
notadamente pela matriz fenomenológica.
A chave para o entendimento fenomenológico da preservação nos é
fornecida por Heidegger em “A Origem da Obra de Arte” e por Merleau-
Ponty em “Fenomenologia da Percepção”. Para ambos, a preservação está na
constante “atualização” da obra (atualização como vigência no presente e não
como modernização, é claro). Para Heidegger:
o deixar a obra ser uma obra nós chamamos de preservação
da obra. É somente por essa preservação que a obra efetiva
sua criatividade como presente, isto é, agora: presente no
modo de obra. [...] preservar a obra significa: permanecer
dentro da abertura do ser que acontece na obra”.
(HEIDEGGER, 1975, p. 66-67).

A partir dessas constatações, podemos inferir que a preservação se faz não


na imutabilidade e na cristalização, não na unicidade de conhecimentos 137
aplicados sobre a obra, mas no seu exercício constante, na sua sempre
presente abertura. A abertura “preservada” da obra, no entanto, não está
apenas nela ou no desejo de conhecimento (pro-jeto) sobre ela de quem a
frui. Afinal, a fruição de uma obra preservada não é uma mera experiência
do sujeito ou a obra um mero estímulo. A obra preservada representa
uma abertura que remete à luta histórica do ser contra a ocultação, para
o exercício de sua plenitude, não se restringindo, portanto, a uma mera
fruição estética, o que, no patrimônio, faz somar, ao fruir da obra da
arte, o caráter da historicidade. Para Heidegger, a preservação não está

Teoria e contexto
centrada, portanto, nas características formais e físicas da obra e ele nos
mostra que, quando isso ocorre, não se trata de preservar, mas de uma
simples recomposição da obra, mesmo porque a sua preservação como
obra e a sua transmissão no tempo não é possível por métodos científicos.
A preservação é uma co-criação que se faz a partir da própria obra.

Ciência & Conservação


A realidade da obra é determinada pela natureza do ser da obra. E a obra
não é apenas a sua matéria ou a sua forma. Se ficarmos atentos apenas
a esses elementos, eles, na realidade, escondem mais do que mostram o
que a obra realmente é. O nosso trabalho, como fruidores, é extrair a
obra da matéria: a verdadeira obra é um acontecimento para quem a frui.
De maneira similar, a obra também é o acontecimento do artista, é pelo
trabalho impregnado (preservado) na obra que ele se torna possível como
artista. Por outro lado, também é o trabalho do preservador, necessário à
sobrevivência da obra, que permite a sua preservação, fazendo com que a
origem da obra e sua preservação estejam, portanto, unidas pela própria
obra. A preservação é assim, a manutenção da continuidade expressiva da
obra em sua constante capacidade de abertura de significados. Ora, tanto
o preservador quanto o artista estão unidos pela obra, o que não quer
dizer que o preservador é congenial ao artista, coisa cuja impossibilidade
discutiremos mais adiante. Dessa forma, preservar não é garantir o
acontecimento original da obra da mesma maneira como ela surgiu, mas
garantir o seu acontecimento e o acontecimento da sua verdade, como ela
acontece no momento presente de seu acontecimento.
Essa preservação a que se refere Heidegger, a preservação da abertura da
obra de arte, do acontecimento da verdade, só se aplica àquelas obras que
têm caráter especial, que se diferenciam, no nosso cotidiano, das coisas
meramente instrumentais e que aparecem como uma coisa fundante. E 138
mais do que isso, como cada forma de expressão artística funda a seu modo,
essa preservação diz respeito ao modo de ser específico de cada obra, no
seu modo próprio de acontecer, isto é, segundo a natureza de sua categoria
de arte.
A tarefa da preservação seria, nesse caso, manter a capacidade fundante
da obra, segundo o modo próprio de sua forma de expressão artística:
“Instituir, entretanto, é real somente na preservação. Assim a cada modo
de instituição corresponde um modo de preservação.” (HEIDEGGER,

Teoria e contexto
1975, p. 75).
Conforme vimos, é esse o caráter histórico da obra e por isso ela precisa
da história e da preservação: pela historicidade do ser poder se exercer,
pela possibilidade de criar o objeto que o ser frui em diferentes tempos e
por permitir que a verdade que funda se transmita através dos tempos em

Ciência & Conservação


sua abertura de possibilidades e transformações:
A arte é histórica e sendo histórica é a preservação criativa
da verdade da obra. A arte acontece como poesia. A
poesia é instituidora no triplo sentido de conferir, basear
e começar. A arte como instituidora é essencialmente
histórica. Isso não significa simplesmente que a arte tem
uma história no sentido externo de curso do tempo, mas
também aparece ao longo de muitas outras coisas e nesse
processo muda e passa e oferece aspectos mutantes para a
historiologia. A arte é história no sentido essencial de que
ela baseia a história. A arte deixa a verdade se originar. A
arte, fundando a preservação, é a fonte que lança a verdade
do que é, na obra.” (HEIDEGGER, 1975, p. 77).

Assim, para Heidegger, a arte está na história e a história está na arte. A arte
está na história porque se preserva através dos tempos e, como história,
também se transforma. E a história está na arte porque esta permite a
abertura do tempo para que ela se torne presente. Para a fenomenologia,
portanto, não há uma instância histórica e uma instância artística como
entes separados a serem preservados distintamente. Preservar um significa
preservar o outro e ambos precisam ser preservados para que possam
acontecer no presente.

Após este exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande 139


dificuldade epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto
de aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra
restaurar, de origem latina, traz consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar,
recompor. Ora, pelo que vimos até agora, estas são ações impossíveis com
relação ao bem patrimonial, posto que, ao intervirmos na sua matéria, seja
na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos recuperando, mas
modificando-o; isto sem contar o fato de que, pela ação da tradição, ele já
nos chega alterado e, pela ação cultural, tematizado e com sua significação
“original” perdida. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de serem

Teoria e contexto
conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre
complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo
que preservar significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através
do tempo. A interligação biunívoca entre as práticas de preservação e
restauração, portanto, só teriam sentido se para a transmissão do bem - e

Ciência & Conservação


o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua recuperação, o que já
vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar, portanto,
se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição
causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia
totalmente o seu potencial de significação. Restaurar, portanto, parece ser
uma ação interventiva que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do
presente através da recuperação de suas próprias perdas e é, portanto,
sempre um processo de re-significação e daí uma re-criação que se faz
sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.
Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer
efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo,
o que, é claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender,
então, que a ação de restaurar está presente na dimensão existencial do ser,
mas deve ser repensada mais quanto aos seus objetivos do que quanto aos
seus objetos (sobre os quais a História da Restauração sempre versou). No
entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas relacionadas ao objeto
do restauro que estariam liberados os limites de ação do restaurador.
Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos
nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos
“reduzindo” a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com
isso, também redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa
que se nos apresenta neste momento e convém começarmos por algumas 140
distinções conceituais importantes que se dão, por exemplo, entre
preservação e restauro ou entre conservação e restauro, dentre outras.

Conservação e Restauração
A idéia de preservação como é concebida pelo senso comum se liga à
possibilidade de conservação do bem na sua capacidade plena ou com
a mínima deterioração possível, o que nos remete, é claro, quase que
intuitivamente, a vários níveis de ações preservativas, onde a restauração

Teoria e contexto
seria apenas uma delas. No limite, a melhor forma de preservação seria
aquela similar à conservação do papel, ou seja, com uma espécie de
redoma sobre o bem, a qual o protegeria de qualquer intempérie ou ação
do tempo. É claro que essa situação limite também impediria a sua fruição
e, portanto a sua presentificação, função maior do patrimônio. O paradoxo

Ciência & Conservação


da redoma indica bem que o objetivo da preservação do patrimônio não
é a eternização do bem, mas sua presença utilizável através dos tempos.
É dessa discussão que emerge, então, aquele que parece ser o primeiro
consenso entre os técnicos da área: que a conservação é preferível
sobre qualquer outra das formas de preservação. Vamos investigar esse
consenso, mas não sem antes adiantar uma questão que o liga ao paradoxo
da redoma: será que só conservar permitiria o uso contemporâneo desse
bem? Este uso a que nos referimos deve ser entendido de forma ampla,
incluindo os significados que o bem desperta e a liberdade responsável de
quem faz uso do bem. No entanto, mesmo a conservação pode ser vista
sob suspeita quanto à sua suposta neutralidade, a qual o senso comum
coloca como sendo inerente ao processo de conservação. Na realidade, os
próprios teóricos do restauro, embora defendam sempre a conservação
como preferencial, percebem que ela não é tão neutra assim. A princípio,
a conservação é entendida como uma atividade cuja função principal seria
evitar (ou prevenir) a deterioração do bem. Essa conservação pode ser
realizada de duas formas: uma sobre o ambiente ao qual está exposto o
bem (e cujas características poderiam agravar ou não seu deterioro), a qual
comumente chama de conservação preventiva - apesar da redundância de que
toda conservação é, por definição, preventiva; outra, a conservação que se
faz sobre o próprio bem, como a aplicação de vernizes ou antioxidantes,
por exemplo. Seja de uma forma ou de outra, nenhuma conservação 141
tem eficácia de 100 % e muitas vezes elas podem até mesmo causar a
deterioração que se quer evitar. Assim, uma aspiração mais realista quanto
à conservação, em qualquer uma de suas duas modalidades, é sempre a de
ter o menor número de alterações durante o maior tempo possível. Sob
outro ponto de vista, especialmente na segunda modalidade – e porque
esta incide diretamente sobre o bem – a conservação muitas vezes se
confunde com a restauração, como por exemplo, no caso das pinturas,
quando se procede a um re-entelamento que recupera deformidades da
tela ou, no caso do papel, quando se recupera sua condição física, ou ainda

Teoria e contexto
no caso de pinturas murais, onde se trabalha diretamente sobre o reboco.
Para Viñas, o que diferenciaria conservação de restauração seria o critério
de perceptibilidade da intervenção:
[...] A palavra conservação é empregada para referir-se à parte
do trabalho de Restauração que não aspira a introduzir

Ciência & Conservação


mudanças perceptíveis no objeto restaurado; ao contrário
se fala de restauração para referir-se à parte do trabalho
de Restauração que tem por objeto modificar os traços
perceptíveis do objeto. A conservação pode resultar
perceptível, mas somente se ela é tecnicamente inevitável
ou aconselhável: assim os reforços exteriores do Coliseu
de Roma, ou a laminação de papéis muito debilitados que
são recobertos por outras folhas de papel ou de plásticos
de um ou outro tipo são operações de conservação, ainda
que resultem claramente perceptíveis para qualquer um.
(VIÑAS, 2003, p. 22).

Restaurar ou conservar é, portanto, sempre uma questão dialética e atual.


Ela tem seus primórdios no pensamento do inglês John Ruskin, para
quem toda restauração seria sempre uma forma de destruição, sendo
por ele admitida apenas – e eticamente – a conservação. O real pano de
fundo de toda a reflexão ruskiniana é a questão da verdade, a qual seria
corrompida pelo “falseamento” da restauração. A outros homens do seu
século, a posição de Ruskin parecia imobilista. Camillo Boito (1835-1914),
engenheiro, arquiteto e historiador de arte, que também vê na conservação
uma forma de resolver a questão de maneira “científica”. O raciocínio
pragmático de Boito visa superar esse imobilismo, levando-o à ilusão de
que poderia resolver os problemas da arte através do método das ciências.
Esse método, aplicado ao restauro, se fazia de maneira clássica: primeiro 142
uma avaliação do problema, depois uma sistematização classificatória
(baseada, é claro, em generalizações), gerando uma lista de procedimentos
aplicáveis. Ao privilegiar a autenticidade do documento e o método,
Boito se aproximava do homem de ciências de seu tempo, imerso no
espírito positivista que lhe caracterizava. Mas ele era também arquiteto
e, nessa condição, também sofria influência do início da modernidade
arquitetônica, a qual se orgulhava da sua diferenciação estilística radical e
procurava se afirmar por contraste, fazendo com que, portanto, o modo
do restauro arquitetônico de explicitação da intervenção contemporânea

Teoria e contexto
fosse duplamente validado pela ciência e pela Arquitetura. Essa solução
parecia resolver também a problemática colocada por Ruskin e parecia
apontar inquestionavelmente para a conservação, entendendo Boito que
seria sempre melhor consolidar que reparar e depois reparar que restaurar,
a não ser que o seu novo uso, enfim (?), demandasse a restauração. Mas,

Ciência & Conservação


no entanto, mesmo ele próprio reconhecia que, se teoricamente era
fácil distinguir a conservação da restauração, na prática isso não era tão
fácil assim, mas que, no entanto, enquanto a conservação respeitava a
dimensão histórica do bem, pelo restauro se abria a porta para a invasão
na sua “verdade” histórica. Retorna-se, portanto, à questão da verdade,
aquela que assombra a história do restauro desde sempre. No método
de Boito não se resolve, no entanto, a tensão entre a estética e a História,
pois é exatamente nessa tensão que os defensores contemporâneos da
conservação se apóiam para iniciar sua defesa para essa forma de atuação
sobre o bem patrimonial e radicalizar contra qualquer forma de restauro.
Para eles só o que se pode efetivamente realizar é a conservação da matéria,
nunca o restauro. O maior defensor dessa corrente na contemporaneidade
é o italiano Marco Dezzi Bardeschi. Para ele, “[...] hoje, ainda mais que no
tempo de Boito e do seu diálogo imaginário intelectual protoromantico a
um pretenso novo filólogo, a palavra de ordem deve ser conservar, não
restaurar”. (BARDESCHI, 2000, p. 67). Assim, se todo restaurar é um
refazer, a única possibilidade autêntica de transmissão do passado para
o presente e o futuro estaria na conservação da matéria e aí o conceito de
conservação é lançado a um nível ainda mais profundo, não se restringindo
apenas ao tratamento conservativo, mas se confundindo com a própria noção
de preservação, ou seja, preserva-se apenas aquilo que existe realmente, ou
seja, a matéria. O problema de fundo da preservação do bem patrimonial
seria, portanto, a conservação integral da matéria que nele resta, sem
143
nenhuma ação restaurativa, mas sim de manutenção dessa mesma matéria,
quando muito agregando mais matéria, mas nunca a subtraindo.
Na linha desse pensamento, que considera “original” aquilo que se nos
apresenta, como se nos apresenta, é claro que todo restauro é uma forma
de mutação, não importando sua qualificação (estilístico, histórico, crítico,
filológico, tipológico, etc.). Para reverter essa acepção, só poderia ser aceito
hoje um restauro “[...] como atenta e respeitosa obra de conservação, ou
seja de manutenção, que quer dizer a propósito, literalmente (...) garantia

Teoria e contexto
de permanência e de não intervenção sem critério e nem uma displiscente
substituição – reprodução de matéria”. (BARDESCHI, 2000, p. 101).
Dessa forma apresentados, os conceitos de conservação e restauração
não são sequer complementares, conforme o desejo e a suposta prática
de grande parte dos restauradores contemporâneos, expressos como

Ciência & Conservação


recomendações na própria Carta de Veneza, instrumento guia das práticas
de intervenção no patrimônio há décadas. Essa incompatibilidade, a par
das questões técnicas aplicadas, é também, para Bardeschi, verificável do
ponto de vista filosófico, pois é “impossível fazer girar ao contrário as pás
do moinho da história” (BARDESCHI, 2000, P. 377).
O debate sobre a questão da conservação passa, portanto, da questão
técnica e terminológica - onde conservar seria uma ação preventiva e
restaurar uma ação interventiva – para uma questão epistemológica mais
complexa, ligada às idéias de autenticidade, documento, reutilização,
dentre outras que investigaremos a seguir.

Os três paradigmas da Conservação-Restauração


A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi
realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições
sobre o tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século
XIX. A sua teoria se estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a
história e a arte, levando-o a discorrer sobre uma instância histórica e uma
instância artística aplicáveis aos objetos a serem restaurados. Dois conceitos
fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio – a
cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática
contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a
144
serem preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas
com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto
patrimônio.
Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das
vezes relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à
imagem) possibilita também uma separação entre imagem e matéria, a qual
muitas vezes aponta para uma atitude simplista que reduz o trabalho de
restauro a uma mera adaptação da matéria à obra de arte em sua exigência

Teoria e contexto
formal, desconhecendo envolventes da memória e da cultura.
Pelo que examinamos até aqui, parece-nos que duas direções de visão
têm tido influência decisiva na História do restauro, a partir das distinções
entre instância histórica e instância artística, imagem e matéria. A primeira
direção aponta para três paradigmas, quais sejam o objetivismo histórico (a

Ciência & Conservação


matéria como prova inequívoca do passado), a imanência da arte (a imagem
dotada de uma aura única e reveladora, imutável) e a estabilidade da cultura
(a identidade e os costumes como padrões imutáveis caracterizadores de
um determinado povo). Quanto à segunda direção de visão, esta aponta
para certa confusão do que seja a natureza da Arquitetura, Arquitetura aqui
entendida de forma ampla como todo e qualquer agenciamento espacial
feito pelo homem, englobando, portanto, a paisagem, a cidade e o edifício,
se é que é possível separa-los assim. Passemos a examinar esses pontos de
vista.
O objetivismo histórico pode ser abordado sob dois ângulos. O primeiro
diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e o
segundo relativo ao par autenticidade/ verdade, o qual documentaria
inequivocamente a historiografia. Quanto ás questões epistemológicas,
embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de verdade
histórica, ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade
“agregada” aos objetos que elas se confundem com a impossível busca
de recuperar os fatos passados como eles realmente aconteceram,
contrariando a constatação de que o discurso histórico é essencialmente
dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que “demonstrações”.
Por um lado, é impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente
como ocorreram, pois, na realidade, a História agrupa fatos em função do
método e do historiador, sendo, portanto, por um lado, extremamente 145
influenciada pelo momento em que é escrita e, por outro, as fontes que
supostamente “documentariam” objetivamente os fatos podem ter sido
manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela opinião (fontes
jornalísticas) ou ainda pelo filtro do narrador (indeterminação da memória).
Quanto às questões relacionadas ao par autenticidade/ verdade – temas
que por si só já ensejaram congressos e cartas internacionais – podemos
rapidamente dizer que muitas vezes esses conceitos também partem de
uma ilusão sobre um suposto “documento histórico”, objetivo, palpável,

Teoria e contexto
como se também ele não fosse sujeito a manipulações e desvios e sobre
os quais só temos acesso a certas partes de sua própria história. Assim,
temos que a prática tem muitas vezes colocado a sua atenção mais no objeto
de estudo e esquecido do sujeito que o estuda, como se a “verdade” ou
“autenticidade” de um documento ou de um patrimônio não dependesse

Ciência & Conservação


fundamentalmente da interação entre o que é observado e quem o observa.
Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui
um acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e
tem sua origem em um tempo que não volta mais, mas, independentemente
de seu valor de “verdade”, ele é um objeto do passado, com potencial de
expressão próprio. Isto não quer dizer, no entanto, que ele é certamente
o documento comprobatório da história e nem que ele é “original” de
um determinado fato histórico ou de um único momento específico de
criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do
passado, mas sem a aura de um inconteste documento de uma História
“real”.
O ponto de vista da imanência artística entende a obra de arte como provida
de uma “aura” ou de uma expressão metafísica que automaticamente se
revelaria à humanidade com toda a expressividade nela contida, como uma
“epifania”, segundo os dizeres de Cesare Brandi. Sem querer desmerecer
a clara expressividade da obra de arte e a sua consistência própria ou a sua
coerência de totalidade, devemos nos lembrar, no entanto, que as questões
de restauração se aplicam sobre a recuperação da obra de arte e aí entram vários
outros fatores “externos” à obra, tais como seu grau de deterioração, a
importância desta para a cultura dos diferentes grupos sociais em tempos
diversos (aliás como já dizia Riegl em 1903), a legibilidade da obra em
função do deterioro e das diferenças culturais e de formas de legibilidade 146
desejáveis, diferentes formas de tratamento de lacunas, isto tudo sem falar
das vertentes arquiteturais, onde esses problemas se mostram ainda mais
complexos, conforme veremos adiante.
O ponto de vista da estabilidade da cultura trata a cultura como se ela,
responsável pela identidade dos povos, fosse imutável e cuja perda levaria
ao deterioro de uma determinada civilização. Também aqui se confundem
conceitos. Se por um lado é clara a função identitária da cultura e a
importância da preservação de seus valores para a coesão dos povos, por

Teoria e contexto
outro lado, isso não significa que a cultura seja imutável e que a identidade
seja fixa. Estamos submetidos a processos de transformação de crença e
valores tanto como indivíduos, quanto como grupos e uma análise, ainda
que breve, sobre as transformações culturais mostraria como um mesmo
povo em diferentes épocas valoriza ou vê de forma diferente o mesmo

Ciência & Conservação


bem cultural. A situação se mostra ainda mais forte se estendermos a nossa
observação a um período histórico mais largo, quando podemos observar
que as intervenções na pré-existência só muito recentemente valorizam
sua bagagem histórica e documental.
O estudo dos paradoxos que a problemática do Restauro traz consigo
e do seu desenvolvimento histórico, bem como a observação ao longo
do tempo do que seja “patrimônio, histórico, cultural e artístico” – onde
a própria mistura de três vertentes tão diferentes já se apresente muito
complicada – nos mostra que “patrimônio” é um conceito difuso, relativo
e circunstancial e que a “patrimonialidade” não está apenas na matéria,
mas também depende de quem a define e nos valores que crê, sua visão
de mundo, portanto.
Quando se discute a natureza da arquitetura sob esse arcabouço paradigmático,
os problemas se tornam ainda mais complexos. Profundamente
influenciadas pela noção de restauro da obra de arte, as questões de
restauro arquitetônico foram trabalhadas como se a Arquitetura fosse uma
arte visual e desde um ponto de vista relativo a um conceito de integridade
visual, onde a obra seria um todo fechado do qual nada se poderia retirar
ou acrescentar, o que para a sobrevivência dos artefatos arquitetônicos
seria uma tarefa impossível. A aplicação dos métodos de restauro da
obra de arte na arquitetura tem levado a distorções, à criação de híbridos
descaracterizados e até mesmo a ações de restauro tipológico, estes falsos 147
tanto quanto á história, quanto à arte. Há que se reconhecer, portanto
que os princípios adequados às intervenções arquiteturais não podem
se confundir com os preceitos adotados para as artes visuais e, embora
se possa compartilhar alguns deles, a Arquitetura deve desenvolver seus
próprios princípios de restauro em função de sua natureza peculiar.
Para ilustrar essa diferença relativa a outras artes visuais, podemos dizer
que a Arquitetura é uma arte que se faz em função do uso e é feita para
servir e materializar as sociedades e, portanto, sua sobrevivência no

Teoria e contexto
tempo depende da sua capacidade de manter essa propriedade. Tanto o
edifício quanto a cidade e a paisagem estão em constante transformação,
diferentemente de um quadro ou uma escultura.

Ciência & Conservação


A crítica aos princípios do Restauro
Alguns pontos críticos dessa visão de mundo aplicada à intervenção/
restauro da Arquitetura são claramente evidentes:
● O fenômeno artístico é um “acontecimento” que envolve tanto o
objeto artístico como seu fruidor e tanto um como o outro são sempre
outros: o primeiro pela ação do tempo e das intervenções sobre eles
realizadas, os últimos pelas diferenças de maturidade e bagagem pessoal
ou pelas transformações sociais e culturais;
● A história como “pura” é uma concepção ilusória de que as coisas
podem permanecer inalteradas. Isto se revela com muita clareza no
paradoxo da Nau de Teseu, eternamente ancorada no porto, mas tendo
sempre suas peças deterioradas substituídas, o que no limite, levaria a
uma mudança total da matéria e ao questionamento da “autenticidade”
do monumento;
● O patrimônio como sendo eternamente ameaçado (conforme já nos
mostrou José Reginaldo Gonçalves) e com ele ameaçadas a nossa
identidade e a autenticidade do bem, uma preocupação também com
a conspurcação do documento, o que levaria ao fim e ao cabo a uma
“magnificação” do bem a ser preservado;
● A impossibilidade da conservação da imagem e da história, como se as
coisas pudessem ser conservadas imutáveis, o que remete ao paradoxo
148
da redoma, exemplificado pela conservação dos documentos em papel,
onde o máximo de preservação ocorreria na completa reclusão do
documento à luz, o que é claro lhe retiraria toda a sua função social e
cultural.
A partir dessas constatações, temos que alguns perigos, se apresentam
à compreensão/ interpretação (e seu rebatimento na preservação)
que necessitam ser apontados para a crítica metodológica (baseado em
BRANDÃO, 1999, p. 115, 116):
● O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar

Teoria e contexto
do texto”, ou seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não
como ele se apresenta hoje a nós, mas como ele era e se portava no
contexto onde ele nasceu. Este é o perigo que conduz ao embalsamento
e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação
excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que,

Ciência & Conservação


ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar
quase todo ele;
● O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos
interpretar a intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de
congenialidade que é mais pretensiosa do que possível;
● O perigo objetivista acontece quando se procura derivar o sentido
do bem a ser interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o
independente do autor, do contexto e do intérprete”;
● O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando
obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de
relativizar sempre a obra ao seu contexto original. Por esse perigo
substituímos a fruição/ intervenção do presente pelo excesso de zelo
pelo suposto documento;
● O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do
leitor/ restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria
e exclusiva interpretação ou quando, no processo de intervenção,
minimiza a presença da sua historicidade para fazer valer sua própria
intencionalidade;
● O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem
apenas pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a 149
ciência ou o método analítico pudesse lhe fornecer;
● O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange
ao culto à imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente,
os centros da expressão artística ou da historicidade do objeto;
● O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial
assimilada coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo
comum.
Do exame desses perigos, podemos verificar que a compreensão estética

Teoria e contexto
e histórica não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo
que seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o
esforço analítico, mas sim à consciência da filiação da obra a nosso mundo.
Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também,
é claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva,

Ciência & Conservação


na realidade, é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na
capacidade do bem de permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto
com as mudanças sócio-culturais. Essa concepção se choca com a acepção de
imutabilidade do bem a ser preservado, pois também ele, como a tradição
e a cultura, está em constante transformação. Não há, portanto, como
buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia imutável de “objeto”
que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da vida, a qual se
caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico “essencial”
- além do que isso seria uma contradição com seu valor como “patrimônio
histórico” conferido exatamente por estar inserido na história. Mesmo a
idéia de uma transmissão “neutra”, independente da cultura e da tradição
não se sustenta ainda mais que sabemos que as palavras “tradição” e
“traição” têm a mesma raiz etimológica
A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de
transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que
não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade,
pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre,
afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega
tematizado e, pelo tempo, com sua significação “original” perdida
Assim, o que se preserva não é:
● O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele 150
tocarmos, acabamos por modificá-lo;
● A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu;
● A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do
tempo e de cada geração sobre o bem;
● Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe
objetivamente;
● O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só

Teoria e contexto
poderia ser acessado por uma suposta congenialidade, esta também
impossível;
● A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão
imaterial;

Ciência & Conservação


● A redução de seus significados ou de sua complexidade
● E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal
e neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão
aberto que desconsidere elementos compartilhados coletivamente
(o que penderia para o lado do sujeito) e nem se faz a partir de um
entendimento “globalista”, onde o objeto artístico é entendido de
maneira global, sem levar em consideração as especificidades de cada
expressividade artística.
A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é:
● A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer
presente;
● A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua
especialidade no espaço e no tempo;
● A sua capacidade de nos atrair e possibilitar uma elaboração sobre ele;
● A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades
abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência
no presente;
● A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem
patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no 151
lugar e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do
objeto, portanto as suas dimensões material e imaterial;
● A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem,
mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da
dinâmica do tempo e da cultura.
Teoria e contexto
A saída para uma compreensão contemporânea da preservação passa, a
nosso ver, por uma profunda e franca análise dos métodos e princípios
empregados, bem como por uma capacidade de despojamento quanto
a práticas bastante sedimentadas e bastante arraigadas. Se não está
consolidado, até o momento, um modelo alternativo que possa substituir

Ciência & Conservação


as práticas vigentes, pelo menos é possível se fazer a sua crítica e se
estabelecer possíveis direções a investigar. Esta é a tarefa que se impõe à
nossa investigação.

___________

Referências
BARDESCHI, Marco Dezzi. Restauro: punta e da capo. Milano: Stampa, 2000. 230 p.

BARDESCHI,. Conservazioni e metamorfosi, cosmogonie, bestiari, architettura 1978-1988. Firenze:


Alinea, 1990.

BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Introdução à hermenêutica da arte e da arquitetura. Topos –


Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 113-123, jul-dez. 1999.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ IPHAN, 1996.

GONÇALVES. Patrimônio como categoria do pensamento. In: ABREU, Regina e CHAGAS, Mário
(Org.). Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 21-29.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Volume I. Petrópolis: Vozes, 2004. 262 p.

HEIDEGGER. Ser e Tempo. Volume II. Petrópolis: Vozes, 2004. 325 p.

HEIDEGGER. “A Origem da Obra de Arte” in Poetry, Language, Thought. New York: Harper &
Row Publishers, 1975. p. 17-87.
152
HEIDEGGER. “Construir, Habitar, Pensar” in Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. p.
125-141.

RIEGL, Alois. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Visor, 1987. 99 p.

RUSKIN, John. Las siete lámparas de la arquitectura. Buenos Aires: Safian, 1955.

VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoria contemporânea de la Restauración. Madrid: Sintesis, 2003. 205 p.
História da Arte Técnica e Arqueometria: uma
contribuição no processo de autenticação de

Teoria e contexto
obras de arte
Alessandra Rosado
Doutoranda PPGA-EBA-UFMG
Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Ciência & Conservação


Resumo:
Este artigo tem como objetivo estudar o papel das ciências naturais (física e química) no
estudo da arte entre os séculos XIX e XXI, com particular interesse na atuação dessas
disciplinas nos processos de autenticação de obras de arte. A metodologia utilizada neste
trabalho foi a análise das práticas de atuação da História da Arte e ciências no estudo
de obras de arte registradas em bibliografias publicadas no campo da conservação e
restauração do patrimônio cultural.Observa-se também a constituição de dois novos
campos de atuação das disciplinas humanas e das ciências naturais, adequados ao
exercício da interdisciplinaridade: História da Arte Técnica e Arqueometria, ferramentas
indispensáveis no estudo de autenticação de obras de arte.
Palavras-chave: autenticação de obras de arte, interdisciplinaridade, História da Arte
Técnica, Arqueometria.

Abstract
This article aims at studying the role of natural sciences (physics and chemistry) in the study of art
produced between 19th - 21th centuries, focusing on the role of these sciences in the process of rendering
works of art authentic.The methodology used in this paper was the analysis of bibliography published in
the field of conservation and restoration of Cultural Heritage, related to the practises of Art History
and Sciences in the study of works of art.It can be noticed that two new interdisciplinary areas for human
and natural sciences have been constituted: Technical Art History and Archaeometry, essential tools in the
study of rendering works of art authentic.
Key Words: authenticity of Works of art, interdisciplinarity, Technical Art History, Archaeometry.

153
Introdução
A avaliação de objetos artísticos para averiguar uma provável atribuição
autoral era feita quase que exclusivamente por connaisseur ou peritos com
formação em História e/ou História da Arte, através basicamente da
análise dos aspectos formais, estilísticos e dos dados documentais sobre
a obra.
A introdução de exames científicos como ferramentas analíticas,
para o estudo de obras de arte, a partir do século XIX intensifica-se

Teoria e contexto
consideravelmente nos séculos XX e XXI, sendo um novo tipo de
avaliação de objetos artísticos através de uma metodologia interdisciplinar,
envolvendo o emprego da conservação preventiva, da restauração, da
Ciência da Conservação e da História da Arte. Essa abordagem contribuiu
para a composição dos campos de estudo denominados de Arqueometria

Ciência & Conservação


e História da Arte Técnica (AINSWORTH, 2005).

Objeto da pesquisa
Define-se como objeto da pesquisa o estudo relacionado ao
desenvolvimento da metodologia sobre preservação e análises de obras de
arte produzida pelos cientistas e historiadores da arte ocidentais entre os
anos de 1850 a 2005.
Articulada ao processo de análise científica de obras de arte, a partir do
século XIX. Tal metodologia integra o conjunto de cinco importantes
práticas que orientaram a produção de novas bases de atuação das ciências
da conservação e humanas no contexto de autenticação de obras de arte.
São elas:
- introdução de laboratórios de análise científica e conservação em
instituições museológicas;
- traduções de manuais técnicos artísticos antigos;
- submissão das obras de arte a exames científicos para identificação
dos materiais e técnicas empregados na feitura da obra;
- trabalhos realizados em parceria entre cientistas, historiadores da arte
e connaisseurs no estudo de pinturas de grandes mestres;
154
- estabelecimento de princípios norteadores da relação entre as
ciências puras e humanas, dados os pressupostos fundamentados na
arqueometria e história da arte técnica.
Através da análise dessas práticas procura-se identificar, a partir da temática
da autenticação de obras de arte, os pontos de contato entre a produção
de uma estrutura fortemente vinculada à História da Arte e a consolidação
de uma prática interdisciplinar afinada com as diretrizes da Arqueometria

Teoria e contexto
e História da Arte Técnica.
Na identificação de tais pontos de contato, os termos conservação
preventiva, análise de materiais e técnicas artísticas, atribuição, datação
e investimento financeiro afirmam-se como elementos moduladores da
relação que se procura produzir entre historiadores da arte, museólogos,

Ciência & Conservação


connaisseurs e cientistas e as formas de pesquisa postas pela arqueometria e
historia da arte técnica. É através da prática da arqueometria e da história
da arte técnica que tal metodologia busca, nos processos de autenticação
de obras de arte reivindicar para as ciências naturais e humanas a tarefa de
analisarem conjuntamente a obra de arte.
Tendo em vista o enfoque sob o objeto anteriormente indicado destaca-
se como objetivo geral da pesquisa, a identificação das bases em que
se encontram assentados os vínculos entre Historia da Arte e Ciências
Naturais, tendo em vista o processo de construção de metodologias
analíticas utilizadas pela arqueometria e História da Arte Técnica.
Como objetivo especifico, procura-se avaliar as metodologias inscritas
nas práticas de historiadores e cientistas nos processos de autenticação
de obras de arte. Através dessa análise busca-se avaliar as linhas gerais
da constituição de uma prática interdisciplinar, adequada ao exercício das
análises de autenticação de obras de arte.

Originalidade, autententicidade: o lugar da pesquisa


A autenticação de obras de arte tem como objetivo identificar a autoria
e origem de objetos artísticos anônimos através de uma investigação
interdisciplinar envolvendo estudos históricos, formais, estilísticos, 155
técnicos e científicos desses objetos. Entretanto, a união da Ciência da
Conservação e da História da Arte nesses projetos ainda está em formação,
como veremos a seguir.
A concepção de autenticidade para PASTOUREAU (1998) está vinculada
a uma construção cultural que possui diferentes definições para cada tipo
de sociedade e época.
Diante do exposto, define-se o período compreendido entre os séculos
XIX e XXI com a intenção de abarcar o processo de autenticação de

Teoria e contexto
obras de arte vinculada à práxis da Ciência da Conservação e História da
Arte através do contexto ocidental e, a partir da segunda metade do século
XIX, procura-se consolidar o diálogo entre as ciências da conservação
e humanas para uma análise criteriosa e interdisciplinar do patrimônio
cultural artístico.

Ciência & Conservação


Na constituição de tal metodologia analítica, observamos a preponderância
do uso da História da Arte (I) nos estudos de autoria frente às análises das
ciências da conservação, tendo em vista que esta última só foi reconhecida
como uma disciplina científica no século XXI por uma organização
governamental dos Estados Unidos (KHANDEKAR, 2005).
Uma obra autêntica é entendida como um trabalho artístico em que a
origem e autoria são reconhecidas. Apesar de a autenticidade ter tido
sempre uma determinada importância no valor dos objetos artísticos, entre
os séculos XVI e XVIII o significado mais enfatizado da obra era de cunho
individual, sendo validada, por exemplo, pela sua representação simbólica
para atender um gosto estético da época (PERUSINI, 1994). O próprio
Michelangelo modificou uma obra recém produzida acrescentando-lhe
características que lhe davam aspectos estilísticos mais antigos para atender
um pedido de Lorenzo de Medice (ARNAU, 1961). Grandes artistas como
Rubens efetuavam cópias de quadros de outros autores e cobravam por
esses trabalhos (ARNAU, 1961).
Somente a partir do século XIX, paralelamente à criação de museus (II), o
conceito de autenticação de obras referente à comprovação da genuinidade
da obra de arte tornou-se familiar. É também a partir deste século que
as obras passam a ser avaliadas como investimento financeiro – obras
autênticas implicam na possibilidade de serem vendidas ou adquiridas a 156
preços altíssimos no mercado da arte.
No entanto, o trabalho de autenticação não e fácil, pois muitas obras
podem não apresentar assinatura de seus autores e, além disso, muitos dos
grandes artistas da história ocidental tinham em seus ateliês ajudantes e
discípulos que aprendiam e criavam. O mestre geralmente interferia na obra
de seus discípulos, muitas vezes esboçava a composição ou acrescentava
detalhes naquelas que estavam sendo elaboradas ou nas que já haviam
sido finalizadas. Essa prática da interferência do mestre nas obras de seus

Teoria e contexto
alunos era muito comum também nas escolas de Belas Artes do século
XIX e início do século XX.
Como então reconhecer uma falsificação? A resposta a essa pergunta
tornou-se um tema de pesquisa dos historiadores da arte e da ciência da
conservação ao longo dos anos.

Ciência & Conservação


No ano de 1864, Louis Pasteur foi convidado pela academia de Belas
Artes de Paris para dar um curso sobre química e física aplicada à arte,
confirmando certa importância atribuída a ciência em conformidade com
o pensamento positivista dessa época que via com otimismo o emprego da
ciência em todos os setores da vida humana (LAHANIER, 1987).
Apesar desse investimento da academia de Belas Artes de Paris, as
autenticações das obras de arte eram efetuadas basicamente pelas ciências
humanas (SCHENBERG, 1995). Sobre esse aspecto, a despeito da criação
de laboratórios científicos inteiramente dedicados ao estudo e conservação
de obras de arte (URBANI, 1981), o emprego de critérios da ciência da
conservação preventiva para a avaliação da autenticação de obras de arte
ocorreu lentamente intensificando-se apenas a partir da segunda metade
do século XIX.
Curadores, antiquários e historiadores da arte é que tinham o reconhecimento
de suas aptidões para análise de obras de arte, considerados como experts
que haviam desenvolvido um “olhar apurado” para examinar uma obra
artística e diagnosticar se eram ou não autênticas (AINSWORTH, 2005).
Esses profissionais apoiavam seus pareceres principalmente em dados
estilísticos.
Na segunda metade do século XIX, Giovani Morelli, um médico italiano
e estudioso de pinturas criou um método de autenticação de pinturas
157
denominado análise estilística de composições secundárias. Essa análise da
atenção a detalhes considerados menos importantes da obra como ponta
do nariz, orelhas, dedos das mãos, etc. A composição desses desenhos era
executada, segundo Giovani, automaticamente, sem pensar, quase sempre
mecanicamente e por isso o formato deles se repete em todas as obras
efetuadas pelo mesmo artista (LUKICHEVA, 1987).
Esse método que é também adotado por historiadores da arte no Brasil
como um meio seguro de avaliar atribuições (HILL, 2001), está longe

Teoria e contexto
de ser considerado como um método infalível ou universal, pois todo o
método de autenticação de obra de arte que utiliza apenas uma disciplina
isolada para analisá-la esta fadada a cometer enganos.
As datações e atribuições baseadas exclusivamente em fatos estilísticos

Ciência & Conservação


dão margem a uma série cronológica relativa principalmente quando esses
fatos estilísticos não são comparados a dados documentais quando eles
existem (GINZBURG, 1989).
Para LOWENTAL (1992) assim como para GOMBRICH (1972), o único
caminho seguro para autenticação da obra de arte é através da análise de
gêneros, ao invés de apenas dos símbolos, ou seja, através de um estudo
que distingue a época, estilo e sujeito do objeto artístico.
Entretanto no mercado da arte o risco de construir cadeias interpretativas,
circulares, baseadas totalmente em conjecturas é muito forte, pois
geralmente as análises das obras feitas por connaisseurs, historiadores da arte
e curadores têm como base quase que exclusiva a análise formal estilística
que dá margem a livres associações baseadas normalmente sobre uma
pretendida decifração simbólica do objeto artístico.
HAUSER  ao dissertar sobre as atribuições dadas as obras de arte, comenta:
... nenhum conjunto de obras definitivamente datadas e
atribuídas, por maior que seja, vincula a sua inclusão dentro
do conceito de um estilo, ou proporciona um critério
severo e firme para a inclusão entre elas, com base no estilo
de obras anônimas ou de datas incertas. Por outras palavras,
nenhum conceito viável de um estilo poderá ser deduzido
a partir de uma só obra ou de um pequeno número de
obras; e por muitas obras que se possa conhecer, a origem e 158
atribuição de cada obra anônima permanece um problema.
(HAUSER, 1973.p. 273).

Qual a saída para a solução dos problemas relacionados a uma possível


atribuição de autoria? A saída não é a eliminação dessas formas de pesquisas
adotadas pela História da Arte, mas a criação de instrumentos de controle
adequados através da interdisciplinaridade e das análises científicas.
Esta consciência sobre a necessidade do apoio das análises científicas
para confirmar as evidências levantadas pelos estudos dos profissionais

Teoria e contexto
de história da arte de determinados objetos de arte começa a despertar,
ainda timidamente, após a descoberta do raio X pelo cientista W.C.
Roentgen, que em 1895 tenta fazer a primeira radiografia de uma pintura
(GILARDONI, 1977).

Ciência & Conservação


O uso do raio-X na pesquisa sobre autenticação de pinturas ocorreu em
1935, no Museu Brookllyn de Nova York, Estados Unidos. Com o auxílio
do raio X o cientista Pertsing elaborou um método de exame de pinturas
sobre tela pertencentes ao acervo desse museu (MANCIA, 1944).
A partir de então, observa-se uma série de empregos isolados da ciência
aplicada às análises dos materiais e das técnicas de objetos artísticos. Os
resultados dessas análises em alguns casos contradiziam interpretações
feitas pelos historiadores da arte. Os processos civis e penais que surgiram
devido a erros cometidos por experts em questões de comprovação
de autoria começaram a promover certo descrédito nas autenticações
baseadas unicamente em impressões formais estilísticas (ARNAU, 1961).
O avanço das pesquisas e da utilização de novos métodos científicos
de analise do patrimônio artístico cultural - como o emprego do
infravermelho, dendocronologia e carbono 14 - começa a provocar uma
mudança na metodologia usada por connaisseurs e historiadores da arte.
Esses profissionais passam a buscar o apoio da ciência da conservação
para não incorrerem em erros de interpretação, através da aplicação de
apenas um único método de investigação (III).
Contudo, as rápidas mudanças nos métodos de pesquisa e o avanço dos
equipamentos técnicos de investigação, não refletiram no lento processo
de conscientização e na formação de grupos interdisciplinares de
investigação compostos por curadores, historiadores da arte, connaisseurs e
159
cientistas da conservação, com a capacidade de se comunicarem entre si,
utilizando uma linguagem inteligível a todos.
O desenvolvimento de abordagens interdisciplinares envolvendo
historiadores da arte curadores e cientistas tiveram como grande
fomentador Edward Forbes (IV) que em 1931 criou o Department
for Conservation and Tecnical Research. Os trabalhos realizados nesta
instituição chamaram atenção para investigação dos materiais e técnicas de
arte, bem como para questões relacionadas à procedência das produções

Teoria e contexto
artísticas originais (AINSWORTH, 2005).
Nesse mesmo período, surgiram também traduções de manuais artísticos
antigos como “O livro da Arte” contendo a descrição de materiais e
métodos empregados no fazer artístico, escrito no século XV por Cennino
Cennini, na Itália (MOTTA, 1976).

