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1Um Breve Panorama da Evolução da Tecnologia Musical: Promessas e Riscos

para a Diversidade de Expressões Culturais

Paulo Assis

A música sempre acompanhou a humanidade. Em sítios arqueológicos datados da era


paleolítica, com mais de 40 mil anos, podem ser encontradas rudimentares formas de flauta. A
música está entre as primeiras expressões culturais do homem, surgindo desde antes da
agricultura ou da escrita. Ela aparece em todas as sociedades do planeta em diferentes
formatos e funções sociais, para acompanhar um ritual religioso ou simplesmente para
quebrar o silêncio de um trabalhador solitário.

Recordaremos de forma bastante simplificada algumas das tecnologias de gravação


desenvolvidas nos últimos 120 anos e como elas participaram na criação de novas formas
musicais. Veremos também como os avanços mais recentes modificam as possibilidades
criativas, e como a massificação da música pela indústria afeta a diversidade.

Até pouco tempo atrás, a audição de música exigia a performance presencial de


instrumentistas. Percussionistas acompanhavam exércitos marchando pelo império romano e,
nos campos de algodão do sul dos Estados Unidos, trabalhadores braçais se alternavam em
cantos de sofrimento escravo. Ao longo da história, guerras de expansão, rotas comerciais e
imposições religiosas abriram caminhos para trocas culturais de todo tipo, inclusive musicais.

Alguns equipamentos autômatos como pianolas e caixas de música aparecem na história, mas
sem substituir de fato o musicista como elemento central – um profissional contratado para
animar um jantar na corte ou uma dona de casa com seu canto solitário. A maneira com a qual
a humanidade convive com a música começa a mudar a partir da criação do rádio e do disco,
que possibilitam a distribuição e a audição de sons pré-gravados.

I – O Som Analógico

A – O cilindro de cera, a goma-laca e o rádio

No final do século XIX são desenvolvidas algumas tecnologias rudimentares de registro de


áudio. Um dos mais populares aparelhos dessa época foi o fonógrafo de Tomas Edison, de
1877. O aparelho possuía um cone acústico com uma agulha na ponta, que riscava um cilindro
de cera em movimento. A reprodução do som se fazia igualmente de forma mecânica, com a
agulha vibrando nos sulcos do material e sendo amplificada pelo cone acústico. Outras
tecnologias similares aparecem no mesmo período, como os discos de goma-laca dos
gramofones.

Surge todo um comércio de cilindros e discos. A qualidade de reprodução desses primeiros


modelos é bastante limitada, e a utilização recomendada inicialmente é para o registro de
monólogos e discursos famosos. A gravação nesses dispositivos era delicada, exigindo uma
performance próxima ao cone de captação de som, muitas vezes com resultados questionáveis
– as empresas comercializavam seus cilindros propagandeando a qualidade das gravações,
destacando a dicção de seus artistas como diferencial (Cummings 2013: 16).

Logo, canções também se fazem presentes nessa mídia, não sem grandes dificuldades
técnicas. O cone acústico era pouco sensível e capaz de captar apenas os sons mais altos. Para
equilibrar o volume dos diferentes instrumentos era necessário, durante a gravação, distanciá-
los em função de sua potência sonora. Para alterar em tempo real a importância dos
instrumentos ao longo do registro, os músicos chegavam a ser colocados em plataformas
móveis, sendo arrastados enquanto tocavam – na hora do solo de trompete, o cantor sai da
frente e dá lugar ao sopro, em uma complicada coreografia. A gravação em cera era definitiva
e sem correções possíveis (Byrne 2012: 81).

Além da simples reprodução, inicialmente alguns aparelhos vendidos ao público tinham a


capacidade de riscar os cilindros, podendo ser usados também como gravadores. Porém os
fabricantes logo perceberam que seria muito mais lucrativo que o usuário ouvisse o que
comprasse deles, e rapidamente o foco das propagandas passou a ser consumir música ao
invés de gravar seus próprios cilindros (Byrne 2012: 84).

No começo do século seguinte, uma nova geração de inventos, baseada na disponibilidade de


eletricidade, mudou novamente o cenário do acesso à música. O desenvolvimento da
tecnologia de microfones e o conhecimento de ondas eletromagnéticas tornou possível a
popularização, na década de 1920, do rádio como sistema de distribuição de notícias e
músicas. Ele podia ser ouvido por quem tivesse um aparelho receptor em sua casa, porém
ainda era baseado na performance de instrumentistas em tempo real, dentro do estúdio da
emissora. A qualidade de som de uma transmissão ao vivo era, na época, muito superior à
atingida com os equipamentos de gravação em cera e goma-laca, criando toda uma geração de
músicos de rádio.