Ciência & Conservação


Publicações desse tipo indicavam a preocupação dos cientistas na busca
do conhecimento das técnicas pictóricas antigas através da compilação de
fontes sobre esse assunto produzidas em épocas contemporâneas às obras
antigas.
Observa-se um esforço de alguns cientistas para que o emprego de seus
estudos sobre materiais e técnicas fosse apresentado como suporte às
análises de historiadores da arte. Porém até a década de 70 essa metodologia
interdisciplinar criada pelos cientistas da conservação não havia sido
difundida plenamente entre as instituições universitárias e museológicas.
Essa carência era reflexo também do parco número de conservadores
que trabalhavam em museus cujo quadro de funcionários era formado
quase que exclusivamente por curadores e historiadores da arte (LASKO
e LODWIJKS, 1982).A partir dos anos 70, cientes da importância dos
estudos científicos das obras artísticas, grandes museus decidem criar seus
próprios laboratórios de pesquisa e vários laboratórios de universidades
passaram também a direcionar pesquisas sobre objetos artísticos com o
objetivo de determinar-lhes a origem e tecnologia.
Importantes pinturas de instituições museológicas passaram a ser
fotografadas com luzes especiais como ultravioleta e infravermelho,
radiografadas e até datadas com a utilização do sistema de datação através
do carbono 14. Essas práticas reforçam o desenvolvimento da ciência nos 160
museus e do mesmo modo o auxílio às pesquisas realizadas por curadores
e historiadores da arte através da publicação de seus trabalhos em revistas
especializadas e seminários.
Nessa mesma época a National Gallery, em Londres, iniciou a publicação
do National Gallery Technical Bulletin mostrando a possibilidade de
trabalhos em conjunto entre curadores, conservadores e cientistas da
conservação no estudo de pinturas.Entre 1988 e 1989, o Departamento
de Ciências da Conservação da National Gallery promoveu uma série de

Teoria e contexto
exibições intitulada de Art in the Making, com o objetivo de apresentar
a públicos leigos e especializados os resultados das pesquisas técnicas
empreendidas pela Galeria.
A primeira exposição de uma série empreendida nesse projeto da National
Gallery foi sobre a obra de Rembrandt, organizada por um comitê

Ciência & Conservação


formado por um restaurador, David Bomford; um curador, Christopher
Brown e um cientista, Ashok Roy. Esse comitê produziu catálogos sobre
esse assunto cujos textos foram produtos da discussão teórica entre eles.
Os textos apresentam informações sobre os materiais e técnicas usadas
por Rembrandt e também análises sobre a história e estilo desse pintor
(BOMFORD et al, 1988).
AINSWORTH (2005) considera os estudos sobre Rembrandt como
representantes do verdadeiro estudo interdisciplinar sobre pintura.
O envolvimento de diversos especialistas vindos de diversas áreas do
conhecimento incluindo a ciência da conservação neste estudo permitiu
que fossem formuladas conclusões mais fundamentadas que geraram
mudanças a respeito de algumas datações e atribuições das obras de
Rembrandt.
Segundo LASKO e LODWIJKS (1982) e AINSWORTH (2005) para
encorajar a comunicação entre conservadores, cientistas da conservação,
curadores e historiadores da arte é necessário que haja mudança referente
à educação dada a esses profissionais no início de seus cursos. Essa
mudança requer, por exemplo, o ensino obrigatório de história da técnica
nos cursos de história da arte. Outra forma para promover o diálogo entre
esses profissionais que trabalham em museus e universidades é através
de estudos colaborativos e a publicação dos resultados destes trabalhos. 161
Salienta-se que estudos colaborativos entre cientistas da conservação e
história da arte são as bases epistemológicas da História da Arte Técnica.
No Brasil, o Laboratório de Ciências da Conservação (LACICOR), da
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
coordenado pelo professor Dr. Luiz Antônio Cruz Souza também tem
alcançado avanços em relação à metodologia da História da Arte Técnica.
Desde a década de 90, o LACICOR tem sido solicitado para estudos
analíticos de obras artísticas pertencentes a instituições museológicas,
igrejas históricas ou a coleções particulares para a investigação científica

Teoria e contexto
de materiais e técnicas empregadas na construção da obra analisada.
Algumas dessas análises são solicitadas por colecionadores ou instituições
que buscam a confirmação de uma autoria, devido principalmente a
processos judiciais movidos pelo Ministério Público (quando se trata de
obras suspeitas de pertencerem ao patrimônio cultural público), ou então

Ciência & Conservação


para valorizar a obra no mercado de artes, ou para concretização de uma
possível compra.
O LACICOR possui uma linha metodológica interdisciplinar, sempre
aberta à operacionalização de pesquisas em colaboração com vários
departamentos científicos estaduais, nacionais e internacionais (ROSADO,
2005).
Essa abertura promoveu, por exemplo, no ano de 2004, a cooperação do
Laboratório de Física Nuclear Aplicada (LFNA) do Departamento de
Física da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, na utilização
do Sistema Portátil de Fluorescência de Raios X (EDXRF) para análise
complementar da pintura a óleo sobre tela intitulada de O Lenhador de
propriedade particular que foi analisada pelo LAC ICOR com objetivo de
averiguar uma possível autoria (APPOLONI,2006).
Esse equipamento EDXRF possibilita análise não destrutiva da
composição elementar dos pigmentos de uma pintura e é extensivamente
usado na Arqueometria (V).
Para promover uma maior comunicação e troca de experiências com os
principais museus do Brasil, o LACICOR elaborou um projeto junto ao
Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU) do Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) que oferece oficinas
de formação e capacitação museológica para profissionais que atuam 162
nessas instituições. Esse trabalho possibilita que historiadores da arte e
curadores destes museus apreendam sobre a linguagem e os métodos
usados pela ciência da conservação preventiva e, conseqüentemente,
com esse entendimento o diálogo entre as ciências humanas e ciências da
conservação, é facilitado com isso amplia a possibilidade de trabalhos em
cooperação.
Diante deste contexto, verifica-se que a ciência da conservação do século
XXI relacionada à pesquisa de autenticação de obras de arte está sendo
caracterizada pelo uso de duas grandes áreas científicas: História da Arte

Teoria e contexto
Técnica e Arqueometria.
Essas áreas interagem entre si tão intensivamente que difícil de distinguir
uma da outra, pois ambas envolvem estudos do patrimônio cultural
artístico com o objetivo de entender para que ele foi feito, por quem
foi feito, onde foi feito e como foi feito (CHIARI e LEONA, 2005).

Ciência & Conservação


Ambas incluem estudos de procedência, tecnologia de materiais antigos
e contemporâneos, técnicas de datação e autenticação de obras de arte.
A ciência da conservação com o uso destas duas áreas torna-se articuladora
entre a teoria científica das ciências exatas e humanas, e cada vez mais
vem conduzindo pesquisas que envolvem profissionais acadêmicos e de
instituições de museus, cujos resultados demonstram que a análise dos
vários aspectos - culturais, econômicos, estilísticos, históricos, etc. - que
um objeto artístico representa só é possível através da interdisciplinaridade
e do diálogo.

Considerações Finais
Ao longo desse trabalho, destacou-se o processo de inserção das ciências
naturais nas analises de obras de arte, a partir de um viés particular:
autenticação de obras de arte. Essa temática tomada nos termos dos
vínculos estabelecidos entre ciências humanas e ciências naturais
possibilitou o avanço de algumas considerações sobre o processo de
atuação dessas áreas em trabalhos relacionados a arte e cultura como o
esforço de constituição de um campo de atuação interdisciplinar.
Notadamente a partir da década de 1970 – quando a questão do uso das
ciências naturais foi admitida como importante ferramenta no processo de 163
renovação nos estudos de arte – esse olhar interdisciplinar dimensionou
os parâmetros norteadores dos campos de atuação da arqueometria e
história da arte técnica.
Considera-se que os resultados dessa pesquisa sobre os aspectos
metodológicos utilizados pelos historiadores da arte como de cientistas nos
processos de autenticação de obras de arte, precisam ser mais aprofundados
– uma vez que só puderam ser abordados em sua generalidade. Esta
tarefa de aprofundamento torna-se necessária principalmente para o

Teoria e contexto
entendimento dos processos de autenticação de obras de arte no contexto
brasileiro.

Ciência & Conservação


___________
Notas
I - No caso de bens culturais, as Ciências Humanas têm preferência frente às Ciências Exatas, pois é ela
a responsável pelo estudo da função primária da obra de arte, que é a de estimular nossa sensibilidade
estética (URBANI, 1982).

II - Inauguração do museu de Napoleão em Paris no ano de 1803; em 1823 o Museu do Prado à base
das coleções da Casa Real na Espanha; em 1838 a Galeria Nacional e em 1857 o Victoria and Albert
Museum ambos em Londres; e 1888 o Museu de Berlim, Alemanha (PERUZINI, 1994).

III - BRUYN (1979), alerta que discussões sobre a definição da autenticação da obra de um artista
baseado apenas no estudo geral do seu estilo não são suficientes, pois são julgamentos subjetivos que
podem resultar em interpretações diversas e conseqüentemente gerarem diferentes atribuições para
uma mesma pintura. De acordo com BRUYN (1979) e SCHWARTZ (1998), para haver um melhor
entendimento sobre a atribuição de autoria é necessário ampliar o campo de pesquisa utilizando como
apoio novas técnicas científicas analíticas aplicadas pelos cientistas da conservação em seus trabalhos.

IV - Diretor do museu Fogg Art Museum, no ano de 1920.

V - Arqueometria é a união entre a arqueologia e conservação preventiva com as ciências experimentais.


Reúne arqueólogos historiadores, conservadores e cientistas que aplicam técnicas instrumentais aos
objetos do patrimônio para extrair deles informações tecnológica, culturais e históricas (CHIARI e
LEONA, 2005).

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166
Museus: conceitos e reflexões
Ana Cecília Rocha Veiga

Teoria e contexto
Doutorando PPGA-EBA-UFMG
Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo

Ciência & Conservação


Desde os seus primórdios, com sua gênesis na mitologia grega, até a atualidade, os
museus se modificaram drasticamente, constituindo hoje uma instituição de importância
capital, tanto no seu papel didático quanto em sua função social. Portanto, neste artigo,
destrincharemos a trajetória e evolução do termo museu, objetivando a compreensão do que
vem a ser esta instituição na contemporaneidade. Passaremos pela criação das principais
organizações museais, como o ICOM e o ICBS, bem como pelos seus conceitos afins,
a Museologia e a Museografia. Terminaremos nossa proposta com uma análise das
contribuições da filosofia moderna para a concretização de uma Nova Museologia, baseada
nas ações dialógicas e na interdisciplinaridade.
Palavras-chave: museu, museologia, conceito, interdisciplinaridade.

Abstract
Since its inception, with its genesis in Greek mythology, the museums have changed dramatically, now
constituting an institution of great importance because it’s didactic and social functions. So in this article,
we unravel the history and evolution of the term museum, aiming to understand what this institution has to
be nowadays. We will pass by the creation of the main museum organizations such as ICOM and ICBS,
as well as their related concepts, Museology and Museography. We finish our proposal with an analysis
of the contributions of modern philosophy for achieving a New Museology, based on the dialog and on the
interdisciplinarity.
Key-Words: museum, museology, concept, interdisciplinarity.

Origem do termo museu: casa das Musas


A palavra museu tem sua origem no termo latim museum, que por sua vez 167
deriva da palavra grega mouseion, ou ainda, “casa das musas”. Na mitologia
grega, as musas eram filhas de Júpiter e Mnemósine, a Memória, “deusas
que deleitam o coração de Zeus e inspiram os poetas”. (BRANDÃO,
1986, p.153) Cada musa, ao todo nove, representava um ramo específico
da literatura, da ciência e das artes.
Segundo SCHUHL (In: FERNÁNDEZ, 1993, p.49), Platão teria
mencionado a intenção de que houvesse pessoal atento a receber os

Teoria e contexto
“turistas” em peregrinação artística, facilitando a apreciação das obras
inspiradas pelas Musas nos templos. O historiador Heródoto reforça esta
teoria, informando que nos principais templos das cidades famosas (Atenas,
Delfos, etc) os gregos disponibilizavam para contemplação pública suas
relíquias artísticas. No século V a.C., os Propileos da Acrópole de Atenas

Ciência & Conservação


possuíam uma pinacoteca, descrita pelo viajante PAUSÂNIAS. Portanto,
na mitologia grega o termo museu tem, amplamente, a sua origem.

Colecionismo
Não obstantes as origens do termo, a gênesis dos museus pode ser encontrada
no ato de colecionar, tão antigo quanto à própria existência humana e
quanto à noção de propriedade particular. Se a terminologia da palavra
museu se ampara na reunião de saberes, também tem sua procedência
vinculada à reunião de objetos, ou seja, o “colecionismo”. “Entendemos
por ‘colección’ aquel conjunto de objetos que, mantenido temporal o
permanentemente fuera de la actividad económica, se encuentra sujeto a
una protección especial con la finalidad de ser expuesto a la mirada de los
hombres.” (HERNÁNDEZ, 1998, p.13) A autora destaca quatro razões
principais para o fenômeno: o respeito ao passado e às coisas antigas, o
instinto de propriedade, o verdadeiro amor à arte e o colecionismo puro.
Faraós, reis, imperadores e papas da antiguidade amealhavam objetos
de ouro, prata, bronze e outros materiais preciosos, que se prestavam
à manifestação do seu poder e prestígio social. A historiografia e a
literatura mundiais estão pontilhadas com inúmeros exemplos. Na Ilíada
de HOMERO, lemos as riquezas em Hila acumuladas, o ouro e cobre 168
variamente obrado, o prélio por reaver Helena e seus tesouros, ainda que
fossem inferiores à vida da consorte por Páris arrebatada. Nas histórias
do Rei Salomão e na tumba de Tutancâmon, tesouros célebres acendem
nossa imaginação sobre tudo que se perdeu, com base no pouco que
chegou até nós. BAZIN denomina as tumbas repletas de tesouros egípcios
como verdadeiros museus funerários. No Palácio de Nabucodonosor
reunia-se uma grande coleção, oriunda de espólios de guerra, denominada
“Gabinete de Maravilhas da Humanidade”. (FERNÁNDEZ, 1993,
p.52) GUARNIERI descreve que “a primeira atividade sistemática de

Teoria e contexto
organização de acervos tem origem na Caldéia, seis séculos antes de
Cristo, quando a princesa Bel Chalti Nannar reuniu e documentou, através
de registros, o tesouro contido no palácio de seu pai, composto por jóias
e artefatos.” (FRONER, 2001, p.48)

Ciência & Conservação


Biblioteca de Alexandria e os Romanos
No século II antes de Cristo, a segurança econômica da dinastia dos
Ptolomeus gestou aquela que seria, além da biblioteca mais enigmática e
surpreendente da história, um novo modelo de museu, não mais focado no
deleite das musas mitológicas, mas na compilação do saber enciclopédico,
possuindo mais de 700.000 manuscritos. “Foi a primeira Universidade
do mundo. Essencialmente, era um colégio de sábios emprenhados,
principalmente, em pesquisas e história, mas, também, até certo ponto,
como se deduz de Arquimedes, em ensinar.” (SPALDING, 1974, p.197)
Astronomia, filosofia, religião, medicina, geografia e uma infinidade de
demais campos do conhecimento encontravam ali registros materiais e
intangíveis, nos muitos objetos e páginas escritas que procuravam reduzir
todo o saber do mundo em um só lugar.
Os romanos herdaram dos gregos o gosto pelo colecionismo de arte,
inaugurando novas formas de colecionar, como a exportação de peças
valiosas das diversas províncias sob seu domínio. Porém, a palavra museu no
contexto da cultura romana possuía significado um tanto diverso, referindo-
se a “villa particular, donde tenían lugar reuniones filosóficas, término que
nunca se aplicó a una colección de obras de arte.” (HERNÁNDEZ, 1998,
p.15) O colecionismo mobilizou também a produção de conhecimento
específico. O arquiteto romano Vitruvius recomendava, por exemplo, que 169
as pinturas ficassem em gabinetes voltados para o norte.

Idade Média
Apesar do florescimento greco-romano, após o arrasamento da Biblioteca
de Alexandria, nos primeiros séculos da Era Cristã, seguiram-se cerca de
um milênio de silêncio, marcado pela ausência dos museus no Ocidente,
tanto no seu sentido mitológico original, como neste novo contexto

Teoria e contexto
proposto em Alexandria. A queda do Império Romano colaborou para o
surgimento de novas culturas na Europa, impulsionando o colecionismo
litúrgico e a arte cristã. A igreja medieval seria praticamente o único local
onde as artes, em suas diferentes formas e manifestações, estariam ao
alcance do homem comum. “No final do século XII, o cardeal Giordano

Ciência & Conservação


Orsine – um dos maiores colecionadores do período – criou em Roma
um gabinete de antiguidades, atual Museu do Vaticano, que abria uma
vez por semana ao público com o intuito de divulgar a superioridade
da arte ocidental.” (FRONER, 2001, p.52) Portanto, na Idade Média, o
colecionismo adquiriu novos vieses. As coleções de todas as épocas, em
especial as obras de arte em materiais nobres, serviam ainda de reserva
econômica para períodos facciosos. O exemplo mais famoso talvez seja o
cavalo de Leonardo da Vinci, que não saiu da fase de projeto, pois o bronze
destinado à sua construção precisou ser deslocado para fins bélicos.

Renascimento, Reforma e Contra-Reforma


O Renascimento redescobriu os objetos gregos e romanos, assim como
o valor simbólico, artístico e histórico das obras, não somente o seu valor
material. Estas coleções renascentistas, principescas e reais, originariam
a instituição museu como hoje a conhecemos. Entretanto, nem tudo ia
bem no mundo das “antiguidades”: os falsos antigos eram quase uma
febre, difícil demais de debelar. Especialmente aquelas relacionadas com a
religiosidade: as relíquias sagradas. Até que insurgiu a Reforma Protestante...
A grande revolução tem seu estopim em um monge agostiniano, professor
da Universidade de Wittenberg, chamado Martinho Lutero. Conheceu
os clássicos antigos na Faculdade de Artes Liberais da Universidade de 170
Erfurt, onde ainda jovem se matriculara. Manteve sua relação com o
humanismo circundante no limiar entre a apreciação e o questionamento.
A sociedade desta época, bem como a Igreja, esposava uma “fé material”,
manifesta na arquitetura, nas artes e, também, nas relíquias sagradas. Por
meio das indulgências, que consistiam no perdão dos pecados através
de boas obras e doações, os fiéis “tocavam” a salvação. Lutero passou
a questionar a validade de tais afirmações. Em 1517 afixou Lutero 95
teses às portas da Igreja do Castelo e da Universidade de Wittenberg, teses
estas que punham por terra idéias como o poder salvífico das indulgências.

Teoria e contexto
Amplamente divulgada e à mão copiada, as teses de Martinho permearam
toda a Alemanha, resultando em sua excomunhão e em uma longa história
que culminou, não na reforma da própria Igreja Católica, mas na facção
desta, surgindo assim as Igrejas Reformadas, ou protestantes históricas.
Em resposta, veio por parte da Igreja Católica a Contra-Reforma.

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De fato, a contra-reforma compreendeu perfeitamente
o papel da cultura na defesa e preservação da sociedade
cristã, tanto assim que com tal objetivo foram criados,
em 1601, por Federico Borromeo, arcebispo de Milão,
a Biblioteca Ambrosiana e a Academia de Belas-Artes.
Nesta última, Borromeo reuniu incontáveis obras de
arte e fez daquilo que chamava seu museum, um centro
didático para a produção artística. Ou seja, este museu,
visitável por público seleto, sobretudo artistas, servia como
“receituário” da estética aprovada pela Igreja. (...) Assim
é que o final do século XVII e começo do século XVIII
viram a cristalização da instituição museu em sua função
social de expor objetos que documentassem o passado e o
presente e celebrassem a ciência e a historiografia oficiais.
Esta problemática foi analisada por Lanfranco Binni e
Giovanni Pinna, profissionais de museus italianos que bem
notaram que não havia lugar, nesses museus, para as idéias
e descobertas de Galileo Galilei.(SUANO, 1986, p.23)

No Renascimento o estudo dos documentos e objetos, bem como a


conservação dos monumentos e das antiguidades, entraram vigorosamente
em cena. O grande duque Cosme I (1519-1574) encomendou do arquiteto
Giorgio Vasari a construção daquele que é considerado como o primeiro
edifício projetado para ser museu: a Galeria Uffizi. (Foto 1) Grandes 171
gênios da arquitetura e da pintura foram conclamados a restaurar obras
clássicas, herdadas dos grandes mecenas burgueses do Quatroccento - como
os Médicis supracitados – e das coleções privadas diversas.
Teoria e contexto
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Foto 1 – Galeria Uffizi, Florença, Itália Fonte: da autora.

Apesar da grande contribuição dos italianos, foram os reis espanhóis os


detentores da coleção de pintura mais importante da Europa. De geração
em geração, este tesouro foi sendo alimentado para se tornar a base
fundadora do Museo del Prado, cujo edifício data de 1785, passando das
mãos da realeza para o Estado em 1868.

Expansão dos Museus e o Iluminismo


As curiosidades colecionadas ultrapassaram o campo artístico,
contemplando instrumentos científicos, exemplares da fauna e flora,
minerais e fósseis, alguns imaginários e montagens artificiais. “Em um
tratado de 1727, intitulado Museografia, Caspar F. Neickel descreve os
locais mais aptos para reunir objetos, a maneira de conservá-los em um
clima apropriado e determina algumas classificações: Naturalia, para os
gabinetes e Curiosa Artificialia, para os elementos estéticos.” (FRONER, 172
2001, p.60) A museografia neickeliana revela o auge do enciclopedismo,
construindo uma proposta de “museu ideal” que mais se relacionava
com os gabinetes de curiosidades do que com os gabinetes de arte.
(FERNÁNDEZ, 1993). Aos poucos, as coleções particulares foram
se ampliando drasticamente e sendo abertas ao público, ainda que não
universal, associando a terminologia “museu” a estes pitorescos espaços
expositivos. Foi no Iluminismo que o círculo dos colecionadores vai ser
profundamente alargado, com a institucionalização de práticas inauditas,
tais como exposições, vendas públicas e elaboração de catálogos das

Teoria e contexto
coleções.
SUANO chama a atenção para o fato de que “os primeiros cinqüenta anos
do museu público europeu - considerando-se 1759, a abertura do Museu
Britânico, como ponto de partida – não foram seu período mais feliz e
fecundo.” (SUANO, 1986, p.35) O museu era visto como um repositório

Ciência & Conservação


de valores que as camadas populares aborreciam, resultado de séculos
de exploração de alguns sobre muitos. Já para as camadas abastadas, o
museu vituperava tudo que dantes era exclusivo e, agora, banalizava-se
na presença de iletrados sem fortuna. Apesar do seu caráter nacional,
destinava-se essencialmente ao homem culto. Até que movimentos
intestinos convulsionaram a França...

Revolução Francesa
Se nos seus primórdios a Revolução Francesa (1789) propalou grande
destruição do patrimônio artístico e edificado da França, num segundo
momento reflexivo, estes objetos do “passado político” francês foram
preservados com o objetivo de se estudar a história. Com os bens do
clero, dos emigrados e da Coroa colocados por lei à disposição da nação,
urgia inventariar estes espólios, bem como elaborar regras de sua gestão e
novas destinações à herança patrimonial que se acumulava em depósitos.
Ao serem finalmente transferidos para espaços abertos ao público,
temos a consagração do museu. Imbuídos do espírito enciclopedista, os
museus tinham fins educativos, onde o civismo, a história, as artes seriam
nacionalmente divulgadas. As primeiras experiências malograram devido
à ausência de conhecimentos associados à nova matéria que insurgia,
medrando o Louvre (Foto 2), para onde convergiam as riquezas artísticas 173
sob a Revolução.
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Foto 2 – Museu do Louvre, Paris, França Fonte: da autora.

América do Norte
Ao redor do globo, inclusive no Novo Mundo, os museus também
proliferavam. Nos Estados Unidos, final do século XVIII, o Museu de
Salem - Sociedade Marítima das Índias Ocidentais, fundado em 1799 -
passou a integrar as coleções do Instituto Essex, que o adquiriu para ser
museu universitário de Harvard. Renomeado Peabody Museum, teve sua
fundação em 1866 por George Peabody. Trata-se de um dos museus mais
antigos do mundo devotado à antropologia, possuindo uma das coleções
mais abrangentes da arqueologia e etnologia norte americanas.
“Los museos americanos se diferencian de los europeos por su estructura
jurídica, por su forma de organización, por sus sistemas de financiación,
por el grade de inserción social y por la propria concepción ontológica
de museo.” (HERNÁNDEZ, 1998, p.31) Nas Américas, as sociedades,
resultado da convergência entre os interesses públicos e privados, até hoje
perduram, sendo responsáveis pela criação de diversos museus, escolas
e hospitais. Dentre suas notáveis contribuições, destaca-se o nascimento
174
daquele que seria o museu mais abrangente do ocidente em termos
histórico-temporais, bem como o museu mais importante das Américas –
O Metropolitan Museum (Foto 3). Fundado em 1870, consiste em um dos
maiores e mais refinados museus de arte do mundo.
Com mais de dois milhões de obras em seu acervo, cobrindo cerca de
cinco mil anos da cultura mundial, possui coleções de todas as partes do
planeta.

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Foto 3 – Metropolitan Museum, NY, EUA Fonte: da autora.

Consagração do Museu Europeu


No século XIX, consagrou-se o fenômeno europeu dos museus, que cruza
terras além mar em direção ao Novo Mundo. Em 1821, Goethe lança a
sua teoria sobre a “organização dupla dos museus”, onde prevê uma zona
para o público em geral e outra para os “iniciados e expertos”. Este artigo
consistiu em um marco de sua época, influenciando o Natural History
Museum em Londres (1886), que vez valer, ainda que parcialmente,
esta articulação goethiana do espaço museológico. Na Alemanha,
principalmente, temos o estudo racional das questões envolvendo os 175
museus e sua organização. Gustav Waagen, então diretor da Pinacoteca
de Berlim, assim como seu sucessor – Wilhelm von Bode, destacaram-
se neste cenário. No hoje denominado Bode Museum, prescindiu-se da
ordenação tradicional das peças, separadas normalmente por técnicas,
mesclando-se as obras, consagrando um estilo peculiar de exposição em
sua época. (FERNÁNDEZ, 1993)
Os Museus no Brasil
Neste mesmo século, o Brasil entrava para a história da museologia com
os mais antigos museus da América do Sul. Duas instituições culturais,

Teoria e contexto
de iniciativa de Dom João VI, iniciariam este processo: a Escola Nacional
de Belas Artes (fundada em 1815 como Escola Real de Ciências, Artes e
Ofícios) e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Entretanto, esta história
precisa começar um pouco antes de tudo isto, com a chegada da Missão
Francesa ao Brasil e sua revolução cultural. Após a vinda da Coroa Portuguesa

Ciência & Conservação


em 1808, conseqüência das investidas napoleônicas na Europa, o Conde
da Barca – António de Araújo e Azevedo, então ministro da Marinha e
Ultramar, trabalhou febrilmente para que a “modernidade francesa da
colônia cultural de Lebreton” fosse “uma peça fundamental no jogo maior
da hegemonia comercial e política britânica.” (BANDEIRA; LAGO, 2008,
p.19) Ao contrário do que reza tantas vezes a história, os artistas da Missão
Francesa não foram formalmente convidados pela Coroa Portuguesa.
Todos bonapartistas, partiram ao novo mundo por conta própria,
decorrência do clima político que tomava curso na França convulsionada,
sem qualquer garantia formal de que alcançariam o apoio de sua majestade
em terras brasileiras. Para Debret, um dos expoentes da Colônia Lebreton,
era prioridade fundar a Real Academia de desenho, pintura, escultura e
arquitetura civil, empresa que se concretizou somente em 1820. Nove
anos depois, acontece o primeiro Salão da Imperial Academia das Belas
Artes, tendo a exposição atingido sucesso absoluto de imprensa e público,
visitada por mais de duas mil pessoas. Outro grande feito, decorrente deste
evento, consistiu na introdução no Brasil, por Debret, do catálogo de exposição,
inovação memorável para as artes e a expografia.
Passemos ao segundo marco: o Museu Nacional. Primeira instituição
científica do Brasil e, atualmente, o maior museu de história natural e
antropológica da América Latina, foi fundado em 1818 como “Museu Real”.
Inicialmente instalado no Campo de Sant’Anna, em 1892 passou a ocupar o
176
Paço de São Cristóvão (Quinta da Boa Vista), residência real onde nasceu D.
Pedro II e tomou curso a 1ª Assembléia Constituinte Republicana.
Museu ampliado: novos valores, novas funções
Por caminhos políticos diversos, bem como pelo andor cultural, os museus
foram se aproximando, aos poucos, do que hoje entendemos como museu.

Teoria e contexto
Portanto, no século XIX, lentamente, assistimos o papel educativo dos
museus ganharem forças. O progresso invadia o mundo culto e inculto.
A revolução das máquinas e as novas tecnologias construtivas podiam
ser apreendidas nas feiras e exposições, a exemplo da Grande Mostra de
Todas as Nações, na Londres de 1851, para a qual se construiu edificação

Ciência & Conservação


ímpar: o Palácio de Cristal. Não seria fácil trazer o museu a todas as gentes,
visto que suas construções portentosas intimidavam a uns; assim como
a inacessibilidade (seja física ou de outra natureza) impedia o seu uso no
lazer do homem comum. Jonh Ruskin, na segunda metade do referido
século, começa a levantar a importância dos museus apresentarem, não
somente um aparelhado de documentos e objetos expostos para fins
contemplativos, mas também seu alicerce cultural, numa expografia que
contivesse uma visão crítica e contextualizada daqueles objetos. Isto vem
de encontro, já naquela ocasião, à historiografia moderna. “O documento
não é inócuo. É antes de mais o resultado de uma montagem, consciente
ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram,
mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver,
talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que
pelo silêncio.” (LE GOFF, 1982, p.103)
Com a quebra do silêncio, amplia-se consideravelmente o papel das
instituições museais no que tange à formação cultural, à educação e, até
mesmo, ao lazer, com a incorporação de casas de chá e outros espaços
de suporte aos visitantes. Mas parecia difícil, quase impossível, retirar
todos os ranços gélidos associados ao museu que, ora provocavam revolta
pela opulência e berço elitizado, ora traziam a tona a perda dos tesouros
coloniais pilhados. Saques disfarçados de arqueologia, numa época em que
a Europa furtou o mundo. Isto, no futuro, vai colorir as discussões acerca
177
do repatriamento de obras de arte. Contudo, ainda não chegamos lá. Ainda
vivia-se uma fase conflituosa desta instituição que precisava se firmar e se
afirmar, em seus valores e em seu significado. (...) “cada geração se viu
forçada a interpretar esse termo impreciso – museu – de acordo com as
exigências sociais da época”. (F. TAYLOR, 1938, in: SUANO, 1986, p.49)
Os Museus no Século XX
Na virada do século XX, os museus proliferavam e havia uma demanda
por organizar, além das próprias instituições, também os conhecimentos

Teoria e contexto
vinculados às mesmas. Os museus, estagnados, esperavam o despertar para
uma nova era, onde fossem ampliadas a sua exuberância e atuação social.
Algumas vezes a serviço da ideologia governamental, como os museus
envolvendo Hitler, outras vezes escravos de interesses econômicos, como
o capitalismo, o museu ganha status e vira arma filosófica. Nos EUA,

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cunha-se o termo museu dinâmico, onde vemos a transformação de insossas
instituições em espetáculos, bem ao gosto da sociedade norte-americana.
Escolas começam a formar os primeiros profissionais especializados no
assunto e o estabelecimento das sociedades museológicas constitui um
marco revolucionário na história dos museus. Organizações e instituições
dedicadas à área são criadas, reforçando a importância do trato com as
questões museais.
Em 1945 institucionaliza-se a ONU – Organização das Nações Unidas,
ocupando o lugar da Sociedade das Nações. No ano seguinte, cria-se a
UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e
a Cultura. (CRUZ, 2008) Neste mesmo ano de 1946, diretores de todo o
mundo reuniram-se para fundar o ICOM – International Council of Museums.
Trata-se de uma organização não-governamental sem fins lucrativos,
formalmente associada à UNESCO, possuindo status consultivo no
Conselho Econômico e Social da ONU. As inúmeras publicações e grupos
de trabalho do ICOM e seus parceiros garantiram-lhe uma projeção global
na sociedade e na comunidade dos museus contemporâneos. Dentre suas
honoráveis contribuições, temos as diferentes conceituações da palavra
museu que, como a própria organização, evoluiu ao longo do tempo. Em sua
22ª Assembléia Geral em Viena, Áustria, no ano de 2007, o ICOM sintetizou
a definição do conceito: “Os museus são instituições permanentes, sem
fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, abertas
178
ao público, que adquirem, preservam, pesquisam, comunicam e expõem,
para fins de estudo, educação e lazer, os testemunhos materiais e imateriais
dos povos e seus ambientes”. (ICOM, 2009 – Código de Ética)
Outra instituição internacional de relevo é o Comitê Internacional do
Escudo Azul (ICBS). Fundado em 1996, tem como propósito fazer valer
a Convenção de Haia (1954), protegendo e salvaguardando bens culturais
instalados em áreas onde existam conflitos armados.

Teoria e contexto
A Nova Museologia e seus termos afins
Curadores e museólogos decidiam isoladamente o que merecia ser
musealizado, conservadores outorgavam em seus próprios círculos o que
deveria ser preservado, historiadores sacralizavam – em sua linguagem

Ciência & Conservação


peculiar – o que precisava ser descrito e analisado, museógrafos e
arquitetos demarcavam percursos e leituras obrigatórias; e o público,
razão maior dos museus, assistia passivo a tudo isto, contentando-se em
ser mero expectador no teatro pouco dançante da vida nos museus. Esta
situação levou ao surgimento de uma nova concepção, contraposta à
visão tradicional. Cunhou-se o nome de Nova Museologia, movimento que
afirma a função social do museu e o caráter global de suas intervenções.
Baseada na experiência dos ecomuseus (museus emanados da comunidade,
referenciados no entorno natural e social) e dos museus comunitários, a
Nova Museologia procura ser uma museologia ativa, em contraposição à
museologia distanciada e passiva de antigamente.
Este novo movimento põe-se decididamente ao serviço
da imaginação criativa, do realismo construtivo e dos
princípios humanitários definidos pela comunidade
internacional. Torna-se, de certa forma, um dos meios
possíveis de aproximação entre os povos, do seu
conhecimento próprio e mútuo, do seu desenvolvimento
cíclico e do seu desejo de criação fraterna de um mundo
respeitador da sua riqueza intrínseca. Neste sentido, este
movimento, que deseja manifestar-se de uma forma global,
tem preocupações de ordem científica, cultural, social e
econômica. Este movimento utiliza, entre outros, todos os
recursos da museologia (coleta, conservação, investigação 179
científica, restituição, difusão, criação), que transforma em
instrumentos adaptados a cada meio e projetos específicos.
(Declaração de Quebec, ICOM, 1984)

Paralelamente, outra mesa de discurso, igualmente imperativa, estava sendo


estabelecida: a dos próprios profissionais. Mesa esta que, justamente aqui,
coloca-se como tema pertinente e inadiável. As áreas profissionais parecem
verdadeiras ilhas (GOULART In: OLIVEIRA, 2002, p.18), onde cada
categoria elabora a sua própria história, seu próprio vocabulário e próprio

Teoria e contexto
proceder em relação ao museu, que é, por natureza, interdisciplinar.
Segundo DE MASI, o intercâmbio entre as disciplinas consiste em condição
sine qua non para o sucesso de empreendimentos em equipe cujo trabalho
envolva criatividade e interdisciplinaridade. (DE MASI, 1999) Mesmo nos
casos em que nos deparamos com equipes multidisciplinares, raramente

Ciência & Conservação


observamos uma real e fecunda interlocução entre os profissionais das
diversas áreas, objetivando a elaboração de um produto final coeso. Ao
contrário, o que se tem observado são trabalhos fragmentados, onde
freqüentemente a incoerência vigora de uma parte para a outra, em textos
descolados, não somente da realidade, mas como também uns dos outros
dentro de um mesmo corpo.
Além de uma equipe interdisciplinar é preciso contar ainda com a
multiplicidade de técnicos de uma mesma categoria profissional. Valores
diversos estão em jogo, valores estes que condicionam o nosso olhar, por
maior que seja nossa integridade intelectual e por mais isentos que nos
proponhamos ser. O estudo do homem e suas atividades apresenta ao
cientista uma aguda ironia, da qual não podemos nos furtar ou recusar:
como peça ativa do jogo, jamais teremos uma visão desobrigada do
tabuleiro, ao contrário, nosso olhar está condenado à perspectiva que –
por trabalho, cultura, sorte ou destino – nos aprouver. Por mais que nos
esforcemos para obter uma outra posição estratégica, sempre se resumirá
a uma posição. Quem olha, não olha somente para algum lugar, mas como
também de algum lugar. (CHAUI In: VÁRIOS AUTORES, 2002, p.35)
E isto fatal e involuntariamente nos condiciona, podendo ser o olhar
do próximo o remédio para tais direcionamentos, quando indesejáveis.
A diversidade será, assim, benéfica e bem vinda, precedendo o diálogo
e lançando mão da interdisciplinaridade. “Para atingir este objetivo e 180
integrar as populações na sua ação, a museologia utiliza-se cada vez mais
da interdisciplinariedade, de métodos contemporâneos de comunicação
comuns ao conjunto da ação cultural e igualmente dos meios de gestão
moderna que integram os seus usuários.”.(Declaração de Quebec, ICOM,
1984)
Museu contemporâneo: a nossa casa
Acreditamos, firmemente, nesta nova visão museal, sendo este trabalho

Teoria e contexto
uma modesta contribuição para o debate e fortalecimento dos museus,
enquanto nossa casa. Dentre os muitos nomes que se atribuem aos
museus, este nos agrada em particular: casa. Primeiro era Mouseion, casa
das Musas imaginárias, detentoras do elixir da imortalidade terrena... a
memória humana. Formulando, assim, o passado a partir do presente, e

Ciência & Conservação


o futuro, a partir de ambos. No dizer de Áurea GUIMARÃES, “recolher
os cacos do passado permite buscar o que se foi esquecido, recuperar
o sentido inédito das histórias que não puderam ser contadas, fazendo
com que o reprimido não se perca na indiferença do nosso olhar.” De
fato, “ainda é tempo de contar histórias e há muitas histórias a serem
contadas.” (Carlos Drummond de ANDRADE) Porque não há conforto
mais verdadeiro do que permanecer em casa e ouvi-las (Jane AUSTEN),
pois a casa é o lugar para onde eu volto, para confirmar minhas certezas,
constatava meu saudoso professor Moacir LATERZA. Recordo-me, neste
momento, das palavras do nosso então Ministro da Cultura, Gilberto
GIL, por ocasião do lançamento do Ano Nacional dos Museus, quando
nos alertou para o fato de que precisávamos pensar o mundo a partir
da casa. Compreendendo a casa, as coisas da casa e os modos de ser da
casa, seríamos capazes de, em seguida, compreender seu universo mais
amplo. Como casas acolhedoras que são, é preciso que o povo brasileiro
se sinta em casa nos museus, apropriando-se dele como se seu o fosse.
Porque de fato, o é. Gilberto GIL prossegue e diz: “assim como a Casa
de Göethe provocava sonhos em Walter Benjamin, este é um Museu Casa
que provoca sonhos em muitos de seus visitantes e usuários, sonhos e
visões de cor e forma e movimento; sonhos e experiências poéticas.”
Que sejam as bibliotecas a nossa adega, onde nos embriagamos da
informação vital, transformando-a em conhecimento e sabedoria. 181
Monteiro LOBATO já sabia que uma nação se constrói com homens e
com livros. Que seja o museu, a nossa casa materna, porque Vinícius de
MORAES já nos revelava, em poesia e verso, que esta se divide em dois
mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive
a memória. Subindo e descendo esta escada, prosseguimos como um rio
alimentado por correntes perenes, como uma fogueira cuja lenha queima
sem se consumir. Esta é a essência de todos nós, profissionais dos museus
brasileiros: somos água, somos fogo, somos bravos persistentes.
___________
Referências

Teoria e contexto
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Contemporâneo – Documentos e Depoimentos. Brasil: ICOM, 1995.

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LOUVRE. Disponível em: <www.louvre.fr> Acesso em: 15/09/2010.

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Ciência & Conservação


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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos: estudos da psicologia histórica. São
Paulo: USP, 1973.

183
A Pintura de Retrato no Brasil: estudo de caso
de uma obra de Édouard Vienot e François

Teoria e contexto
Henri Morisset
Fábio das Neves Donadio
Mestrando PPGA-EBA-UFMG
Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Ciência & Conservação


Thiago de Pinho Botelho
Mestrando PPGA-EBA-UFMG
Maria Regina Emery Quites(Orientadora )


RESUMO
A transferência da Família Real Portuguesa no século XIX, a elevação do Brasil a Reino
Unido, sua Independência Política e a passagem de um sistema exportador escravagista
para outro baseado no trabalho assalariado, redesenharam a vida na colônia. No campo
cultural, alimentado pelos ideais da Revolução Francesa, a arte setecentista portuguesa
se transformava a partir de formas e conceitos importados da Europa. Nesse cenário, a
aristocracia mostrava seu poder e status por meio da encomenda de retratos a pintores
franceses que hoje nos apresentam personalidades do passado, remontando seus costumes
e o estilo artístico da época. Para compreensão desta linguagem própria, o presente artigo
visa analisar uma pintura de retrato executada nesse período por uma importante dupla de
pintores franceses, responsáveis por retratar diversas personalidades na Europa e também
no Brasil: Édouard Vienot e François Henri Morisset. Para melhor compreensão do tema
abordado, faremos uma leitura formal, histórica e estilística, bem como uma análise do
estado de conservação da obra, seguida de uma proposta de restauro.
Palavras-chave: Pintura de Retrato. Conservação. Restauração.

ABSTRACT
The transfer of the Portuguese Royal Family in the nineteenth century, the Brazil’s rise to United Kingdom,
its Political Independence and the passage of a slave export system to another one based in a salaried
work, redesigned the life in the colony. In the cultural field, fulfilled by the French Revolution’s ideals, the
eighteenth-century Portuguese art was transformed from forms and concepts imported from Europe. In this
184
scenery, the aristocracy used to show its power and status by the order of portraits to French painters that
nowadays present to us personalities from the past, showing the habits and the artistic style of the period.
To comprehend this unique language, this article aims to analyze a portrait painting made in this period
by important French painters, responsible for depicture several personalities in Europe and also in Brazil:
Édouard Vienot and François Henri Morisset. To comprehend in a better way the theme that we are
dealing with, we intend to make a formal, historical and stylistic reading, as well as an analysis of the
conservation condition of the work, followed by a restoration proposal.
Key Words: Portrait Painting. Conservation. Restoration.

Teoria e contexto
Introdução

Ciência & Conservação


Se observarmos as manifestações artísticas e culturais do nosso país através
dos tempos, notaremos logo que a pintura foi uma das que deixou maiores
e indeléveis vestígios. Desde meados do século passado, a pintura atraiu
para o Brasil artístico a atenção e a admiração de notáveis estrangeiros.
Muito foi escrito sobre a nossa pintura, muitos esforços louváveis foram
feitos para divulgar seus conhecimentos. A História e a Arte caminham
conjuntamente, pois possuem a mesma significação e a mesma origem:
ambas dão e recebem, uma cria a beleza, a outra a explica e a propaga.
Exprimindo as idéias e os sentimentos de uma época, incentivando a ação
ou o sonho, a arte que nasceu com a humanidade e com ela morrerá não
pode ser separada da história, pois seria suprimir-lhe todas as suas raízes.
Dessa forma, no presente artigo será abordado a questão histórica e artística
do período oitocentista do Brasil, fazendo um pararelo cronológico da
pintura desde as influências neoclássicas, perpassando os tempos, até a
vinda para o Brasil de uma Missão de pintores franceses. Em especial, será
analisada neste artigo uma pintura de retrato referida a Édouard Vienot
e François Henri Morisset, os quais deixaram grande legado pictórico no
país, retratando personalidades da sociedade no final do século XVIII e
início do século XIX.

185
O Neoclassicismo Histórico
O nascimento do Neoclassicismo se deve em linhas gerais ao crescente
interesse pela antiguidade clássica em meados do século XVIII, associado
a influências dos ideais do Iluminismo. Os acadêmicos da época iniciaram
pesquisas mais sistemáticas da arte e da cultura antiga, incluindo escavações
arqueológicas, formando importantes coleções públicas e privadas de arte
e artefatos antigos.
O Neoclassismo teve larga influência em toda a arte e cultura do ocidente

Teoria e contexto
até meados do século XIX. Como base, mantiveram um renovado
interesse pela cultura da Antiguidade clássica, advogando os princípios da
moderação, equilíbrio e idealismo como uma reação contra os excessos
decorativistas e dramáticos do Barroco e Rococó.

Ciência & Conservação


Tanto as formas gregas quanto as romanas serviram de modelo aos
artistas neoclássicos. Do século XIX em diante, a preferência voltou-se
para a estética grega. Como a pintura era a forma artística menos cultivada
na Grécia e em Roma, em relação à escultura e à arquitetura, os pintores
neoclássicos tomaram como modelo alguns maneiristas, como os Carracci,
e principalmente certos renascentistas, como Rafael.
Na época neoclássica atribui-se grande importância à formação cultural
do artista. O primeiro passo na formação do artista é desenhar cópias de
obras antigas pretendendo-se, portanto, que o artista, desde o inicio, não
reaja emotivamente ao modelo, mas se prepare para traduzir a resposta
emotiva em termos conceituais (ARGAN, 1995, p. 31).
O neoclassicismo preconizava o retorno aos ideais clássicos de beleza,
mas o espírito que o plasmou diferia nitidamente do espírito humanista
que deu origem ao primeiro.
Neoclassicismo não é uma estilística, mas uma poética;
preserva uma determinada postura, também moral, em
relação à arte e, mesmo estabelecendo certas categorias
ou tipologias, permite aos artistas certa liberdade de
interpretação e caracterização. (ARGAN, 1995, p. 75)

O movimento teve conotações políticas, já que a origem da inspiração


neoclássica era a cultura grega, com sua democracia, e a romana, com sua
república, com os valores associados de honra, dever, heroísmo, civismo
186
e patriotismo.. Como conseqüência, o estilo neoclássico foi adotado pelo
governo revolucionário francês, assumindo os nomes sucessivos de estilo
Diretório, estilo Convenção e mais tarde, sob Napoleão, estilo Império,
influenciando outros países.
Em verdade, de 1820 a 1850, já em decadência, o neoclassicismo opôs-
se ao romantismo e, abrigado nas academias e escolas de belas-artes,
confundiu-se com o academicismo e assim reagiu a todas as tendências de
vanguarda, a começar pelo impressionismo.

Teoria e contexto
Este estilo procurou expressar e interpretar os interesses,
a mentalidade e os habitos da burguesia manufatureira e
mercantil da época da revolução francesa e do Império
Napoleonico, e consequentemente o mesmo estilo foi
adotado tardiamente no Brasil com a vinda da Missão

Ciência & Conservação


Artistica Francesa em 1816 – 1840. (CAMPOFIORITO,
1983, p.19)

As características marcantes são o caráter ilustrativo e literário, marcados


pelo formalismo e pela linearidade, poses escultóricas, com anatomia
correta e exatidão nos contornos, temas “dignos” e clareza. Dentre as artes
aplicadas, a pintura neoclássica se caracteriza pelo predomínio do desenho
e da forma sobre o formalismo e racionalismo, exatidão nos contornos,
harmonia do colorido, retorno ao estilo greco-romano, academicismo e
técnicas apuradas, ideal da época (democracia).

Contextos históricos sobre a pintura no Brasil


O século XIX apresenta à História da Arte no Brasil o sério desafio
de ter sido a época decisiva para a formação de nossa cultura nacional.
Grande foi a mentalidade brasileira durante a estada de D. João VI no
país, principalmente no que se refere à declaração do Brasil um país
independente. Essa mudança radical da política não provoca nenhum
tipo de repressão ou desmembramento com a terra lusitana, ao contrário,
estreita os laços que entrosavam os indivíduos entre si.
Portugal ainda não tinha se atentado na existência desses
expoentes brasileiros; por isso fica complexo com os
resultados das medidas adotadas por D. João VI, que agiu 187
“mais por uma imposição das circunstâncias em que se
achava a colônia, ou pela fatalidade dos transes que teve a
Corte, por uma exata compreensão do quanto se impunha
a monarquia, naquele grave momento da história”.
(CARVALHO, 2000, p. 46).
Dentre as medidas adotadas por D. João VI em 1816 no Rio de Janeiro,
uma delas era fundar, com artistas franceses, uma Academia de Belas Artes.
Ao invés de observar a realidade e dispor-se para erguer o ambiente com
os recursos locais (incentivando os artistas locais), D. João VI contrata

Teoria e contexto
uma Missão de Artistas Franceses.
Os artistas, que a compunham, eram individualmente marcados e já com
grande projeção social e cultural. Vinham num momento em que a França,
através das suas idéias, exercia uma ditadura universal.

Ciência & Conservação


Portanto, que consideração dispensaria as manifestações
artísticas daquela época esses mestres que saíam da Escola
de Roma, e cujas imaginações ainda escaldavam com a
epopéia napoleônica? Em vez de operarem como tutores
da arte local, que emitia débeis vagidos, e embora primitiva,
redes, ingênua, tinha o alto valor de ser tentativa da terra,
eles desprezaram-na para enxertar os amaneirados em
moda em França (LOBATO, 1917, p. 37).
A obra de arte, para eles, estava sujeita a uma série de regras e formulações
convencionadas. Ignoravam a eloquência lírica das formas primitivas
dispostas pela poesia instintiva. Aliás, o instinto popular era desconhecido
e tão pouco elevado a categoria de manifestação artística.
O ensino artístico no Brasil, desde o seu começo, despreza as fontes
populares de inspiração para fomentar uma floração postiça, impedindo
que a arte, devido a um falseamento de visão, refletisse a alma nacional.
Com a fuga de D. João para Portugal, a nomeação de seu filho D. Pedro
para reinar o Brasil, e sequencialmente o segundo reinado com D.Pedro
II, surgem sintomas de compenetração dos brasileiros sobre o valor de
sua expressão individual e coletiva. Foi significativa e marcante a atitude
estimuladora do monarca no movimento artístico do seu reinado, que
particularmente manda à Europa para estudar, Pedro Américo, Carlos
Gomes, Vitor Meireles e Almeida Júnior. “E o mesmo, encoraja os
artistas, facultando assim o aparecimento de grandes realizações artísticas 188
equiparáveis às maiores do mundo”. (GUIMARÃES, 2000, p. 81).
Com a implantação da República em 1889, a Academia de Belas Artes
transforma-se, nominalmente (porque sua estrutura e orientação
foram substituídas), em Escola Nacional de Belas Artes. No Império, a
Academia interpretava as idéias da sociedade, as aspirações do Imperador;
na República, aquelas se modificam, esses desaparecem e surge o povo
brasileiro.
Tal mudança de orientação cultural, esboçada durante o Império, e definida

Teoria e contexto
mais tarde na República, justifica o amortecimento da capacidade plástica
criadora. Este corresponde ao período de recolhimento e de concentração
espiritual indispensável à adaptação do novo processo intelectual.
Essa nova diretriz da inteligência brasileira, essa marcha intelectual para

Ciência & Conservação


dentro – desbravando os interiores em busca do ouro rútilo da nacionalidade
– incutirá, num futuro próximo, caracterizado por profundas e indeléveis
manifestações artísticas.

A Missão francesa e a arte do XIX


Para compreensão da arte brasileira do século XIX, deve-se ter em mente
que o Brasil vivia as influências da sua nutridora nação luso-portuguesa.
A transferência da família real portuguesa e a conseqüente elevação do
Brasil a Reino Unido e sede da Corte; a independência política de um
Estado nacional; a progressiva emancipação econômica e a passagem
de um sistema exportador escravagista para outro baseado no trabalho
assalariado; o surgimento de uma classe média urbana e de um comércio
interno aliado aos nascentes grupos industriais; tudo isso, até o advento
republicano, pôde condicionar a inteligência brasileira para receber e
acontecer, de fato, nestes mais de cem anos de História independente.
A necessidade de reaparelhamento da nova sede metropolitana teve do
governo de D. João VI a medida de contratação de uma missão de artistas
franceses que, escapando à reação antinapoleônica, trouxeram para um
ambiente católico, monárquico e tropical, as doutrinas estéticas e os
preconceitos moralistas da recente revolução burguesa.
[...] os artistas franceses componentes da Missão vieram
189
ao Brasil por espontânea vontade, compelidos por
dificuldades políticas oriundas da restauração de Luiz
XVIII, baseia-se apenas em publicações coevas recheadas
de despeito e na carta regia de 12 de agosto de 1816, em
que D. João VI, enfaticamente, declara querer “aproveitar
desde já a capacidade, habilidade e ciência de alguns
estrangeiros beneméritos, que tem buscado a minha real
e graciosa proteção”, e que por isso faz “mercê para a sua
subsistência” de uma pensão. (JÚNIOR, 1944)

Teoria e contexto
Este modernismo laico e progressista, mas imposto de fora, além de cortar
a tradição colonial de raízes religiosas e barrocas, deu início ao ensino
oficial das belas artes no Brasil, imprimindo-lhe os cânones austeros e
acadêmicos que marcariam tão fortemente a evolução de nossa pintura
oitocentista.

Ciência & Conservação


É preciso lembrar a indissolúvel relação da arte com a vida social, que
o sistema colonial, ao impedir qualquer desenvolvimento brasileiro que
não servisse diretamente aos interesses da metrópole, acabou por limitar
a produção artística a certas necessidades mínimas locais, o que levou a
própria pintura a restringir-se à ornamentação das igrejas e aos retratos
encomendados pelas irmandades religiosas. Se não fossem as obras dos
pintores que vieram com o príncipe holandês Maurício de Nassau, no
século XVII, nos faltaria uma visão pictórica do cenário colonial. É,
com efeito, nas telas e desenhos, que se tem o testemunho do impacto
provocado pela pujança das paisagens tropicais e pelas condições sociais
relacionadas com a economia açucareira.
Segundo os autores Quirino Campofiorito e José Maria Júnior, a vinda
da Missão Francesa ao Brasil é o fato fundamental que inicia nossa nova
história da pintura no século XIX. Como se sabe, a corte portuguesa,
fugindo à invasão das tropas francesas de Napoleão, sob o comando do
general Junot, aportou na Bahia no início de 1808, transferindo-se em
seguida para o Rio de Janeiro.
Elevado a príncipe regente do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve,
D. João VI recebeu de seus conselheiros propostas para adotar na nova
Metrópole as condições indispensáveis à vida cultural que lhe competia
manter. Dentre outras múltiplas e importantes iniciativas para atender
ao progresso que se impunha, coube ao Conde da Barca (D. Antônio de
190
Araújo e Azevedo) a sugestão de se contratar em Paris uma equipe de
artistas e artífices que dessem condições rigorosas ao ensino das artes e
ofícios no Rio de Janeiro, e assim pudesse o brasileiro corresponder às
exigências sempre maiores do desenvolvimento cultural.
O fato não corre sem contestações no Rio de Janeiro, já que muito
implicavam na vida política interesses contrários que procuravam
intervir nas decisões de D. João VI e provinham de correntes anglófilas e
francófilas. Mas sai vitoriosa a preferência pela Missão Francesa, dado o

Teoria e contexto
prestigio que a arte da França gozava internacionalmente.
Os contatos com as personalidades que iam sendo cogitadas muito
ajudaram Alexander Von Humboldt o qual intermediou a vinda de
Joachim Lebreton, recentemente destituído do posto de secretário do
Institut de France, para selecionar e dirigir a equipe de artistas no Brasil.

Ciência & Conservação


Confiada a Lebreton esta tarefa, foi relativamente fácil reunir artistas que
se encontravam apreensivos às reações bonapartistas.
O grupo de artistas reunidos por Lebreton chega ao Rio de Janeiro em 20
de março de 1816, ressaltando a importância dos pintores, a quem destina
o registro bem detalhado no contexto explícito da pintura brasileira no
século XIX.
Dos artistas franceses, o que se deve reconhecer é que eram notáveis e
categorizados no ambiente artístico europeu, o que constituía credencial
de significado internacional. É licito reconhecer que aqui souberam
enfatizar uma autoridade capaz de moldar a formação de seus discípulos
para um formalismo indiferente à realidade brasileira.
A história do ensino artístico que define as novas diretrizes
estéticas conta, de início, com a Escola Real de Ciência, Artes
e Ofícios, criada por decreto de 12 de agosto de 1816, um
semestre após a chegada da Missão. (CAMPOFIORITO,
1983, p. 24)
Apenas valeu o título, pois a escola não chegou a funcionar, recebendo
nova denominação de Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e
Arquitetura Civil, com a qual não teve melhor sorte. Por decreto de 23
de novembro de 1816, fica assentada a criação de uma escola de ensino
artístico denominada Academia de Belas Artes.
[...] não transcorria como seria de esperar a criação do ensino
191
artístico sob a égide da Missão Francesa. A academia de
Belas Artes, com o rigor desejado pelos mestres franceses,
só veio efetivamente a funcionar a partir de 5 de novembro
de 1826. (CAMPOFIORITO, 1983, p. 26)
No que se refere ao ensino da Academia, prevaleceu a mentalidade
alienada dos que não aceitavam as chamadas “belas artes” aos ofícios
“menores”. Esta não aceitação dos artistas franceses afastavam da
Academia os profissionais que precisavam e careciam do progresso de
um pais ainda desprovido de mão de obra artística para sua arrancada ao

Teoria e contexto
desenvolvimento independente.

VIenot e Morriset: a pintura de retrato no Brasil


Há tempos o homem é fascinado por sua própria imagem e seus

Ciência & Conservação


semelhantes. Em civilizações antigas, os egípcios retratavam os faraós e
seus séquitos em pinturas murais; os romanos por sua vez eram retratados
em bustos, medalhões e moedas que geralmente eram mostrados de forma
bem natural.
Após a chegada do Império Romano, o retrato, foi um fenômeno raro
durante séculos. A Renascença colocou que o próprio homem era o centro
do universo, e com a Idade Média, a expressão artística se concentrava na
celebração divina e na relação do homem com Deus.
Como na Antiguidade os retratos eram um grande luxo, apenas permitido
a governadores e outros dignitários. Mas esse círculo passou a incluir os
novos ricos – prósperos comerciantes e banqueiros. Grandes pintores
começaram a se especializar em retratos, que durante os séculos XVI
e XVII serviram aos interesses de famílias, de patentes e também às
ambições.
No século XVIII, era provavelmente por meio de um retrato que o artista
alcançava riqueza e fama. O retrato era, de forma geral, considerado um
símbolo de status, uma expressão de realização pessoal e uma forma de
assegurar um lugar na posteridade.
Sobre a arte brasileira do século XIX, deve-se entender que o Brasil vivia
as influências da sua mantedora nação luso-portuguesa. A produção
artística deste período estava vinculada às igrejas, onde as ordens religiosas
192
encomendavam esculturas policromadas em madeira para ornamentação
dos altares e pinturas decorativas destinadas a interiores de igrejas,
sacristias e conventos.
Dentro da cultura portuguesa, havia uma grande escassez pela pintura de
cavalete, que era destinada às residências particulares, onde viajantes se
assustaram com a falta destas pinturas, principalmente pelas famílias de
posses luso-brasileiras.
As irmandades sustentavam a produção destas pinturas para função

Teoria e contexto
comemorativa, o que foi característico da pintura luso-brasileira no final
do século XVIII até o século XIX, época em que a burguesia se ostenta e
caracteriza por alegorias em forma de pinturas retratistas.
Segundo Migliaccio (2000, p.37)

Ciência & Conservação


A particularidade dessa retratística é seu caráter público e
monumental. São retratos de corpo inteiro, em tamanho
natural, nos quais a personagem é, em geral, inserida numa
paisagem urbana representando um conjunto de casas, uma
igreja ou um edifício publico, contribuição do retratado ao
patrimônio ou às obras da congregação. Diferentemente da
retratística colonial norte-americana, vinculada à exaltação
das virtudes sociais no âmbito da família, o retrato brasileiro
dessa época é, portanto, eminentemente público, destinado
a exaltar o papel cívico do cristão na construção da cidade,
que é sinônimo de civilização.
A arte do retrato é uma característica da pintura acadêmica do século
XIX com tendências românticas. O retrato, assim como outros gêneros
da pintura, aparece regularmente no contexto brasileiro a partir de 1816
com a chegada da Missão Artística Francesa, um evento que marcou a
sensibilidade estética colonial. Num primeiro momento, as diretrizes do
estilo Neoclássico, que gerou, posteriormente, um academismo sempre
inspirado na estética européia.
[...] ainda que enriquecido por alguns acentos românticos
e realistas, a pintura brasileira mantém-se, até o início
do século XIX, dentro de convenções impostas pelo
Academismo. É uma pintura européia, importada como
quase tudo que se consome no país. (MIGLIACCIO, 2000,
p. 40)
Advindos com a Missão Francesa, o retratista Vienot e Morriset, foi um
193
pintor francês discípulo de Guérin e Hersent, e foi nomeado no dia 20
de agosto de 1869, pelo imperador D.Pedro II do Brasil, o “retratista e
fornecedor da Casa Imperial”.
Segundo Benezit (1976) Edouard Vienot nasceu em 13 de setembro de
1804 na cidade de Fontaineblau, França. Ingressou na Escola Nacional de
Belas Artes de Paris em 1822, onde foi aluno de Guerin e Hersent, dois
grandes expoentes desta escola. Tornou-se pintor retratista realizando
obras que foram expostas no período de 1831 a 1870.

Teoria e contexto
Segundo consta em ficha do Museu Nacional de Belas Artes, Vienot residiu
durante longo período no Brasil, onde executou trabalhos retratando o
Imperador D. Pedro II, seus filhos e outros personagens da aristocracia
do império.

Ciência & Conservação


Ainda em catalogação realizada pelo Setor de Obras de Artistas
Estrangeiros do Museu de Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,
encontra-se uma vasta produção do pintor-retratista, distribuída por
instituições como a Biblioteca do Estado do Amazonas em Manaus, Museu
Histórico Nacional do Rio de Janeiro, Pinacoteca do Museu Imperial de
Petrópolis, Fundação Maria Luíza e Oscar Americano em São Paulo,
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro, Biblioteca
do Estado do Maranhão em São Luiz, Museu Mariano Procópio em Juiz
de Fora/MG, além de obras em coleções particulares.
Várias das pinturas de retrato apresentam assinatura dupla por Vienot e
Morisset, o que indica parceria com outro artista.
A produção de retratos foi, a principio, mantida por iniciativa e encomendas
da nobreza portuguesa aqui instalada e, posteriormente, estendeu-se à
classe aristocrática burguesa bem sucedida, cuja necessidade de status
e ascensão exigia a perpetuação da sua imagem de forma a atender aos
valores sociais.
Possivelmente, a obra foi realizada com o auxilio e/ou utilização de uma
fotografia, que neste período é também um instrumento de transmissão
da imagem.
(...) Para esta classe dominante, uma mera fotografia
emoldurada na sala de visitas não correspondia aos seus
anseios. Era necessário mais. Surgiu, então, o ‘fotógrafo-
194
pintor’, não sendo raras as vezes que uma foto ampliada
servia como desenho, base portanto, para um retrato a óleo.
(VIANA, 1915, p. 77)

Devido à grande informação passada pelos recursos fotográficos, ocorreu


no meio artístico uma grande vazão de profissionais da área e ateliers
existentes no Brasil neste período do século XIX.

Teoria e contexto
Análise estilística da obra
Nos retratos, preocupa-se com uma adesão quase caricatural às feições
dos personagens e aos símbolos de seu status social, transmitidos pela
iconografia e pelos trajes. Retratos imperiais ou de personalidades políticas
e da elite social, sempre muito aproximada à Corte, eram oportunidades

Ciência & Conservação


mais habituais de trabalho para os pintores que aqui chegavam.
A “pintura de retrato” (abaixo), é portanto, um produto que reflete
as exigências de uma sociedade em determinada época e local. É o
instrumento pelo qual o indivíduo adquire participação na vida social
através da imagem transmitida pelo artista.
A obra estudada configura-se em um homem jovem, olhar direcionado
para frente e sua expressão facial demonstra tranquilidade e serenidade.
Sua carnação apresenta-se em tons rosados, olhos e cabelos castanhos.
Veste camisa branca, gravata preta, colete e paletó preto com relógio de
algibeira no boldo direito do paletó. O fundo se dilui em tons castanho e
ocre.
A estrutura compositiva da obra está marcada por um eixo vertical que
lhe confere uma composição simétrica rígida (cujas partes se encontram
dispostas com absoluta semelhança e correspondência, em relação com
um eixo quase sempre real), equilíbrio e estaticidade. A área geométrica
principal coincide com o rosto do retratado, para onde converge o primeiro
olhar do observador. A composição foi desenvolvida em inscrever a
figura em um triângulo, o que lhe confere uma atitude estática, rígida e
convencional,não demonstrando qualquer sinal de emoção.
Não se pode pretender esperar da obra uma interpretação da personalidade
do retratado pelo artista. Isto garante que se trata realmente de uma
195
“fotografia pintada”.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Foto 2 – Pintura de Retrato: s/d
Édouard Vienot e Henri Morriset
Acervo – Particular

No final do século XIX e início do século XX, época estética desta obra,
a pintura de retrato para muitos funcionava, ao lado do magistério, como
uma “espécie de derradeiro recurso ou ganha pão” (DORE, 1996 : 21)
O dirigismo neoclássico, inerente à formação do artista, cumpre, nesta
obra, o seu verdadeiro papel: de servir à classe burguesa dominante.
Consegue-se idealizar verdadeiro “status” social de um homem simples e
carismático, para uma personalidade social ávida e importante.
O formalismo da obra analisada não poderia ser de outra maneira, pois
representa claramente o gosto e o interesse de uma sociedade conservadora. 196
Trata-se de um retrato que relega os bons costumes, o orgulho familiar
pelo patriarca e as tradições de uma sociedade burguesa.
Considerações Finais
Este artigo aponta a importância da vinda da Missão Francesa em 1816
para o Brasil, de suas manifestações e projetos para um re-culturamento

Teoria e contexto
artístico na nova metrópole. Vale ressaltar a importância deste projeto de
artistas para integração de ofícios em uma escola e a sua interdisciplinaridade
funcional. Com isso, o artista-pintor teve um importante papel como
elaborador de imagens sob um olhar romântico do homem imponente a
sociedade.

Ciência & Conservação


A obra analisa, é, portanto, exemplar, se destacando pela perfeição da
execução técnica e pelo testemunho histórico e estético que ela apresenta.
O valor simbólico e social que seus elementos adquirem indicam, além
do caráter romântico à ela inerente, a releitura persistente na produção
artística do homem.
Assim, a função da obra em questão não é a reconciliação, esclarecimento
ou veracidade, mas sim, a invenção de outro jogo de linguagens, de outro
artifício – a analise critica.

___________
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198
A documentação como ferramenta de
preservação

Teoria e contexto
Ana Martins Panisset
IEPHA-MG

Resumo

Ciência & Conservação


O objetivo do artigo é frisar a importância do processo de documentação como ferramenta
indispensável para a tomada de decisões e como registro das ações de conservação e
restauração. A documentação se faz necessária para identificação, proteção e interpretação
dos bens culturais. Através dos registros e dos inventários é possível assegurar o rigor
nas tomadas de decisão para a salvaguarda destes bens. A documentação é um processo
contínuo que possibilita o monitoramento, a manutenção e compreensão dos bens
culturais, sendo portanto parte essencial dos métodos de conservação. Utiliza-se como
referência documentos internacionais de preservação como a basilar Carta de Veneza
(1964), e o documento Principles for the recording of monuments, groups for buildings and sites
(ICOMOS 1996), assim como o uso da documentação nas bases da construção da Teoria
da Conservação.
Palavras-chave: Documentação, conservação preventiva, conservação/restauração, pre-
servação, cartas patrimoniais.

Abstract
The purpose of this article is to emphasize the importance of the documentation process as
an indispensable tool for decision making and as a record of conservation and restoration
actions. The documentation is necessary for identification, protection and interpretation
of cultural property. Through the records and inventories one can ensure accuracy in
decision-making to safeguard the cultural heritage. Documentation is an ongoing process
that enables the monitoring, maintenance and understanding of cultural property and is
therefore an essential part of the conservation methodology. International documents
such as the fundamental Venice Charter (1964), and Principles for the recording of monuments,
groups for buildings and sites (ICOMOS 1996) are used as references, as well as the use of
documentation in the foundations of the Conservation Theory.
Key words: Documentation, preventive conservation, conservation/restoration, preser-
vation, heritage charters.

199

Introdução
Camillo Boito, restaurador, arquiteto e grande pensador do século XIX,
abriu sua conferência I Restauratori, realizada na Exposição de Turim em
1884, com as seguintes palavras:
Para bem restaurar, é necessário amar e entender o
monumento, seja estátua, quadro ou edifício, sobre o qual
se trabalha, e do mesmo modo para a arte antiga em geral.

Teoria e contexto
Ora, que séculos souberam amar e entender as belezas do
passado? E nós, hoje, em que medida sabemos amá-las e
entendê-las? (BOITO, 2002, p. 31, grifo da autora)
Concordando com as palavras de Boito podemos dizer que entender um
bem cultural é a chave para sua preservação. Quanto melhor conhecemos

Ciência & Conservação


e entendemos nosso patrimônio mais o valorizamos.
As operações de salvaguarda começam pelo conhecimento dos bens,
tarefa essa que é executada primordialmente pela devida documentação.
A documentação de bens culturais se define como um processo contínuo
que consiste em investigar, registrar (inventariar), documentar e gerenciar
as informações sobre um determinado bem permitindo sua melhor
compreensão.
“Os objetos adquirem valor pelas mãos do conhecimento [...]. O objeto
existe enquanto um elemento a ser preservado quando lhe é imputado
um valor histórico, artístico e cultural” (GONÇALVES, 2001, p. 263). As
atividades de registro e documentação dos bens culturais supõe portanto
seu reconhecimento como objeto que exige tutela e proteção. Esse
reconhecimento do valor e importância de um bem cultural é muitas vezes
o primeiro passo para a sua conservação.
Segundo Drumond, “preservar, em latim praeservare, significa observar
previamente” (MINAS GERAIS, 2000, p. 104). Assim sendo, para
preservamos precisamos pesquisar e conhecer a fundo o objeto patrimonial.
Por muitos anos as investigações sobre os bens culturais eram efetuadas
mediante aproximações e com base em critérios empíricos, não havia uma
abordagem metodológica e científica em relação a sua conservação. Essa
prática metodológica só teve início em finais do século XIX com as bases 200
da formação da conservação/restauração como disciplina, contando com
discussões teóricas e com o advento da fotografia.
A contribuição do restaurador e teórico Camillo Boito é fundamental para a
introdução da metodologia nas intervenções de conservação/restauração,
fixando a prática do uso de documentação como embasamento das
intervenções e como forma de sistematizar o registro dessas intervenções,
elaborando diretrizes para uma política de tutela.
Boito fundamentou seu trabalho em análises aprofundadas
da obra, procurando apreender seus aspectos formais e

Teoria e contexto
técnico-construtivos, baseado em estudos documentais e
na observação, bem como em levantamentos métricos do
edifício. Fez largo uso de desenhos e também de fotografias,
examinando a configuração geral do complexo [...] (KÜHL,
2002, p. 13).
Propondo critérios de intervenção, Camillo Boito contribuiu de forma

Ciência & Conservação


direta para a formulação dos princípios modernos de restauração. Boito
teve atuação primordial na construção do documento gerado a partir do
III Congresso dos Engenheiros e Arquitetos Italianos de Roma em 1883.
Este documento é considerado a primeira carta de restauro italiana, a
primeira formulação de uma série de normas de intervenção coerentes
com uma teoria rigorosa.
Dentre os sete axiomas propostos no congresso, os dois últimos prescrevem
a necessidade de se documentar detalhadamente as intervenções:
[...] registrar as obras, apontando-se a utilidade da
fotografia para documentar a fase antes, durante e depois
da intervenção, devendo o material ser acompanhado de
descrições e justificativas e encaminhado ao Ministério da
Educação; colocar uma lápide com inscrições para apontar
a data e as obras de restauro realizadas (KÜHL, 2002, p.
21).
Este documento, adotado então pelo Ministério da Educação italiano,
foi um ponto de referência fundamental para as cartas patrimoniais1 que
regem as práticas preservacionistas contemporâneas.
Seguindo as recomendações do documento italiano de 1883, diversas
dessas cartas citam o registro dos bens culturais e a documentação dos
processos de conservação como tarefas fundamentais para a salvaguarda
do patrimônio. 201
Existem cerca de vinte documentos provenientes de convenções
internacionais que têm recomendações sobre o registro e a documentação
dos bens patrimoniais. Os inventários em especial ocupam lugar
significativo em grande parte deles.
Os inventários são utilizados nas atividades iniciais da documentação -
identificação e registro bens culturais. Estes são utilizados para avaliar
os valores e importância do patrimônio em questão, registrar um bem e
conhecê-lo a fundo, trazendo para si o status de bem cultural e portanto

Teoria e contexto
merecedor de preservação.
Após a iniciativa italiana, as primeiras medidas normativas de caráter
internacional são introduzidas através da Carta de Atenas de 1931. Este
documento dá ênfase na utilidade de uma documentação internacional,
no registro dos monumentos e na formatação de inventários nacionais,

Ciência & Conservação


regionais ou locais.
É também no início do século XX que diversas disciplinas científicas
começam a contribuir com as tarefas de investigação dos bens culturais,
principalmente em relação ao estudo e compreensão dos materiais e
seu estado de conservação. Essa colaboração é fundamental para o
estabelecimento de metodologias de documentação mais fundamentadas.
A Carta de Veneza de 1964, documento considerado basilar para a prática
de conservação/restauração, seguida como um código de ética, registra a
necessidade da documentação durante os processos de conservação:
Artigo 16º - Os trabalhos de conservação, de restauração e
de escavação serão sempre acompanhados pela elaboração
de uma documentação precisa sob a forma de relatórios
analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias.
Todas as fases dos trabalhos de desobstrução, consolidação,
recomposição e integração, bem como os elementos
técnicos e formais identificados ao longo dos trabalhos
serão ali consignados. Essa documentação será depositada
nos arquivos de um órgão público e posta à disposição
dos pesquisadores; recomenda-se sua publicação (IPHAN,
1987, p. 107).
O documento ratificado pela 11ª Assembléia do ICOMOS2 de 1996,
denominado Principles for the recording of monuments, groups for buildings and
sites3, teve seu conteúdo inteiramente dedicado a importância dos registros. 202
Nesse texto são listadas as principais razões, responsabilidades, medidas de
planejamento e gestão para a devida documentação do patrimônio cultural.
Sendo o patrimônio cultural uma expressão única da
realização humana; sendo que o patrimônio cultural está
permanentemente em risco; sendo a documentação um
dos principais meios disponíveis para dar significado,
compreensão, reconhecimento e definição dos valores do
patrimônio cultural; sendo que a responsabilidade pela
conservação e manutenção do patrimônio cultural não
é somente tarefa de seus proprietários mas também de

Teoria e contexto
especialistas em conservação, de profissionais, gestores,
políticos e administradores que trabalham em todos os
níveis de governo, como também do público; e sendo
conforme exige o artigo 16 da Carta dos Veneza, é essencial
que as organizações responsáveis e os indivíduos registrem
a natureza do patrimônio cultural4. (Tradução da autora).

Ciência & Conservação


A maioria das cartas patrimoniais e publicações sobre os métodos de
documentação são dirigidas principalmente ao patrimônio edificado.
Porém acreditamos, de acordo com Feilden (1981, p. 27), que apesar da
diferença de escala e extensão, os princípios básicos de conservação são
os mesmos tanto para bens culturais móveis quanto para os bens imóveis.
Principalmente os princípios éticos e metodológicos de documentação.
Conforme podemos verificar através dos documentos internacionais a
documentação é parte integral da conservação e gestão dos bens culturais,
ela é o fio que percorre todo o processo de preservação do patrimônio
cultural e se apresenta como ferramenta indispensável nas ações de
conservação e restauração.
A documentação possibilita a compreensão, o monitoramento e a
manutenção dos bens culturais, atuando nos processos de conservação
antes, durante e depois. É somente a partir de uma documentação exaustiva
e coerente que podemos assegurar o rigor e precisão nas tomadas de
decisão para a salvaguarda destes bens.
Uma documentação bem empreendida permite uma melhor compreensão
do valor econômico, histórico, científico, estético e social de um bem cultural.
A documentação do patrimônio cultural, amplamente
definida, inclui duas atividades principais: (1) a captura
de informações sobre os bens culturais, incluindo suas 203
características físicas, história e problemas, e (2) o processo
de organizar, interpretar e gerenciar essas informações
(LEBLANC; EPPICH, 2005, p. 6, tradução da autora).
Podemos enumerar diversos motivos para utilizarmos obrigatoriamente a
prática da documentação na metodologia de conservação incluindo:
● conhecer a história, características físicas, tecnologia de fatura e
atuais condições de conservação do bem cultural;
● orientar o processo de conservação, quando se deve registrar todas
as intervenções preventivas e curativas;

Teoria e contexto
● garantir que as intervenções respeitem as características do
patrimônio;
● registrar os resultados após as intervenções;
● realizar um registro permanente do patrimônio cultural antes da

Ciência & Conservação


alteração, planejada ou não;
● fornecer bases para o monitoramento, gerenciamento e manutenção
de rotina;
● fornecer uma ferramenta de acompanhamento e gestão do
patrimônio em todos os níveis.
A importância da documentação se estende além de seu uso como
ferramenta nas atividades de conservação/restauração. É também
um meio de comunicação com público em geral, ajudando a educá-lo
sobre a importância do patrimônio e promovendo seu envolvimento na
preservação. Constitui ainda uma importante fonte de pesquisa sobre o
patrimônio histórico e cultural para diversas áreas e disciplinas.
A documentação também pode ser considerada como uma espécie de
apólice de seguro contra perda e como um registro para a posteridade,
para a as gerações futuras, em caso de catástrofes e destruição. A
documentação se bem empreendida e devidamente gerenciada fornece
um registro duradouro do patrimônio cultural. No caso dos bens móveis é
crucial para medidas de proteção contra roubos e tráfico ilícito, bens não
documentados se tornam difíceis de recuperar.
Uma boa documentação economiza tempo e dinheiro, ajudando a priorizar
recursos e evitando a duplicação de esforços. 204
Utilizar a documentação exaustiva é um compromisso ético do
conservador-restaurador. Os relatórios dos procedimentos adotados
durante um processo de conservação e restauro fazem parte do Código
de Ética do profissional que atua em qualquer bem cultural móvel ou
imóvel. Intervenções de conservação se constituem em um momento
crítico na vida de um bem cultural e um registro cuidadoso pode preservar
informações que serão a base para avaliações futuras e novos tratamentos.
Ciente dessa responsabilidade o código de ética do conservador-

Teoria e contexto
restaurador brasileiro dedica quatro artigos à pesquisa e documentação.
Destacamos:
14. Antes de iniciar qualquer ação ou intervenção
em uma obra o conservador-restaurador deve colher
todas as informações capazes de gerar e salvaguardar o

Ciência & Conservação


conhecimento a seu respeito (...).
15. Durante o tratamento devem ser anotadas todas
as intervenções de conservação-restauração (...). A
documentação fotográfica deverá acompanhar os passos
mais expressivos do tratamento e registrar o efeito final da
obra após o término do trabalho. (CÓDIGO, 2005, p. 5).
Embora existam tantas vantagens de se empreender em uma
documentação exaustiva, toda sua importância tenha sido salientada nos
instrumentos internacionais de preservação e sua obrigatoriedade seja
assinalada nos códigos de ética, é de comum acordo para pesquisadores
da área que a mesma permanece ainda inadequadamente empregada. O
campo carece de normas e diretrizes e uma melhor comunicação entre
os profissionais. Há concordância também no entendimento de que as
ferramentas são incompletas, a formação de profissionais insuficiente e os
recursos limitados - fora do campo, os tomadores de decisão muitas vezes
desconhecem os objetivos e benefícios da documentação. (LEBLANC;
EPPICH, 2005, p. 7).
Nesse contexto, em âmbito nacional, Mendonça (2009, p. 340) aponta
que existe uma lacuna entre o conhecimento dos conceitos éticos da
documentação e a prática profissional, sendo esses critérios esquecidos ou
negligenciados, e destaca:
Cabe aos novos cursos de formação [...] sensibilizar e
orientar os novos profissionais que estão ingressando na
205
área, como também as associações de classe, reforçar junto
aos seus associados uma maior seriedade no cumprimento
desse artigo do nosso código de ética.
Precisamos portanto tomar medidas para assegurar que a documentação
não seja apenas uma operação técnica, mas o resultado de uma abordagem
cultural complexa, pois colecionar dados não é o bastante.
Há a necessidade de implementarmos normas e orientações internacionais
para que a comunicação seja completa e as ações de documentação
efetivas. Enquanto cientistas da conservação é nosso dever divulgar os

Teoria e contexto
benefícios da documentação para nossa prática profissional, resultando
em uma maior qualidade nas práticas de preservação.

Ciência & Conservação


___________
Notas
1. As chamadas cartas patrimoniais são documentos internacionais no formato de cartas,
recomendações, convenções, normas ou regulamentos, criados por diversos órgãos internacionais de
defesa do patrimônio histórico e cultural.
2. Internacional Council on Monuments and Sites – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios.
3. Princípios para a documentação de monumentos, grupos de edifícios e sítios. (Tradução da autora).
4. As the cultural heritage is a unique expression of human achievement; and as this cultural
heritage is continuously at risk; and as recording is one of the principal ways available to give
meaning, understanding, definition and recognition of the values of the cultural heritage; and as the
responsibility for conserving and maintaining the cultural heritage rests not only with the owners
but also with conservation specialists and the professionals, managers, politicians and administrators
working at all levels of government, and with the public; and as article 16 of the Charter of Venice
requires, it is essential that responsible organizations and individuals record the nature of the cultural
heritage.

Referências
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Tradução de Paulo Mugayar Kühl; Beatriz Mugayar Kühl. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. 64 p. (Artes
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Ciência & Conservação


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207
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LETELLIER, Robin; SCHMID, Werner; LEBLANC, François. Recording documentation, and information
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Teoria e contexto
MENDONÇA, Valéria de. A documentação de conservação e restauro: ética e responsabilidade
profissional. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
CONSERVADORES E RESTAURADORES DE BENS CULTURAIS - ABRACOR, 13., 2009,
Porto Alegre. Anais... Rio de Janeiro: ABRACOR, 2009. p. 339-340. 1 CD-ROM.
MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Cultura. Superintendência de Museus Caderno de diretrizes
museológicas 1. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/Superintendência de Museus, 2000.

Ciência & Conservação


148 p.

208
Paisagem em Branco: protocolos de gestão e
conservação em Arqueologia

Teoria e contexto
Ana Carolina Motta Rocha Montalvão, Gerusa de Alkmim Radicchi,
Giulia Giovani Vilella, Marcella de Oliveira, Thais Gontijo Venuto
Graduandas em Conservação-Restauração- EBA-UFMG
Yacy-Ara Froner (coordenadora)

Ciência & Conservação


Andrés Zarankin (coordenador)

RESUMO
O projeto Arqueologia Histórica Antártica do Departamento de Sociologia e Antropologia
da Fafich-UFMG tem como objetivo a investigação de grupos humanos que ocuparam o
território antártico a partir de vestígios coletados das ilhas Shetland do Sul. Os objetos
correspondem a sítios arqueológicos do século XIX e possuem grande importância e
diversidade de tipologias. Para que estas informações não sejam perdidas, a equipe de
alunos e docentes do curso de graduação em Conservação-Restauração da UFMG foi
convidada a atuar na preservação do material. A equipe propôs dois eixos principais de
atuação: o primeiro diz respeito à catalogação, limpeza, tratamento e acondicionamento dos
objetos; o segundo eixo visa a criação de um protocolo orientador para a coleta em campo
arqueológico. Os resultados iniciais deste trabalho serão apresentados nesta comunicação.
Palavas-Chave: Conservação Preventiva, Arqueologia Histórica, Antártida.

RESUMÉN
El proyecto de Arqueología Histórica Antártica del Departamento de Sociología y Antropología
FAFICH-UFMG tiene como objetivo investigar los grupos humanos que ocuparon el territorio antártico a
partir de vestigios recogidos de las Islas Shetland del Sur Los objetos corresponden a los sitios arqueológicos
del siglo XIX y tienen una gran diversidad de tipos y una gran importancia. Para que estas informaciones
no se pierdan, el equipo de estudiantes y profesores de curso de grado en Conservación-Restauración de la
UFMG fue invitado a actuar en la conservación del material. El equipo propuso dos líneas de acción
principales: el primero se refiere a la catalogación, limpieza, procesamiento y embalaje de los objetos y el
segundo eje tiene como objetivo crear un protocolo orientador para la recogida en el campo arqueológico. Los
primeros resultados de este estudio se presentan en esta comunicación.
Palabras clave: Conservación-Restauración, Arqueología Histórica, Antártida.
209

Introdução
O projeto Arqueologia Histórica Antártica do Laboratório de Estudos
Antárticos em Ciências Humanas (LEACH), sediado na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, é responsável pela coleta e
estudo dos rastros arqueológicos deixados por grupos humanos que

Teoria e contexto
ocuparam o território antártico por volta do século XIX. O projeto se
trata de um desdobramento das pesquisas já desenvolvida desde a década
de 1980 por membros do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas─CONICET, na busca por elementos da cultura material que
pudessem fornecer subsídios à compreensão das diversas ocupações até

Ciência & Conservação


então desconhecidas: en esta investigación, nos interessa abordar ciertos aspectos
de este proceso que resultan em la ocupación y exploración de nuevas tierras, que
eran marginales o incluso desconocidas hasta entonces. Tal es el caso de la Antártida
(ZARAKIN; SENATORE, 1999, p.629).
O recorte conceitual é acerca das estratégias capitalistas de incorporação da
Antártica, a partir do estudo do cotidiano das práticas sócio-econômicas e
culturais exploratórias deste espaço geográfico, principalmente a caça e a
pesca. Os vestígios contribuem à percepção de um panorama diversificado
dessa ocupação. Acampamentos, refúgios, áreas de matança, limpeza e
estocagem das peles constituem espaço privilegiado de reconstituição
arqueológica do cotidiano destes grupos.
Em junho de 2010 o Prof. Dra. Andrés Zarankin, coordenador do
projeto no LEACH, convida a equipe do Laboratório de Conservação
e Restauração da universidade para colaborar com a salvaguarda destes
vestígios. Como alunas do Curso de Conservação de Bens Culturais
Móveis da EBA-UFMG, fomos integradas ao projeto, atuando como
voluntárias desde agosto desse mesmo ano. Coordenadas pela Profa.
Dra. Yacy-Ara Froner, a equipe iniciou os trabalhos de catalogação, pré-
acondicionamento, protocolos de avaliação e o estudo de um projeto para
a reserva técnica do LEACH. A catalogação e o pré-acondicionamento
do acervo configuraram-se como condições imprescindíveis para o início
dos estudos arqueológicos. A proposição de uma metodologia para a 210
conservação durante a coleta em campo também começou a ser estudada.

As primeiras pospostas de tratamento


O acervo foi coletado em fevereiro de 2010 e passou a apresentar vários
problemas de conservação. As mudanças climáticas e as tensões sofridas
no manuseio, transporte e armazenagem, somadas ao excesso de unidade
e a degradação biológica, fragilizaram significativamente os objetos.

Teoria e contexto
Para atingirmos as condições ideais de salvaguarda, observamos a
necessidade de conhecer todos os materiais, suas composições físico-
químicas, as condições às quais estavam submetidas no subsolo e seu
comportamentos frente as variações climáticas após a coleta. Analisamos
e mensuramos o acervo quanto às suas tipologias e obtivemos os seguintes

Ciência & Conservação


resultados:

Materiais Porcentagem
Cerâmicas 04
Couro 21
Madeira 51
Metais 18
Ósseos 41
Pétreos 05
Tecido 15
Vidros 03

Tabela 1: proporção de objetos por materiais.