B – A fita magnética, o vinil e a indústria musical

Entre as tecnologias desenvolvidas pelos alemães durante a segunda guerra mundial está a
gravação de áudio em fita magnética. Embora nos Estados Unidos já houvesse experimentos
nesse sentido, os nazistas haviam desenvolvido equipamentos tão bons que deixavam em
dúvida se as transmissões de rádio eram realmente gravações ou orquestras tocando ao vivo
(Moormann 2003). Ao final da guerra, a tecnologia foi estudada pelos americanos e
comercializada, sendo o primeiro gravador de rolo de fita magnética lançado em 1948. As
emissoras de rádio logo começam a utilizar esse equipamento, ampliando suas possibilidades
de transmissão; não era mais necessária a presença constante de músicos ao vivo, e surgia o
estúdio de gravação.

Ainda em 1948 é lançado o disco de vinil. Imediatamente ele é adotado pelo mercado como a
mídia de reprodução caseira para as gravações de estúdio. Existiram inúmeras variações do
disco de vinil, entre tamanhos e velocidades, que foram se alternando conforme a tecnologia –
e os interesses comerciais – evoluíam. Os primeiros discos eram ainda na versão de sete
polegadas e deveriam ser tocados em 78 rotações por minuto, o que fornecia menos de quatro
minutos por lado, induzindo a venda no formato de singles compactos, com uma música de
cada lado e dentro dessa margem de duração (Byrne 2012: 92). Além disso, os sulcos do vinil
impunham algumas restrições sérias de volume das frequências mais graves, pois elas
causavam saltos da agulha caso estivessem muito fortes. O formato e o som de música pop e
rock que conhecemos foram fortemente influenciados por essas limitações.

As pessoas logo se habituam à ideia de adquirir e ouvir músicas em discos, e passam a comprar
vorazmente esse novo produto. O processo de gravação e distribuição, porém, fica na mão de
um novo tipo de empresa que, estruturando a indústria musical, controlou o ciclo de fabrico e
consumo durante a segunda metade do século XX – as gravadoras.

C – Os estúdios e sua tecnologia


Os estúdios de gravação eram importantes instrumentos de produção dessa nova indústria.
Eles eram compostos de ambientes acusticamente tratados onde, num processo complexo e
custoso, especialistas posicionavam microfones na frente dos músicos. O áudio captado
alimentava diversos equipamentos, como pré-amplificadores, compressores, equalizadores,
mesas de som e gravadores. Durante aproximadamente quatro décadas, para se gravar
profissionalmente uma música era necessário utilizar um desses espaços, desembolsando uma
grande quantidade de dinheiro. Além disso, todo esse procedimento era cercado de segredos.
Cada estúdio tinha métodos e aparelhos únicos, criando sonoridades com personalidade
própria. Com as limitações dos recursos técnicos e a engenhosidade dos produtores, foram
inventados artifícios para resolver problemas que apareciam em cada projeto, muitas vezes
alterando os horizontes de possibilidades da música gravada e instigando os outros produtores
a buscarem soluções ainda melhores (Heylin 2012: 32).

Em 1957, o guitarrista norte americano Les Paul modificou um gravador magnético para criar
os primeiros registros com múltiplas camadas, tornando possível somar novos instrumentos a
um mesmo rolo de fita, tocando um de cada vez. Como havia apenas uma pista de gravação,
um erro em uma gravação estragava o trabalho anterior e obrigava o reinício de todo o
processo (Moormann 2003).
O aprimoramento dessa tecnologia é o gravador multipista. Nele, áreas diferentes da fita
magnética são dedicadas a pistas independentes, podendo ser gravadas ou apagadas sem
alteração das outras. Hoje, pelo computador, um estúdio consegue gravar centenas de pistas
independentes, mas essa evolução foi bem lenta. Todos os discos do início da carreira dos
Beatles até Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, de 1967, foram gravados utilizando apenas
quatro pistas em uma fita magnética (Lewisohn 1988: 146). Quando era necessário inserir mais
instrumentos, duas ou três pistas eram unidas em uma, liberando mais espaço porém
impedindo futuras alterações entre as gravações anteriores. Na década seguinte o padrão
avançou para oito, dezesseis e até vinte e quatro pistas.