Identificamos que a maioria das peças são de natureza orgânica vegetal,
grande parte apresentando-se na forma de fragmentos de madeiras.
Após a mensuração do acervo iniciamos os trabalhos de pré-
acondicionamento. A troca das embalagens em que se encontravam
por sistema adequado foi nossa primeira orientação. Os objetos foram
inicialmente acondicionados dentro de sacos plásticos com problemas de
vedação, alguns posicionados sobre papelão, sobrepostos uns aos outro 211
em refrigerador à temperatura de cerca de 5°C. Utilizamos para a troca o
acondicionamento primário constituído por embalagem plástica vedante
de policarbonato tipo zip lock, introduzindo uma placa de polietileno nas
embalagens para conferir estabilidade aos objetos. Cada embalagem foi
colocada em caixas de poliondas de polietileno para a proteção mecânica,
forrada com suporte de ethafoam para amenizar impactos. Ambos
os materiais utilizados no pré-acondicionamento foram selecionados
por serem inertes e hidrofóbicos. Os objetos também passaram a ser
armazenados nas caixas por tipologias de materiais, evitando assim

Teoria e contexto
possíveis migrações das patologias.

Ciência & Conservação


Imagem 1 e 2: sistema primário de acondicionamento

A umidade elevada é uma característica marcante do acervo. Muitos


sacos apresentam em seu interior, mesmo após o pré-acondicionamento,
umidade relativa em ponto de saturação. Sabemos que à umidade superior
a 70% as condições climáticas propiciam a proliferação de fungos
e bactérias, agentes degradantes dos materiais orgânicos. Porém, os
objetos ósseos, os têxteis, os couros e as madeiras estão em avançado
estado de desestruturação e a retirada da umidade pode colaborar com
o enfraquecimento das suas fibras e das suas estruturas já fragilizadas.
O estudo da melhor forma de retirada dos objetos do refrigerador e a
retirada de sua umidade excessiva apresentou-se como um dos principais
desafios encontrados pela equipe. Cogitamos a possibilidade de alguns 212
objetos permanecerem em refrigeração constante.
Concomitantemente ao pré-acondicionamento, os primeiros testes de
limpeza, de consolidação e tratamento foram realizados. O primeiro
material a ser testado foi um grupo de fragmentos de madeira em
estado avançado de fragmentação. A amostra foi limpa com trinchas de
cerdas macias e submetida ao processo de secagem natural. Após este
procedimento não foram observadas a formação de estruturas salinas, mas
notou-se que o processo de secagem rápida gerou rachaduras no sentido

Teoria e contexto
das fibras e um leve abaulamento das peças. Para consolidação e união das
partes rachadas foi então utilizado Paraloid B72 em álcool diluído a 5%.
Para os próximos experimentos de secagem estudaremos sistemas lentos
e controlados, com a possível de utilização de câmaras e sílicas para os
objetos mais sensíveis ao ressecamento.

Ciência & Conservação


Imagem 3: equipe trabalhando na secagem dos fragmentos.

Alguns metais com ligas de ferro e chumbo foram tratados na seqüência.


Eles foram limpos superficialmente com a retirada cuidadosa da espessa
camada de terra que os envolviam. Embora as peças com a presença de
ferro em sua composição apresentem camadas de oxidação, aparentemente
elas ainda possuem um núcleo maciço. Decidiu-se pela retirada definitiva
destes e outros objetos metálicos em bom estado do refrigerador, evitando 213
a permanência em contato com a umidade excessiva nele contida.
Alguns fragmentos de têxteis em estado de maior integridade foram
também limpos e acondicionados fora do refrigerador. Dentre eles foi
possível a identificação de sarjas e tafetás, com fibras de origem animal e
vegetal apresentando boa resistência. Outros fragmentos de têxteis estão
bastante fragilizados e possivelmente não serão retirados de ambiente
refrigerado.

Teoria e contexto
O registro das atividades e a criação do banco de dados
Todas as informações referentes à coleta de materiais estão sento
sistematizadas para a produção de um banco de dados na plataforma
Access proposto em duas planilhas. A primeira prestará informações a

Ciência & Conservação


respeito da coleta e estudo arqueológico dos objetos e foi baseada no
modelo idealizado para a Base de Dados Unificada, que deve integrar as
informações dos objetos antárticos alocados tanto no Brasil quanto na
Argentina e no Chile. A segunda teve como base modelos de registros e
inventários utilizados pelo IPHAN e os modelos de registro dos trabalhos
de conservação e restauração utilizados pelo Centro de Conservação e
Restauração da EBA-UFMG.

214
Figura 2: Formulário do estado de conservação das peças.

Esta segunda ficha será de grande importância para que possíveis


degradações e intervenções dos objetos possam ser registradas e
evidenciadas. A partir de suas informações procedimentos e resultados de
conservação poderão ser avaliados da forma mais eficaz.

Teoria e contexto
Os principais desafios encontrados
Dentre os principais desafios para a criação de condições adequadas ao
trabalho no acervo, a diversidade de materiais constituintes e seu caráter

Ciência & Conservação


arqueológico devem ser tratados em destaque. Não contamos no país com
muita disponibilidade de profissionais e pesquisas que sirvam de base para
o tratamento dos diversos materiais arqueológicos e que possam preparar
a equipe de graduandos para lidar com os objetos vindos do continente
antártico.
Entendemos que a própria Arqueologia, ainda em consolidação como área
de pesquisa e formação no Brasil, não está sendo compreendida pelos
conservadores e restauradores em sua importância, conseqüentemente
a apropriação dos bens arqueológicos como objetos de estudos e
trabalho ainda estão por acontecer. A maioria das instituições de ensino
e pesquisas no Brasil segue sustentando as áreas artísticas tradicionais, os
bens arquitetônicos e os acervos em papel ainda como enfoque unilateral
dos percursos formativos de seus cursos de conservação e restauração.
Acreditamos que esta orientação seja conseqüência da perpetuação
de certos valores sociais, da falta de incentivo e esclarecimento sobre a
importância dos acervos etnográficos e arqueológicos para as sociedades,
como também conseqüência da necessidade de maior articulação dos
conservadores e restauradores dentro das possibilidades legais e políticas
existentes:
[...] é fundamental compreender que o sentido da preservação
perpassa questões profundas, subordinadas aos conceitos
de valor, poder político e econômico. No entanto, a ordem
primeira que orienta os debates institucionais é o princípio
215
ético sob o qual estão sedimentadas a origem, as bases e as
intenções ou os fins a que se propõem essas instituições [...]
(FRONER, 2002, p.1).
Trabalhar pela incorporação de novas metodologias e campos de ação é
em primeiro lugar trabalhar para trazer aos debates e decisões nacionais
novos paradigmas e valores, trabalhando pela incorporação de acervos
que ficaram à margem dos trabalhos de conservação e restauração. Neste
sentido, podemos visualizar as experiências já realizadas pela Profa. Yacy-
Ara Froner na área da conservação em arqueológica, e principalmente a sua

Teoria e contexto
atuação em campo de escavação antártico para a constituição de protocolos
de conservação em coleta, como uma iniciativa importante. Esperamos
que a iniciativa lançada possa criar parâmetros para o fortalecimento do
diálogo entre os departamentos envolvidos e para o surgimento de novas
áreas de pesquisa no curso de graduação.

Ciência & Conservação


___________
Referências
Catálogo das Cerâmicas Arqueológicas da 6a SR/IPHAN. Disponível em: www. http://portaldoiphan.
gov.br/. Acesso em: 20 abril 2011.

FRONER, Yacy-Ara. Os Domínios da Memória – um estudo sobre a construção do pensamento preservacionista


nos campi da museologia, arqueologia e ciência da conservação. Tese de Doutorado (Doutorado em História
Econômica. São Paulo: USP, 2001.

FRONER, Yacy Ara, Patrimonio histórico e modernidade: construção do conceito a partir da noção
de revitalização de sítios, monumentos e centros históricos. Simpósio de Conservação em Olinda,
2002.

SALERMO, M. Arqueologia de la Idumentária: practicas e Identidad em los confines del Mundo


Moderno (Antartida, Siglo XIX). Buenos Aires: Del tridente, 2006.

ZARANKIN, A y M.X SENATORE. Historias de un Pasado en Blanco: Arqueologia Histórica


Antártica. Belo Horizonte: Argumentum, 2007.

ZARANKIN, A. y M. X. SENATORE. Ocupación humana en tierras antárticas. Una aproximación


arqueológica. Em: Soplando el Viento. Actas de las III Jornadas de Arqueología de la Patagonia, 1999
p. 629-644.

216
O uso de novos materiais sobre edificações
históricas em terra crua

Teoria e contexto
Fabio das Neves Donadio
Mestrando PPGA-EBA-UFMG
Luiz Antônio Cruz Souza (Orientador)

Ciência & Conservação


RESUMO
O intuito desta pesquisa é identificar como algumas das principais teorias da restauração
e cartas patrimoniais avaliam ou comentam o emprego de novos materiais nos processos
de restauração/conservação dos bens culturais, e como seus conceitos se transportam ao
hipotético emprego de tintas modernas sobre edificações de terra e areia – historicamente
revestidas com cal ou tintas minerais porosas. Visa ainda apresentar aspectos gerais sobre
a técnica de construção com terra, focando sua especificidade e capacidade de adaptar-se
à utilização de novos materiais.
Palavras-chave: Teoria da Restauração, Conservação, Edifícios Históricos, Novos Mate-
riais, Pintura.
Anstract
This research intends to identify as some of the main theories of the restoration and
patrimonial letters evaluate or comment the job of new materials in the restoration
processes/conservation of the cultural goods, and as its concepts if they carry the
hypothetical job from modern inks on constructions from land and sand - historically
coated with whitewash or porous mineral inks. It still aims at to present general aspects on
the technique of construction with land, focusing its capacity to adapt it the use of new
materials..
Key words: Historical theory of the Restoration, Conservation, Buildings, New Materials,
Painting.

Introdução
Ao analisarmos a história da cultura de uma comunidade, vemos que ela
217
é marcada por permanências e mudanças de ordem ambiental e sócio-
econômica que estão diretamente relacionadas ao surgimento de novos
costumes individuais e coletivos. Essa dinâmica se manifesta de modo
bastante diversificado, podendo ser percebida por meio de elementos
materiais e intangíveis que compõem o cotidiano, tais como a culinária, a
religiosidade, a música, a moda, a arquitetura.
Na arquitetura, essas mudanças se constroem ao longo do tempo,
fundamentando-se por aspectos variados que determinam sua conformação

Teoria e contexto
final. As necessidades de atualização técnica, a disponibilidade de materiais
e oferta de mão-de-obra qualificada, os recursos financeiros disponíveis,
o “gosto” ou influência das correntes artísticas e a política estatal e
econômica deixam marcas mais ou menos visíveis e determinantes nos
edifícios isolados e na paisagem.

Ciência & Conservação


A arquiteta Maria Lalard destaca que essa pluralidade de aspectos técnicos,
sociais e culturais, contidos nas construções, interfere sobremaneira em
sua forma final:
A arquitetura tem, inegavelmente, uma dimensão simbólica
que fala à nossa sensibilidade. Por isso ela também é arte e,
como tal, se manifesta visualmente. Mas a arquitetura não é
só arte. Ela tem uma dimensão utilitária e um valor de troca.
Além disso, ela demanda técnica para se corporificar e por
isso a dimensão tecnológica lhe é imprescindível. Podemos
dizer que o objeto arquitetônico é fruído na sua dimensão
artística, usufruído na sua dimensão utilitária e construído
na sua dimensão tecnológica. E essas três dimensões se
constituem no decorrer do processo social, como a história
nos ensina. A forma arquitetônica é, portanto, mediadora
das relações sociais e só pode ser compreendida nessa
relação. (LALARD, 2006).
Essa percepção de que a arquitetura é uma mediadora social, presente,
que se relaciona de forma dinâmica à arte, ao mercado e ao cotidiano, está
estreitamente relacionada ao acesso da população às técnicas disponíveis,
ao desenvolvimento dos hábitos locais, mas principalmente à oferta de
materiais construtivos. Estes refletem claramente qual o nível tecnológico
que um edifício ou seus elementos podem alcançar, seu aspecto final e
sua capacidade de conservar-se e responder às diferentes demandas. São 218
nessas determinantes que a produção arquitetônica apóia-se para evoluir,
técnica e esteticamente, alterando e construindo a paisagem.
Essa premissa torna-se válida para analisarmos não só as técnicas e
materiais de construção empregados na produção atual da paisagem e seu
resultado, mas também o quanto podem contribuir com a conservação
de estruturas do passado. O quanto esses novos materiais podem adiar
novas intervenções e o quanto favorecem ou prejudicam estética, técnica
ou culturalmente uma estrutura.
La conservación es la actividad que consiste em evitar

Teoria e contexto
futuras alteraciones de um bien [...], consiste em adoptar
medidas para que um bien determinado experimente el
menor número de alteraciones durante el mayor tiempo
posible. (VIÑAS, 2003).
Afrescos e pinturas artísticas ou decorativas, por exemplo, podem ter sua
sobrevivência garantida por meio da aplicação responsável de resinas ou

Ciência & Conservação


adesivos sintéticos, de comprovada eficácia, capazes de consolidar sua
resistência. Novos componentes estão continuamente sendo ensaiados
por métodos analíticos experimentais visando participar de forma
segura dos processos de conservação dos bens culturais. Mas somente
a pesquisa de materiais garante e absolve a indicação de novos materiais
nas intervenções conservativas? Existem questões filosóficas, acadêmicas
ligadas a essas intervenções?
Sabemos que os bens culturais devem ser minuciosamente estudados em
sua especificidade antes de sofrerem quaisquer intervenções conservativas
ou restaurativas, e que essa pesquisa é a principal fornecedora dos dados
imprescindíveis à tomada de qualquer decisão que implique em alterações a
curto, médio e longo prazo. Mas a contribuição da pesquisa e do emprego
de novos materiais nessas intervenções extrapola a capacidade técnica
do material ou a compatibilidade deste com o original, para relacionar-
se diretamente com a produção intelectual acumulada até hoje, presente
nas teorias de restauro e nas cartas patrimoniais. As cartas patrimoniais,
assim como as teorias, refletem os avanços de questões filosóficas e da
tentativa de se otimizar procedimentos, diretrizes comuns que permitam e
estimulem os profissionais do restauro a agir com deontologia. Portanto,
está justamente na soma ou choque entre essas diretrizes ou posturas, e
a pesquisa ou experimentação minuciosa de um determinado material, a
possibilidade de avaliar os benefícios ou malefícios do emprego de novos
219
materiais nas intervenções, e o quanto contribuem com o avanço da
ciência da conservação.
Assim, esta pesquisa trata da utilização de novos materiais nos processos
de conservação dos bens culturais, analisando, por meio de uma pesquisa
bibliográfica, como algumas das principais teorias da restauração e cartas
patrimoniais consideram essa prática, bem como pela apresentação
da técnica de construção com terra, sua relação com os revestimentos
ideais e seus requisitos básicos para adaptar-se a novos materiais, e como

Teoria e contexto
esses conceitos se transportam ao caso corriqueiro do emprego de tintas
modernas sobre edificações de pedra, terra e/ou areia – historicamente
revestidas com cal ou tintas minerais igualmente porosas.

Ciência & Conservação


Teorias versus novos materiais
Desde o século XIX, quando se intensificam e popularizam obras de
restauração de bens móveis e imóveis, a comunidade científica especializada
vem formatando posturas e teorias com o intuito de melhor embasar a
atividade dos profissionais da área. Essas teorias visam por essência avaliar,
discutir e subsidiar ações conscientes, técnica e esteticamente coerentes
com seu tempo, lugar e a realidade dos bens culturais em questão. Isolada
ou coletivamente, nações ao redor do mundo pesquisam e aplicam soluções
para a salvaguarda e conservação de seu patrimônio, e, freqüentemente,
durante a execução de intervenções conservativas, deparam-se com a
necessidade de julgar a pertinência ou emprego de novos materiais que
garantam a sobrevivência ou ampliem a sobrevida de seus bens. Essa
evidência, bastante conhecida e discutida ainda na atualidade, já era citada
na França do século XIX por Viollet le-Duc:
Na restauração, há uma condição dominante que se
deve ter sempre em mente. É a de substituir toda parte
retirada somente por materiais melhores e por meios mais
eficazes ou mais perfeitos. É necessário que o edifício
restaurado tenha no futuro, em conseqüência da operação
à qual foi submetido, uma fruição mais longa do que a
já decorrida. [...] É, pois, prudente considerar que toda
construção abandonada perdeu certa parte de sua força, em
conseqüência desses abalos, é que deveremos suprir essa 220
diminuição de força pela potência das partes novas [...] por
resistências maiores. (LE-DUC, 2007)
A polêmica e a perspectiva de restauração adotada por Viollet-Le-Duc, o
relegaram a uma posição de “vilão” na história da restauração do século
XX, dada a polêmica gerada por sua atuação, não só relativo a utilização
de novos materiais, mas em sua postura geral. A arquiteta e professora
Beatriz Kühl (2005) aponta, na introdução de “O Verbete Restauração”,
de Viollet Le-Duc, por ela traduzido, que:
... a polêmica que causou e ainda causa é proporcional à

Teoria e contexto
grandeza de sua produção. Pela antipatia criada em relação
às suas obras como restaurador, muitas vezes deixou-se
de apreciar a coerência de suas formulações teóricas, seus
aspectos inovadores, e seus muitos aspectos ainda atuais. [...]
Entre as questões de grande atualidade podem ser citadas:
o fato de recomendar que se deva restaurar não apenas a

Ciência & Conservação


aparência do edifício, mas também a função portante de
sua estrutura; procurar seguir a concepção de origem para
resolver os problemas estruturais; a importância de se fazer
levantamentos pormenorizados da situação existente; agir
somente em função das circunstancias, pois princípios
absolutos podem levar ao absurdo; a importância da
reutilização para a sobrevivência da obra, pois restaurar não
é apenas uma conservação da matéria, mas de um espírito
da qual ela é suporte. (KUHL, 2000).
Observamos nessa citação que há tempos a utilização de novos métodos
ou materiais em edifícios históricos é uma questão polêmica e amplamente
discutida.

AS TÉCNICAS CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS


Para melhor discutir o tema desta pesquisa e a suposta indicação de
materiais modernos de acabamento, abordemos um pouco as técnicas
identificadas como “construtivas tradicionais” no Brasil.
Sabe-se que a Península Ibérica foi ocupada por diferentes povos dos quais
legamos procedimentos técnicos que se incorporaram e influenciaram a
nossa cultura. Na região sul de Portugal, a influência Moura é evidente no
uso dos muxarabis, das periódicas caiações e do uso da terra crua como
material construtivo presente, por exemplo, nas taipas de pilão (TOLEDO, 221
1981). A taipa de pilão é uma técnica que consiste no apiloamento de um
solo areno-argiloso, cru, livre de matéria orgânica, com umidade ótima
de compactação, dentro de uma forma de madeira sem fundo, chamada
taipal. As paredes maciças geradas por essa técnica são auto-portantes e
de dimensões que variam em função do tamanho dos taipais, podendo ou
não ter reforços estruturais em madeira nas áreas correspondentes a vãos
de janela ou portas, ou ainda elementos como ombreiras ou vergas de
pedra, garantindo maior estabilidade ao conjunto (NOLASCO, 2008). Não
obstante dessa influência, o Brasil, enquanto colônia portuguesa apresenta,

Teoria e contexto
na implantação de suas vilas e cidades, características semelhantes no que
se refere aos materiais e técnicas empregados para a construção de seus
edifícios e traçado urbano, refletindo inclusive seu nível de importância para
a coroa portuguesa. Somente as cidades de maior relevância construíam
seus edifícios com o uso de rochas, pois requeria uma tecnologia mais

Ciência & Conservação


sofisticada, organização do canteiro e aparelhos para o corte das rochas.
Isso explica porque a grande maioria dos edifícios construídos no Brasil
utiliza técnicas com terra crua, incluindo o pau-a-pique e o adobe, pois
são executadas em qualquer local pela farta disponibilidade de materiais
e mão-de-obra pouco qualificada. O pau-a-pique também chamado de
taipa de mão ou de sopapo diferenças regionais) é uma das técnicas mais
encontradas. Utiliza uma estrutura de madeira complementar, composta
por madres ou baldrames, esteios e frechais, responsáveis por distribuir
as cargas provenientes da cobertura e de seu peso próprio ao piso. Nessa
estrutura é preso um gradeamento, ou “gaiola”, composto por peças
verticais e horizontais, amarradas com couro ou cipó, responsáveis pelo
fechamento das paredes. Esse gradeamento, usualmente executado em
madeira, taquara, imbaúba ou palmito, é preenchido com barro, fechando
painéis leves, que sem função estrutural, funcionam apenas como
divisórias. Mais úmida do que a terra utilizada na taipa de pilão, a “massa”,
que é o próprio barro amassado, aplicada com as mãos, necessitava de duas
pessoas, que em lados opostos das paredes ou “gaiolas”, pressionavam o
volume de terra até que os mesmos se encontrassem, unindo-se.
Outra técnica frequentemente encontrada nas edificações históricas
é o adobe: tijolo rudimentar de terra crua, seco à sombra. Esses tijolos
são produzidos com solo areno-argiloso, de consistência plástica, mais
úmida que a terra para a taipa de pilão, que depois de homogeneizados 222
(normalmente com os pés) e misturado a fibras vegetais (palha de milho,
arroz ou capim) são arremessados em formas de madeira sem fundos, de
dimensões variadas conforme a localidade. Após seu total preenchimento,
o taipeiro desforma os tijolos e os deixa em secagem por um período
de 30 dias. Após a completa secagem, os adobes são assentados com o
próprio barro que os originou, porém, mais úmidos, plásticos, e podem
ser autoportantes ou assentados em complemento a uma estrutura de
madeira, como nas paredes de pau-a-pique.
Normalmente construídas sobre fundações rasas ou sobre nenhuma

Teoria e contexto
fundação impermeável, as paredes construídas com terra são
constantemente expostas à umidade natural do solo, que se intensifica em
épocas de chuva, devendo portanto serem protegidas por beirais largos.
Em ambos os casos a umidade ascende pelas paredes por capilaridade,
mantendo-as constantemente úmidas. Quando recobertas por argamassas

Ciência & Conservação


e pintura adequadas, realizadas com materiais porosos, a umidade retida
consegue evaporar, garantindo o conforto do usuário e a conservação de
suas estruturas.
Embora alguns elementos componentes dessas estruturas possam variar
por região ou por oficial construtor, algumas características inerentes
ao material e seu comportamento mecânico não se alteram, impondo
soluções que condicionem a eficácia da técnica. Comumente edificadas
sobre fundações rasas de pedra ou mesmo diretamente sobre o solo, as
construções de terra do período colonial brasileiro, quando revestidas
adequadamente, adquirem boa resistência ao vapor d’água, permeabilidade
e capacidade de transpiração da umidade interna, características essas que,
aliadas à ventilação adequada, garantem salubridade e maior resistência às
intempéries.
Esses edifícios acompanharam as mudanças sociais de seu contexto local
ou de seu programa de uso, apresentam alterações e/ou intervenções que,
realizadas consciente ou inconscientemente, modificaram sua estrutura
original. Muitas vezes essas alterações geraram sínteses culturais e
históricas que expressam na arquitetura o dinamismo e a originalidade dos
processos de construção dos edifícios e da paisagem local.
As palavras do arquiteto renascentista e filósofo da arquitetura e urbanismo
Leon Battista Alberti exprimem como esse dinamismo da produção 223
arquitetônica e a abertura a novos esquemas e adequações colaboram com
o avanço das idéias e da ciência:
... não significa que devamos nos restringir estreitamente
aos seus esquemas e acolhê-los tais e quais nas nossas obras
como se fossem leis inquestionáveis, mas sim, tendo o seu
ensinamento como ponto de partida, devemos buscar
novos e conseguir assim uma glória igual a deles ou se
possível maior.. (ALBERTI apud DOURADO, 1996)
Diversos exemplares dessa síntese cultural podem ser encontrados por

Teoria e contexto
diversas cidades históricas, oferecendo aos seus moradores e visitantes
a possibilidade de vivenciar uma paisagem urbana que expressa em si o
diálogo entre diferentes tempos e atores da história.
A resignificação dos monumentos não ocorre, porém, somente por
alterações técnico-formais, como mostra Regina Dourado (1996) ao

Ciência & Conservação


analisar o processo de resignificação dos monumentos urbanos na história.
Essa relação incide também sobre o valor simbólico desses bens:
Os monumentos, enquanto produtos culturais por
excelência,serão sempre atualizados em seus significados,
permanentemente alterados pelo olhar de quem os vê e
pelas culturas que os interpretam. Esses monumentos
não são estáticos ou impõem rigidamente sua existência
(DOURADO, 1996).
Assim, dentro da capacidade humana de adaptar seu ambiente às novas
tecnologias, um velho edifício de taipa, por exemplo, pode apresentar ao
longo de sua história “atualizações” que propõem novos programas de uso,
inclusões de novas instalações elétricas e hidrosanitárias que, realizadas
com critério, podem colaborar com a atualização de sua estrutura, de sua
função e de seu significado à sociedade sem causar-lhe maiores traumas
estéticos ou histórico-culturais.
No entanto, nem todas essas intervenções alcançam o mesmo sucesso
ou são criteriosas. Muitas delas são danosas, trazendo problemas até
irreversíveis. Um exemplo corriqueiro e reincidente é o causado pela
substituição de suas argamassas de recobrimentos originais a base de
terra, cal e areia, por materiais modernos a base de cimento e/ou tintas
plastificantes.
Essa prática, ainda e erroneamente empregada até nossos dias, passa a 224
ser indicada a partir do ano de 1931 pela Carta de Atenas, que publica
em seu item IV- “Os Materiais de Restauro” que eles (conselho técnico)
aprovam o emprego adequado de todos os recursos da técnica moderna e especialmente,
do cimento armado. Acreditava-se que ao utilizar um material moderno nas
obras de restauro, mais resistente do que os originalmente empregados,
uma condição superior poderia distanciar futuras e nocivas obras de
restauração. Todavia, nas últimas décadas se constatou que essa prática
não era adequada para a conservação dos bens, uma vez que os edifícios
de terra crua sobre fundações rasas relacionam-se com seu ambiente de

Teoria e contexto
inserção de forma diferente dos edifícios modernos, cujas fundações
impermeabilizadas lhe permitem maior estanqueidade com relação à
umidade, principalmente ascendente. Assim, ao serem revestidas com
argamassa a base de cimento e/ou tintas formadoras de películas de
proteção, como as tintas a base de PVA, por exemplo, essas edificações

Ciência & Conservação


têm seu sistema natural de transpiração prejudicado, provocando assim
destacamentos, bolhas e até perda do revestimento. A perda de material
prejudica não só sua conservação material e originalidade, mas também
sua leitura estética.
Este exemplo demonstra a importância de desenvolvermos pesquisas
sobre a utilização dos materiais atuais aplicados nas intervenções de
restauro. Na realidade, ainda que diversas pesquisas, ensaios e análises
tenham sido desenvolvidos com o intuito de diagnosticar melhor os
problemas e identificar novas soluções técnicas para a conservação,
consolidação e restauração de argamassas e pinturas de edifícios históricos,
tradicionalmente e originalmente edificados com cal, poucos trabalhos
apontam outros materiais como possíveis alternativas compatíveis e
facilmente disponíveis no mercado.
Ainda com relação ao emprego de novos materiais, a Carta de Restauro
de 1972 ultrapassa a questão da compatibilidade entre novos materiais,
destacando a importância da distinguibilidade e reversibilidade dos
materiais:
Toda intervenção na obra [...] deve ser executada de
modo tal, e com tais técnicas e materiais, que possa ficar
assegurado que, no futuro, não tornará impossível uma
eventual intervenção de salvaguarda ou de restauração.
Indica, ainda, que: 225
As medidas [...] não deverão ser tidas de modo a alterar
sensivelmente o aspecto da matéria e a cor das superfícies,
ou que exijam modificações substanciais e permanentes
do ambiente em que as obras foram transmitidas
historicamente [...] de modo a evitar qualquer dúvida sobre
a época em que foram executadas, e com as modalidades
mais discretas.
Não há dúvida que, além de tecnicamente ideal, dada sua porosidade,
aspecto e resistência, a cal corresponde ao material construtivo e de

Teoria e contexto
acabamento que esteticamente confere melhor resultado aos edifícios
históricos, potencializando sua unidade estético-histórica, necessária para
sua leitura ideal. Cesare Brandi (2005) destaca em sua Teoria da Restauração
que o primeiro princípio da restauração é aquele pelo qual se restaura a matéria da
obra de arte, visando restabelecer sua unidade potencial, sem cometer um

Ciência & Conservação


falso artístico ou falso histórico, garantindo a manutenção de sua imagem
e sua transmissão às gerações futuras. Conclui ainda que, dado que ninguém
poderá jamais estar seguro de que a obra não terá necessidade de outras intervenções
no futuro, mesmo que simplesmente conservativas, deve-se facilitar e não impedir as
eventuais intervenções sucessivas.
Baseado no artigo 10º da Carta de Veneza de 1964:
Quando as técnicas tradicionais se revelarem inadequadas,
a consolidação do monumento pode ser assegurada com o
emprego de todas as técnicas modernas de conservação e
construção cuja eficácia tenha sido demonstrada por dados
científicos e comprovada pela experiência.
Locais onde: (i) há dificuldade de encontrar mão-de-obra especializada,
detentora de informações sobre os processos de beneficiamento, produção
e aplicação de argamassas e principalmente da caiação de acabamento; (ii)
não há compreensão da técnica; e (iii) a entidade mantenedora não possua
meios financeiros para patrocinar com a adequada freqüência a execução
dos serviços técnicos de manutenção e da locação dos equipamentos
necessários a sua correta aplicação, o uso da cal pode inviabilizar
economicamente a conservação freqüente do edifício, estimulando
portanto a pesquisa ou a utilização de um novo material, mais resistente,
disponível no mercado, e que garanta, portanto, os mesmos benefícios da
cal.
226

A argamassa ideal
Sobre os paramentos ou paredes confeccionadas tanto em terra quanto
em outros materiais, normalmente é aplicada uma camada de revestimento
responsável pela maior resistência e durabilidade destes que forneça melhor
resultado estético, suporte para elementos decorativos e que confira maior
qualidade térmica e acústica para o ambiente, chamada de argamassa.
Juntamente com a subseqüente camada de revestimento, denominada de

Teoria e contexto
pintura, formam um escudo de proteção que deve preservar os paramentos
de possíveis danos, mesmo que para isso sejam substituídas ou reparadas
freqüentemente. Normalmente ambas conferem à edificação parte de
sua identidade, garantida pelos materiais empregados, cores e texturas
resultantes, o que justifica sua preservação. Assim, para sua conservação,

Ciência & Conservação


além do emprego de materiais adequados, a umidade deve ser minimizada,
o que garante a longevidade desejada para essas estruturas. O material
ideal para a execução dessas camadas deve ser poroso, permitindo a
transpiração dessa umidade constantemente presente na base dos edifícios
de terra, evitando que esse torne-se pulvurolento, desagregando-se. O
material que possui essas características e que foi largamente utilizado
como aglomerante de argamassas e base para tintas ao longo da história
da humanidade é o carbonato de cálcio, popularmente conhecido por cal.
As paredes são no geral revestidas de emboço de barro,
completado ou não por reboco de cal e areia. Vez por outra
argamassa-se o barro com estrume de curral, para sua
maior consistência e para proporcionar-lhe melhor ligação
entre o maciço de barro e o revestimento de cal e areia.
Quanto a cal, seria primeiro importada, depois obtida de
conchas ou mariscos queimados, até o aparecimento da
cal comum. Quando esta falta, é substituída pela tabatinga.
VASCONCELLOS (1961).
Quando a argamassa for executada sobre paramentos de terra crua (taipa
de pilão, pau-a-pique ou adobe), técnicas comumente presentes no acervo
histórico arquitetônico, a cal deverá ser utilizada como aglomerante, pois
o uso do cimento, largamente empregado desde o século XX, inclusive
em obras de conservação/restauração, potencializa os danos sobre esses
edifícios.
227
Quando reparos e substituições de argamassas e rebocos
a base de cal são necessários, as novas argamassas devem
exibir características químicas, físicas e estéticas similares
aos materiais existentes. Argamassas a base de cal são
recomendadas por serem compatíveis com os sistemas
tradicionais de construção, por apresentarem boa
porosidade e resistência mecânica, harmonia estética, se
bem feitas e mantidas. (KANAN,1999).

Sobre os danos causados pela aplicação de revestimentos a base de

Teoria e contexto
cimento, empregados em paramentos de terra e edificações históricas,
segue as considerações de NOLASCO (2008):
O cimento tem a deformação elástica completamente
diferente do maciço da parede de terra, enquanto a
deformação da argamassa de cal é bem mais semelhante; a
porosidade que permite a aeração da parede é muito menor

Ciência & Conservação


no revestimento com cimento, enquanto com a cal ela é
muito maior; o poder de adesão do cimento à superfície é
muito maior que o poder da cal, com isso o revestimento
hidráulico arranca partes do maciço de terra fragilizando a
parede que precisa ser preservada. (NOLASCO,2008).
Os rebocos a base de cimento, que formam uma barreira impermeável,
com o tempo se esfarelam ou destacam das paredes, expulsando com ele
o revestimento e a pintura. Essa incompatibilidade entre materiais causa
problemas até mesmo irreversíveis ao patrimônio, uma vez que pinturas
murais internas, artísticas ou decorativas, igualmente e adequadamente
executadas sobre camadas de diferentes traços de cal, podem ser perdidas
quando seu invólucro – a edificação – é impermeabilizada externamente
por um revestimento a base de cimento.
A cal é tida como agregante por excelência. Esse material
em maior ou menor quantidade, conforme a espessura do
estrato [de uma pintura mural] e a sua função na composição
do “sistema de massas preparatórias”, por garantir boas
propriedades mecânicas às argamassas finalizadas, é
indissociável da história dos murais. (TIRELLO,2001)

A pintura ideal
Ainda garantindo a transpiração dos paramentos por meio de revestimentos 228
porosos a base de cal, a pintura ideal, que a sucede, deverá ser executada
sobre os mesmos princípios: utilizando material igualmente poroso, que
não forme filme plástico impedindo a troca de umidade com o ambiente.
Assim, a cal é também empregada na confecção de tintas, ou melhor
denominada, na “caiação” dos edifícios, e aparece originalmente como
acabamento quase exclusivo dos edifícios históricos.
De um modo geral, as paredes revestidas são caiadas de
branco. Quanto a isto, não podem haver dúvida, tendo em
vista a longa serie de depoimentos que só começam a variar
a partir do século passado. (VASCONCELLOS,1961).

Teoria e contexto
A utilização da cal também para a caiação, executada conforme os métodos
dos antigos mestres de obras, igualmente apresentam variações com
relação a inserção de aditivos como óleo de linhaça, caseína ou gordura
animal para acelerar a secagem ou facilitar a cobertura das superfícies.

Ciência & Conservação


A caiação é uma pintura a base de cal cujo processo de
formação de filme se dá pela carbonatação (reação química
da cal hidratada com o ar com perda de água e formação
do carbonato de cálcio). Tradicionalmente foi comum a
adição de ingredientes as misturas de cal, no entanto, alguns
aditivos podem modificar o mecanismo de endurecimento
da cal e resultar em um tipo de pintura a qual não será
apropriada para trabalhos de conservação e restauração
arquitetônica. (KANAN, 1999)
A caiação ou método similar de pintura, como no caso das tintas minerais a
base de silicato de potássio ou magnésio, devem garantir a permeabilidade
do conjunto a fim de melhor conservá-lo. Para Brandi (2005), noventa
e nove por cento dos casos de perecimento das pinturas murais é determinado pela
umidade e esta, seja por capilaridade, por infiltração ou por condensação, é quase sempre
ineliminável. Para evitá-la então é necessário observar se a quantidade de
aditivos a serem empregados como coadjuvantes na formulação de tintas
está conforme diretrizes fornecidas pelos órgãos de preservação. Ainda
segundo Brandi (2005), impedir a transpiração natural da superfície de uma
pintura mural é sempre um erro gravíssimo.

Novos materiais
A maior parte das tintas modernas, industrializadas, possui aditivos ou
aglutinantes plastificantes, empregados em sua composição para garantir 229
maior durabilidade quando aplicadas sobre superfícies impermeabilizadas,
ou demais superfícies onde não haja problemas com umidade ou infiltração.
Embora ofereçam alta durabilidade e qualidade sobre essas estruturas,
tornam-se prejudiciais quando aplicadas sobre edifícios de terra crua,
onde a troca de umidade com o ambiente é constante. Tal prática favorece
o aparecimento de manchas causadas por fungos manchadores e/ou
emboloradores, o desprendimento de seu filme plástico e o aparecimento
de eflorescências de sais solúveis. Embora a pesquisa e produção de novos

Teoria e contexto
materiais reflitam a demanda do mercado e a necessidade de evolução
destes, sua utilização deve ser responsável nas obras de conservação de
edifícios históricos e estar sempre condicionada à execução de ensaios que
comprovem sua eficácia e compatibilidade, e que garantam no futuro o
não aparecimento de novos danos.

Ciência & Conservação


Considerações finais
Para a avaliação da utilização de novos materiais nos processos de
conservação dos bens culturais, buscou-se junto às principais cartas
patrimoniais e teorias da restauração os conceitos e considerações de
seus autores com relação ao emprego destes nas obras de conservação/
restauração. Nota-se que, embora cada postura reflita o momento histórico
em que viveram e a respectiva condição sociocultural e econômica da época,
praticamente todas consideram o uso de materiais melhores, compatíveis,
mais resistentes e mais reversíveis, com o objetivo único de garantir a
sobrevivência do bem. Nota-se ainda que a especificidade de cada bem
cultural aponta os procedimentos mais adequados para sua conservação, e
que esse indica a necessidade de pesquisa sobre seus materiais originais e
do eventual emprego de novos materiais.
Complementando a parte inicial do desenvolvimento deste trabalho
foram apresentadas técnicas de construção com terra, sua relação com
os revestimentos ideais e seus requisitos básicos para adaptar-se a novos
materiais. Tal pesquisa visou identificar como um caso real, corriqueiro,
pode se relacionar às teorias de restauração com relação ao emprego
de novos materiais. Novamente as teorias e seus conceitos tornam-
se ferramentas para a discussão dos procedimentos a serem adotados, 230
direcionando a postura dos profissionais da área com relação à pesquisa e
utilização de novos materiais.
Por meio desta pesquisa é possível concluir que a síntese entre as bases
teóricas e os métodos analíticos experimentais nos fornece o meio mais
seguro para compreender, diagnosticar e proteger os bens culturais, e
que, mesmo em casos tão corriqueiros como a pintura de uma edificação,
a ação consciente e responsável dos profissionais envolvidos em todos
os processos contribui com o avanço e consolidação da conservação
enquanto ciência.

Teoria e contexto
___________
Referências
BERREDO, Hilton. Pinturas em edificações no século XIX. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal,
1990.

Ciência & Conservação


BRANDI, Cesare. A Teoria da Restauração. Coleção Artes & Ofícios. Ateliê Editorial. 2ª edição. 2005.

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1987. Disponível em www.iphan.gov.br> Acesso em: 26.jan.2009.

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Disponível em www.iphan.gov.br > Acesso em: 26.jan.2009.

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VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoria contemporánea de la Restauración. Editorial Síntesis. Madrid. 2003.
Memorial Minas Gerais

Teoria e contexto
Valessa Costa Soares
Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

Ciência & Conservação


Partindo da experiência de trabalho realizada no prédio da antiga Secretaria de Estado
da Fazenda, localizada na Praça da Liberdade em Belo Horizonte e integrante do
projeto Circuito Cultural Praça da Liberdade, coordenado pelo governo do Estado de
Minas Gerais, o estudo proposto tem como objetivo analisar o valor das intervenções
no processo de restauração da edificação, tendo em vista suas transformações físicas/
estruturais e de significado simbólico, mediante o processo de reformulação proposto para
o novo uso do mesmo. Alem disso, pensar a possibilidade de assegurar nesse espaço uma
memória coletiva a partir da manutenção das características marcantes do edifício e unir ao
valor afetivo já existente um possível resignificado, observando que esse será destinado ao
Memorial Minas Gerais Vale.
Palavras chave: Restauração, arquitetura, urbanismo

Abstract
Based on the work done in the former Secretaria do Estado da Fazenda building, located
in Praça da Liberdade, Belo Horizonte, and part of the project Circuito Cultural Praça da
Liberdade, coordinated by the state government of Minas Gerais, the proposed study aims
to analyze the value of interventions in the process of restoring the building in order to
change their physical/structural and symbolic meaning through the proposed process of
redrafting. Also, think about the possibility of preserving a collective memory based on the
maintenance of the striking features of the building, and, to its already existing emotional
value,  attach one possible new meaning, noting that the space is intended to become the
Memorial Minas Gerais Vale.
Keywords :Restoration, architecture, urbanism

Introdução 232
Partindo da experiência no processo de restauração e do acompanhamento
das obras estruturais ocorridas no edifício da Antiga Secretaria de Estado
da Fazenda, localizada na Praça da Liberdade em Belo e as reflexões
propostas pela disciplina “Fundamentos históricos e filosóficos da
ciência da conservação” ministrada pela professora Yacy-Ara Froner, o
trabalho aqui proposto primeiramente tem o intuito de analisar o valor
das intervenções no processo de restauração da edificação, tendo em
vista suas transformações físicas/estruturais e de significado simbólico,

Teoria e contexto
mediante o processo de reformulação proposto para o novo uso do
mesmo. Alem disso, em um segundo momento pensar a possibilidade de
assegurar nesse espaço uma memória coletiva a partir da manutenção das
características marcantes do edifício e unir ao valor afetivo já existente um
possível resignificado, observando que esse será destinado ao Memorial

Ciência & Conservação


Minas Gerais - Vale.
Deu inicio em abril de 2009, sob a supervisão do Instituto Estadual de
Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) as obras
de revitalização do prédio da Antiga Secretaria da Fazenda. Incerida
no projeto “Circuito Cultural Praça da Liberdade” uma parceria entre
empresas privadas, publicas e o governo do Estado de Minas Gerais, tal
implantação chama atenção para as edificações de forma a resguardar
o acervo restaurado e a adequação dos espaços na recepção dos novos
equipamentos tecnológicos e de estrutura.
Nomeado de “Memorial Minas Gerais – Vale” o projeto de curadoria e
museografia do prédio da antiga secretaria apresenta três conceitos: Minas
imemorial clássica – A historia e memória do século XVII ao XXI –, Minas
polifônica multicultural – As múltiplas dimensões culturais e artísticas de
um Estado de muitas caras – e Minas visionária – Os conceitos de tradição,
entusiasmo e utopia na cultura e no pensamento mineiro. Juntos, eles
unem em um só ambiente as noções de passado, futuro e de identidade do
mundo contemporâneo.
É importante destacar, contudo, alguns aspectos históricos de fundação de
tal conjunto urbanístico visando à compreensão mais clara da importância
política, social e arquitetônica desse cenário. Pensado para a grande
inauguração da nova capital de Minas Gerais as edificações da Praça da 233
Liberdade – que nesse período incluía o Palácio da Liberdade e os prédios
das Secretarias da Fazenda; Viação (antiga agricultura); Educação (antiga
interior); Segurança Publica e interior mais seus jardins, alamedas, lagos,
hermes e fontes – insere-se no projeto de criação de uma nova cidade.

Belo Horizonte teve as linhas básicas de seu traçado


definidas antes mesmo da escolha de seu local. Esta nova
cidade vivia como que para se contrapor à antiga, Ouro
Preto, lugar condenado por ser a imagem do Brasil colonial
e por não poder comportar, diziam na época, as exigências

Teoria e contexto
urbanísticas de uma cidade moderna. (SILVA, 1999, p.1)
Modernidade essa que estava diretamente ligada aos modelos europeus
vigentes no final do século XIX que refletem as necessidades sociais,
econômicas e políticas de uma classe política administrativa crescente.
Tal arquitetura que desprezava o passado colonial, indigno enxergou em

Ciência & Conservação


Belo Horizonte cidade de criação recente um campo fértil. Observa-se nas
cidades brasileiras, até cerca de 1940, a adoção de um estilo neoclássico
ou neo-renascentista, uma inspiração constante na maioria dos edifícios
oficiais, fossem eles faculdades, escolas, teatros ou sede dos principais
órgãos governamentais. Um modelo estético, urbanístico, comportamental
adotado que segundo Carlo Giulio Argan, pregava uma teoria arquitetônica
que usava a “adequação lógica da forma à função, a extrema sobriedade
do ornamento, o equilíbrio e a proporção dos volumes: a arquitetura não
deve mais refletir as ambiciosas fantasias dos soberanos e sim responder
a necessidades sociais e, portanto, também econômicas” (ARGAN, 1992,
p.21).
Dessa forma a nova capital mineira foi beneficiada com uma unidade,
que lhe conferia um caráter definido, no qual, a Comissão Construtora
da Nova Capital, formada por engenheiros como Aarão Reis, Saturnino
de Brito, Francisco Bicalho e outros, projetou uma cidade ”a partir das
mais modernas técnicas urbanísticas” (SILAV, 1999, p,25). Para a Praça da
liberdade existia uma concordância entre a rigidez do plano urbanístico
e a aparência neo-classica dos grandes edifícios públicos em função de
uma hierarquia cuidadosamente estudada cuja, preocupação se referia aos
arranjos das perspectivas, o aspecto geral das casas, e a persistência de
conter fachadas decoradas com colunas, pilastras e frontões.
234
O prédio da Antiga Secretaria de Estado da Fazenda teve os primeiros
serviços de construção iniciados em 25 de novembro de 1895, através
do sistema de tarefas de mão-de-obra de responsabilidade da Comissão
Construtora. Já na inauguração de Belo Horizonte a obra encontrava-
se em fase final de acabamento, sendo gasto com decoração e pintura
cerca de 8,6% do custo total orçado. José Magalhães, chefe da secção de
Arquitetura da Comissão Construtora foi o arquiteto responsável pelo
projeto, assim como, Frederico Steckel ficou a cargo da decoração interna
e externa, esse era pintor, alemão formado pela Escola de Belas Artes de

Teoria e contexto
Berlim e morava no Brasil desde 1846 (IEPHA, 1996).
O edifício da Secretaria da Fazenda ao longo dos anos passou por diversas
reformas, cito algumas:
1905 – Reparos gerais e consertos no telhado.

Ciência & Conservação


1908 – Acréscimos nos fundos e em toda a altura do edifício.
1909 – Construção do pavilhão destinado ao alojamento dos guardas.
1927 – Vários acréscimos objetivando ressaltar o tom modernista da
obra.
1971 – Reforma total promovida pela Secretaria de Viação e Obras
Publicas.
2003 – Pintura e reparos gerais.
Segundo descrições da época de inauguração o prédio possuía os seguintes
aspectos físicos;
É composto de três corpos, sendo os dois laterais salientes
e o central reentrante. O corpo central de três andares,
possui três portas de dois metros de largura no andar térreo
e nos dois andares superiores, cinco janelas. Lateralmente
possui duas janelas por andar, sendo que as do primeiro
piso possuem dois metros de largura e coroamento de
tímpanos triangulares. Internamente, os três pavimentos são
interligados por uma escada de ferro de sistema Joly Brevete,
vinda da Bélgica. Grande parte do material empregado na
obra são importados da Europa. (IEPHA, 1996)
Essas características se fazem necessária, uma vez que, a atual reforma
pensada para o novo uso do mesmo abrange toda a estrutura da 235
construção composta em vários momentos de reforma. Entretanto,
o trabalho da equipe de restauração foi responsável pela recuperação e
conservação dos elementos artísticos integrados constituintes da primeira
fase de construção no final do século XIX, tal processo legitima-se através
do registro de tombamento do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da
Praça da Liberdade, no qual o prédio da Secretaria da Fazenda se integra
(Edital IEPHA, 1997).
Partindo do esclarecimento de tal importância o que pode ser apresentado
e discutido é uma parte subjetiva do processo de restauro do patrimônio

Teoria e contexto
público descrito acima. Assim, o trabalho teve inicio com a desocupação
e avaliação das condições físicas do espaço, como já se encontrava em
desuso as pesquisas logo avançaram, observou-se janelas de prospecção e
alguns testes para remoção de tintas feitas na ultima avaliação do prédio
em 2006.

Ciência & Conservação


Formada a primeira equipe de profissionais as atividades se estabelecem,
montagens de andaimes no terceiro andar e em seguida no segundo
dando acesso aos forros de tecido originais do século XIX, que estavam
cobertos por um teto rebaixado de gesso. Destaque para a pintura do
foro central ainda em ótimo estado de conservação e a descoberta de
novas vinhetas e pinturas no foro e balaustrada após novas prospecções.
A partir do andamento da obra é necessário estabelecer prioridades de
tarefa enfatizando critérios como tempo, estabilidade física/estruturais,
mão-de-obra.

236
Visão do forro central mais parte da escadaria.
O trabalho passa a ter então, um ritmo mais dinâmico equipes diferentes
destinadas à funções diferentes foram formadas, com cada uma contendo
um supervisor as atividades são distribuídas de forma que o serviço
em áreas distintas ocorram concomitantemente. Proponho assim, uma
descrição concisa desse intenso processo de trabalho que durou cerca de
um ano e meio, de abril de 2009 a julho de 2010.
Formados os grupo, um ficou responsável pela fixação do forro central no

Teoria e contexto
terceiro pavimento, tarefa cumprida juntamente a remoção das camadas de
tinta dos capitéis. Mais duas equipes tomaram conta da remoção das varias
camadas de tinta de três forros e roda-forro um no primeiro pavimento
e dois no segundo. Esse trabalho durou vários meses, pois, exigia muito
cuidado visto a delicadeza em que se encontrava a pintura e o tecido.

Ciência & Conservação


Terminada a remoção dos capitais é a vez da balaustrada na caixa da escada
(segundo e terceiro andares), esse grupo também teve que administrar
muito bem o serviço, já que a condição dos elementos exigia bastante
cuidado. Nesse instante deu-se início a remoção de tinta e o nivelamento
da estrutura da escada e também a fixação do marmoreado no primeiro
andar.
Terminada a remoção dos três primeiros forros outros dois dão inicio,
ainda no segundo pavimento, enquanto a sutura dos tecidos já descobertos
é feita. Não posso esquecer das belas colunas do terceiro pavimento
que são fixadas e niveladas durante esse tempo mais o marmoreado das
paredes e colunas do primeiro andar.
É importante observar que a partir do oitavo mês outras empresas passaram
a trabalhar no prédio. Essas foram responsáveis pela reformulação
estrutural, destinado a abranger o projeto de novo uso. Um número grande
de funcionários passou a circular dificultando e retardando em alguns
momentos o desenvolver das atividades de restauro. Chamo atenção para
a enorme modificação física ocorrida nas salas construídas na segunda
fase do projeto da secretaria. São mudanças que abalaram fisicamente as
grandes colunas de concreto responsáveis pela base de apoio e sustentação
do edifício, causando assim, rachaduras em inúmeros pontos do mesmo.
No entanto, todo processo teve o aval do IEPHA-MG e do Governo do 237
Estado de Minas Gerais.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Reforma estrutural, parte de novo uso.

Desse modo, o ano de 2010 começa com a reintegração dos forros e da


balaustrada mais a pintura dos capitéis. Em início de março ocorre a pré-
inauguração: três salas já estavam prontas e a reintegração do marmoreado
no vestíbulo, do primeiro andar, em estágio final. Em sequência segue a
troca das cimalhas, frisos, florões e forros das quatros salas do primeiro piso
e quatro salas do segundo, onde havia pintura lisa e o tecido encontrava-se
totalmente inutilizado. A pintura da escada juntamente com os detalhes
em dourado e as composições das vinhetas de nove salas do primeiro
pavimento, quatro do segundo, sendo duas com parede inteira e os dois
corredores dos três pisos dão finalidade ao trabalho de restauração em
julho do ano atual.
O objetivo dessa rápida descrição justifica-se para compreendermos
melhor o valor de uma obra de restauração e suas muitas fazes. O restauro
entendido hoje, não é volta ao passado, não significa congelar, embalsamar 238
e muito menos apartar os bens culturais da realidade. Significa transformar,
pautando-se na análise da obra, no respeito pela sua conformação, pelos
seus aspectos materiais e pela sua transformação ao longo do tempo,
através de método fundamentado nos instrumentos de reflexão oferecidos
pela filosofia e historiografia da arte, crítica e estética e nas ciências naturais.
(BRANDI, 2004).
A restauração é uma ciência critica com critérios estéticos, teóricos, éticos
bem organizados e que assumem a decisão política de recuperar, restituir
“uma parte do real” (CARENA, 1992, p.129) no qual a comunidade é

Teoria e contexto
proprietária. Tais decisões não são unânimes nem validas para um todo
temporal, discussões sobre as escolhas feitas em um caso de intervenção
será sempre proposta para passado, o presente ou o futuro. Na citação que
segue Beatriz Mugayar Kühl, chama atenção para a importância de uma
postura ética e criteriosa no restauro:

Ciência & Conservação


É preciso retornar às raízes que motivaram a preservação
dos monumentos históricos para voltar a entender porque,
para quem, o que e como preservá-los, respeitando
escrupulosamente seus aspectos documentais, sua
configuração, sua materialidade, seu transcorrer ao longo do
tempo, para que desse modo, continuem a ser documentos
fidedignos, que possam transmitir o conhecimento
de forma plena e não deformada, e para que sirvam
como efetivos elementos de rememoração e suportes
da memória coletiva (KÜHL, 2005)
A autora ressalta assim, a relevância de assegurar aos bens culturais a
memória e o conhecimento dos quais estes são portadores. O passado,
antes de ser didático, fascina por sua diferença com a atualidade. Costuma
ser considerado um lugar de memória, de evocações, de identidade, de
reminiscências. Em primeira instância não interessa ao grande público
a filologia da análise que levou à determinada opção metodológica
de preservação; interessa, sim, a capacidade que uma pintura ou uma
arquitetura antiga têm de demonstrar, por meio de estruturas claras e
compreensíveis (a partir dos parâmetros atuais), outros modos de vida e
organizações sociais.
Pensar restauração e preservação e suas implicações reforçam e legitimam
as posturas tomadas pela equipe contratada para o projeto de revitalização
da Antiga Secretaria. Ao mesmo tempo como observador integrante de 239
tal grupo sinto a necessidade de colocar em duvida algumas escolhas
referentes a reforma destinada ao novo uso, ou seja, as salas reconstituídas
para receber a nova instalação museográfica.
A discussão perpassa, dessa forma, por uma dificuldade de compreender
certas decisões políticas, administrativas no que se refere a preservação do
prédio em questão, ou seja partindo de qual critério as escolhas sobre os
bens culturais são feitas. Após a leitura de justificativa de tombamento do
Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Praça da Liberdade é possível
por em questão algumas posições tomadas para a reforma do edifício,

Teoria e contexto
sendo assim cito:
A preservação deste conjunto arquitetônico se faz
necessária, pois, as transformações mutiladoras sofridas no
decorrer do tempo vem transformando aquele logradouro
publico em estacionamento de veículos. (...) Tal área, hoje
nossa preocupação em preservar, quando projetada, tinha

Ciência & Conservação


em vista dar condições de trabalho aos servidores daquelas
secretarias, afastando o trânsito intenso das mesmas,
dificultando-o em vista das dimensões reduzidas dadas às
alamedas. (IEPHA)
Percebe-se, portanto, que o atual projeto descaracteriza a função para o
qual esse espaço foi criado, mudando seu significado e sua importância
como membro integrante de um conjunto arquitetônico urbanístico de
caráter fundamentalmente administrativo.
A antiga secretaria da fazenda possui uma consistência histórica dentro do
seu conjunto organizado – passado/presente, antigo/moderno – de acordo
com Carlo. J Argan “a cultura moderna tem ou deveria ter a capacidade
de compreender na sua estrutura histórica tanto o valor de uma memória,
presença do seu passado, como uma previsão-projeto do seu futuro”
(1995, p.82). Contudo, penso ser frágil a estrutura de organização vigente
em tal projeto cultural, pois o significado já reentrante na memória coletiva
de um lugar do poder, de símbolo administrativo foi separado ou mesmo
distanciado do papel moderno ao qual representará. Esclarece Argan,
“o único desenvolvimento histórico é dado pela transmissão de certos
significados através do certos signos arquitetônicos; mais exatamente,
pelos diversos significados que nas épocas sucessivas, foram atribuídos a
esses signos” (ARGAN, 1995, p.249).
O projeto Circuito Cultural Praça da Liberdade abrange também 240
demais edificações do conjunto da praça e todas vão passar por grandes
reformas, cada uma dentro de um tema especifico propõem um diferente
e moderno olhar sobre o espaço publico que ocupa. Há no Brasil e em
centros urbanos dinâmicos uma tendência de unir financiamento privados
a projetos políticos culturais, remetendo-se a uma dinâmica econômica
ligada ao sector de serviço e mercadológico.
Para pensarmos as intervenções urbanas hoje é importante que tenhamos
uma percepção não apenas urbanística ou ligada à modernidade dos
espaços, mas também um olhar sobre as culturas urbanas que habitam

Teoria e contexto
e que fazem uso dessas localidades. Rogério Proença Leite chama a
atenção para um processo de enobrecimento dos espaços urbanos, o
que é compreendido como sendo uma intervenção, revitalização ou
recuperação de determinados locais pelo Estado das cidades onde haja
uma importância simbólica, em termos históricos ou mercadológicos.

Ciência & Conservação


Dessa forma, Leite destaca questões de fundamental significância para
pensarmos o papel desses espaços na formação de uma identidade, haja
vista, a espetacularização da cultura.
Essa expressão é utilizada para compreendermos as transformações
dessas localidades, no que tange suas funções públicas. Ou seja, segundo o
autor, na busca por uma modernidade vinculada ao mercado e ao acumulo
de capital, as interferências nos espaços urbanos, modificam centros
históricos, resignificam construções os transformando em verdadeiros
espetáculos culturais e paisagísticos para atrair turistas.
Contudo, o que pode ser observado é uma estratificação, uma separação
do público visitante. Desse modo, é difícil pensarmos o patrimônio como
algo agregador, onde a população se identifica e se sinta pertencente
a aquele Estado. Assim, Rogério Leite faz uma crítica a essas políticas
intervencionistas, e afirma que a própria prática de uso dos espaços
prova que essa separação não impede uma interação. É o que ele chama
de “contra-usos”, em outras palavras, as pessoas utilizam e transformam
esses espaços à medida que nelas se identificam.
A facilidade de visualizar tais características no prédio da Antiga Secretaria
da Fazenda e em todo o conjunto da Praça da Liberdade é possível se
pensarmos na falta de integração funcional que a política cultural propôs
para essa região. Na tentativa de responder as oportunidades contingentes, 241
às decisões governamentais privilegiam escolhas nem sempre acertadas,
pois se por um lado as facilidades de desapropriação dos prédio, visto que
esse já estavam em desuso, e de reforma financiados pela iniciativa privada
ajudam a dar cara nova a região que estava um pouco esquecida, por outro
lado a forma como este projeto é proposto o torna integrante de um
processo de ruptura de significados, ou seja, dar a um lugar já carregado
de simbolismos novos signos sem dar o tempo necessário para tal.
___________
Referências

Teoria e contexto
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ARGAN, Giulio Carlo. “Arte Moderna”: Tradução Denise Bottmann e Frederico Carotti – SP:
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Ciência & Conservação


CARENA, Carlos. Ruína/restauração. In: memória/Historia. Portugal: Imp. Nacional Casa da Moeda,
1992.

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discursiva como pratica epistemológica. In: Os domínios da memória. São Paulo: FFLCH/USP, 2001

KÜHL, Beatriz Mugayar. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos


Históricos. Revista CPC, São Paulo, v. 1, n. 1, p.16-40, 2005.

LEITE, Rogério Proença. A exaustão das cidades: Antienobrecimento e intervenções urbanas em


cidades brasileiras e portuguesas. In: Revista brasileira de ciências sociais – vol 25 nº 72.

SILVA, Regina Helena Alves da. O Brasil civiliza-se. In: A invenção da metrópole. (Tese do
doutoramento, 1999, USP)

242
Trilhos e memória: preservação do acervo
documental do patrimônio ferroviário

Teoria e contexto
Mônica Elisque do Carmo
CDI-IPHAN

Ciência & Conservação


RESUMO
Apresenta a experiência da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais na preservação
do acervo documental da RFFSA em cumprimento à Lei nº 11.483/2007, que atribui
ao IPHAN o dever de “receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico
e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. Descreve
as ações que se iniciaram com a realização de atividades de conservação preventiva e
inventário e, posteriormente, restauração das obras raras. Relata a elaboração de diretrizes
para preservação do acervo documental, com o intuito de se evitar maiores perdas desses
ricos registros da memória ferroviária nacional. Propõe o planejamento de centros de
memória ferroviária em diversos municípios e estados do país. Reflete acerca das ações
do conservador/restaurador na preservação do acervo documental. Comenta critérios de
acesso e reprodução dos acervos documentais.
Palavra chave: Preservação - acervo documental - conservação-restauração, memória
ferroviária

ABSTRACT
The text presents the experience of the Office Minas Gerais of IPHAN in the preservation
of the RFFSA documentary collections, in the accordance to the Law nº 11.483/2007.
This federal law gives the IPHAN the duty “to receive and manages movable and immovable
property of artistic, historical and cultural value thats belongs to the terminated RFFSA, as well as
ensure their safekeeping and maintenance”. Describes the actions that were initiated with the
implementation of preventive conservation and inventory activities and, later, restoration
of rare books. Reports the development of guidelines for preservation of documentary
collection, in order to avoid further loss of these rich records of Railroad Heritage in several
Brazilian counties and states. The actions of conservation and restoration professional
in the preservation of documentary information are themes to the examination and
reflection. Comments the criteria to the access and reproduction of the documents. 243
Key word: Preservation – document collections - conservation-restoration - railroad
memory
Introdução
A REDE FERROVIÁRIA FEDERAL SOCIEDADE ANÔNIMA
– RFFSA – foi constituída como uma sociedade de economia mista

Teoria e contexto
integrante da administração indireta do Governo Federal, vinculada
funcionalmente ao Ministério dos Transportes e criada pela Lei nº 3.115,
de 16 de março de 1957, através da fusão de dezoito ferrovias regionais,
com o objetivo de promover e gerir os interesses da União no setor de
transportes ferroviários. Passando então seu acervo patrimonial a ser

Ciência & Conservação


constituído, a partir das seguintes empresas: Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré, Estrada de Ferro de Bragança, Estrada de Ferro São Luiz-
Teresina, Estrada de Ferro Central do Piauí, Rede de Viação Cearense,
Estrada de Ferro Mossoró-Sousa, Estrada de Ferro Sampaio Correia,
Rede Ferroviária do Nordeste, Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro,
Estrada de Ferro Bahia-Minas, Estrada de Ferro Leopoldina, Estrada de
Ferro Central do Brasil, Rede Mineira de Viação, Estrada de Ferro de
Goiás, Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil, Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e Estrada de Ferro Dona
Teresa Cristina.
Em 21 de janeiro de 1976, foram criadas Superintendências, como a
Superintendência Regional de Belo Horizonte - SR-2, com a finalidade de
dar agilidade ao sistema de descentralização da administração da RFFSA.
A documentação da SR-2-Belo Horizonte produzida e recebida durante o
exercício de suas funções bem como o acervo bibliográfico especializado
adquirido para atendimento das demandas do seu corpo técnico, é
detentora de significado que se reveste de enorme importância para a
preservação da memória ferroviária, este tema será abordado neste artigo.
Na década de 90, a RFFSA foi novamente dividida passando a ser formada
por doze Superintendências, sediadas nos seguintes locais: São Luís,
Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Campos, Bauru, São Paulo, 244
Juiz de Fora, Curitiba, Porto Alegre e Tubarão.
Em 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização,
a partir de estudos promovidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social - BNDES, que recomendaram a transferência para
o setor privado dos serviços de transporte ferroviário de carga. Essa
transferência ocorreu no período 1996/1998.
As estações, em sua maioria, foram fechadas por não serem necessárias
à operação ferroviária do transporte de cargas. Este fato gerou um

Teoria e contexto
processo de deterioração dos prédios, que, abandonados, passaram a ser
depredados, o que representa ameaça ao desaparecimento de importantes
exemplares. Com o acervo documental não foi diferente, pois não houve a
implementação de diretrizes nem mesmo a definição de critérios mínimos
objetivando a preservação desse acervo seja para as empresas que tiveram

Ciência & Conservação


sua guarda provisória ou para os que foram deixados nos seus locais de
produção e aquisição.
A RFFSA foi dissolvida de acordo com o estabelecido no Decreto nº
3.277, de 7 de dezembro de 1999 e sofreu alterações até junho de 2004.
Sua liquidação foi iniciada em 17 de dezembro de 1999, por deliberação
da Assembléia Geral dos Acionistas foi conduzida sob responsabilidade
de uma Comissão de Liquidação, com o seu processo de liquidação
supervisionado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A RFFSA foi extinta em 22 de janeiro de 2007, através da Medida
Provisória nº 253 e sancionada pela Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.
A partir da promulgação da Lei 11.483, em 2007, o IPHAN passou a ter
atribuições especificas para preservação da Memória Ferroviária:
Art. 9o  Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens
móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural,
oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua
guarda e manutenção.
§ 1o  Caso o bem seja classificado como operacional, o
IPHAN deverá garantir seu compartilhamento para uso
ferroviário.
§ 2o  A preservação e a difusão da Memória Ferroviária
constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do 245
setor ferroviário serão promovidas mediante:
I - construção, formação, organização, manutenção,
ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos
e outras organizações culturais, bem como de suas coleções
e acervos;
II - conservação e restauração de prédios, monumentos,
logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta
RFFSA.
§ 3.  As atividades previstas no §2. deste artigo serão
financiadas, dentre outras formas, por meio de recursos
captados e canalizados pelo Programa Nacional de Apoio

Teoria e contexto
à Cultura - PRONAC, instituído pela Lei n. 8.313, de 23 de
dezembro de 1991.
O cumprimento da Lei nº 11.483, fez com que ocorressem algumas
mudanças de paradigmas no IPHAN, através da inserção do Patrimônio
Ferroviário Brasileiro em suas atribuições, além de reforçar as ações

Ciência & Conservação


propostas pelo Sistema Nacional do Patrimônio Cultural, o IPHAN tem
procurado estabelecer uma sintonia entre as esferas federal, estadual e
municipal, juntamente com a sociedade civil organizada colaborando para
a preservação de uma identidade cultural própria que foi desenvolvida a
partir das construções das ferrovias e que se prolonga com a manutenção
das mesmas.
O acervo que compreende o Patrimônio Cultural Ferroviário engloba bens
imóveis, tais como edifícios, glebas, leitos ferroviários, obras de arte, e
bens móveis, incluindo material rodante, como por exemplo, locomotivas,
vagões, carros de passageiros e outros equipamentos, como guindastes,
mobiliários, bens integrados como relógios, sinos, acervos museográficos
e acervos bibliográficos e arquivísticos em diversos suportes e formatos.

As ações do IPHAN
Baseado no Art. 9º, § 2º, da Lei 11.483, em 2007, a Superintendência do
IPHAN em Minas Gerais, realizou a primeira vistoria técnica nos acervos
documentais depositados no prédio da URBEL – SR-2, no município
de Belo Horizonte, em dezembro de 2007. O acervo encontrava-se em
condições inadequadas de acondicionamento e armazenamento, o local
onde era a Unidade de Documentação da SR-2, havia sido lacrado e parte
do acervo removido pela Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 246
por decisão do Ministério Público Estadual de Minas Gerais, devido a
denúncias de extravio do acervo, no ano de 2006.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
IMAGEM 1–Fotografia de Mônica Elisque do
Carmo. RFFSA. Rua Sapucaí, Belo Horizonte–
MG. Acervo no estado em que foi encontrado.
Novembro 2007

Em dezembro de 2008, os trabalhos foram iniciados com o diagnóstico do


estado de conservação, inventário do acervo bibliográfico e identificação
das tipologias e datas-limite dos documentos. Na ficha de registro dos
acervos foram inseridos dados sobre o estado atual de conservação e
quais intervenções haviam sido realizadas. Como não havia sido definida
nenhuma política para gestão dos acervos, foram definidas diretrizes que
se iniciaram com os trabalhos de recuperação dos mesmos tornando-
se etapa primordial, visando evitar ou minimizar as possíveis perdas e
possibilitando o conhecimento do seu conteúdo. Ficou definido que não
seriam apostos carimbos, os registros seriam feitos numa filipeta de papel
alcalino e no próprio livro a lápis. Os livros que sofreram algum tipo de 247
intervenção receberiam uma sinalização em forma de círculo verde na
filipeta de registro, facilitando a visualização do trabalho de fiscalização.
Os livros e documentos foram dispostos em estantes e foi feito um
mapa topográfico para localização dos mesmos. Desta forma, havia sido
cumprida a primeira etapa de recuperação e identificação da documentação
para posteriormente, a realização de identificação da documentação
histórica e processamento técnico do acervo. Já que: 
Um dos primeiros passos de uma política de preservação
é o inventário e análise da coleção, de modo que o

Teoria e contexto
gestor passa a ter real posse do acervo. Assim cada item
se individualiza e seu real valor passa a ser reconhecido.
Essa etapa contribui para tomada de decisão quanto às
prioridades e no que tange à segurança das coleções, dando
condições para articular medidas de salvaguarda.(LINO;
HANNESCH; AZEVEDO, 2003, p.123)

Ciência & Conservação


Imagem 2 - Fotografia de Mônica Elisque
do Carmo. Local: RFFSA. Rua Sapucaí, Belo
Horizonte–MG. Acervo tratado. Maio/2009
248
O acervo que havia sido recolhido pela Secretaria de Estado da Cultura
de Minas Gerais foi devolvido em outubro de 2008 e se encontrava em
pior estado de conservação do que havia sido deixado na Unidade de
Documentação da RFFSA. Por isso, foi realizado um diagnóstico do
estado de conservação, que determinou a realização de desinfestação por
anoxia em parte do acervo, atividades de higienização mecânica, pequenos
reparos, confecção de caixas de papel alcalino para armazenamento de
alguns documentos, livros e periódicos.

Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Imagem 3 – Acervo CDI/IPHAN-MINAS
GERAIS. Local: RFFSA. Rua Sapucaí,
Belo Horizonte – MG. Julho/2009. Acervo
recebido pelo IPHAN, estava sob a guarda
da Secretaria de Cultura do Estado de Minas
Gerais, em novembro de 2008.

Alguns livros bem como desenhos técnicos de vagões e locomotivas e


plantas de estações que se encontravam em formato de cadernos ainda
não foram restaurados, dependendo de uma nova avaliação para verificar
a possibilidade e necessidade de restauração dos mesmos, devido ao
péssimo estado em que se encontram. 249
As obras raras que haviam sido localizadas em vistoria durante a execução
da primeira etapa do projeto já tiveram seu processo de restauração
iniciado, tendo sido restaurados quatrocentos e quarenta volumes.
As primeiras etapas de recuperação do acervo histórico da RFFSA
basearam-se nas atividades de conservação e restauração do mesmo,
a partir do uso de técnicas consolidadas, profissionais capacitados e
principalmente dentro das condições possíveis, que nem sempre são as
ideais mas que:

Teoria e contexto
No entanto, não cabe ao conservador perseguir os ideais da
Conservação Preventiva como se fossem dogmas ou leis,
mas procurar, a partir destes parâmetros, desenvolver entre
os vários especialistas uma consciência da materialidade e
da vulnerabilidade dos objetos, de modo a encontrar aliados
e não opositores nos projetos preservacionistas. Adaptar-

Ciência & Conservação


se à realidade das verbas, dos espaços e dos materiais que
temos por obrigação cuidar, não é tarefa das mais fáceis.
A partir do momento que conhecemos conscientemente e
tecnicamente nossos problemas é que podermos encontrar
soluções compatíveis com a nossa realidade. Caminhar na
direção do ideal é um passo a mais para tentar alcançar as
condições mais adequadas.(FRONER, 2001, p. 18)
Outra situação que sempre nos deparamos ao trabalharmos com acervos
históricos é que os prédios também são históricos. Portanto, deve-se
sempre
...respeitar as especificidades tanto do edifício quanto
da coleção sob sua guarda, minimizando ao máximo
o impacto das degradações por meio da adoção de
alternativas equilibradas que entendam as características
do acervo e da arquitetura, principalmente no que tange
ao patrimônio histórico edificado que cumpre o papel de
museu. (FRONER, 2001, p. 19)
As atividades da Superintendência do IPHAN em Minas Gerais visam a
preservação da memória ferroviária, através da coordenação das atividades
de conservação, restauração, realização de inventário desta forma
subsidiando a atribuição de valor artístico, histórico e cultural, objetivando
o cumprimento da do missão do IPHAN na definição de critérios de
valoração para os bens Patrimônio Cultural Ferroviário. A declaração do
valor histórico, artístico e cultural dos bens da extinta RFFSA estabelecidos 250
unicamente pelo IPHAN – única entidade apta para fazer tal declaração,
é instrumento de fundamental importância para garantia da preservação
deste valioso acervo ferroviário brasileiro.
Importante mencionar que após várias mudanças sofridas pela RFFSA
na sua estruturação até a sua liquidação e posteriormente extinção, houve
algumas iniciativas de proteção aos seus acervos como o PRESERVE� e
PRESERFE�, que foram interrompidas no decorrer do tempo. Contudo,
as ferrovias deixaram marcas profundas nos indivíduos envolvidos

Teoria e contexto
diretamente ou indiretamente na sua constituição, provocando um
importante sentido de identidade cultural própria.
A preservação do acervo documental constituído a partir da formação das
ferrovias é fonte primária que subsidia estudos e pesquisas sobre a cultura
de uma determinada região a partir das instalações das estações, escolas

Ciência & Conservação


técnicas de formação de ferroviários para construção de locomotivas,
vagões e ferrovias, bem como a constituição de municípios e povoados
que surgiram ou se desenvolveram a partir das instalações de estações
ferroviárias, constituindo suas peculiaridades e integrando o patrimônio
cultural brasileiro, conferindo a essas populações um importante valor
de identidade. Em alguns municípios foram criados museus, centros e
núcleos de preservação e história ferroviária, conforme o interesse no
recebimento e gestão dos acervos, pois
O interesse da memória coletiva e da história já não se
cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os
acontecimentos, a história que avança depressa, a história
política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os
homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos
implícita dos documentos...(LE GOFF, 2003, p.531)
Esse acervo documental – bibliográfico e arquivístico – é dividido
de acordo com a formação da estrutura organizacional da RFFSA.
Estando centralizados nas sedes das Superintendências Regionais da
RFFSA e na Administração Geral. A divisão dos acervos está baseada
nas seguintes tipologias: Patrimonial (relatórios técnicos, estudos de
implantação de ferrovias, mapotecas contendo desenhos técnicos sobre
locomotivas, vagões, estações, malha ferroviárias, documentação relativa
aos imóveis - desapropriações, vendas, cessões de uso, processos de
reintegração de posse, termos de permissão de uso, laudos de avaliação);
251
Jurídico (documentação relativa a processos judiciais trabalhistas e civis)
e; Administrativo (recursos humanos e contabilidade, documentos
administrativos e financeiros, tais como recolhimento de encargos, notas
fiscais de movimentação de cargas);
A organização e disponibilização do acervo documental possibilita o
conhecimento sobre a história de uma Instituição e a sua interelação com
a sociedade.
O documento não é inócuo. É antes de mais nada, o

Teoria e contexto
resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente,
da história, da época da sociedade que o produziram, mas
também das épocas sucessivas durante as quais continuou
a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é
uma coisa que fica, que dura, e testemunho, o ensinamento...
(LE GOFF, 2003, p. 538)

Ciência & Conservação


A implantação e a manutenção de Centros de Documentação deve
adotar uma política de conservação preventiva dos acervos evitando-
se desta forma o elevado dispêndio de recursos muitas vezes escassos,
com atividades de restauração que ocorrem quando não há planejamento
adequado de proteção aos acervos, acarretando em degradação através
de infestações, ações dos agentes internos e externos, acondicionamento,
armazenamento e manuseio inadequados.

Considerações finais
Os registros das informações (memória) que constituem o acervo documental
da RFFSA tem lugar de destaque no Patrimônio Cultural Brasileiro por ser
referencial importante do impacto sócio-economico causado pelas ferrovias
na sociedade brasileira a partir de meados do século XIX.
A consciência e a apropriação de um bem cultural pela sociedade é fator
essencial para a sua preservação.
Na constituição de bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação
devem constar normas e procedimentos básicos que visam a preservação do
acervo, sendo o fator primordial para a manutenção dos mesmos.
As Instituições de proteção a memória necessitam de profissional
conservador/restaurador trabalhando de forma multidisciplinar juntamente 252
com arquivistas, bibliotecários, museólogos, cooperando para uma ação
eficaz de preservação.
Após todo esse processo de recuperação dos acervos documentais que visam
à proteção da memória cultural ferroviária, faz-se necessário a continuação
das diretrizes de preservação já implantadas e a normatização para acesso e
reprodução desses acervos, pois a finalidade da preservação é socializar as
informações, tornando-as acessíveis ao maior número de pessoas possível.
No âmbito de uma política de preservação do acervo devem ser dadas

Teoria e contexto
instruções aos usuários sobre a forma correta de manuseá-lo, aumentando
a vida útil dos documentos e consequentemente preservando-os por
mais tempo. É indispensável que o acondicionamento, armazenamento e
treinamento de técnicos da Instituição sejam realizados periodicamente. É
fundamental a atualização desses profissionais contemplando questões de

Ciência & Conservação


segurança e ações em caso de sinistros.
Quanto ao acesso e reprodução da documentação original, sua reprodução é
feita com equipamentos que garantam a integridade do suporte, respeitando
os níveis de acesso. É vedada a reprodução daqueles que apresentam
fragilidade, e não possibilitem o seu manuseio. 
Os critérios tanto para reprodução quanto relativas aos níveis de acesso que
estabeleçam que a documentação será classificada como sigilosa, reservada,
confidencial e ostensiva devem ser elaboradas por comissões constituídas
por profissionais especialistas e que detenham o conhecimento sobre a
cultura ferroviária.

_________
Referências
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253
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_______.Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007. Dispõe sobre o término do processo de
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Ciência & Conservação


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Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Desafios:
Arte Contemporânea
e Novas Tecnologias
255
O papel da documentação no contexto da
preservação da Arte Contemporânea1

Teoria e contexto
Magali Melleu Sehn
EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo:
A documentação no contexto da preservação da arte contemporânea apresenta um grau

Ciência & Conservação


elevado de importância porque não está reduzida apenas ao registro da matéria física,
mas no registro de aspectos intangíveis presentes em grande parte da produção artística
atual. A complexidade está na definição dos objetivos da documentação e na reavaliação,
principalmente, do papel do conservador, do artista, do curador e do documentalista no
processo de registro..
Palavras chaves: arte contemporânea, documentação, artista, conservador.

Abstract
The documentation in the context of the preservation of the art contemporary presents a high degree
of importance because it is not reduced only to the register of the physical aspects, but in the register
of intangible aspects as sound, movement, light and specific relationship with space and context. The
variability and subsequent re-installation need new to a large extent of the current artistic production. The
complexity is in the definition of the objectives of the documentation and in the reevaluation of the paper
of the conservator, the artist, the curator and the registrar during the process of documentation.
Key words: contemporary art, documentation, artist, conservator

Introdução
Se para as categorias mais tradicionais, os objetivos da documentação em
conservação/restauração referem-se à documentação da condição física de
um determinado objeto2, a documentação de obras que apresentam novas
relações com o espaço e que introduzem aspectos intangíveis, como luz,
som, movimento, tato e olfato, necessitam de novos métodos de captura e 256
registro. Os objetivos de uma documentação devem estar direcionados às
perguntas elementares: O que documentar? Quando documentar? Quem
documenta? Como documentar? Para quem documentar? Se estas questões
apresentam baixo índice de complexidade quando se trata da documentação
de objetos tradicionais, outros parâmetros de análise são requeridos no
contexto de obras da arte contemporânea porque a documentação torna-se
uma ferramenta poderosa não apenas no contexto da restauração, mas no
contexto da preservação: documenta-se para armazenar, para deslocar, para
transportar e para (re)exibir.
O grau de importância da documentação é proporcional à complexidade

Teoria e contexto
de cada proposta artística. O primeiro desafio está na compreensão da
proposta conceitual do artista, decifrar significados subjacentes e identificar
a relevância de aspectos tangíveis e intangíveis no contexto de cada poética.
O segundo desafio está na compreensão das formas operativas e suas
variabilidades, considerando suas conexões com tempo, contexto e espaço.

Ciência & Conservação


O que documentar? Quando documentar? Quem documenta?
No contexto da restauração da arte contemporânea, admite-se reprodução,
complementação e reposição de partes como solução para a recuperação da
funcionalidade de um objeto. No caso específico de algumas obras cinéticas,
os materiais e equipamentos podem apresentar alto índice de importância
apenas quanto ao funcionamento da obra. Em outras, os materiais e
equipamentos, responsáveis pelo funcionamento estão aparentes, requerendo
uma análise não apenas quanto ao aspecto da funcionalidade, mas quanto
ao índice de integração de motores e equipamentos à aparência total da
obra. A documentação da condição inicial da obra é a unica ferramenta para
o registro de aspectos materiais, métodos de funcionamento como como
movimento, ruídos, som, luz, aroma, atmosfera, etc.
Dessa forma, à medida que aumenta a inserção de objetos, equipamentos,
materiais efêmeros, aumenta, também, o índice de ambiguidade quanto ao
valor de cada componente ao conceito da obra, sendo necessário adotar
estratégias que visem à identificação de cada componente individualmente e
a relação das partes com o todo como, por exemplo, no caso das ‘instalações
de arte’. No contexto de algumas modalidades, as múltiplas possibilidades
de apresentação no espaço e a obsolescência dos materiais ampliam ainda 257
mais o leque para atualizações, reconstruções e recriações. O fato de serem
construidas com partes, possibilita, também, a fragmentação ou o acréscimo
de materiais e objetos quando são remontadas em espaços diferenciados
ou quando são inseridas no contexto institucional. Outras requerem
investimento especial de recursos humanos durante o período de exibição,
necessitando, inclusive, de manuais de manutenção, como no caso de obras
cinéticas já citadas e obras compostas por novas tecnologias.
Determinar o momento em que começa o processo de documentação é
uma tarefa complexa porque, em alguns casos, para evitar o risco de perda de

Teoria e contexto
informação para a (re)exibição correta da obra no futuro, a documentação
poderá iniciar durante o momento de execução da obra. Este breve
destaque das características de algumas modalidades ilustra a relevância da
ampliação do espectro de atuação da documentação como ferramenta para
preservação da arte contemporânea que ultrapassam conceitos, métodos e

Ciência & Conservação


técnicas tradicionais. No entanto, faz-se necessário analisar cuidadosamente
cada aspecto particular do trabalho no contexto no qual foi concebido para
evitar generalizações, pois nem sempre é possível dissipar as ambiguidades
da relevância da preservação material ao conceito da obra sem a consulta
ao artista..

O artista com fonte de informação


A pesquisa histórica e estilística de determinada obra constitui o ponto
de partida para que um conservador-restaurador inicie um processo de
investigação para conhecer materiais, técnicas e a trajetória de determinado
artista. No caso de artistas que não estão mais vivos, as fontes secundárias
como arquivos de documentação de instituições, bibliotecas, publicações,
pastas de artistas, textos críticos de curadores, consultas pessoais ( curadores,
amigos, familiares do artista, profissionais de galerias) são fontes primordiais
para a compreensão, principalmente, de aspectos conceituais da produção
dos artistas. Quando tais fontes são insuficientes para identificar materiais,
procedimentos, os recursos científicos como a profusão de análises
químicas e físicas propiciam uma fundamentação sólida, principalmente,
no contexto da arte tradicional. Já no contexto de algumas modalidades
de arte contemporânea, conforme já mencionado, faz-se necessário contar,
também, com o auxílio de fontes primárias a serem capturadas via arquivos 258
e textos de artistas como entrevistas, depoimentos, correspondências, etc.
A bibliografia sobre artistas contemporâneos ainda é bastante restrita, sendo
que a maior parte é resultante de textos críticos em catálogos de exposições,
jornais, revistas especializadas e coletâneas de textos críticos do próprio
artista. No contexto do Brasil, nós dispomos de uma fonte primária de alta
relevância como a produção acadêmica dos artistas com ênfase na produção
artística3. Com base em algumas dissertações e teses de artistas consultadas4,
foi possível encontrar informações referentes: ao percurso de reflexão de

Teoria e contexto
cada artista; ao referencial teórico selecionado em função das conexões
da poética do artista e suas referências; aos significados iconológicos dos
materiais e suas escolhas; aos procedimentos construtivos como projetos
inseridos nos anexos. Obviamente, tais produções constituem um recurso a
mais por oferecerem subsídios que podem ancorar, inclusive, a estruturação

Ciência & Conservação


de entrevistas com os artistas direcionadas à preservação5.
Apesar do consenso atual entre os profissionais quanto à importância do
registro das intenções dos artistas do ponto de vista da preservação, são
muitas as nunças a serem analisadas em torno desta questão. É evidente
que as singularidades de cada obra dvem ser analisadas sob vários ângulos,
porque assim como as obras apresentam características diferenciadas sob
o ponto de vista material e/ou conceitual, cada artista pode apresentar um
posicionamento totalmente oposto referente a um mesmo aspecto, ou um
mesmo artista pode apresentar um posicionamento diferente em relação a
uma mesma obra ao longo dos anos.
Os esforços de projetos internacionais e interdisciplinares como INCCA
e o projeto inside-installation 6 têm sido no sentido de elaborar metodologias
para a captura sistemática das informações, junto aos artistas, como medidas
preventivas. Um dos grupos de pesquisa do projeto Inside –installation
denominado atividade B2 Artist Participation ressalta a importância da consulta
ao artista como fonte primária, aprofundando a análise de metodologias
para comunicação com os artistas, tomando como referência trabalhos
de antropologia e sociologia7. Tais projetos, além proporem manuais com
sugestões de questões, apresentam análises quanto aos métodos e técnicas
para a captura eficiente da informação, conforme objetivos pré-estabelecidos.

259
Como documentar? Como armazenar e disponibilizar a
informação?
Independente dos recursos tecnológicos disponíveis atualmente, a questão
central está na definição dos objetivos de uma documentação que, obviamente,
será estruturada com métodos diferenciados de captura, armazenamento e
difusão da informação. Das técnicas tradicionais às sofisticadas técnicas para
captura de aspectos intangíveis e técnicas utilizadas para exame geodésico8,
faz-se necessário análise critica do que se almeja capturar, considerando,

Teoria e contexto
principalmente, o contexto econômico da instituição no qual o objeto está
inserido. A definição de terminologias para gerenciar a informação e torná-
la acessível constitui outro aspecto complexo e pesquisado pelo projeto
internacional inside-installation já mencionado, pois a fragmentação e a falta de
conexão entre arquivos documentais no âmbito de uma mesma instituição

Ciência & Conservação


interferem no processo de preservação.

O papel dos profissionais e da comunidade artística


Por último, destaca-se a importância da reflexão em torno da preservação da
arte contemporânea além do perímetro museológico, incluindo a participação
da comunidade artística no processo de preservação. Obviamente, a
questão apresenta um grau ainda maior de complexidade se for requerida a
participação efetiva, no processo de preservação, de instituições privadas, de
artistas e assistentes, de colecionadores, de famílias de artistas, ou seja, quais
seriam as reais possibilidades de contar com a participação efetiva dessa
comunidade? Apesar de ser uma pergunta que pode ser respondida sob
diversos pontos de vista, arrisca-se apontar algumas possibilidades: auxiliar
os artistas no processo de elaboração de seus acervos documentais sob o
ponto de vista da preservação, apontando metodologias e técnicas viáveis;
proporcionar a discussão referente à preservação da arte contemporânea
no contexto acadêmico não especializado por ser uma forma indireta de
difundir a informação; e promover a elaboração de projetos interdisciplinares
e “contínuos” entre instituições privadas e públicas, principalmente, quanto
à elaboração de estratégias de documentação.
As iniciativas de projetos interdisciplinares no contexto internacional não
ilustram apenas a importância da soma de esforços, mas a importância de 260
produzir conhecimento a partir de experiências inseridas em contextos
específicos que possam ser compartilhadas. Além das possibilidades
apontadas tornarem-se mais importantes ainda no contexto econômico
de instituições da América Latina – estando certa que não se esgotam –
ressalta-se a importância das instituições estabelecerem uma comunicação
mais próxima com os artistas.
Considerações Finais

Teoria e contexto
Faz-se necessário revisar metodologias e selecionar tecnologias em função
das características de cada objeto, considerando, também, o contexto
cultural e econômico no qual o objeto está inserido. As tecnologias devem
ser analisadas criticamente, pois não são soberanas quanto aos processos de
decisão e sim recursos que apresentam grande potencial de documentação

Ciência & Conservação


quando combinadas entre si. A interdisciplinaridade é não é opção, mas
condição para a obtenção de resultados satisfatórios.