Outro equipamento essencial é a mesa de som, responsável por organizar as pistas de áudio
na sessão de gravação. As mesas cresceram juntamente com a quantidade de pistas
disponíveis nos gravadores. Existem modelos com centenas de canais com uma dezena de
botões de controle para cada um, em um equipamento intimidador para leigos, que pode ter
mais de três metros de comprimento. A cada canal da mesa é atribuída uma pista da fita
magnética, com controles independentes. É possível, assim, a manipulação do som de cada
canal antes e após a captação, permitindo a regulagem de volume e ajustes de processos de
áudio como equalização, reverberação ou compressão. Essa manipulação é parte da mixagem.

Na mixagem são feitos esses ajustes em cada canal, para que os instrumentos gravados
separadamente soem coesos quando tocados juntos. Os sons são mesclados normalmente
para o estéreo, com dois canais – um esquerdo e um direito. Ele é o formato habitual em CDs,
discos de vinil e arquivos digitais de música.

Um estúdio não se resume a tratamento acústico, gravador e mesa de som. Cada


processamento de áudio é realizado em um equipamento específico, que pode ter o tamanho
de um controle remoto ou de uma geladeira. Os estúdios de gravação se diferenciavam pelos
equipamentos que tinham; possuir muitos equalizadores ou compressores significava possuir
mais possibilidades na mixagem – e também mais custo. Isso acabava por restringir o acesso a
essas ferramentas de produção mais completas apenas a quem tinha acesso a esse recurso. Só
podiam realizar os maiores projetos musicais os que já controlavam o mercado.
II – O Som Comercial

Desde o início, as gravadoras criaram um sistema bastante fechado para seu negócio.
Compositores eram pagos para escrever novas peças musicais. Essas criações eram registradas
em um estúdio próprio, por um artista contratado por ela, e que, popularizado graças ao rádio,
tinha suas vendas catapultadas e gerava lucros enormes para seu empregador. Frank Sinatra
foi o primeiro a possuir algum controle sobre sua carreira, conseguindo impor suas vontades
nas gravações e não sendo apenas um funcionário muito famoso (Gibney 2015). Nas décadas
seguintes, começa a surgir a figura do cantor-compositor e das bandas de rock com material
próprio.

Porém, o processo todo era realmente muito custoso e de risco. Além da gravação em si, havia
a necessidade de gastos com divulgação, fabricação de discos, distribuição e absorção das
perdas em projetos não bem-sucedidos. O sucesso estrondoso de alguns artistas acabava
gerando capital para investimento em outros projetos, permitindo o desenvolvimento de
novos talentos. Muitos grandes grupos dos anos 1970, como Queen ou Yes, tiveram anos de
carreira financiada por uma gravadora ou um produtor até conseguirem alcançar o sucesso e
se tornarem lucrativos. Os artistas independentes sempre existiram, mas seu circuito de
influência sempre foi naturalmente menor. Para conseguir que sua música cruzasse o planeta e
influenciasse outras culturas, era praticamente necessário participar desse circuito fechado de
contrato, gravação, divulgação e vendas massivas. Ao menos até que a tecnologia permitisse
que as bandas dispensassem esse esquema todo, já na era punk, com a utilização de
gravadores de fita cassete e muito poucos recursos de estúdio.

No começo da indústria musical os lançamentos dos artistas eram feitos em singles


compactos, contendo normalmente duas canções, uma de cada lado. Carreiras importantes
como a de Elvis Presley foram baseadas em vendas nesse formato. O disco de doze polegadas,
lançado pouco depois, era utilizado inicialmente para coletâneas e música de nichos de menor
vendagem, como a erudita. Ao longo da década de 1960, artistas como os Beach Boys e os
Beatles começam a utilizar o formato maior como meio de se expressarem através de um
conjunto coeso de músicas, em discos ditos conceituais (Heylin 2012: 8). A partir deles, o po p e
rock passa a utilizar o álbum como principal produto de sua indústria, com uma motivação
bem menos artística: um “Long Play” era vendido ao consumidor final por cinco vezes o preço
de um single.

Com esse poder econômico em ascensão, as gravadoras norte -americanas e europeias


expandem seu alcance para todo o mundo capitalista, e entre as décadas de 1950 e 1990 há
uma crescente unificação de vendas, com os produtos mais rentáveis de cada local sendo
comercializados globalmente, e filiais de grandes gravadoras nos principais mercados. As
trocas culturais, que naturalmente sempre existiram, são intensificadas e direcionadas por
essa nova força que é a música gravada. As sonoridades estrangeiras começam a influenciar
fortemente algumas musicalidades locais, que as absorvem e geram uma nova linguagem.