___________
Notas
1 Texto extraído da tese defendida pela autora A preservação de ‘instalações de arte’ com ênfase no
contexto brasileiro: discussões teóricas e metodológicas. ECA/USP, 2010. 238p.

2 O processo de documentação em restauração tem por objetivo registrar o estado de conservação


de um objeto antes, durante e depois de uma intervenção. Os registros escritos e fotográficos, sob
a incidência de radiações diversas e sob ângulos diferenciados, fazem parte da rotina de análise de
estado de conservação de obras de arte. Além da documentação fotográfica, análises químico-físicas
aliadas à pesquisa históricas e estilísticas compõem o diagnóstico final. O objetivo é obter o máximo
de informações referentes aos aspectos construtivos para adotar métodos e critérios de intervenção
condizentes com o estado de conservação do objeto.

3 Vale ressaltar também memoriais de artista

4 NITSCHE,Maria do Carmo Gross. Pintura/desenho. Tese de Doutorado na área de Artes da


Escola de Comunicações de São Paulo(prof.Dr. Walter Zanini) São Paulo,1987.

FAJARDO, Carlos Alberto. Poéticas Visuais: A Profundidade e a Superfície. Tese de doutorado (1998).
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Artes Plásticas de Escola de Comunicação e
Artes da USP.

MORAES, Laura Vinci de. Dissertação Mestrado(Profa. Dr. Carmela Gross). Escola de Comunicações 261
e Artes. São Paulo, 1999.

ACOSTA, Daniel. Paisagem Portátil: Arquitetura da Natureza Estandardizada. Tese (Profa. Dra.
Carmela Gross) Escola de Comunicações e Artes.2005

KYAKAKIS, Georgia Evangelos de Almeida. Forças e Fluxus e a astúcia dos Líquidos. Tese (Profa.
Dra. Carmela Gross) Escola de Comunicações e Artes/USP, 2006.

5 A criação de bancos digitais de teses nas universidades tem facilitado o acesso dessas produções.
6 www.inside-installation.org

7 HUYS, Frederica & BUCK, Anne de. Artist Participation. In: Inside Installations. Preservation and
Presentation of Installation Art. ICN/SBMK 2007, p45-47.

Teoria e contexto
8 GRÜM, Maike. Measurement of installation art. Methods and Experience gained at Pinakotec der
Modern. Disponível em: http://www.inside-installation.org. Acesso: 26 set.2007.

__________

Ciência & Conservação


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Http://www.inside-installation.org
262
Http://www.getty.org

Http://incca.org
Memórias culturais em construção:
novas formas de memória em ambientes

Teoria e contexto
programáveis
Carlos Henrique Falci
EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

Ciência & Conservação


Resumo
O propósito desse artigo é discutir como a criação de memórias coletivas em redes
sociotécnicas, em ambientes programáveis, provoca o intercruzamento das memórias
comunicativas com as memórias culturais e permite o surgimento de novas formas de
memória, aqui denominadas memórias em permanente estado de construção.
Palavras-chave: memórias coletivas, redes sociotécnicas

Abstract
The intention of this article is to argue as the creation of collective memories in sociotécnicas nets,
programmable environments, provokes the intercruzamento of the comunicativas memories with the
cultural memories and allows the sprouting of new forms of memory, called memories in permanent state
of construction here.
Key word: collective memories, networld

Introdução
As memórias coletivas (Halbwachs, 2006; Santos, 2001) produzidas
em ambientes programáveis devem ser entendidas como produção de
novos acontecimentos (Brockmeier, 2010), uma vez que se baseiam em
poéticas de programação, em uma cultura de remixabilidade e na lógica
de funcionamento de redes sociotécnicas. (Couchot, 2003; Musso,
2004; Santaella, 2008; Serres, 1990) O que parece acontecer, derivado
dessa mistura, não é mais um resgate da memória, mas uma construção
incessante de memórias culturais que se aproximam de uma memória
263
comunicativa. (Assman, 2005; Featherstone, 2000) A partir das poéticas de
banco de dados, de processos abertos e coletivos e da facilidade de uso das
estruturas de programação, o registro digital passa por novos conceitos de
organização, classificação e navegação (Manovich, 2001, 2008; Oliveira,
s/d; Ruppel 2009). Se há cada vez mais suportes de produção de memória,
é preciso compreender de que maneira tais suportes provocam o
intercruzamento das memórias comunicativas com as memórias culturais
e permitem o surgimento de memórias culturais em permanente estado

Teoria e contexto
de construção.

Memórias coletivas, culturais e comunicativas


Halbwachs afirma que nossas lembranças são coletivas e elas nos são

Ciência & Conservação


lembradas pelos outros. E essa memória coletiva só permanece enquanto
o grupo se mantém junto, coeso (Halbwachs, 2006). A memória de um
grupo, entretanto, pode sobreviver para além da permanência desse grupo
social conforme sua formação original. Através de processos narrativos
de naturezas diversas as memórias atravessam gerações e funcionam
como locais de contato e fricção entre passado, futuro e presente (Till,
2008; Rowe, Wertsch, Kosyaeva, 2002). Obviamente, as narrativas sobre
memórias interferem no modo como as memórias coletivas atravessam
gerações (Tschuggnall, Welzer, 2002; Brown, Middletown, Lightfoot,
2001). Através de processos discursivos e não-discursivos um grupo
produz novas memórias coletivas sobre si mesmo, incessantemente.
Em relação aos modos narrativos associados às memórias, é possível
destacar dois conceitos centrais associados ao estudo da memória como
fenômeno cultural: a memória cultural e a memória comunicativa. Assman
(1995) define a memória cultural como todo conhecimento obtido
através de práticas sociais repetidas ao longo do tempo, que funcionam
como elemento que estrutura o comportamento e a experiência de
vida de um grupo social. A memória cultural seria construída pela
cristalização de ritos, eventos, acontecimentos, os quais poderiam ter seus
significados transmitidos através do tempo. Já Brockmeier (2002) indica
uma mobilidade maior da memória cultural, uma vez que esse tipo de
memória está diretamente associado aos contextos discursivos que a 264
produzem. Essa abordagem aproxima a memória cultural da memória
comunicativa. Segundo Assman (1995), a memória comunicativa é
baseada na comunicação cotidiana: ela seria caracterizada por um alto
grau de não especialização, instabilidade temática e desorganização. Na
visão do autor, ela seria demasiadamente instável para se configurar como
uma cultura objetivada, e logo, como elemento capaz de identificar uma
coletividade. Além disso, a principal limitação da memória comunicativa
na estruturação da identidade de um grupo social seria seu horizonte

Teoria e contexto
temporal limitado, uma vez que o horizonte da memória comunicativa
se modifica diretamente com o passar do tempo. É interessante notar,
entretanto, que a institucionalização que caracteriza a memória cultural tem
suas bases remontadas ao dia-a-dia, embora ela se distancie da mudança
diária constante em função da sua lógica de objetivação cultural.

Ciência & Conservação


Redes sociotécnicas e ambientes programáveis
Longe de fixar uma memória, os suportes físicos multiplicam as camadas
de memória coletiva, uma vez que as variadas formas de registro dos
fatos apenas intensificam a noção de que a memória não deixa de ser
reconstruída, mesmo nos suportes que deveriam fixá-la (Brockmeier,
2010). Progressivamente, os modos de registro decompõem os elementos
registrados e permitem sua manipulação livre, quase direta. No caso das
interfaces digitais, tanto o tempo quanto o espaço tornam-se calculáveis,
em função da lógica de funcionamento de uma mídia híbrida (Manovich,
2007). Os dados em formato digital podem ser manipulados de forma
modular, o que permite a simulação de todas as temporalidades, bem
como a idéia de que não há um espaço prévio ao espaço digital, ele aparece
enquanto espaço porque são as interações sociotécnicas que o produzem.
Lev Manovich (2001) afirma que as interfaces digitais produzem uma
transcodificação cultural, ao associarem elementos que são próprios de
uma cultura computacional com elementos que seriam mais diretamente
ligados à cultura humana. Os algoritmos são utilizados para produzir
informação e deixam suas marcas no modo como as informações
circulam nas redes sociotécnicas (Hertz, 2009). As interfaces tornam-se
cada vez mais adaptativas, mesclando a lógica de uma agência humana 265
à lógica de uma agência maquínica (Fischer & Giaccardi, 2008). Esse
modo de existência influencia e é influenciado também pelo modo de
funcionamento das redes que tais interfaces criam.
Uma rede pode ser definida como “uma estrutura de interconexão instável,
composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma
regra de funcionamento.” (Musso, 2004, p. 31). As regras desse ambiente,
no entanto, são modeláveis, o que permite conectá-los a idéia de ambientes
programáveis. Pode-se afirmar, então, que a rede é sempre temporária,

Teoria e contexto
porque só existe quando está em ação, quando é ativada por algum dos
elementos que a compõem (Serres, 1968). Uma rede é também sempre
sociotécnica, funcionando numa lógica de continuidade entre esses dois
termos. No caso de ambientes programáveis, a continuidade entre sujeito
e objeto e a indistinguibilidade dos mesmos surge, cada vez mais, como

Ciência & Conservação


uma marca seminal. Dentro de tais ambientes, as memórias culturais, por
conseqüência, são revestidas com elementos não tradicionais, e mostram
diversas camadas temporais em conjunto, sem que haja necessariamente
uma sobreposição entre elas. A memória não se encontraria mais no
registro de cada instante, mas justamente na conjugação entre fatos
registrados, fatos em processo de registro, e fatos passíveis de acontecerem,
que surgiriam num tempo ucrônico, num tempo possível, e não mais num
tempo já dado, já narrado.

Memórias culturais em construção: novas formas de memória


Andrew Hoskins (2009) utiliza o termo “on-the-fly”, para caracterizar
a memória distribuída em redes digitais. Em função de se encontrar
“distribuída” digitalmente, esse tipo de memória é ativamente construída e
reconstruída o tempo todo, ou seja, enquanto está sendo formulada como
registro de um acontecimento. Nesses ambientes, a memória cultural se
aproxima cada vez mais do momento de acontecimento dos eventos,
numa temporalidade ucrônica, provocando um entrecruzamento com as
memórias comunicativas. Nesse sentido, os mecanismos sociotécnicos
atuais de registro da memória produzem modificações instantâneas dos
fatos registrados, porque os colocam em novas redes de memória a todo
o momento. Podem surgir daí novas formas de memória, o que denomino 266
memórias culturais em permanente estado de construção. Em busca
desse tipo de memórias, serão analisados projetos cujo funcionamento
exemplifica o que acontece quando a memória comunicativa aparece já
como memória cultural, e como essa última não perde o seu status quando
aparece em rede, mas ganha outro modo de existência.
We feel fine

Teoria e contexto
O projeto We feel fine (http://wefeelfine.org) se destina a explorar
as emoções humanas numa escala global, segundo seus criadores. O
projeto está no ar desde 2005, e sua lógica de funcionamento, de maneira
resumida, é a seguinte: a cada dez minutos, um sistema faz uma busca,
em blogs, por postagens que tenham as frases “I fell” ou “I am feeling”.

Ciência & Conservação


A partir da localização das frases, o sistema as analisa e verifica se elas
contêm alguma palavra de uma base de dados com 5.000 “sentimentos”
pré-identificados. Quando uma correspondência acontece, o post que
representa o sentimento de uma pessoa surge dentro da interface de
visualização, como um círculo colorido. Se uma imagem estiver junto
com o post, o círculo se transforma em um retângulo colorido. Além
disso, o sistema recupera ainda informações específicas dos usuários que
fizeram as postagens: idade, gênero e localização geográfica. Nessa forma
de busca, acontece já uma apropriação do conteúdo de maneira que vai
além da simples recuperação de informação. As variáveis de identificação
básica são resgatadas para produzir experiências estéticas específicas.
Outra informação que é salva diz respeito às condições do tempo do local
informado no profile do usuário, no momento em que a informação é
escrita. Cada círculo ou retângulo, ao ser acessado, permite ver a frase
completa ou a imagem com a frase que está associada a ela. É possível ir
ao blog onde está o post original, bastando usar o link que está na frase
ou na imagem.

Blinks and Buttons


O projeto Blinks and Buttons foi realizado em Processing, utiliza mídias
móveis e a base de dados do Flickr. A parte denominada “Blinks” é 267
uma instalação em que fotos são projetadas numa superfície, de maneira
randômica, como se estivessem jogadas em cima da mesa. Um objeto
similar a um prisma é utilizado pelo usuário para se mover pelas imagens
projetadas. Quando esse objeto é posicionado sobre uma foto por alguns
instantes, raios de luz projetam outras fotos nas paredes da caixa em que
as fotos estão “guardadas”. As imagens projetadas nos lados da caixa
são imagens buscadas no Flickr, cuja data e hora são as mesmas daquela
sobre a qual o prisma está posicionado. O projeto então cria uma refração
temporal, projetando várias imagens de um mesmo momento no tempo,

Teoria e contexto
num mesmo local. Surgem, assim, várias camadas de memória relacionadas
a um mesmo momento temporal, e associadas a um conjunto de meta-
dados que serve para identificar as imagens.
Na parte denominada “Buttons”, a idéia é aproveitar a lógica de que
toda foto produz uma memória, e conecta as pessoas a momentos que

Ciência & Conservação


já viveram e pode também vir a se tornar uma memória cultural, que
sobrevive para além das conexões particulares que cada um produz sobre
aquela foto. A idéia do projeto é considerar a câmera fotográfica como
um objeto em rede. A partir do momento em que se dispara o botão de
captura, a câmera, que é um celular conectado à um servidor rodando
um script de busca, inicia a busca, no Flickr, por imagens que possuem
as mesmas referências de hora e data do momento de disparo do botão.
Assim que uma imagem é postada no Flickr com os mesmos parâmetros,
ela pode ser encontrada pelo mecanismo de busca do celular e é exibida
na tela do aparelho. A foto que a pessoa que utilizou o celular vê é uma
foto do Flickr, e não a “sua” foto, que serve como parâmetro de busca.
E como os parâmetros de data e hora em que a imagem foi feita podem
ser alterados no Flickr, essas informações começam a funcionar como
elementos que podem produzir redes de contato, redes de memória. Ao
alterar uma data e hora de uma imagem o que um agente dentro do Flickr
está produzindo é uma nova rede de memória, se considerarmos a lógica
de ação do projeto Blinks and Buttons.

Memórias culturais em ambientes programáveis: algumas


conclusões...
As obras descritas permitem indicar alguns pontos-chave para caracterizar
268
as memórias culturais em estado de construção, o que será feito à guisa de
conclusão desse artigo.
O primeiro elemento relaciona-se ao modo como a dinâmica das redes
perpassa a construção dos conteúdos produzidos pelos grupos sociais
nesses ambientes. No caso de We feel fine, não há grupos sociais
articulados previamente para produzir os sentimentos. A forma como a
obra propõe a visualização das frases é que permite perceber o surgimento
de uma memória cultural ainda não completamente ritualizada, produzida

Teoria e contexto
de forma descentralizada, sem hierarquia, mas que poderia ser considerada
como cultural em função do modo como o projeto agrega as informações
dispersas em blogs. Há aqui, ao mesmo tempo, a memória comunicativa,
presente em cada blog, e a memória cultural em constante construção,
uma vez que o sistema de We feel fine continua a construir novas

Ciência & Conservação


memórias, de dez em dez minutos. A interface do projeto se associa à
própria imprevisibilidade e ao pluralismo da rede para nos provocar a
pensar em uma memória que é, simultaneamente, registro e criação de
relações entre uma produção coletiva não-hierarquizada. Ao consultar We
feel fine e utilizar os seus vários modos de visualização, o usuário produz
memórias culturais derivadas de uma poética que mescla bancos de dados
e programação, que cria arquiteturas de memórias baseadas em meta-
dados, ou o que pode ser descrito como “metadata memories”.
O segundo elemento-chave se relaciona às interfaces fluidas utilizadas nos
projetos, e o modo como elas participam da produção de conteúdo. Ao
permitir o registro cotidiano permanente de fatos, a utilização dos celulares
cria uma memória cultural que é atemporal num novo sentido, porque é
constantemente atualizável. Os celulares podem intensificar a percepção
de que a memória cultural está sempre em constante equilíbrio, entre o
acontecimento e a estabilização dos significados. Esse parece ser o caso
de Blinks and Buttons, em que os metadados produzidos pela câmera,
que podem servir ou não para a organização sentimental e particular das
imagens, se transformam em elementos de conexão com outras imagens
e com outras pessoas, a partir da busca no Flickr. Bancos de dados como
Flickr são conjuntos de fragmentos visuais de vidas particulares. Mas
podem também se tornar grandes conjuntos de memória, dependendo
da forma como são organizados, ou como colocam em contato várias 269
pessoas ao redor do mundo. O projeto “Buttons” segue essa lógica de
associar um banco de dados extenso e “impessoal” com experiências
particulares e momentâneas.
O terceiro elemento que caracterizaria as memórias culturais em rede
baseia-se na lógica dos meta-dados. Nos dois projetos descritos, o que
se vê são memórias que mesclam informações cotidianas com meta-
dados capturados de informações tornadas públicas pelos seus próprios
criadores. Assim, a memória cultural aí construída não termina nunca de

Teoria e contexto
se fazer, porque os participantes da rede podem sempre alterar os seus
meta-dados, e estão, cotidianamente, postando novas informações na rede,
sem necessariamente levarem em conta que elas podem ser agrupadas a
partir de parâmetros comuns. Isso torna necessário repensar o próprio
termo memória cultural como algo que deveria manter certo caráter de

Ciência & Conservação


imutabilidade física ao longo de um longo período de tempo.
Como Veronesi & Gemeinboeck (2009) destacam, as tecnologias móveis
produzem uma re-incorporação da memória nas atividades cotidianas.
As interfaces móveis, associadas à lógica das redes e ao contexto físico
em que as informações são experimentadas, permitem que diferentes
temporalidades co-existam em um mesmo ambiente, criado pelo uso
cotidiano. Esse fato demonstra que as memórias culturais em permanente
construção enfatizam a importância das ações diárias de produção de
informação, sejam elas em rede ou em locais físicos (Souza e Silva, 2004).
Os ambientes programáveis, associados a tecnologias móveis de produção
e disponibilização de informação, sugerem a necessidade de um olhar mais
cuidadoso sobre o modo como já estão sendo construídas as memórias
do futuro, e como tais memórias podem ser mais ou menos voláteis, em
função da intensidade do uso que delas fizermos. Os projetos permitem
perceber como as interações em rede criam, efetivamente, uma nova
arquitetura para as memórias. Ou dito de maneira melhor, uma arquitetura
com e através das memórias, espaços de memória instáveis, programáveis e
cujo modo de existência talvez possa ser descrito em uma frase, que deixo
aqui a título de conclusão temporária: todo uso provoca uma memória.

_________ 270
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ANASTILOSE INFORMÁTICA

Teoria e contexto
Anamaria Ruegger Almeida Neves
EBA-Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Ciência & Conservação


Busco um equilíbrio entre o Pensamento e a Tecnociência. Como restauradora de obras
de arte tenho a preocupação com as decisões tomadas nas intervenções restaurativas,
principalmente nos Tratamentos Pictóricos. Elas precisam ser antecedidas e acompanhadas
de um juízo crítico, pois as obras de arte estão representadas na nossa cultura, não só pela
estética, mas também, pela sua história como testemunhos de certo tempo e lugar. Kant
(1724-1804) com a terceira crítica, a “Crítica da faculdade do juízo” me ajuda a compreender,
e a fortalecer meu pensamento para as tomadas de decisão. Para equilibrar a teoria e o
contexto, escolho como exemplo de restauração, a técnica de Anastilose Informática,
utilizada na recuperação dos afrescos de Andrea Mantegna em Pádua,Itália.
PALAVRAS-CHAVE: Arte, Memória, Teoria, Restauração, Decisão.

ABSTRACT
I look for a balance between Thought and Techno-science. As an art conservator, I am worried about the
decisions for restoration treatments, mainly the pictorial ones. Those decisions taking needs to be preceded
and accompanied by a critical judgment because the art works are represented on our culture by their
aesthetics and history as witnesses of their time and place. Kant (1724-1804) with his third critics, the
“The Critics of the faculty of judge”, help me to understand and also to reinforce my judgment for
the decisions taking. To have a balance between theory and context, I selected as a restoration example,
the Computer-based Recomposition process developed and carried out for the Andrea Mantegna frescoes
in Padua, Italy.
KEY-WORDS: Art, Memory, Theory, Restoration, Decision.

Introdução
Durante a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no ano de 1944, 272
um bombardeio destrói parte da capela Ovetari em Pádua, Itália, atingindo
os afrescos pintados por Andrea Mantegna (FIG.01).
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Fig.01 - Destruição da capela pelo bombardeio.
Fonte: Jornal Il Sole 24 ore de 10 de setembro, 2006:37

Na época, o restaurador e teórico Cesare Brandi(1906-1988)1 cuidou dos


fragmentos recolhendo e restaurando parte da pintura. Entretanto, cerca
de 80.000 fragmentos foram guardados em caixas. Somente na década de
90 é que os fragmentos do afresco voltaram a ser objeto de pesquisa. Na
Universidade de Pádua, desenvolveu-se o processo de Anastilose Informática
com o objetivo de recolocar os fragmentos e reconstruir o afresco.
Porém, antes de comentar o resultado e a metodologia empregada para
as comemorações de 500 anos da morte de Mantegna (1431-1506),
em 2006, quero fazer um exercício com a Arte da Memória, seguindo
Yates(1899-1981)2 :
273
Em um banquete que dava um nobre de Tesalia, chamado
Scopas, o poeta Simônides de Ceos cantou um poema lírico
[...] Levantou-se do banquete e saiu para o exterior. Durante
sua ausência, o teto da sala de banquete desmoronou
deixando amassados e debaixo das ruínas, mortos,
Scopas e todos seus convidados; os cadáveres ficaram tão
destroçados que os parentes que chegaram para reconhecê-
los para o sepultamento, foram incapazes de identificá-los.
Porém, Simônides recordava os lugares em que eles estavam
sentados na mesa e foi por isso capaz de identificar para
os parentes, quais eram seus mortos [...] E esta experiência

Teoria e contexto
sugeriu ao poeta os princípios da Arte da Memória, da qual
se considerou inventor. Reparando que foi mediante sua
lembrança dos lugares nos quais os convidados haviam
estado sentados, que ele foi capaz de identificar os corpos,
se deu conta de que uma disposição ordenada é essencial
para uma boa memória. (YATES, 2005, p.17)

Ciência & Conservação


Aprendi com esta história que para fortalecer a memória o melhor é
selecionar lugares e imagens do que se deseja lembrar e guardar essas
imagens em lugares ordenados de modo que a ordem dos lugares nos
traga as imagens que desejamos lembrar. Encontro o Teatro de Giullio
Camillo (1480-1544)3 que Almeida4 em seu livro O teatro da memória Giullio
Camillo, assim o descreve:
Ao morrer em 1544, Giullio Camillo Delminio deixou
aos leitores, em L´idea del Teatro, o projeto de uma grande
enciclopédia do saber, uma fábrica da memória universal,
composta dos mais notáveis textos e imagens do tesouro
da filosofia, da literatura, da ciência, das religiões, das artes.
Uma classificação hierarquizada e articulada do saber
universal, para ajudar a memória e propiciar ao praticante
da Arte da Memória o seu domínio, que tomaria a forma de
um verdadeiro Teatro do Mundo. (ALMEIDA, 2005, p.13)
Com essas referências organizo esse texto, que imagino como um Banquete.
Apresento os convidados que escolhi para ocupar os lugares na mesa do
grande salão dentro da capela Ovetari, em Pádua, decorado com o afresco
de Andrea Mantegna. A mesa está montada de forma que todos os lugares
favorecem uma boa visão do afresco recentemente restaurado.
Na cabeceira da mesa está o próprio artista atento para defender sua
pintura que se apresenta muito fragmentada. Logo ele tão vaidoso de
suas obras inspiradas na arte ad antica, que gostava de pintar um drapejado 274
característico greco-romano nas roupas de suas figuras que, segundo seus
parâmetros, davam valores nobres às suas criações. Não é por menos que
logo após pintar os afrescos em Pádua foi contratado para ser o pintor da
corte de Ludovico Gonzaga em Mântua.
Vasari(1551-1574), que escreveu sobre a vida dos artistas, tem um capítulo
dedicado à Mantegna5. É interessante notar que ao descrever a vida dos
artistas e suas principais obras mencionava, ocasionalmente, a técnica
utilizada e, muito raramente, as restaurações realizadas em obras de arte.

Teoria e contexto
Mas, foi com surpresa que encontrei um comentário sobre a restauração
realizada por Sodoma na pintura A Circuncisão de Signorelli6. Vasari
comentou que a pintura ficou pior depois do tratamento de pequenas
perdas da policromia e que obras feitas por grandes mestres não deveriam
ser restauradas por quem não tem competência.

Ciência & Conservação


Em Volterra, pintado em afresco na igreja de São Francisco,
acima do altar da Companhia, está a Circuncisão do Senhor,
que está ainda muito bonita, se bem que o menino, que foi
deteriorado pela umidade, foi refeito por Sodoma muito
menos belo. E, em verdade é melhor ter pouca coisa feita
por um homem excelente, mesmo que rasurado, do que ser
retocado por quem sabe menos. (VASARI, 1550)
Voltando à restauração do afresco, o processo foi desenvolvido no
Departamento de Física da Universidade de Pádua e consiste em fazer
um mapeamento da posição dos fragmentos através da informática e de
reconhecimento das imagens com a finalidade de estabelecer quanto da
parte original é possível de se reconstruir realmente e, qual a qualidade do
resultado final.
Segundo Dr. Toniolo7 ,um dos responsáveis pelo processo:
Depois das tentativas efetuadas logo após a guerra e que
não tiveram continuidade, fomos buscar uma solução
que usasse a tecnologia informática devido a potencia de
cálculo disponível nos nossos dias e o avanço do estudo
da matemática no setor de tratamento da imagem digital.
Por Anastilose Informática se entende um procedimento
que com a ajuda de um algoritmo, executado em um
computador, opera em cima de uma representação digital
de uma imagem e do seu fragmento e é encarregado de
calcular automaticamente e com boa aproximação a 275
posição e a orientação de onde originalmente se encontrava
cada fragmento. (TONIOLO, 2006, p.16, 17)
Para tal todos os fragmentos foram fotografados com câmeras digitais
formando um banco de dados (CDs) quando foi possível calcular pelo
computador o número exato de fragmentos: 80.735 com dimensões
superiores a 01 cm². Verificou-se que a maioria dos fragmentos tem a
dimensão entre 05 e 06 cm². (FIG. 02)

Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Fig. 02- Caixas de fragmentos com detalhes que ajudam
na identificação da pintura
Fonte: TONIOLO, 2006: 161

Apresento, a seguir, outros convidados que participarão do banquete.


Cada um representará um pensamento, uma época, enfim, personagens
que escolhi para auxiliarem na elaboração do meu pensamento formando
um juízo crítico sobre as restaurações realizadas em obras de arte.
Começo a servir o banquete.
Alguns teóricos da Restauração chegam afobados para garantir um
bom lugar à mesa. O primeiro é Viollet le Duc8 acompanhado de seu
maior crítico, John Ruskin9. A definição de Viollet le Duc para o termo
Restauração no Dicionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIe au 276
XVIe Siècle, publicado em dez volumes entre 1854 e 1868, é a seguinte: “A
palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo,
repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode
não ter existido nunca em um dado momento.” (apud KUHL, 2000, p.17)
A posição de Viollet le Duc com este enunciado, suscita muitas críticas até
os dias de hoje. E por isso quando vejo a restauração do afresco na capela
Ovetari lembro-me dele. Seu contemporâneo, John Ruskin, tem uma
posição diametralmente oposta e publica na Inglaterra, em 1849, The Seven

Teoria e contexto
Lamps of Architecture, texto no qual faz pesadas críticas às restaurações
realizadas por Viollet le Duc. Ruskin é o expoente de um movimento que
prega absoluto respeito pela matéria original, que leva em consideração
as transformações feitas em uma obra no decorrer do tempo, sendo a
atitude a ser tomada a de simples trabalhos de conservação, para evitar

Ciência & Conservação


degradações, ou, até mesmo, a de pura contemplação.
Já no século XX, principalmente em decorrência das duas grandes guerras
mundiais, a Teoria da Restauração se fortalece com a presença de Cesare
Brandi que escreve seu importante livro Teoria da Restauração, traduzido
para diversos idiomas, inclusive para o português. Neste, o autor sintetiza
com sabedoria a definição que vai ser o fulcro de todas as citações teóricas
na área:
Como produto da atividade humana, a obra de arte coloca,
com efeito, uma dúplice instância: a instância estética que
corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra
de arte é obra de arte; a instância histórica que lhe compete
como produto humano realizado em um certo tempo e
lugar e que em certo tempo e lugar se encontra (BRANDI,
2000, p. 29)
Ter reconduzido o restauro a relação direta com o reconhecimento da
obra de arte como tal, tornou possível dar a sua definição: “A restauração
constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte,
na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica,
com vistas à sua transmissão para o futuro.” (BRANDI, 2000, p.30)
Brandi acomoda-se em lugar de destaque na mesa do banquete, entre os
teóricos, pois ele estava lá, em 1944, no momento do bombardeio que
destruiu a parede da capela com a pintura em afresco, deu especial atenção
ao incidente e foi o responsável pela coleta dos fragmentos. Começou a
277
fazer a restauração no Instituto Central de Restauro em Roma e depois
guardou em caixas os 80.000 fragmentos restantes.
E assim, estava Brandi ocupando seu lugar na mesa do banquete,
sentindo-se destacado e importante, afinal, neste estudo, ele também tem
dupla polaridade: a de ser o primeiro restaurador do afresco e também o
teórico, aquele que diria, vendo o resultado da restauração do afresco, a
última palavra: “O restauro deve permitir o restabelecimento da Unidade
Potencial da obra de arte, sem produzir um falso histórico ou um falso

Teoria e contexto
artístico e sem anular os traços da passagem da obra de arte pelo tempo.”
(BRANDI,2000, p. 41).
Nesse momento, para garantir seu lugar à mesa e se servir do banquete,
chega Salvador Muñoz Viñas representando o século XXI com seu recente
livro Teoria contemporânea da Restauração. Viñas, depois de muito estudar

Ciência & Conservação


os teóricos avalia, ponto a ponto, os conceitos, suas contradições, suas
afirmações, para atualizá-los à contemporaneidade. Ele mesmo explica
isso na introdução de seu livro:
Este texto não é completamente inocente e neutro. Falar
da teoria contemporânea da restauração implica que existe
uma teoria da restauração que não é contemporânea, é
dizer que existe uma teoria da restauração que pertence ao
passado (e por isso mesmo provavelmente esteja obsoleta)
e que existe uma teoria, distinta da anterior, que é atual e
que responde aos problemas de hoje desde uma perspectiva
do nosso tempo (VIÑAS, 2003, p.13)
Para ele a restauração de obras de arte é uma atividade de difícil definição.
Para entendê-la é preciso referir-se tanto à própria atividade, como à
natureza de seus objetos. Esses têm em comum sua natureza simbólica
ou historiográfica. O caráter simbólico é parte essencial da Restauração,
cujos objetivos e limites estão vinculados à manutenção e recuperação
dessa capacidade e é o que a diferencia de outras atividades similares como
reparação, repinturas ou remendos. Para Viñas, a Teoria contemporánea de la
Restauraión oferece ferramentas conceituais mais flexíveis e adaptáveis para
o sentido comum de todos os envolvidos.
E assim estão esses teóricos ocupando seus lugares conversando e
definindo os paradigmas da Restauração de Bens Culturais. A luz que
incide sobre o afresco varia de acordo com a passagem do tempo e, muitas
278
vezes, dificulta a visão.
Do outro lado da mesa, ocupam seus lugares alguns filósofos, pois
entendem que é na Filosofia que a Arte deve ser discutida. O primeiro a
chegar é Kant (1724-1804) que havia terminado de escrever a sua terceira
crítica, a Crítica da Faculdade do Juízo e estava impregnado do Juízo Estético
que é uma investigação aos Juízos Reflexionantes. Não é por menos que
Kant está orgulhoso, pois aqui terá a oportunidade de verificar se suas
idéias sobre a Analítica do Belo e do Sublime vão se confirmar.

Teoria e contexto
Ao seu lado na mesa do banquete, está Goethe (1749-1832) que é seu
amigo e também se deixa influenciar pela Crítica do Juízo. Após ter feito
sua viagem à Itália, onde os estudos da pintura de paisagem lhe permitiram
uma visão sintética em que a ciência aparece como conhecimento sobre a
forma e, a arte expõe as leis naturais através da imagem, Goethe demonstra

Ciência & Conservação


seu interesse tanto pelas artes como pelas ciências naturais. Nos Escritos
sobre Arte (Schriften zur Kunst) o autor escreve:
a obra de arte constitui um mundo que lhe é próprio, ela
não rivaliza a natureza, mas procura nela o ideal, a razão de
seu próprio ser, a favor do ser humano como um produto
mais elevado da natureza. Na arte se realiza uma natureza
originária, além do mero natural. (GOETHE, 2005, p.22)
Continua dizendo que:
a arte não empreende uma disputa com a natureza em sua
amplitude e profundidade, ela se atem à superfície dos
fenômenos naturais... Ambas, a obra de arte e o produto da
natureza, embora se relacionem, possuem o seu modo de
ser neles mesmos, são infinitos em si mesmos... (GOETHE,
2005, p.22)
Para Goethe, toda investigação científica deveria basear-se em uma
observação atenta da natureza e na classificação de fenômenos. Essa
classificação seria o momento primeiro do conhecimento sobre o mundo
natural, resultando num processo de separação daquilo que aparece como
diferente e aproximação ou união, daquilo que se revela como semelhante,
num processo de ordenação das formas.
Goethe também visitou a capela Ovetari em 27 de setembro de 1786,
quando viajou à Itália e escreveu assim sua experiência:
279
Na igreja dos Eremitas vi pinturas de Mantegna - um
dos mestres antigos - que me espantaram. Que presente
mais agudo e preciso apresentam! Foi desse presente
absolutamente verdadeiro - não, digamos, aparente, de
efeitos ilusórios, apelando apenas para a imaginação, mas
um presente sólido, puro, lúcido, minucioso, consciencioso,
sutil, bem definido e contendo ao mesmo tempo algo
de austero, diligente, custoso - que partiram os pintores
subseqüentes, conforme pude observar em pinturas de
Tiziano, o que permitiu à vivacidade de seu gênio, à energia
de sua natureza - iluminada pelo espírito dos predecessores,

Teoria e contexto
alicerçada em sua força -,alçar-se cada vez mais às
alturas, ergue-se do chão para produzir formas celestiais,
mas verdadeiras. Foi assim que a arte se desenvolveu
posteriormente aos tempos bárbaros. (GOETHE, 2005,
p.73)
Enquanto conversam, chega Arthur Danto (1924). Ele vem representar a

Ciência & Conservação


Filosofia no século XX. Para ele:
Se é verdade, como penso que é, que a filosofia tem um
objeto próprio, e que portanto, nem todo assunto lhe é
pertinente, a investigação do fato de que a arte se presta
espontaneamente ao tratamento filosófico pode nos
ensinar alguma coisa a um só tempo sobre a filosofia e
a arte.... Seja como for, a definição da arte tornou-se parte
integrante da natureza da arte, e de modo bem explícito.
Em certa medida, a definição da arte sempre foi uma
preocupação filosófica embora não em conseqüência de
um especial interesse filosófico em dar definições, pois a
filosofia não se reduz à lexicografia, e a pergunta que nos
interessa pode ser enunciada da seguinte maneira: por que
a arte é uma das coisas que os filósofos se preocuparam em
definir? (DANTO, 2005:99)
Portanto, a filosofia vai se ocupar da arte, tornando-se disciplina como a
Estética e a Filosofia da Arte e, até certo ponto, credenciá-la. Para Danto,
a arte do século XX é desafiadora e ele está presente ao banquete para
relacionar a arte antiga representada na pintura do afresco de Andréa
Mantegna com a solução encontrada para a restauração e tentar entende-
la, talvez, como Arte Moderna e Contemporânea.
Bem à frente de Danto, na mesa do banquete, Kurt Gödel(1906-1978)
ocupa seu lugar, porque a ele também interessa o resultado alcançado 280
através da Anastilose Informática. Estão frente a frente, pois são
contemporâneos do mesmo revolucionário século XX. Gödel é integrante
do Círculo de Viena, que juntamente com outros matemáticos e filósofos
serão os iniciadores do Positivismo Lógico. Seus famosos estudos como
os Teoremas da Incompletude, revolucionaram a Matemática, a Lógica, a
Filosofia, a Lingüística e a Computação. A idéia simples e genial de Gödel
é a possibilidade de expressar os paradoxos usando linguagem matemática.
Como é natural, o Teorema de Gödel teve um efeito
eletrizante nos lógicos, nos matemáticos e filósofos

Teoria e contexto
interessados nos fundamentos da matemática pois
demonstrava que nenhum sistema fixo, por mais
complicado que fosse podia representar a complexidade
dos números inteiros: 0,1,2,3...Os leitores de hoje poderão
não experimentar diante disto a mesma perplexidade que
dos de 1931, já que neste ínterim nossa cultura absorveu

Ciência & Conservação


o Teorema de Gödel, junto com as revoluções conceituais
da relatividade e da mecânica quântica, e suas mensagens
filosoficamente desorientadoras tem chegado ate o grande
público ainda que embotadas pelas várias traduções (e quase
sempre de ofuscação). A atitude geral dos matemáticos de
hoje consiste em não esperar resultados limitados; mas em
1931 a coisa caiu como um raio no seco. (HOLSTADTER,
1989, p.21)
E porque estaria esse matemático, fazendo parte do banquete e tão
interessado na restauração do afresco?
Eu o convidei, pois o conheci do Teorema da Incompletude através do
livro Gödel Escher e Bach de Douglas Holfstadter(1989) em um estudo
que inclui as fugas nas músicas de Bach e as xilogravuras de Escher,
(1898-1970) quando analisa a questão de fundo e figura. Assim, Gödel
entrou no banquete na busca de seus paradoxos matemáticos. Imagina se
a fotografia que serve de suporte para os fragmentos do afresco estaria
fazendo um jogo de figura e fundo e pergunta para si mesmo: Até onde vejo
a pintura de Andréa Mantegna e o que está mais evidente, a pintura ou a fotografia
da pintura? (FIG.03)

281
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Fig.05 – Detalhe afresco depois da restauração.
Fonte: Jornal Il Sole 24 ore de 10 de setembro, 2006:16

Um jogo interessante, pois a fotografia é em preto e branco e os


fragmentos coloridos o que diferencia, e muito, do jogo de fundo e figura
nas xilografias de Escher. E continuou imaginando se aplicava aí o seu
famoso Teorema da Incompletude.
Enquanto Gödel conversa com Goethe, vem ocupar seu lugar à mesa
282
Cennino Cennini (1370-1440), sentando-se perto de Andrea Mantegna.
Ele, que entende tanto das técnicas pictóricas e principalmente do afresco,
quer estar presente à mesa do banquete para pensar o que tem a sua frente,
ou seja, a restauração do afresco pintado por Andréa Mantegna na Capela
Ovetari. E lembra, em todo o trabalho que é necessário para se pintar um
afresco: as três argamassas, cada uma com sua composição; a transferência
do desenho para a parede; a pintura com os pigmentos diluídos em água
e a sua aplicação no reboco ainda úmido para poder aglutinar o pigmento

Teoria e contexto
e com isto transformar todo esse último reboco em uma espessa camada
pictórica. Compara a espessura do fragmento com a lisura do material
sintético onde foi impressa a fotografia do afresco. Impressiona-se. Ele
era professor da arte do afresco, tinha grande admiração pelos afrescos
de Giotto,(1266-1337) em particular aos pintados na Capela Scrovegni e,

Ciência & Conservação


portanto, sabia muito bem o que era aquela técnica pois ele mesmo a
descreveu12:
Como trabalhar na parede em afresco e em que ordem,
e como pintar ou colorir um rosto juvenil. Em nome da
Santíssima Trindade, quero iniciar-te na arte de colorir.
Começarei pelo trabalho na parede, informando-te o modo
de proceder, passo a passo. Quando quiseres pintar sobre
o muro, que é o trabalho mais bonito e doce que existe,
consiga, antes de tudo, a cal hidratada e areia, ambas bem
peneiradas. Se a cal é fresca, requer duas partes de areia por
uma de cal. Misture-as bem uma e outra com água para
que permaneçam molhadas entre quinze e vinte dias. E
deixe-as repousar uns dias para que expulsem o fogo: que
quando está tão viva solta a imprimação que fizeres com
ela. Quando estiver pronta, limpa bem e molha a parede,
que nunca será demasiado; pega a cal empastada, paleta
por paleta e imprima primeiro uma ou duas vezes, ate que
a parede fique totalmente lisa. Depois, quando quiseres
trabalhá-lo.(..) (CENNINI, 1988, p. 112)
Assusta-se, tenta ver o afresco restaurado, mas por mais que quisesse ver
a pintura vê a fotografia. Assim como Cennini, vejo também a fotografia
em preto e branco que tem a função de fundo, e está aqui como figura e,
os fragmentos da pintura em afresco que estão colados sobre a fotografia
e que deveriam ser a figura não se apresentam como tal, pois há uma
perturbação visual, talvez pela pequena quantidade de fragmentos. Há 283
também uma inversão de comunicação porque o que vejo é uma fotografia
com interferências que prejudicam vê-la. Mas essas interferências são
justamente formadas pelos fragmentos do afresco e que deveriam ser a
Imagem Agente, a razão do próprio restauro!
Penso no jogo de figura/fundo das gravuras de Escher, mas deixo esse
pensamento de lado. Busco apoio no Teorema da Incompletude de Gödel,
percebo que se a solução não foi encontrada numa primeira base (afresco
fragmentado), ter buscado outra base (a fotografia) que pudesse sustentar

Teoria e contexto
a solução, também não resolveu pois a leitura estética do afresco ficou
prejudicada e não posso esquecer que uma pintura se transforma em obra
de arte pela sua Apresentação Estética.
Nesse momento cito Kant no Juízo de Gosto, quando afirma que os
juízos precisam ser universais, pois uma obra de arte não se fecha em

Ciência & Conservação


si mesma. Se penso nos teóricos da restauração, lembro-me de Viollet
Le Duc quando afirmou que uma restauração pode colocar a obra em
uma situação que nunca existiu antes... e de Brandi quando afirma a
necessidade de se obter a unidade potencial da obra de arte... Não posso
esquecer-me da Frances Yates que se acomodou na mesa do banquete,
bem a frente de Andrea e chamou Giullio Camillo para estar ao seu lado
neste momento em que a memória precisava ser recuperada e perguntava:
Onde está a memória da pintura do afresco? Ela está presente somente
na fotografia? E Giullio, com o projeto do Teatro da Memória nas mãos,
busca em seus degraus uma resposta. Muitas dúvidas pairam na sala na
sala de banquete: “onde está a Imagem Agente da pintura?; Qual a pedagogia
visual da restauração?”
Jauss13,( 1921-1997) resolveu participar porque queria ver de perto a
pintura restaurada e gostaria de esclarecer um pouco as dúvidas. Senta-se
perto de Danto e os dois conversam sobre a Estética da Recepção. Jauss quer
entender como se apreciou e se aprecia uma obra de arte em momentos
distintos de realidades históricas. E este era um exemplo que veio sobre
medida para a sua reflexão.
Ao contrário da tradição, ele não concorda com uma história da arte
unívoca, que pressuponha a mesma experiência do Renascimento, quando
foi pintada por Andrea Mantegna, até nos dias de hoje. Ele compreende 284
como funcionam as ressignificações na experiência de fruição da obra de
arte e, para isso, se declara convicto de que a experiência relacionada à
arte não pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexão sobre as
condições desta experiência tampouco há de ser um tema exclusivo da
Hermenêutica Filosófica ou Teológica.
Para ele a formação do Juízo Estético se baseia nas instâncias de efeito
e recepção comparando-se os “dois efeitos” o atual e o desenvolvido
historicamente, ou seja, a obra ao longo do tempo.
O Banquete está servido, os convidados declamam suas falas enobrecidas

Teoria e contexto
pela História.