Em um primeiro momento, a música norte-americana (e inglesa) é distribuída ao mundo como


produto de consumo e ferramenta de domínio cultural. O rock’n’roll, por exemplo, começa a
ser ouvido no Brasil, tendo como um dos resultados o movimento tropicalista, que se apropria
de elementos estrangeiros da música “pop” em uma leitura abrasileirada. Esse mesmo
movimento, em seguida, vai somar-se à categoria de “World Music” – ou seja, tudo que não é
originário dos mesmos países das gravadoras. A “World Music” por sua vez acaba por moldar a
sonoridade de alguns artistas norte-americanos e ingleses nos anos 1980 e 1990, com ritmos
latino-americanos e africanos. Gilberto Gil vai tocar guitarra com os Mutantes, e duas décadas
depois David Byrne é acompanhado por uma orquestra de músicos latinos (Byrne 2012: 59).

A música erudita também foi utilizada como ferramenta de imposição cultural. Peças
europeias de compositores de séculos anteriores são resgatadas e difundidas, solidificando
todo um vocabulário coletivo de obras clássicas – o que se considera musicalmente importante
foi popularizado essencialmente com o rádio, o disco, o cinema e a televisão, e não em sua
época de criação.

Uma partitura musical era, até surgir o disco, uma informação a ser transmutada pelo músico
com sua interpretação. Ela passa a ser acompanhada da memória das gravações mais famosas,
se impondo nas performances posteriores. As leituras de Glenn Gould para Bach, por exemplo,
exercem forte influência para os pianistas que executam esse repertório. O registro do áudio
acaba sendo tão importante para a memória coletiva dessas obras quanto a própria
composição. A sonoridade de alguns instrumentos também mudou: o vibrato, técnica que
consiste em tremer o dedo nas cordas para obter uma variação suave na frequência tocada,
era considerada apenas um truque brega para disfarçar inconsistências nas notas alcançadas.
Temendo o registro eterno de seus erros, os músicos passaram a realizar mais e mais vibratos,
e hoje é impensável a interpretação da música erudita sem esse recurso, nos parecendo um
som chapado, sem vida (Katz 2005: 85).

Métodos de composição são também criados com as tecnologias novas. A música


eletroacústica, por exemplo, surge exatamente do uso de equipamentos como rolos de
gravação e efeitos com instrumentos convencionais.

III – O Som Digital

O mundo capitalista está consumindo uma mescla de sucessos globais e locais desde os anos
1950. No final dos anos 1970, porém, uma queda na venda de discos de vinil faz a indústria se
preocupar e se reinventar. Um dos principais fatores que salvou as gravadoras nesse momento
foi uma outra inovação tecnológica.

Até 1982, o armazenamento e a reprodução de sons eram feitos essencialmente de forma


analógica, imprimindo fisicamente o áudio por meios eletromagnéticos e mecânicos. Nesse
ano, uma nova tecnologia troca esse método por informação representada numericamente: o
CD. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o formato digital amplia ainda mais o mercado e
multiplica seus ganhos, graças a custos de reprodução descrescentes e um mercado aquecido
para o consumo de música pop. Além de aceitar pagar mais que o dobro pelo novo tipo de
mídia, o ouvinte ainda acaba readquirindo seus álbuns preferidos em versão de disco digital
(Hanks 2015).

Pouco antes do lançamento do CD, a gravação e a manipulação do áudio também ainda eram
essencialmente analógicas: rolos de fita magnética, válvulas e transistores. Desde o final dos
anos 1970, porém, equipamentos digitais vão cada vez mais ganhando espaço nos estúdios:
processadores, mesas e gravadores começam a ser convertidos para a nova tecnologia.

Em um estúdio analógico, o microfone converte o som captado em uma onda elétrica


percorrendo os fios e equipamentos. Ela é alterada e manipulada pela mesa de som,
processadores e finalmente registrada em um rolo de fita magnética. No mundo digital, o som
é representado por uma sequência de números que descreve o comportamento da onda
sonora. Os processamentos de áudio são realizados a partir de algoritmos que realizam
operações matemáticas para modificar o som.

Os efeitos digitais surgem juntamente com os primeiros sintetizadores do mesmo tipo. São
unidades de samplers, compressores, delays, que passam a ser usados nos estúdios como
novidades tecnológicas. Salas utilizadas apenas para produzir reverberação em gravações
podem ser trocadas por um pequeno dispositivo que simula essa sonoridade. No lugar de
frágeis válvulas e circuitos para alterar a equalização de um canal, utiliza-se um chip
programado para tal função. Com o avanço desses aparelhos, os estúdios vão, lentamente, se
homogeneizando e perdendo sua capacidade de se diferenciar pelos equipamentos que
possuem.