________

Ciência & Conservação


Notas
1 Cesare Brandi (1906-1988). Organizador e diretor do Instituto Central de Restauro, desde a
sua criação até 1960. Nascido em 8/4/1906 em Siena, tinha apenas 33 anos quando se tornou
diretor do ICR. Diplomado primeiramente em Jurisprudência e depois em Letras e Filosofia,
estava com 24 anos quando foi encarregado pela Superintendência de Monumentos e Galerias
de Siena a redigir o catálogo da Régia Pinacoteca. Em 1933 torna-se supervisor geral da
Superintendência de Antiguidades e Belas Artes de Bolonha. Em 1934 obtém a livre docência
em História da Arte Medieval e Moderna. Deve-se à Brandi, acima de tudo, a elaboração e
divulgação da sua inovadora Teoria da Restauração que por um lado orientou e coordenou
todas as atividades do Instituto e, por outro, atraiu para a escola romana a atenção de toda a
comunidade de restauradores italianos e estrangeiros. Deixou a imagem de um diretor muito
presente, mas jamais obsessivo, autorizado, mas não autoritário, atento tanto aos problemas
pessoais como aos profissionais, rigoroso na teorização e na prática da restauração. De grande
cultura, Brandi dialoga tanto com os cientistas quanto com os teóricos, sabendo perfeitamente
o que pediu a uns e a outros, e sob sua direção estabeleceu-se no Instituto um método de
trabalho baseado na estreita colaboração entre todos, reduzindo ao máximo as amplas áreas de
incerteza que impediam a realização de uma Restauração crítica e científica. Com sua morte,
em 1988, interrompeu-se um grande fluxo de energia crítica. (dados recolhidos do livro de
Domenico de Massi A emoção e a Regra, pp.. 308, 309)

2 Frances Yates (1899-1981), historiadora britânica que lecionou por vários anos na Universidade
de Londres. Seus livros Giordano Bruno e a Tradição Hermética e A Arte da Memória são excelentes
contribuições para o meio acadêmico.

3 Giulio Camillo (1480-1544) pode ser considerado um sincretista. Seu extenso e proliferante
saber revela leituras de várias filosofias e literaturas, que se agregam a um intenso núcleo
hermético. (ALMEIDA, 2005: 15)

4 Milton José de Almeida é mestre e doutor pela USP, professor na Unicamp e autor dos livros:
Teatro da Memória de Giulio Camillo; Imagens e Sons: A Nova Cultura Oral; Cinema: Arte e Memória.

5 Andréa Mantegna nasceu na ilha de Carturo, perto de Vicenza, segundo filho do carpinteiro
285
Biagio. Aos onze anos começou como aprendiz de Francesco Squarcione, um pintor de Pádua,
cuja vocação inicial de alfaiate foi suplantada pela sua paixão pela arte clássica e antiga. (1511-
1574)

6 Luca Signorelli (1445-1523), pintor renascentista italiano, um dos grandes mestres da escola da
Umbria.

7 Domenico Toniolo é físico da Universidade de Pádua integrante do Progetto Mantegna e


responsável pela elaboração do processo de Anastilose Infomatica.

8 Viollet Le Duc (1814-1879)

9 John Ruskin (1819-1900)

Teoria e contexto
10 Salvador Muñoz Viñas (1951), professor de Teoria da Restauração na Universidade Politécnica
de Valencia, Espanha.

11 Arthur Danto, filósofo americano que se ocupa em entender a arte contemporânea, nasceu em
1924. É professor na Universidade de Columbia, USA.

12 Cennino Cennini Libro del Arte tradução espanhola p.112. Este livro escrito originalmente

Ciência & Conservação


em Italiano no ano de 1437 pode ser considerado como um último receituário antigo, que se
diferencia de outros por seu caráter metódico que confere ao livro um estilo completamente
distinto.

13 Hans Robert Jauss, acadêmico alemão notável por seu trabalho da Teoria da Recepção.

__________

Referências
ALMEIDA Milton José. O Teatro da Memória de Giulio Camillo. Campinas: Editora da Unicamp,
2005. 324p.

BRANDI Cesare. Teoria da restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial,
2005. 261p.

CENNINI Cennino. El libro del arte. Madrid: Akal SA, 1988. 264p.

KANT, Emmanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

TONIOLO, Domenico. Mantegna nella chiesa degli Eremitani a Padova: Il recupero possibile. Pádua:
Fondazione Cassa di Risparmio di Padova e Rovigo, 2006.

VIÑAS, Salvador M. Teoria contemporânea de la restauración. Madrid: Editorial Sintesis, 2003. 205p.

YATES, Frances A. El arte de la memória. Tradução Ignácio Gómez de Liaño. Madrid: Siruela, 2005.
495p.

286
Arte/Subjetividade; Ciência/Preservação

Teoria e contexto
Gabriel Malard Monteiro
Doutorando PPGA-EBA-UFMG
Evandro Lemos da Cunha (Orientador)

Resumo:
A arte contemporânea apresenta dois principais desafios para conservação. No campo

Ciência & Conservação


científico ela apresenta materiais novos, sintéticos, orgânicos, efêmeros e usados em
combinações inesperadas. No campo teórico ela propõe conceitos novos, que vão da
apropriação ao desejo por deterioração. Este artigo busca refletir sobre a construção de
valores no campo das artes contemporâneas, e quais os conflitos que estes podem ter com
aqueles construídos no campo da conservação e do restauro.
Palavras-chave: Conservação, restauro, Arte contemporânea.
Abstract:
Contemporary art presents two main challenges for conservation. In the scientific field it presents new,
synthetic materials, organic, ephemeral, sometimes in unexpected combinations. In the theoretical field it
proposes new concepts, ranging from appropriation to the desire deterioration. This essay reflects on the
construction of values in the field of contemporary arts, and what conflicts they may have with those built
in the field of conservation and restoration
Key words: Conservation, restoration, contemporary art

Introdução
Pode-se dizer de uma maneira bastante sintética que a disciplina conservação
e restauro é dividida em dois grandes campos: o campo científico e o campo
teórico. O primeiro campo se ocupa de desenvolver meios práticos para
agir sobre o desgaste provocado pelo tempo. O segundo campo se ocupa
de eleger os objetos (ou ações humanas) que deverão ser preservados ou
reconstituídos por tais meios práticos. 287
Ambos os campos encontram diversas dificuldades quando se deparam
com os objetos (ou ações) produzidos pela arte contemporânea, em
especial com a arte produzida após a década de 60. As razões para
essas dificuldades podem ser descritas de maneira bastante direta: a arte
contemporânea usa materiais muito variados (inclusive em combinações) e
apresenta conceitos que podem ser conflitantes com a idéia de preservação.
A intenção deste trabalho é refletir sobre essas dificuldades, adotando
como base a subjetividade de valores na arte, ou seja, a idéia de que arte

Teoria e contexto
não é um valor objetivo e absoluto, que esses valores não estão na essência
da arte, mas que são, ao contrário, forjados (sociologicamente) através
dos discursos de artistas, curadores, intelectuais, comerciantes de arte e
instituições artísticas.

Ciência & Conservação


A reflexão será conduzida através da análise de alguns trabalhos de
artistas contemporâneos que oferecem desafios teóricos e práticos para
os restauradores.
Uma serie de problemas podem ser encontrados quando a Ciência da
Conservação encontra no seu caminho os objetos e conceitos produzidos
pela arte contemporânea. Alguns desses problemas estão ligados ao fato
dos artistas usarem materiais novos ou produtos perecíveis, além de técnicas
variadas que podem combinar elementos e procedimentos imprevisíveis.
Como se isso já não fosse uma dificuldade imensa, adiciona-se o fato de
ser uma arte experimental, conceitual, e muitas vezes com clara intenção
de ser efêmera e portanto avessa à idéia de conservação. Para analisar
essas dificuldades entre os princípios de restauro e a produção de arte
contemporânea, adotarei a divisão mencionada na apresentação: o campo
científico e o campo teórico. Essa distinção é importante porque irei tratar a
dimensão das ações objetivas como sendo pertencentes ao campo científico,
e das ações subjetivas ao campo teórico.
O campo científico da conservação e restauro é o lugar onde ocorrem as ações
objetivas (partindo da premissa que toda ciência busca um conhecimento
objetivo). As ações objetivas a que me refiro estão ligadas a métodos
científicos que buscam desenvolver meios práticos para agir sobre o
desgaste provocado pelo tempo; que buscam meios práticos para exibir
da melhor forma os objetos; que buscam meios práticos para melhor 288
armazenamento dos objetos; que desenvolvem técnicas de intervenção;
e que desenvolvem o aparato de documentação e registros técnicos
(fotografia, vídeo, gravação sonora, inventários, catalogação, raio-x, etc.)
dos objetos materiais ou imateriais (quando for o caso).
A dificuldade do campo científico está essencialmente nos materiais que
ela deve lidar. Tradicionalmente a atenção dos restauradores focou-se na
pintura e na escultura (estou me limitando ao campo tradicionalmente
definido como ‘artes plásticas’, evitando o confronto de outros patrimônios

Teoria e contexto
como a arquitetura, música, cinema, natureza, etc) mas com o tempo teve
que se ater a outros tipos de materiais. Se anteriormente a atenção se
restringiu mais ao bronze, pedras, telas e pigmentos (escultura e pintura)
agora o desafio são outros materiais: borracha, plásticos, compensados,
poliuretano, tecidos e metais modernos (alumínio e aço) algumas vezes

Ciência & Conservação


utilizados em combinações inesperadas. A lista de materiais é muito
extensa e por isso não faz sentido enumerar cada um, mas é interessante
chamar atenção para o termo “fugitive art” ou “fugitive materials” que se
refere a materiais que apresentam desafios técnicos para conservação (não
há uma tradução para o português do termo fugitive, mas poderíamos
dizer efêmero ou mesmo fugaz, propenso ao desaparecimento).
O campo da ciência não define valores, ou seja, não diz quais os objetos
deverão ser conservados. Isso faz parte do campo teórico, uma zona
repleta de conflitos, onde muitas propostas são defendidas e atacadas, em
função da dificuldade de lidar com a noção de valor, ou seja, definir o
que é arte, o que é bom em arte, o que merece ser conservado, e qual é a
melhor abordagem para se enfrentar problemas de restauro e conservação.

Noção de valor
Adotarei a idéia de subjetividade de valores como base para entender alguns
dos discursos que atribuem valor aos objetos (e conceitos) artísticos. Uma
vez que arte e restauro são atividades humanas baseadas em valores, minha
proposta é traduzir esse conceito de subjetividade para o universo da arte
e aplicá-lo também à ética dos restauradores.
Tentarei explicar um pouco melhor o significado de ‘subjetividade de 289
valores’ (assim como ela aparece no texto ciência e religião, de Bertrand
Russell. Os ajustes que farei seguem a intenção de adequar o conceito ao
assunto que trato: valores caros aos artistas e restauradores).
O principio básico da subjetividade de valores pressupõe que nenhuma
área do conhecimento humano pode concluir definitivamente se algo é
bom ou ruim. Apóia-se na crença de que o conhecimento humano não
é capaz de dizer nada objetivo acerca dos valores. Nesse sentido, quando
alguém diz que algo é bom (ou ruim) esse alguém está expressando um
sentimento, e não apresentando um fato verdadeiro, que permaneceria

Teoria e contexto
verdadeiro independentemente de sua emoção.
Uma afirmação de que algo é bom ou ruim não é uma afirmação do tipo
verdadeiro falso, mas sim uma expressão de um gosto ou desejo.
Frequentemente os desejos de indivíduos diferentes são conflitantes,

Ciência & Conservação


de maneira que o que é bom para um é ruim para outro. Não se pode
dizer que um deles esteja certo e outro errado: esse conflito é na verdade
uma diferença de gosto. Nosso gosto está relacionado com nosso desejo,
portanto podemos definir simplesmente que aquilo que desejamos é bom,
e aquilo que repudiamos é ruim. Mas existe uma diversidade imensa de
desejos que são conflitantes, e outros que são alinhados. Quando um
desejo é muito forte e partilhado entre vários indivíduos, ele começa a
gerar uma espécie de moralidade, ou ética. Ética seria uma tentativa de
tornar mais universais os nossos desejos. As teorias de arte ou restauro
estão ligadas a valores. Considerando que qualquer valor é subjetivo,
devemos compreender essas teorias como uma tentativa de fugir da total
subjetividade.
A subjetividade normalmente é vista como um problema teórico a ser
combatido, e as teorias que definem valor tem a ambição de tornarem
objetivos esses valores, criando critérios de avaliação e compreensão
dos objetos artísticos, definindo hierarquias de valores, e estabelecendo
padrões ou regras gerais. Quando a teoria é bem sucedida, ela convence
um número grande de pessoas de que determinadas coisas são boas,
enquanto outras são ruins. Mas por mais bem sucedida que sejam essas
teorias, sempre irão carecer de ajustes. Tais ajustes tendem a ocorrer na
medida em que os desejos começam a mudar de direção. Pode-se dizer
também que essas teorias (bem como os ajustes) normalmente ocorrem 290
dentro de seus ambientes específicos: no campo das artes visuais, por
exemplo, as teorias e seus ajustes são efetuados por artistas, curadores,
intelectuais, restauradores, comerciantes de arte, consumidores e
instituições especializadas.
Algumas teorias recentes são concepções institucionais ou sociológicas
da arte, em oposição a concepções estéticas da arte. A última concepção
(estética) é a mais antiga, remontando a tradição da arte grega, que

Teoria e contexto
compreende que o valor da arte está no objeto, ou seja, que a obra é
intrinsecamente ou essencialmente boa. Uma obra de arte é boa por si
só, o bom é o belo e o artista é o tradutor dessa beleza. O que o artista
toca torna-se bom, esse ‘bom’ é algo que pertence ao objeto e, portanto,
transcende toda noção de gosto. A arte é boa, é bela, e o gênio criativo

Ciência & Conservação


do artista produz coisas belas. Essa seria uma visão de que os valores são
objetivos, mensuráveis e imutáveis: a objetividade dos valores. Nesse visão, se
uma obra de arte é boa, quem falha em perceber está na verdade cometendo
um erro de julgamento. Já a outra concepção (institucional) está alinhada
com a idéia de subjetividade de valor: arte é uma manifestação humana
e pode ser encontrada em determinados ambientes, varia de acordo
com o contexto, produz uma grande variedade de objetos e atividades,
que podem ser compreendidas apenas se descobrirmos quem produz
e quem define arte como tal. O que é considerado bom num período
pode ser considerado ruim em outro, e depois voltar a ser considerado
bom. Não existem conceitos absolutos, nem materiais ou procedimentos
únicos. A arte atual pode ser definida muito mais pela pluralidade que pela
singularidade.
Essa pluralidade dificulta uma série de abordagens teóricas, especialmente
quando percebemos que as teorias muitas vezes procuram aspectos objetivos
para avaliar a arte e seus objetos. Não acredito que seja uma exclusividade
dos discursos da arte a tentativa de superar a subjetividade. Parece desejável
romper com a subjetividade, e uma subjetividade (ou relativismo) total é
uma forma de loucura. Parece natural a tendência de se tentar escapar
desse relativismo. Assim sendo, apelamos para algum tipo de critério que
legitime os valores que consideramos importantes, tentando dotá-los de
uma validade universal e não apenas pessoal. 291
Quando apelamos para um sentido ético, estamos tentando mostrar que
certos desejos pessoais (subjetivos), podem ser validados para muitos
indivíduos e portanto generalizados (tornados objetivos, universas,
definitivos). Por sorte nossos desejos podem coincidir, o que equivale
dizer que certos desejos particulares, individuais, pessoais, podem estar
em harmonia com desejos de grande amplitude social. Isso possibilita a
criação de normas de conduta que podem ser disseminadas através da
educação e do conhecimento, e poderão ser aceitas e advogadas por um

Teoria e contexto
grande grupo de pessoa.
A formação de consenso é algo que pode ser constantemente buscado
através da livre discussão de idéias dentro de grupos profissionais. Após
a publicação de The Standards of Practice and Professional Relationships
for Conservators (Murray Pease Report,1963) e The Code of Ethics for Art

Ciência & Conservação


Conservators, (IIC-American Group, 1967) algumas normas de conduta
foram amplamente aceitas.
Se definirmos ética como os princípios morais e normas de
conduta pelas quais uma pessoa é guiada, quando aplicadas
coletivamente para membros de uma profissão, ética define
as obrigações e responsabilidades que estes membros têm
para com o público e para um com outro no que tange
o exercício da profissão. Implícitos em tais princípios
estão as noções de certo e errado e de ações adequadas ou
inadequadas, que serão baseados em critérios estabelecidos
pela profissão. Estes princípios são aplicados na criação de
políticas e planos de ação. (Frank Matero, 2000)
Segundo o Matero, a conservação contemporânea desenvolveu os
seguintes princípios como fundação da ética e prática profissional (Uma
espécie de quatro mandamentos dos restauradores) :
- A obrigação de realizar pesquisas e documentações; ou seja, registrar
evidências físicas, documentais (archival) e outras antes e depois de
qualquer intervenção visando salvaguardar o conhecimento incorporado
como processo ou produto.
- A obrigação de respeitar o valor do envelhecimento cumulativo, ou
seja, levar em conta o sítio ou trabalho como documento físico cumulativo
da atividade humana incorporando crenças culturais, valores, materiais e
técnicas, e mostrar a passagem do tempo.
292
- A obrigação de salvaguardar autenticidade – uma condição cultural
relativa associada ao material ou fabricação de uma coisa ou lugar como
uma maneira de assegurar autoria ou testemunho de um tempo e lugar.
-A obrigação de não danificar, fazendo o mínimo de intervenção para
reestabelecer significado, legibilidade estrutural e estética com o mínimo
de interferência física – ou que permitirá outras opções e tratamentos
posteriores.

Teoria e contexto
Contemplando essas ‘normas de conduta’, podemos entender como
funcionam alguns dos desejos na área de conservação e restauro. Em
seguida veremos como a arte contemporânea apresenta desafios especiais
para os restauradores.

Ciência & Conservação


Alguns objetos e conceitos da arte contemporânea.
Mesmo havendo linhas de conduta, haverá necessidade de observar caso
a caso quando se propõe a conservação de obras contemporâneas. O
artista Christian Boltanski, por exemplo, usa materiais “fugitivos”. Em um
trabalho com diversos materiais, que incluía fotografias e latas de metal, o
efeito de oxidação nas latas era uma estratégia expressiva. Como se deve
conservar um trabalho desse tipo? Sherri Levine produz trabalhos que
se apropriam de outras obras, como o caso famoso da obra after Walker
Evans, em que ela fotografa uma fotografia de Evans. O resultado é uma
reprodução fotográfica fiel da imagem original. Desconstruir a noção
de autenticidade e originalidade pode ser visto como algo desejável na
arte contemporânea, e isso pode explicar o sucesso artístico alcançado
por Levine. Mas como se posicionam os conservadores com intenção de
salvaguardar a autenticidade, quando se tratam de casos como esses?

Strange Fruit
Como vimos, alguns trabalhos de arte contemporânea apresentam
dificuldades nos campos teóricos e científicos. Um exemplo interessante
pode ser encontrado na obra Strange Fruit da artista Zoe Leonard. Neste 293
trabalho a artista apresenta diversos objetos, todos confeccionados a
partir de frutas, cujo interior foi comido ou removido e depois suas cascas
reagrupadas através de costuras, fios ou zipper.
A artista procurou o conservador alemão Christian Scheidemann para
testar meios de interromper o processo de deterioração das superfícies das
frutas. O trabalho envolvia técnicas bastante complexas de conservação.
Os materiais variados utilizados na obra dificultavam a utilização de
determinados químicos, e muitas vezes era difícil isolar um material do
outro, mas ainda assim o resultado alcançado por Scheidermann foi bem
sucedido.

Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Strange fruit, Zoe Leonard.

Esse exemplo serve para ilustrar a dificuldade apresentada no campo


científico. O que vai se tornando mais interessante no desenvolvimento
do trabalho de Zoe Leonard é o fato de ela própria, à medida que
evoluem suas idéias sobre a obra, chega a uma conclusão desconcertante:
a deterioração era uma feição importante da obra, fazia parte do conceito
da obra. Em conseqüência disso a artista passou a rejeitar a conservação
de seus objetos. Essa conclusão nos dirige para o segundo campo, o campo
da teoria. 294
Leonard começou seu trabalho depois que uma pessoa querida morreu.
Em um dia de luto, ela distraidamente começou a pegar as cascas de uma
fruta que acabara de comer e as costurou de volta. Percebeu naquilo uma
possibilidade de expressão e iniciou uma nova série de trabalhos. Em 1995
fez uma exposição em seu apartamento, e em1997 fez duas exposições
importantes: uma no Museu de Arte Contemporânea de Miami e em
seguida no Kunsthalle Basel. A sugestão de trabalhar com um restaurador
veio de sua agente (estou traduzindo direto do inglês o termo dealer). Minha

Teoria e contexto
suposição é que essa sugestão teve motivações muito mais comerciais do
que artísticas. Já a opção da artista em abandonar as peças conservadas
e assumir a deterioração como um valor é um critério teórico adotado
subjetivamente, pautado em um discurso que leva em conta trabalhos
semelhantes da historia da arte (como Joseph Beuys e Dieter Roth).

Ciência & Conservação


Esse relato é feito por Ann Temkin em artigo publicado no site do Getty
Conservation Institute. Temkin discute as dificuldades que o departamento
de conservação do Museu de Arte de Philadelphia (onde Temkin é
curadora) levantou em relação a uma possível aquisição do trabalho de
Zoe Leonard. Alguns de seus colegas do museu gostavam da idéia de
expor Strange Fruit, mas eram reticentes em relação à aquisição da obra.
Podemos ver o artigo de Temkin como uma defesa de valores. Ela tenta
convencer os leitores (e certamente tentou o mesmo com seus colegas do
museu) da importância (valor) desse tipo de trabalho. A eficiência de seus
argumentos podem ser checadas na página do site do The Getty Conservation
Institute.
O campo teórico do restauro é exatamente esse lugar onde valores serão
discutidos. Se o campo da ciência é representado pelo restaurador Christian
Scheidemann, em sua busca por meios práticos e objetivos para ‘congelar’
uma obra de arte, o campo teórico se ocupa de eleger os objetos que deverão
ser preservados ou reconstituídos por tais meios práticos.
Em vários casos o campo teórico precede o campo científico, no sentido que só
serão aplicadas (ou desenvolvidas) determinadas técnicas científicas em
objetos que sejam compreendidos como dignos de preservação. O campo
teórico é responsável por fabricar, sedimentar e divulgar valores. Esses valores
estão ligados a desejos. Um quilombo, por exemplo, pode ser considerado 295
digno de preservação, e em seu favor podem ser levantados argumentos
afirmando que o quilombo representa o desejo humano de liberdade, e
a afirmação positiva de um grupo étnico que combate a subserviência, a
crueldade e a injustiça. Uma cadeia pode ser demolida e condenada por
representar o contraponto da liberdade, e ser a reafirmação da intolerância,
violência e ignorância. Se houver um desejo forte o suficiente nessa direção,
esse conjunto de valores vai prescrever uma moralidade, um código de
conduta e ética. Nas palavras de Russell “a ciência pode discutir as causas dos
desejos, e os meios para realizá-los, mas não pode conter nenhuma sentença genuinamente

Teoria e contexto
ética, porque está preocupada com o que é verdadeiro ou falso”. A preocupação com
o que é bom ou ruim está no campo da teoria, e é totalmente subjetiva,
carecendo de formulações, refutações e ajustes.

Ciência & Conservação


Considerações Finais
O tipo de arte produzido nos últimos 50 anos carece de uma discussão
muito aprofundada, que leve em consideração as mudanças no julgamento
de valores artísticos e culturais. As grandes variações de temperamento
e desejo são evidência de um mundo que atualiza rapidamente seus
paradigmas. É importante encarar valor (ou valores) como sendo
algo indefinido, propenso a criar conflitos entre grupos ou indivíduos,
mas passível de transformações em grande escala. Os valores podem
ser discutidos e advogados a favor ou contra, portanto eles devem ser
discutidos livremente, e defendidos cuidadosamente caso pretendam gerar
adesão por diferentes grupos. Ainda assim, é pouco provável a criação
de um consenso universal ou de uma fórmula singular contemplando o
caminho correto e verdadeiro. Qualquer que seja a solução mais recente,
ela brevemente necessitará de ajustes importantes e necessários.

296
Hipótese da supla substituição/ Duplo registro
em um museu-limite

Teoria e contexto
Hélio Alvarenga Nunes
Doutorando PPGA-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Maria Angélica Melendi (Orientadora)

Resumo
Narra brevemente a apropriação anárquica de alguns temas da Ciência da Conservação
(especialmente as formas inovadoras de reintegração, como o Projeto Mantegna),
relacionando-os à arte contemporânea e à proposição conceitual fotografia do museu, para
sugerir a hipótese de dupla substituição / duplo registro da obra de arte (uma redundância propiciada
pela técnica), cuja radicalidade aponta para o fim de qualquer originalidade fundamental,
resultando na possibilidade de um museu totalmente substituído, ausente. Discute então
a tensão da aura nos fac-símiles da Factum Art (como a “devolução” fac-similar do painel
Bodas de Canaã de Veronese ao Refeitório Paladino de Veneza) e na utilização destes por
Peter Greenaway na 53ª Bienal de Veneza, bem como a diferença desses em relação à
reintegração digital do afresco de Mantegna em Pádua.
Palavras-chave: museu, fotografia, originalidade, fac-símile, reintegração digital

Abstract:
This paper gives a brief account on the anarchical appropriation of some themes from Conservation Science
(especially the innovative ways of reintegration, like Mantegna Project), relating them to the contemporary
arts and to the conceptual proposal museum’s photography, to suggest the double replacement / double
registration of the artwork hypothesis (a redundancy provided by technique). The radicalization of that
hypothesis points to the end of all fundamental originality, resulting in the possibility of a fully replaced
and absent museum. Then the paper discusses the aura’s tension in the Factum Art’s facsimiles (like the
facsimile “return” of the Veronese’s panel The Wedding at Cana to the Palladio’s Refectory in Venice)
and in the use of these by Peter Greenaway in the 53rd Venice Biennale, as well as the distinction between
both and the digital reintegration of Mantegna’s fresco in Padua.
Keywords: museum, photography, originality, facsimile, digital reintegration 297

Introdução
Certa vez, a campainha da mesa diretora da Assembleia Legislativa de Minas
Gerais estridulava sem parar, exigindo que Armando Ziller concluísse seu
discurso. Foi então que ouvi a frase que faço questão de repetir nessas
oportunidades: “Eu não concluo nunca, sou dialético…”
Bordão, mas não gostaria que soasse como desculpas para uma comunicação

Teoria e contexto
inconclusa. Serve bem para introduzir meu partido teórico ou método
preferido, a dialética, mais especificamente, a do tipo usado por Walter
Benjamin e que podemos chamar de “não conciliatória”, porque não busca
nem um acordo sintético, nem a destruição dos termos antagônicos em
uma espécie de teleologia. Uma das formas que esse método adquire em
Benjamin é seu característico pendulamento entre militância e melancolia,

Ciência & Conservação


algo que causa muita confusão, principalmente quando se entende tal
postura como inconsistência, enquanto o que ocorre, na verdade, é a
tematização do limiar, isto é, a opção deliberada por confundir bordas.
Enunciado assim, reconheço que há um cheiro de lugar-comum:
certamente, como ideia, pouco resta para se pensar acerca dos limiares
hoje em dia... Etimologicamente, o termo “ideia” remete ao registro da
visão, às imagens mentais. Nada melhor, então, que contrapor uma ideia a
um trabalho visual, para propor que, como conceito – remetendo à prática,
ao pensamento como construção –, o limiar dá muito no que pensar.

298
Ilustração 1: Lais Myrrha, Teoria das Bordas, 2007,
granitina branca e preta, dimensões variáveis.

Teoria das Bordas (2007), da colega Lais Myrrha (il. 1), aparentemente é
de concepção simples: há uma borda precisa separando dois planos
lisos e uniformes, um feito com pedrinhas brancas, outro com pretas;
os visitantes da exposição caminham sobre elas, que ficarão agarradas
aos sapatos e transportadas de um domínio ao outro, manchando-os
mutuamente. Simplicidade enganadora que o registro sequencial parece
evidenciar: a inevitável síntese cinza… Mas isso só em termos ideais; pois

Teoria e contexto
o trabalho faz com que um conceito abstrato (as bordas) ganhe um sentido
real, que alcança, na prática, uma percepção sensível, de maneira que o
que se evidencia é um método discursivo sobre o limite (mais no sentido
matemático: aproximar-se sem nunca chegar). Noutras palavras, nunca
haverá uma unidade cinza, apenas uma tendência a tal, valendo muito
mais ocupar-se com o processo do que com seu fim terminal. Aí, então,

Ciência & Conservação


haverá muito o que pensar: desde a imprevisibilidade da deambulação dos
visitantes até, por exemplo, o impacto do trabalho no espectador tardio.
Nesse nosso diálogo de um artista-pesquisador com conservadores/
restauradores, gostaria reservar a obra da Lais como uma espécie de
alegoria para a palavra “limite” que, no título, vai unida à palavra “museu”,
formando um lugar. Dessa forma, inclusive, estarão melhor entendidas
as palavras enfáticas do resumo: “fim”, “totalmente” e principalmente
“radicalidade”, que deve ser direcionada ao limiar. Noutros termos, esse
lugar que tentarei situar não é um dado, mas uma construção ora militante,
ora melancólica; e a hipótese da dupla substituição / duplo registro, algo como
a deambulação dos espectadores levando pedrinhas de um lado para o
outro.
Ainda sobre as palavras, havendo um método, só a etimologia evitará
parecer estranha minha proposição de narrar uma “apropriação anárquica”:
chamo atenção para a raiz grega arkhé, que forma arkheîon, “a residência dos
magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandam” (DERRIDA,
2001, p. 12), que, por sua vez, dará em nossa palavra “arquivo”; arkhé,
que também formará “arcaico”, denota a ideia de um princípio inaugural,
de uma origem, daquilo que vem antes e que, por isso, comanda, bem
como a ideia de uma unidade que contém os contrários – como diria um
pré-socrático. Ora, então, é “apropriação anárquica” porque funciona sem
o princípio e seu rol de derivados; funciona, principalmente, na ausência
da musealização, como se os objetos nunca tivessem sido desterrados e
transportados para o museu1. Daí a escolha de exemplos que estão fora
do musealium: o afresco de Mantegna em Pádua e a “devolução” das Bodas 299
de Canaã de Veronese.
Um texto emblemático para mim é Le musée imaginaire de Malraux (1949),
no qual ele propõe novas possibilidades de relação entre obras de arte,
especialmente potencializadas pela reprodução fotográfica e por sua
compressão no espaço da biblioteca, formando um conceito cambiante
que significa inicialmente um museu de imagens, “museu de impressão
de obras plásticas”2, mas também um museu do imaginário, “o museu
como ‘lugar mental’, espaço imaginário sem fronteiras que nos habita”
(SILVA, 2002). Em sua primeira parte, Malraux dedica-se ao comentário
do processo que hoje chamamos musealização, tornando-o indissociável

Teoria e contexto
das conquistas dos pintores modernistas – na origem, inclusive, o museu
imaginário é o modernismo3.
Em minha dissertação de mestrado, Pintura para catálogos, usei
anacronicamente o museu imaginário, aguçando sua dubiedade e
retrabalhando as noções de ressurreição e recriação fotográfica para

Ciência & Conservação


propor uma pauta de engajamento: a substituição do museu. Tal parricídio
ou “arquiviolação”4 jamais sairia impune, de forma que as perdas se
acumularam… A começar pelo modernismo, o que me obrigou a encarar
frontalmente nosso momento histórico, no qual está em jogo a dissolução
de um sujeito que pode ser identificado como burguês, falocêntrico e
patriarcal; importando como essa perda é lamentada ou comemorada:
Para alguns, para muitos, isso pode ser, na verdade, uma
grande perda, uma perda que conduz a lamentações narci-
sistas e a negações histéricas do fim da arte, da cultura, do
Ocidente. Mas, para outros, precisamente para Outros, não
há nenhuma perda. (FOSTER, 1996, p. 184).

Fosse apenas essa perda que não é perda alguma, justamente, nada a
lamentar. Mas algumas decisões trágicas pareciam se impor: “perder”,
privar-se de algo, deixar escapar, permitir uma ausência é, em si, um
motor da aura; daí uma substituição do museu – que a seu tempo recriou
a aura do musealium5 –, sua ausência, implicaria em um redobro: em vez de
distância já desdobrada6, tendente ao desaparecimento com a fotografia, a
aura passaria a ser apenas distância-distância, fortalecendo-se.
Se pensarmos que o mais importante na experiência da obra são as imagens
persistentes (afterimages), tal redobro significaria desmemória. Cabe uma
explicação mais detida.
O valor de uso da obra de arte é justamente ser uma obra que vemos surgir nas
vagas da ausência, o que implica que o espaço criado entre espectador e obra
é uma distância já desdobrada, um “ir e vir constante”, como propõe Didi- 300
Huberman (1998, p. 147). E essa parece ser a única forma de compreender
a contraposição benjaminiana entre rastro (traço, índice – chamando
atenção para a noção de fotografia como index) e aura:
Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade,
por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a
aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo
que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura,
ela se apodera de nós (BENJAMIN, 2007, p. 490, [M 16a,
4]).

Teoria e contexto
Por um motivo que sempre nos escapará, nessa conhecida anotação,
Benjamin contradita traço e aura com uma simples inversão de enunciados:
longínquo mas próximo; próximo mas longínquo. Então, se nos fiarmos
em Didi-Huberman (e na anotação), tal como na aura, também o espaço
criado pelo traço é dialético; isto é, o traço também é próximo e distante
ao mesmo tempo. Podemos dizer até que esse espaço é o mesmo: a

Ciência & Conservação


memória. No caso da aura, nos vemos frente a um “poder da memória”7
ou sob o jugo da “memória involuntária”, como diz Benjamin, a partir
de Baudelaire, contraditando-a ao spleen, à melancolia extrema que aguça
nossa percepção das horas:
A durée de que a morte foi suprimida tem a má infinitude de
um arabesco. Exclui a possibilidade de acolher a tradição. É
o protótipo de uma “vivência” que se pavoneia nas vestes
da experiência. Ao contrário, o spleen põe à mostra a “vi-
vência” na sua timidez. Com admiração o melancólico vê
a terra voltar ao puro estado de natureza. Nenhum sopro
de pré-história a circunda. Nenhuma aura. (BENJAMIN,
1980, p. 51).

O espaço do traço seria esse da duração onde há a morte? Benjamin


completa:
Definindo-se as representações radicais na mémoire involon-
taire tendentes a reunir-se em torno de um objeto sensível,
como a aura desse objeto, a aura ao redor de um objeto sen-
sível corresponde exatamente à experiência que se deposita
como exercício num objeto de uso. Os processos baseados
na câmara fotográfica e nos aparelhos análogos que se lhe
seguiram ampliam o âmbito da mémoire volontaire; enquanto
permitem fixar com o aparelho, a qualquer momento, um
fato sonora e visualmente. E dessa maneira se tornam con-
quistas fundamentais de uma sociedade na qual o exercício 301
definha. (BENJAMIN, 1980, p. 51).

Uma reação normal é devolver o olhar àquele que nos olha. A aura causa
uma inversão estranha desse fato tão humano: sentir-se olhado por um
objeto inanimado quando olhamos para ele. Isto é, ao olhar para um
objeto aurático, algo em nós faz com que nos sintamos vistos pelo objeto.
Mas esse olhar de retribuição é substituído nas grandes cidades por um
olhar preocupado, é o “olhar da prostituta” que caça os clientes, mas evita
a polícia. É vedado ao nosso olhar o “abandono sonhador e distante”;
ao que Benjamin (1980, p. 55) pergunta, sobre Baudelaire, “Quererá

Teoria e contexto
ver destruído o encanto da distância como ocorre ao espectador que se
aproxima demais de um cenário?”, que por sua vez responde com um verso:
“Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte / Como um sílfide por trás dos
bastidores” (BAUDELAIRE, 1995, p. 168).
O processo de dupla substituição / duplo registro, que talvez não seja

Ciência & Conservação


muito explicável, implica na aceitação desse prazer vaporoso que é dado
pela dissolução da aura, mas também na formação de novas auras. Aura
e rastro não podem mais ser contraditoriamente exclusivos, passam
a instâncias dialéticas de um mesmo espaço, a memória – que não se
divide mais tão claramente entre involuntária e voluntária. Passamos a
formar ambas a partir de um mesmo lugar-limite e, com isso, a dúvida de
Baudelaire sobre o que era mais verdadeiro no Salon de 1859, se os dioramas
ou as pinturas, dissolve-se na impossibilidade de estabelecer diferenças.
Em outras palavras, a indistinção entre obra e reprodução radicaliza a
indistinção espacial pela máxima proximidade com a máxima distância,
concomitantemente (ou alternadamente?), em prol de uma duração que
inclui e exclui a morte, e que, assim, inconstante, diz muito mais ao nosso
“olhar de prostituta”: vemos as obras de arte como possíveis clientes e
também como policiais; construímos o palco do espetáculo, só para olhar
o pano de fundo em seguida.
Na época de Benjamin, esse era o olhar da modernidade, e daí, também o
do museu; mas hoje ele implica noutras consequências. Se ainda é o olhar
de Bergson – isto é, o olhar pela memória – trata-se da memória de um
museu que se dissolve em arquivo hipermnésico (donde se deduz também,
na prática, hiperamnésico): é o olhar histérico diante da atual agressão da
vasta disponibilidade de imagens que nos cerca.
A tecnologia digital, claro, é o catalizador deste modo de ver inseguro,
nervoso, que dissolve e reconstitui a aura a todo momento, daí os exemplos
que escolhi.
302
A porta na fotografia do museu
Mais recorrente que meu bordão inicial, o da dialética, tem sido a imagem
que se segue, Veneza, Itália (1965), de Elliott Erwitt (il. 2), que rebatizei de
fotografia do museu. Não pretendia mostrá-la, mas me lembrei da Carta de
Veneza, de 1964, o que a tornou pertinente mais uma vez, já que estamos
em um seminário da Ciência da Conservação.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Ilustração 2: Elliott Erwitt, Veneza, Itália, 1965.

Chamo-a fotografia do museu para diferenciá-la da fotografia que se torna


musealium mais ou menos nesse período, à qual denomino “fotografia de
museu”. O importante é que ela me desloca para um tempo anterior,
quando a fotografia não estava no museu, nem exposta, nem operando.
Com isso, ela se torna uma imagem que visa politicamente o museu de
hoje, mas à revelia daquele princípio inaugural, isto é, “anarquicamente”.
São molduras e parede apresentando e sustentando o opaco, o vazio, que
me remetem imediatamente ao trabalho de Allan McCollum, Coleção de 418
substitutos de gesso (1982-1983), e ao seu complemento posterior O registro de
uma obra de arte (1999)9. A metáfora estabelecida por McCollum entre seus
dois trabalhos é o que me faz relacioná-los à fotografia do museu: O registro
de uma obra de arte, que propunha documentação, medição, fotografia etc.,
visando à conservação, como uma forma de introduzir a obra de arte na
história, acabou uma webarte deletada – numa ironia que parece proposital
–; então, mais que comparar pinturas obscurecidas pela pátina com
retângulos pretos emoldurados, ou idear uma conexão pela linguagem 303
entre “substituição” e “invisibilidade”, a questão é que um lugar-limite se
revela no vislumbre que temos da vida que está fora disso tudo: da Coleção,
d’O registro, do vazio daquele corredor.
Numa opção pelo spleen, talvez, cruzaremos aquela porta da direita na
fotografia do museu, para entrar ainda mais nesse lugar, para descer
ao porão, até a reserva técnica, buscando o melhor ponto de vista para
verificar esse limite: os bastidores, a parte de trás do cenário: o início e
o fim de todo museu, o lugar onde as trocas de poder se efetivam, bem
como as trocas entre original e falsificação nos furtos, e também onde se
saqueia, bem como o armazém do butim.

Teoria e contexto
Essa fotografia é tida, em outros contextos, enquanto ainda se chama
Veneza, como uma crítica auto-reflexiva ao fato da fotografia só registrar
o que aparenta estar presente e não o que sabemos estar presente10. Mas
quando a transformamos na fotografia do museu, fazemos a opção de
reverter esse problema em qualidade, transformando aparência em saber;

Ciência & Conservação


isto é, sabemos que nossos museus não têm mais aquela aparência, mas são
aquela aparência.
Aí entram os restauradores. Sem dúvida aquelas pinturas passaram pela
limpeza científica, de forma que essa fotografia do museu, especifica,
não pode mais ser tirada; só restando aos fotógrafos do museu, como
Thomas Struth, por exemplo, substituir o tema, observando ironicamente
o espectador. E o interessante nessas novas fotografias do museu é que
as obras teimam em entrar em nume, isso é em excesso de pose, mentindo
sobre a verdadeira natureza do lugar que ocupam.
Certa feita, vi no MASP alguns pequenos quadros a têmpera recém
restaurados, ladeados por cartazes explicativos. A natural falta de relevo
da pintura tinha ganhado um brilho de têmpera-ovo recém finalizada e
só a etiqueta me convencia que se tratava de uma obra do século XV e
não uma reprodução. Reprodução de qualquer tipo, pois, a certa distância,
o cartaz primorosamente impresso e recheado de pormenores parecia
mais verdadeiro, sobrepondo-se à obra como imagem persistente. Dito de
outra forma, o resgate de um estado “original” de integridade estética e o
trabalho de convencimento do papel positivo das escolhas rigorosamente
científicas dos restauradores acabou substituindo a imagem que persiste
em mim, tornando-a sem princípio, sem tempo redescoberto, sem pré-
história.
Importa que essa sensação foi sublime – no sentido kantiano: uma violência
contra nosso sentido interno (o tempo) e contra nossa imaginação, que
ativa nosso juízo reflexionante, conjugando então imaginação e razão, para
transformar o que parece contrário em conforme a fins, resultando em 304
um engrandecimento da nossa subjetividade; um desprazer que contém
finalidade e que, apesar de todas as voltas que dá, acaba nos brindando
com a apresentação daquilo que não pode ser apresentado. E, assim, pela
sublimação, parecia desfeito o hiato entre aquelas pinturas do Quatroccento e
a prática da arte contemporânea, pela possibilidade de aperfeiçoar aqueles
quadros com a imaginação11, pela possibilidade de voltar a usá-los.
Wind (1985), em seu sugestivo Arte e anarquia, originalmente publicado em
1963, alertava sobre a tentação de fazer das pinturas espécimes científicos
cuidadosamente preparados, delegando o fardo da exegese na restauração
a um solvente e, de maneira melancólica, conclui que:

Teoria e contexto
Como a mecânica de retirar as camadas de uma pintura reverte a sequência de sua
feitura, é quase inevitável que tais pinturas processadas adquiram superfícies que
parecem manufaturadas, similares ao duro e brilhante verniz [gloss] das reprodu-
ções mecânicas, com cores brutas em luminosa justaposição. A satisfação alcan-
çada por pinturas reduzidas a tal estado pode provavelmente ser creditada ao fato

Ciência & Conservação


de nossa visão ter sido gradativamente treinada em impressões derivativas, que
tendem a super-definir uma imagem numa só direção, fixando-a em uma escala
mecânica. (WIND, 1985, p. 68-69, trad. nossa).

Seria uma espiral regressiva de fixação em uma escala mecânica? Não


podemos, entretanto, abandonar o lado militante: mesmo se fossem
apenas operações mecânicas, ainda assim, como qualquer produto de um
trabalho, pinturas restauradas e reproduções registram as peculiaridades
da tecnologia e também de seu operador, ainda assim, repito, até a
padronização mais absurda e a mais completa idealidade inespecífica,
iludindo uma não intervenção, até a mecânica nos lega uma possibilidade:
a indiferenciação senão pelo registro.
É a isso que chamo dupla substituição / duplo registro: redundância. Isto
é, a possibilidade da reprodução substituir plenamente a obra, bem como
do registro também substituí-la, abrindo uma mão dupla, na qual a obra
também substitui ambos, reprodução e registro. Trata-se de um conceito
– um pensamento construído – cuja radicalidade é o fim da originalidade,
uma perda que dá ganhos, principalmente em relação à aura, que passa a
ser percebida como fenômeno em constante tensão, permitindo algo que
considero essencial na experiência da obra de arte hoje: sua diminuição e
difusão.
A diminuição está relacionada à possibilidade de nos apropriarmos da obra
e a difusão é melhor entendida como uma metáfora luminosa; só essas
características permitiriam um seguir-vivendo da arte. Mas essa discussão fica
para outra oportunidade. 305
O Projeto Mantegna
Importa mais discutir como a aura se comporta em constante tensão; e
a reintegração digital do afresco de Mantegna em Pádua demonstra isso.
Em 1944, um bombardeio aliado reduziu a cacos os afrescos de Mantegna
na capela Ovetari da igreja dos Eremitani, em Pádua. Desde o imediato
pós-Segunda Guerra até 1992, várias tentativas de reintegrar manualmente
os fragmentos fracassaram; mesmo sob direção do prestigiado Cesare
Brandi, apenas três cenas foram restauradas. A partir de 1994, iniciou-se
um processo de inventário e documentação, que resultou na elaboração,

Teoria e contexto
entre 1995 e 1997, de um catálogo digital dos fragmentos. A partir desse
catálogo, com os avanços na área de tratamento digital da imagem, foi
possível elaborar uma metodologia de mapeamento e posicionamento
ideal dos fragmentos, resultando, em 1998, no Projeto Mantegna, que, em
2006, terminou o processo de sobreposição dos fragmentos originais a
fotografias da coleção Anderson & Alinari, ampliadas e corrigidas para se

Ciência & Conservação


adaptarem à arquitetura da capela.
Os negativos dos irmãos Alinari formam a principal coleção histórica
de fotografias de obras de arte e monumentos italianos. Desde 1860,
eles reproduziram sistematicamente dezenas de milhares de obras em
coleções públicas e particulares, bem como adquiriram arquivos de outros
fotógrafos, como os de James Anderson.
Para possibilitar a reintegração, esse catálogo adquire um novo papel:
em vez de tornar-se musealium, como as demais coleções desse tipo
– “fotografias de museu” – transforma-se em substituto de algo não
musealizável.

306

Ilustração 3: Andrea Mantegna, São Pedro (após restauração).


Observando a imagem (il. 3), vemos, com intenção de sublimidade, que
no Projeto Mantegna o vazio do desastre une-se ao isso-foi (ao traço,

Teoria e contexto
indício, index) da fotografia: o indício (o fragmento) encontra seu lugar no
índice (foto do afresco) pelo movimento programado (vários algoritmos
complexos) de outro índice (foto digital do fragmento): uma sucessão de
foram, de camadas sobrepostas de passado, cada uma com significações
e repercussões distintas, e um conflito gritante de opções entre ruína e
restauração, entre história e estética.

Ciência & Conservação


Voltando a Malraux, o que deu origem a esses conflitos, vale dizer, foi
a transfiguração das artes pela fotografia, o que criou uma outra ideia
de “antigo”, indissociável da noção de ressurreição. Antes do museu
imaginário, por mais de quatro séculos, pretendia-se restaurar destruindo
o estilo, reduzindo todo e qualquer monumento antigo a um padrão
de antiguidade, à Antiguidade Clássica, como se o restabelecimento
do monumento ao tempo presente passasse obrigatoriamente pelo seu
estabelecimento em um tempo passado, passado até mesmo em relação
ao próprio monumento. É este o caso, citado por Malraux (2000, p. 138),
da “restauração” dos tímpanos de Saint-Denis por Joseph-Sylvestre Brun,
entre 1837 e 1839: “o escultor Brun suaviza os contornos das personagens,
esbate-as – e assina”. Brun trabalhava sob direção de François Debret,
arquiteto-em-chefe da basílica, que se tornou conhecido como o infame
criador da “fachada desfigurada, para sempre destituída de interesse
histórico, e, pior, muito feia”, como afirmou o arqueólogo Didron (apud
BLUM, 1992, p. 12, trad. nossa), em 1846. Neste mesmo ano, Debret
foi substituído por Eugène Viollet-le-Duc, que, por sua vez, também se
notabilizou pela destruição das estátuas de Notre-Dame; mas dessa vez,
visando um “gótico puro”, ou, como critica Malraux (2000, p. 138), “um
gótico que não tivesse conhecido a arte românica”.
Sem dúvida, Viollet-le-Duc não teria destruído as estátuas de Notre-Dame
se as tivesse conhecido no museu imaginário, como propõe Malraux,
seguindo uma linha de raciocínio que o leva a concluir que
O mundo das fotografias serve ao mundo dos originais,
sem dúvida; contudo, menos sedutor ou menos emocio- 307
nante, muito mais intelectual, parece revelar, no sentido que
o termo adquire em fotografia, o ato criador; em primeiro
lugar, fazer da história da arte uma sucessão de criações.
(MALRAUX, 2000, p. 140).

Se aceitarmos a hipótese da dupla substituição / duplo registro, entretanto,


concluiremos que não há mais uma relação unilateral entre os mundos da
fotografia e dos originais. Se há servilismo, ele é também duplo. Poderíamos,
então, nos perguntar: qual seria o comportamento de Viollet-le-Duc hoje,
diante desse apagamento de qualquer originalidade fundamental, diante
desse museu-limite? Ele apenas excluiria as estátuas da seleção de fotos?

Teoria e contexto
Brincadeiras à parte, o que o Projeto Mantegna acaba produzindo é uma
percepção sensível da aura em conflito, visto que perda e reintegração não
encontram qualquer estabilidade, não encontram aquele princípio unitário;
com isso, é uma ilustração clara daquela possibilidade de, como já disse,
aperfeiçoar o quadro com a imaginação.

Ciência & Conservação


Fac-símile
Peço desculpas, mas não vou discutir a questão da fotografia digital além
de apontar um incômodo: muito ou quase tudo que se escreveu sobre
fotografia, até bem pouco tempo, liga-se de alguma forma a uma relação
energética mediada por um índice que exclui ou abafa o caráter icônico da
imagem; daí o que chamamos de estar-junto com isso-foi, a relação entre
objeto e sensibilização da chapa – que torna portátil (próximo) e temporal
(passado) sua presença, delimitando assim o tema da decadência da aura –
estabelecendo novas relações entre memória e imagem, tudo isso, deveria
desaparecer e passar para o âmbito da simulação.
Mas…
Um caso paralelo, mas muito diverso do afresco de Mantegna, é a
“devolução” fac-similar do painel Bodas de Canaã de Paolo Veronese
– pilhado pelas tropas napoleônicas e que se encontra hoje no Museu
do Louvre – ao Refeitório Palladiano do mosteiro beneditino da ilha
veneziana de San Giorgio Maggiore. Em 2006, a Factum Arte, que se
apresenta como “oficina independente sediada em Madri e que trabalha
com artistas contemporâneos e com a produção de fac-símiles que podem
ser utilizados com propósitos de conservação” (FACTUM ARTE, 2009,
trad. nossa), recebeu da Fundação Giorgio Cini a incumbência de criar
uma cópia fiel em escala 1:1 da obra, com requintes impressionantes como 308
relevo e até mesmo danos causados no ato de pilhagem, e de instalá-la
no lugar de origem, seguindo como referência uma gravura de época. O
empreendimento foi saudado como “milagre da reprodução”, “reviravolta
na arte” etc.
Teoria e contexto
Ciência & Conservação
Ilustração 4: Peter Greenaway, As bodas de Canaã: uma visão por Peter Greenaway,
2009.

Algo parece estranho, entretanto, quando vemos a intervenção As


bodas de Canaã: uma visão por Peter Greenaway (2009) sobre o fac-símile, na
53ª Bienal de Veneza (il. 4). Trata-se da terceira intervenção do artista
sobre fac-símiles na série Nove pinturas clássicas revisitadas, sendo as duas
primeiras A ronda noturna no Amsterdam Rijksmuseum (2006) e Última ceia
de Vinci em Milão (2008)14. A intenção dessa série não parece ser criticar
os empreendimentos da Factum Arte, demonstrando as limitações dessas
tentativas (anti-museológicas?) de reinserir as obras em seus contextos
arquiteturais originais. E não há nas declarações de Greenaway qualquer
menção direta ao problema da aura, algo que, sem dúvida, mereceria
mais destaque. Não importando a intencionalidade, o que a intervenção
nos permite ver é uma sobreposição diversa da que ocorre no afresco
de Mantegna: tudo se passa como se não houvesse mais qualquer perda,
como se estivéssemos, graças a uma rematerialização digital, em presença
da obra original.
Mas algo sabota essa presença: a simulação, o fenômeno da aparência que
se revela essência: isto é, diversamente da fotografia na reintegração do
afresco de Mantegna, a pintura parece estar ali e, por isso, sabemos que
não está.
Nesse caso a dupla substituição / duplo registro deixa de funcionar, pois
309
o museu se restabelece pela falta, com ele a necessidade de originalidade,
com ele a aura se fortalece sem conflito, com ele o distante está distante.
Completando o “Mas…”: enquanto a fotografia digital entra na hipótese,
a simulação, especificamente, não. Pois a questão fundamental da dupla
substituição / duplo registro é a vontade de praticá-la.
_________
Notas

Teoria e contexto
1 Segundo Cury (2005, p. 22 passim), “musealização é muito mais que transferir objetos para o
museu” e implica sua valorização segundo um “olhar museológico”, “continua no conjunto de
ações que visa à transformação do objeto em documento e sua comunicação”.

2 Malraux apud Silva (1995, p. 248): “Chamo de Museu Imaginário a totalidade do que as pessoas
conhecem hoje mesmo sem ir a um museu, quer dizer, o que conhecem pela reprodução, o que

Ciência & Conservação


conhecem pela biblioteca, etc.”.

3 Como aponta Krauss (1996, p. 344, trad. nossa): “[...] musée imaginaire é, de fato, outra forma
de escrever ‘modernismo’ [...]”.
4 Uma palavra que tento introduzir significando “violação do arquivo”, tendo “arquivo” sentido
lato, memorial e psíquico.

5 A partir de Malraux, Silva (2004) propõe que: “cada tempo tem a sua aura: o sobrenatural (o da
arte antiga) tem sua aura sagrada; o irreal (que situa no Renascimento) tem sua aura de beleza,
e o intemporal (o da arte moderna) tem a aura da própria criação artística”.

6 Didi-Huberman (1998, p. 147): “Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua
proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir
incessante, uma forma de heurística na qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se
experimentariam umas às outras, dialeticamente. O próprio objeto tornando-se, nessa
operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visualmente: apresentando-se,
aproximando-se, mas produzindo essa aproximação com o momento experimentado “único”
(einmalig) e totalmente “estranho” (sonderbar) de um soberano distanciamento, de uma
soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos
olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da ausência.”

7 Didi-Huberman (1998, p. 149).


8 “Le plaisir vaporeux fuira vers l’horizon / Ainsi qu’une sylphide au fond de la coulisse.”.
9 Títulos originais, respectivamente, Collection of Four Hundred and Eighty Plaster Surrogates e
The Registration of an Artwork.

10 Cf. Szarkowski (1973).


11 E um dos sonhos de Malraux (2000, p. 77) é o “fim do quadro que a imaginação não podia
aperfeiçoar”.

12 A partir de Benjamin (1993, p. 104): “Cada um de nós pode observar que uma imagem,
uma escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na
realidade. A tentação é grande de atribuir a responsabilidade por esse fenômeno à decadência do
gosto artístico ou ao fracasso dos nossos contemporâneos. Porém somos forçados a reconhecer
que a concepção das grandes obras se modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento 310
das técnicas de reprodução. Não podemos agora vê-las como criações individuais; elas se
transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las para que nos
apoderemos delas. Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma
técnica de miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio
sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas.”

13 Barthes (1984, p. 121) chega a atribuir aos químicos a invenção da fotografia e logo depois
afirma que: “De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que
estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar
como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o
corpo da coisa fotografada”.

14 Títulos originais, respectivamente, The Wedding at Cana: a vision by Peter Greenaway, Nine

Teoria e contexto
Classical Paintings Revisited, Nightwatch in the Amsterdam Rijksmuseum e Da Vinci’s Last
Supper in Milan.

__________

Ciência & Conservação


Referências
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CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
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MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Genève: Albert Skira, 1949. (Psychologie de l’art, 1). [As
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MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: Ed. 70, 2000. Baseada em ed. rev. ampl. de 1963.
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São Paulo: Abralic, 1995. p. 245-251.
311
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SILVA, Edson Rosa da. A fotografia e a arte: ainda o diálogo entre André Malraux e Walter Benja-
min. In: COUTINHO, Eduardo; BEHAR, Lisa Block de; RODRIGUES, Sara Viola (Orgs.) Elogio
da Lucidez. Porto Alegre: Evangraf, 2004, p. 113-117. Cópia eletrônica fornecida pelo autor, com
paginação diferente.
SZARKOWSKI, John. Looking at photographs: 100 pictures from the collection of the Museum of
Modern Art. New York: The Museum of Modern Art, 1973.

Teoria e contexto
WIND, Edgar. Art and anarchy. 3th ed. Evanston: Northwester University Press, 1985.

Ciência & Conservação


312
Reconhecer o risco: estratégia utilizada no
arquivo fotográfico da Rádio Nacional

Teoria e contexto
Gabriela de Lima Gomes
Universidade Federal de Ouro Preto

Ciência & Conservação


Resumo
O artigo apresentará o diagnóstico e a metodologia de gerenciamento de risco aplicados
no arquivo de fotografias da Rádio Nacional. A investigação do material fotográfico, do
ambiente e da instituição possibilitou encontrar evidências que nos revelaram os motivos
que causaram e causam a degradação do Arquivo.
Palavras-chaves: Preservação fotográfica; Causas de degradação; Gerenciamento de risco

Abstract
The article will present the diagnosis and the methodology of risk management applied in the photograph
archive of the Radio Nacional. The inquiry of the photographic material, the environment and the
institution made possible to find evidences that in had disclosed the reasons to caused and cause the
degradation of the Archive.
Key-words: Photographic preservation; Degradation causes; Risk management

Introdução
Encontrar arquivos de fotografias ou documentos, carregados de valor
patrimonial, não é difícil na atualidade. Instituições públicas e privadas,
das mais diversas funções, produzem e acumulam documentos textuais,
fotográficos, iconográficos e digitais a todo momento e, na maioria das
vezes, não sabem como cuidar dessa produção.
A curiosidade em conhecer as fotografias das Rainhas do Rádio foi
o estímulo para o reconhecimento desse patrimônio documental. O 313
reencontro com um Arquivo que se mantêm à margem da instituição
Rádio Nacional do Rio de Janeiro, uma vez que a produção da emissora é,
exclusivamente, sonora.
O objeto
Partiremos com uma sucinta apresentação do objeto de estudo e seu
estado de conservação, seguidos dos gráficos resultantes do diagnóstico.

Teoria e contexto
O recorte privilegiou as provas fotográficas em preto e branco registradas
entre os anos de 1940 e 1960. As ampliações foram feitas em papel
revelação . Sua estrutura é constituída por substâncias orgânicas e
inorgânicas sobrepostas em camadas: o suporte de papel, a camada de
barita e a emulsão fotográfica, uma mistura de gelatina e prata filamentar.

Ciência & Conservação


FIGURA 1: Corte estratigráfco 20X da prova fotográfica contemporânea. Fragmento
etirado da prova fotográfica R 216: Paulo Gracindo, Emilinha Borba, José Mafuz, Ari
Picaluga, Neuza Maria. 1940 circa. (17,4 X 22)
Fonte: Arquivo da Rádio Nacional

O contexto
A Rádio Nacional do Rio de Janeiro é reconhecida como a responsável
pela transformação da vida social dos brasileiros por ter produzido mitos
populares. Renato Murce3 afirma que “a Rádio Nacional foi a própria
essência do rádio no Brasil por cerca de duas décadas”.
O edifício “A Noite”, Praça Mauá, n°7, abriga, até hoje, a emissora. Uma
instituição legislada pelo Governo Federal e pertencente à Radiobrás
(Empresa Brasileira de Radiodifusão), ligada à Presidência da República
por meio da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica.
314
Edna Dantas4, chefe do Escritório Regional da Rádio Nacional, relata sobre
a preocupação da instituição em conservar suas coleções, no entanto, não
existe verba dedicada à manutenção das coleções.
Em uma sala no 21° andar do edifício “A Noite”, região portuária e de
tráfego intenso, esta guardado o arquivo fotográfico da Rádio Nacional. O
histórico edifício é equipado com escadas externas e brigada de incêndio.

Teoria e contexto
E, tanto a portaria, quanto a da emissora possuem vigilância. Segundo o
Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro5, o edifício “A
Noite” nunca sofreu nenhum tipo de desastre ambiental ou criminoso.
O setor de pesquisa da Rádio Nacional foi idealizado em 1980, durante
a gerência de Jorge Guimarães Marcelo, com o propósito de reintegrar o

Ciência & Conservação


acervo doado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro6. Alberto
Luiz da Silva Santos, auxiliar administrativo, é responsável pela memória da
emissora e, até hoje, realiza pesquisas para a programação, além de receber,
às terças e quartas-feiras, de 14 às 17 horas, visitantes e consulentes.
No controle de catalogação do arquivo fotográfico da Rádio Nacional
estão registradas 494 imagens, sendo que 313 fotografias foram catalogadas
entre 1982 e 1984 e as outras 181 foram catalogadas em 2003. Desse total,
46 imagens estão desaparecidas e 7 são fotografias em cores pós 1970.
Logo, fizeram parte da pesquisa 441 imagens.
O arquivo de provas fotográficas foi formado a partir de imagens
produzidas por fotógrafos que acompanhavam a programação da rádio
e por doações realizadas pelos artistas e produtores dos programas
radiofônicos.
O estado de conservação é preocupante devido à manipulação e
acondicionamento. As fotografias estão montadas em pastas de argola,
fixadas em cartolinas ácidas e com cantoneiras de fita adesiva. Além de
apresentarem diversas intervenções ocorridas durante os anos de uso.



315

FIGURA 2: Montagem representando o contexto das provas fotográficas


da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
O resultado do diagnóstico
Após o diagnóstico de cada elemento fotográfico da Rádio Nacional,
passamos a ter uma visão geral sobre o Arquivo.

Teoria e contexto
Com o intuito de esclarecer o estado de conservação dividimos as
ocorrências encontradas em três situações de degradação: por intervenção,
por manipulação e ambiental. Os gráficos, a seguir, apresentam o resultado
deste levantamento.

Ciência & Conservação


GRÁFICO 1: Representação do resultado do diagnóstico de
degradação por intervenção.

O gráfico acima apresenta as intervenções realizadas no Arquivo, tais como:


procedimentos adotados para indexação, identificação dos personagens,
montagem em pastas argola e consolidações de rasgos e fraturas. Cerca
de 87% das imagens foram registradas com o carimbo da instituição e
anotação a caneta no suporte; muitas delas apresentam informações
incompletas como o nome dos participantes da cena da fotografia, a data,
o fotógrafo e o contexto.
Verificamos também que um terço das provas sofreram pequenos
reparos, no decorrer dos anos 27 anos de uso, sem os devidos cuidados
e conhecimentos específicos. Além disso, as provas fotográficas foram
montadas com material ácido e arranjadas em pastas de argola. 316

FIGURA 3: Detalhes carimbos


Teoria e contexto
Ciência & Conservação
GRÁFICO 2: Representação do resultado do
diagnóstico de degradação por manipulação.
Constatamos no gráfico acima que mais da metade das provas apresenta
vincos e abrasões decorrentes do uso contínuo e descuidado e um oitavo
delas têm manchas de dedos recorrentes de manipulação sem luvas.
A presença de sujidade ocorre em 100% do Arquivo devido a poeira
proveniente da manipulação e localização, tráfego intenso e região
portuária.

FIGURA 4: Detalhes de rasgos, furos e


delaminações encontros no Arquivo.

A realização do diagnóstico do estado de conservação das provas 317


fotográficas da Rádio Nacional nos revelou que, mesmo com as flutuações
recorrentes da umidade relativa e da temperatura, o Arquivo apresenta
uma pequena parte das possíveis características de degradação decorrentes
da falta de controle ambiental. Como a proliferação de fungos, craquelês
e ondulações.
As características mais recorrentes foram manchas e amarelecimento, que
podem ser indícios de sulfuração e/ou mau processamento. Apesar dos vasos
de plantas da sala de guarda, meio facilitador à proliferação de insetos, não
encontramos furos ou marca de roedores e apenas cinco imagens possuem

Teoria e contexto
excrementos de insetos. Tal evidência demonstra que, nem sempre, o meio
ambiente, com temperatura e umidade relativa inadequadas, é o principal
causador da degradação.

Ciência & Conservação


GRÁFICO 3: Representação do resultado do
diagnóstico de degradação ambiental.

FIGURA 5: Detalhes de espelhamento e


excremento encontros no Arquivo.

O reconhecimento do risco
Após o reconhecimento da a política institucional; das características ambientais
e urbanas da região e do bairro; estruturais do edifício; as condições climáticas 318
da sala de guarda; o armazenamento e o acondicionamento do arquivo
e seu o estado de conservação seguiremos com alguns dos procedimentos
metodológicos de gerenciamento de risco.
De acordo com o guia Risk Management Guidelines, o termo “gerenciamento de
risco” significa a compreensão da cultura, dos processos e das estruturas, do
objeto inserido na instituição, a fim de detectar as oportunidades potenciais e
administrar os efeitos adversos.
Metodologias baseadas em tabelas com estimativa de vida e escalas com
valores de risco foram desenvolvidos nos últimos anos para facilitar a

Teoria e contexto
administração das coleções. ABC risk assessment scales for museum collections­,
criada por Stefan Michalski em 2006 apresenta uma escala baseada em
perguntas em relação à coleção, tais como:
A: Com que rapidez e com que freqüência a degradação ocorre?

Ciência & Conservação


B: Quanto de valor é perdido em cada objeto afetado?
C: Quanto do valor total do arquivo é afetado?
Cada resposta possui um valor pré-determinado e o resultado da soma dos
valores das respostas A, B e C nos demonstrará os riscos mais eminentes.
Os 10 possíveis agentes de degradação identificados no arquivo de
fotografias da Rádio Nacional foram:
1. FORÇAS FÍSICAS - a região geográfica onde as fotografias estão
alocadas não está ameaçada pelas forças físicas da natureza;
2. CRIMINOSO - podemos apontar como um fator problemático a falta
de segurança do acervo quando disponível a consulta. Segundo
os dados apresentados acima, 46 imagens foram roubadas da
seção durante seus 25 anos de existência;
3. FOGO - o edifício possui brigada de incêndio;
4. ÁGUA - a tubulação de água é externa ao prédio;
5. PESTE - apenas 1,11% das provas apresentam danos causados por
insetos ou roedores;
6. POLUENTES - a poluição e o processamento inadequado são dois
fatores a serem considerados, pois contabilizamos um terço das
imagens com amarelecimento; 319
7. LUZ/UV - as provas da emissora não são utilizadas em exposições e
estão acondicionadas em pastas com proteção;
8. TEMPERATURA - a temperatura da sala de guarda não sofre fortes
alterações;
9. UMIDADE RELATIVA - a variação da umidade não alcança as provas
fotográficas a ponto de provocar craquelês e desprendimento da
gelatina do suporte de papel;

Teoria e contexto
10. DISSOCIAÇÃO – uma preocupação é o contexto das imagens. O que
não foi descrito durante sua produção e hoje fica à mercê de
lembranças de funcionários ou pessoas remanescentes da época
áurea da emissora, hoje é dificilmente identificável, causando a
dissociação da informação.

Ciência & Conservação


TABELA 1 – Valores obtidos na análise das dez


Possibilidades de degradação do arquivo de provas
fotográficas da Rádio Nacional.

A análise do cenário nos evidenciou que os fatores de maior preocupação


são a ação criminosa, os poluentes, a manipulação e a dissociação da
informação.
As respostas às perguntas a seguir nos informarão sobre as possíveis
implicações que poderemos encontrar em um determinado espaço de
tempo:
320
A: Com que rapidez e com que freqüência a degradação ocorre?

Teoria e contexto
Ciência & Conservação
TABELA 2 – ABC risk assessment scales
for museum collections.

As provas fotográficas da Rádio Nacional estão disponíveis ao público


desde 1982, quando foram indexadas e montadas em pastas de argola.
Assim, concluímos, com base na análise da média dos gráficos de
degradação, que em 25 anos:
• 86% das imagens foram carimbadas e têm inscrições no verso;
• 20% do arquivo sofreu intervenções com fita adesiva, e 40%, com
cola;
• 38% têm perda na emulsão;
• 80% das imagens apresentam danos em decorrência da
manipulação excessiva.
Tais evidências nos fazem compreender que a freqüência de degradação
ocorre em cerca de um ano ou menos. [A = 5]
B: Quanto de valor é perdido em cada objeto afetado?

321

TABELA 3 – ABC risk assessment


scales for museum collections.
Apesar das perdas demonstradas no gráfico de degradação por manipulação
(GRÁFICO 2), não podemos considerar que os objetos tiveram seus
valores decrescidos, pois todas as imagens ainda podem ser visualizadas.

Teoria e contexto
Perda de valor apenas notável. [B = 2]
C: Quanto do valor total do arquivo é afetado?

Ciência & Conservação


TABELA 4 – ABC risk assessment
scales for museum collections.

Podemos dizer que parte significativa das provas fotográficas da Rádio


Nacional foi afetada por algum tipo de intervenção ou sofre até mesmo
danos causados pelo meio ambiente. [C= 4]
A+B+C=11
Ao conferirmos a magnitude de risco verificamos que as provas fotográficas
da Rádio Nacional possuem alta prioridade. Ou seja, perda significativa de
valores no período de uma década ou perda total em cem anos. Estes
valores são comuns em instituições onde a conservação preventiva nunca
foi prioridade ou onde preciosos artefatos estão expostos em locais de
fácil roubo.
Compreender a realidade da instituição e o contexto são ações primordiais
para a proposição e execução, do ponto de vista financeiro e pessoal, de
uma política de organização e gerenciamento do arquivo.
Para ampliar o acesso do Arquivo e permitir que ele seja revisto e
reencontrado sugerimos a elaboração de um protocolo de digitalização 322
potencializando a pesquisa teórico-prática e transformando-o em um
piloto incentivador para uma política de divulgação do patrimônio cultural.
No entanto, é preciso realçar que a realização da digitalização requer
atenção especial para as normas de captação da imagem e armazenamento
das cópias digitais.
A preservação digital é de extrema importância. Devemos ficar atentos
e acompanhar as transformações tecnológicas, pois a obsolescência do
material eletrônico é rápida.

Teoria e contexto
Pretendemos com as ações do reencontro e da digitalização preservar o
Arquivo das provas fotográficas da Rádio Nacional e criar um Arquivo
digital “vivo”, circulante, que não se torne “morto”, estanque, guardado
em discos rígidos e DVDs. Conhecer, reconhecer, preservar, divulgar,
publicar, prover acesso e usar as imagens da Rádio Nacional do Rio de

Ciência & Conservação


Janeiro são prioridades nesta pesquisa.

____________
Notas
1. GOMES, 2008.
2. PAVÃO, 1997.
3. MURCE, 1976, p.71.
4. Edna Dantas concedeu entrevista à pesquisadora no dia 9 de abril de 2007 na Rádio Nacional do
Rio de Janeiro.
5. Disponível em: <http://www.cbmerj.rj.gov.br>. Acesso em: mar. 2007.
6. SAROLDI, 2005, p. 192.
7. HANDBOOK: Risk management guidelines. Joint Australian/New Zealand Standard, AS/NZS
4360, 2004.

__________
Referências
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tool for preservation and access. Andover MA: Northeast Document Conservation Center, 2000. p.
155-166.
GOMES, Gabriela de Lima. Ver para crer: um novo olhar para os arquivos fotográficos. Dissertação
(Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2008.
PAVÃO, Luís. Conservação de coleções de fotografia. Lisboa: Dinalivro, 1997.
323
PEDERSOLI, José Luis. Principles of risk management. Apresentação Safeguarding Sound and
Image Collections. ICCROM, Internatinal Course. Brasil, 2007.
MICHALSKI, Stefan. Scales for Calculating Magnitude of Risks. Apresentação Preventive
Conservation: ReducingRisks to Collections. ICCROM-CCI, International Course. Canadá, 2006.
MURCE, Renato. Bastidores do Rádio: fragmentos do rádio de ontem e de hoje. Rio de Janeiro:
Imago Editora LTDA, 1976.

Teoria e contexto
SAROLDI, Luis Carlos; MOREIRA, Sonia Virgínia. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
ZÚÑIGA, Solange Setta Garcia. Divagações mais ou menos contemporâneas acerca das coleções de
imagens. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Fotografia, n° 27, 1998.

Ciência & Conservação


324
Acervo de artista: a narrativa de uma memória
escondida

Teoria e contexto
Arethusa Almeida de Paula.
Doutoranda PPGA-EBA-UFMG

Ciência & Conservação


Yacy-Ara Froner (Orientadora)

Resumo:

A produção artística da década de 1960 e 1970 tem sido constantemente revista e analisada.
Os acervos dos artistas desta época se tornaram uma grande fonte de pesquisa sobre esta
produção e sobre como a arte se articulava dentro deste contexto histórico.Dessa forma,
muitos desses acervos não se encontram institucionalizados, e assim, os próprios artistas
procuram a preservação de sua memória num espaço muitas vezes ainda em construção.
Portanto, como conservar e catalogar os acervos de artistas contemporâneos? Como os
pesquisadores tanto da área de História da Arte e também da Ciência da Conservação
poderão ajudar na conservação desta memória?A parceria entre artistas e pesquisadores
é de suma importância, não só para a preservação de uma história, mas também para
a divulgação e análise de uma produção artística muitas vezes escondida no interior de
acervos pessoais.

Palavras chaves: História, Arte Contemporânea, Ciência da Conservação, Acervos de


Artista.

Abstract:

The artistic production of the 1960 and 1970 has been constantly reviewed and analyzed. The collections
of the artists of this time became a major source of research on this production and how the art was
articulated within this historical context.Thus, many of those collections are not institutionalized, and
thus, the artists themselves seek to preserve their memory in an area often still under construction.So, how
to preserve and catalog the collections of contemporary artists? How the researchers of both the area of
History of Art and Science of Conservation can help conserve this memory?The partnership between
artists and researchers is of paramount importance not only for the preservation of a history, but also for
the dissemination and analysis of artistic production often hidden inside personal collections.

Keywords: History, Contemporary Art, Conservation Science, Collection of Artist.


325

A produção artística da década de 1960 e 1970 tem sido constantemente


revista e analisada. Os acervos dos artistas desta época se tornaram uma
grande fonte de pesquisa sobre esta produção e sobre como o campo das
artes se articulava dentro deste contexto histórico em que a mesma ganha
um campo expandido de possibilidades.
Muitas das pesquisas efetuadas atualmente não conseguem abarcar a
totalidade da produção desses artistas. Isto é agravado se o artista estiver
vivo e produzindo constantemente.

Teoria e contexto
A maioria destes acervos se encontra nas mãos dos próprios produtores,
longe de exibições públicas, fora das instituições de artes (museus,
galerias, centros culturais), e muitas vezes sem organização, catalogação e
conservação adequada. Seu manuseio se dá através de sua reorganização
solitária, ou pela possibilidade de alguns trabalhos serem expostos ou
estudados. Dessa forma, os artistas procuram preservar sua própria

Ciência & Conservação


memória num espaço muitas vezes em construção. Como bem assinala
Cristina Freire, em relação aos arquivos de artistas:
É interessante notar como nesses acervos particulares
arte e vida se mesclam mais uma vez. À parte de
qualquer categorização abstrata, o material se entrelaça e
é reconstruído pelas elaborações da memória daqueles
que o mantêm. Nessa medida, esses arquivos têm como
estrutura um sistema de memória que escapa aos interesses
do circuito de arte tradicional e da narrativa oficial e
hegemônica. Tudo aí tem um lugar e valor correspondente.
(FREIRE, 2006, p.170)

O objetivo do presente artigo é destacar o acervo de dois artistas, quais


sejam, Ivald Granato e Regina Vater, que possuem significativa produção
realizada nas décadas de 1960 e 1970, e que ainda não se encontra
institucionalizada.

Por causa da minha dissertação de mestrado, pude ter acesso ao acervo


de Ivald Granato, que organizou um evento em São Paulo, no ano de
1978, chamado Mitos Vadios que foi meu objeto de estudo. A importância
deste evento se dá pela crítica as grandes instituições de arte, em especial
a Fundação Bienal de São Paulo, que realizava a primeira Bienal Latino
Americana. Contou com a participação de vários artistas brasileiros e
da América Latina, como por exemplo, Hélio Oiticica, Ligia Pape, Artur
Barrio, Alfredo Portilhos, entre outros, apresentando trabalhos efêmeros
e performances. 326
No primeiro encontro, realizado em 2006, seu arquivo ainda se apresentava
sem uma organização sistemática, e o artista mostrou o que achava mais
pertinente dentro de sua produção artística até aquele momento. Além
de seus trabalhos, em sua casa/ateliê estão expostas e guardadas obras
de outros artistas, como Joseph Beuys, por exemplo, adquiridas em suas
reuniões, ganhadas ou até mesmo compradas.
Entretanto, no segundo encontro, em 2008, Granato já apresenta seu
arquivo bem mais organizado, contando com a ajuda de uma assistente, que
compilou todos os documentos e imagens separadas em pastas referentes
à década na qual foram elaborados e apresentados. Porém, um trabalho

Teoria e contexto
efetivo de catalogação e de conservação dos mesmos nunca havia sido
feito até aquele momento . A preocupação do artista em organizar seus
próprios fragmentos de memória construindo, assim, sua própria história,
está presente a todo o momento em que se tem contato com ele. Um
exemplo dessa vontade ficou evidente quando ele mostrou seu primeiro
livro intitulado “Ivald Granato: art performance”, lançado em 1979, que

Ciência & Conservação


traz uma compilação de textos de alguns críticos, e várias imagens de
performances desenvolvidas nesta década.

Focando no evento Mitos Vadios, e analisando a organização desses


documentos, temos como exemplo as fotografias realizadas por Lóris
Machado, cunhada de Granato. Estas já apresentavam os efeitos do tempo,
ou seja, uma coloração amarelada, e estavam dispostas em três pequenos
cartazes, um pouco maior que a medida de uma folha A3 (29 cm x 42 cm)
– infelizmente, uma delas se encontra rasgada –, em que o artista faz um
painel com as provas das fotografias.

327
Imagem do painel de fotografias organizado por Ivald Granato.
Arquivo pessoal Ivald Granato.
Reprodução Fotográfica: Arethusa Almeida de Paula, 2008
Já os recortes de jornais que noticiaram o acontecimento estão dispostos
em papelões de 56 cm x 40 cm, fixados com cola comum, formando uma
espécie de pasta. Alguns não apresentam data, nome do jornal do qual
foram retirados ou até mesmo o nome do jornalista que escreveu sobre

Teoria e contexto
o evento. Os jornais que se destacam são: Folha de São Paulo, Jornal da
Tarde, Tribuna da Imprensa, Gazeta de Pinheiros, Diário de São Paulo e
as notícias foram compiladas, de acordo com o artista, pela sua secretária
na época.

Ciência & Conservação


Imagem da organização dos recortes de jornais sobre o evento Mitos Vadios localizados
na residência do artista Ivald Granato.
Reprodução Fotográfica: Arethusa Almeida de Paula, 2006.

O artista, na época da entrevista, mostrou que tem uma preocupação nítida


com o que está guardado ali, deixando-o até mesmo um pouco resistente
em abrir esse universo para pesquisa. Dessa forma, podemos notar que
Granato é o detentor daquela memória, levando-a a público no momento
em que ele considera mais adequado.

Não pretendo fazer uma crítica ao artista por essa decisão, mas é
bom refletirmos diante dessa atitude, visto que ali estão guardados 328
documentos importantes para a Historiografia da Arte brasileira, e cabe
aos pesquisadores entrar em contato com este acervo, e não só ao artista
tomar as rédeas de sua divulgação.
Regina Vater é uma artista multimídia. Vídeo, performances, instalações,
poesia visual, livros de artista, arte digital, desenho e pintura são algumas
das linguagens experimentadas por ela. Suas bases artísticas encontram-se
arraigadas nas experiências propostas pelos artistas brasileiros da década

Teoria e contexto
de 1960. Foi amiga de Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-
1988), com quem estreitou laços quando morou no exterior pela primeira
vez, e os considera como grande influência para o desenvolvimento de
sua poética.

Em relação ao seu acervo, este se encontra na cidade de Austin nos Estados

Ciência & Conservação


Unidos. Não tive contato físico com o espaço, porém este me foi aberto
para pesquisa através de contatos por e-mail realizados com a artista, em
decorrência do projeto de doutoramento.

São mais de 150 (cento e cinqüenta) e-mails em que a artista envia imagens
de seus trabalhos desde a década de 1960. Nestas mensagens, pode-se
ter uma idéia de sua produção e dos documentos que acompanham as
mesmas, visto que Regina Vater escreve sobre o que produz. Também,
são enviadas imagens de catálogos raros, como o da Exposição Artistas
Brasileiros na Bienal de Paris, em 1967, mostra realizada por advento da
convocação de artistas brasileiros para a Bienalle de Jeunes na França e
que foi censurada pela Ditadura Militar instaurada em 1964.

329

Catálogo da Exposição “Artistas Brasileiros na Bienal de Paris, 1967.


Acervo pessoal da Artista.
Diferente de Ivald Granato, Regina Vater se mostra bastante generosa ao
abrir seu acervo e conceder as imagens para pesquisa. Por viver nos EUA
desde a década 1980, acaba por produzir e expor neste país, se afastando do
meio artístico brasileiro. Dessa forma, com o crescente interesse pelos

Teoria e contexto
artistas brasileiros dos anos 1960/70, e por sua produção, a artista volta ao
cenário brasileiro em exposições e trabalhos científicos. Se seus trabalhos
ganham a necessidade de um estudo, é porque a artista possui uma obra
que dialoga com o tempo passado e atual da arte brasileira e internacional.
O que o acervo destes dois artistas tem em comum? A tentativa de uma
organização pessoal de sua própria memória. São diversos documentos

Ciência & Conservação


que versam sobre a história da arte brasileira numa determinada época
e que não podem ser deixados sem uma pesquisa efetiva. E sem uma
organização, uma catalogação e também uma conservação, esta história
pode ser perdida a qualquer momento. Deve-se pensar esses acervos com
a importância dada aos documentos históricos, ou seja, deve-se pensar
os escritos e objetos encontrados nesses lugares de acordo com todo
o contexto social, político, econômico e cultural do momento em que
foram criados. É necessário que se busque depoimentos não só do artista,
mas de quem trabalhou com ele e de quem analisou sua produção. Como
bem explícita Jacques Le Goff: “O documento, o dado, já não existem
por si próprios, mas em relação com a série que os precede e os segue,
é o seu valor relativo que se torna objectivo e não sua relação com uma
inapreensível substância real” (1982, p.99). Assim caracterizados, os
acervos de artistas passam do âmbito particular para uma esfera pública,
gerando conhecimento. Não que este deva ser institucionalizado ou
transformado num espetáculo ditando valores de exibição e novidade, e
sim, que se possa saber o que existe dentro desses espaços atribuindo-
lhes um potencial gerador de conhecimento histórico e científico. Ainda
citando Le Goff:
A intervenção do historiador que escolhe o documento,
extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o
a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que,
pelo menos em parte, depende da sua própria posição
na sociedade da sua época e da sua organização mental
insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra”
do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É 330
antes de mais o resultado de uma montagem, consciente
ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o
produziram, mas também das épocas sucessivas durante
as quais continuou a viver, talvez esquecido durante as
quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais
continuou a ser manipulado, ainda que pelo o silêncio.
O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho,
o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz
devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-
lhe o seu significado aparente. (LE GOFF, 1982, p.103)

Teoria e contexto
Visto que os artistas atualmente possuem a liberdade de caminharem por
todos os períodos da História da Arte e também de utilizarem qualquer
material disponibilizado pela indústria e tecnologia, a necessidade de se
acompanhar mais de perto esta produção artística se torna de extrema
importância.

Ciência & Conservação


E mesmo que não se possa dar valor artístico e crítico imediato ao que é
produzido dentro dos ateliês, é importante pensarmos que este material
deve ter um aparato técnico de conservação para que não se perca, pois
são objetos que traduzem as forças plásticas de uma determinada época.

A solução para a preservação dessa memória seria a junção de forças entre


artistas, historiadores, críticos de arte, pesquisadores e cientistas da área de
conservação.

Sabe-se que a interdisciplinaridade entre os campos que tem como foco


a pesquisa em arte recentemente tem buscado um trabalho em conjunto,
visto que um necessita dos dados do outro. Quando se trata de objetos e
documentos de Arte Moderna e Contemporânea, estes dados de pesquisa
podem ser ainda mais conflitantes, especialmente quando se tem um
grande volume de produção e precariedade de materiais. De acordo com
Giacomo Chiari e Marco Leona:
Art historians, archeologists, museum curators,
conservators, and architects generally recognize that
understanding the material aspect of an object is necessary
to comprehend it and its original context fully. Art is
often solely understood as an inspired act of creation by
an individual artist. While the artist’s concept is certainly
a component of the art objetct, the technique and the
materials used are equally important. On the purely
aesthetic side, they ultimately determine the final visual
effect, and they have been chosen and manipulated by 331
the artist with this in mind. On a broader scale, materials,
and techniques are an expression of the society in which
the artist lived, and they reflect the role of the artist as a
techinologist. When the hidden technological information
(the availability and choices of materials, studio practices,
etc.) is revealed, a window is opened onto the economics of
the period in wich the object was created. The conservation
scientis – by focusing
on the material aspects of the work ad by illuminating the
link between the hand and the society that created it – plays
a major role in this effort to contextualize the artwork.
(CHIARI; LEONA, 2005,p.7)

Teoria e contexto
Portanto, os esforços para um trabalho em conjunto se tornam necessários,
pois a organização e conservação desses documentos e obras de arte dão
o suporte para uma contextualização histórica e para a análise estética dos
mesmos.

Ciência & Conservação


Ao elevarmos os acervos de artistas à condição de documentos, damos
aos mesmos o patamar de objetos de pesquisa científica. Dessa forma,
longe de entrar nas discussões referentes aos campos teóricos e científicos
da área de pesquisa em Artes, reforço a necessidade, não só do estudo,
mas também, da preservação da memória escondida nesses espaços
que são testemunhos de parte da história e da identidade de um povo,
independentemente da época de sua produção.

__________

Referências

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BURKE, Peter. (org). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
CHIARI, Giacomo; LEONA, Marco. The state of conservation science. In: The Getty Conservation
Institute Newsletter. Los Angeles: The Getty Conservation Institute. vol. 20. nº 2, 2005.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
Odysseus Editora, 2006.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997.
FIDELIS, Gaudêncio. Arte contemporânea e instituições: a problemática envolvida na circulação
do objeto artístico. Disponível em: <http://iberecamargo.uol.com.br/content/revista_nova/artigo_
integra.asp?id=27> Acesso em: 2006.
FREIRE, Cristina. Paulo Brusky: arte, arquivo e utopia. São Paulo: Companhias Editoras de
Pernambuco, 2006. p.170.
332
GONÇALVES, Yacy-Ara. Os domínios da memória: um estudo sobre a construção do pensamento
preservacionista nos campi da Museologia, Arqueologia e Ciência da Conservação. Tese de Doutorado.
Universidade de São Paulo, 2001.
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Memória/História. Portugal: Nacional Casa da
Moeda, 1982. p. 99.

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