Os computadores, cada vez mais potentes, começam a participar do processo de gravação. Em


1982, um recém-lançado IBM PC-XT tinha capacidade de realizar aproximadamente 20
operações matemáticas por segundo. Trinta anos depois, um processador pessoal moderno
opera mais de mil vezes mais rápido. Essa velocidade permite a utilização de complexos
algoritmos que cada vez mais aproximam os efeitos digitais dos analógicos, com cópias
eletrônicas de famosos equipamentos clássicos, anteriormente acessíveis apenas aos grandes
estúdios. Enquanto um equipamento físico tem seu uso limitado a determinados canais, sua
recriação digital pode ser utilizada indefinidas vezes simultaneamente, por uma fração do
custo do original e sem gerar manutenção em válvulas raras ou transistores superaquecidos.
Até os chiados e ruídos típicos podem ser transpostos para o computador, e sendo desligados
à vontade, algo impossível no original.

As tecnologias de suporte no estúdio foram adaptadas. A mesa de som, peça central de uma
configuração analógica, era um item extremamente caro e complexo, onde todos os canais
passavam e eram manipulados por botões e controles, gerenciando eletricamente os sons
provenientes de ou direcionados para a fita magnética. No estúdio digital o computador é a
principal ferramenta, e a mesa se transforma em apenas um controlador, onde os botões
apenas enviam instruções para ele. Ela pode reduzir de tamanho e até ser considerada
obsoleta, sendo substituída por um mouse e atalhos de teclado.

O que era equipamento quase inacessível vai se tornando viável para músicos, inclusive
amadores. As mesas de som, os rolos de fita magnética e os efeitos foram parar dentro do
computador. Os microfones foram barateados. Hoje o grande estúdio se tornou dispensável
em várias situações, e é possível gravar músicas inteiras apenas com um notebook.

Além disso, a manipulação de áudio digital é extremamente simples. Para se juntar duas
gravações em fita magnética, era necessário encontrar os trechos da fita que se desejava unir
e, fisicamente, cortar e colar os pedaços. Em um programa de computador, basta clicar e
arrastar o áudio digital e eles se unem sem a destruição de um original. Além disso, não há
degradação física do material gravado, o que ocorre a cada vez que se utiliza uma fita
magnética ou um disco de vinil. Inversões, sincronizações, tudo se faz de maneira
extremamente mais rápida do que com os métodos antigos.

Os programas de computador voltados à criação, gravação, edição e mixagem de música ficam


mais e mais capazes de substituir os equipamentos físicos, e hoje em dia a maioria dos
estúdios são pensados com o computador como ferramenta principal.

A mesma nostalgia que tem feito os consumidores voltarem a comprar discos de vinil em
pleno século XXI também cria situações onde equipamentos construídos antes da segunda
guerra mundial tenham uma sobrevida dentro dos estúdios mais tradicionais. E há
controvérsia, ainda, a respeito das limitações de cada tipo de tecnologia. Assim, grande parte
das gravações em estúdios, hoje, é feita digitalmente, mesmo que utilizando equipamento
analógico em alguma fase do processo (Grohl 2013). Apenas algumas experimentações
artísticas conseguem levar a cabo um projeto analógico do começo ao fim. Outros mais
ousados testam inclusive cilindros de cera em plena era digital (Negovan 2011).

IV – O Som Virtual

A popularização da internet nos anos 1990 trouxe o desenvolvimento de várias tecnologias.


Além de toda a interface de comunicação – servidores, modems, redes -, foram criados
métodos para transmitir informação pela internet de forma otimizada. O JPG e o GIF, formatos
de arquivos de imagem comprimidos, ganham popularidade. E logo surgem soluções para a
transferência de áudio.

O mp3 é um algoritmo que muda drasticamente o tamanho dos arquivos de áudio, reduzindo -
os para até 8% do original. Muita dessa diminuição é resultado apenas da forma inteligente de
descrever o conteúdo do arquivo, mas dependendo da parametragem utilizada ele gera
arquivos com muita perda de qualidade de áudio. Em 1995, quando esse formato começou a
circular, essa perda era, entretanto, muito menos importante para os ouvintes do que a
capacidade de trocar músicas online (Witt 2015: 16).

Poucos anos depois de surgir, a internet se transformou no pesadelo das gravadoras e artistas
que associaram as quedas de venda dos CDs com o começo da pirataria digital, não totalmente
sem razão. De qualquer maneira, o poder das gravadoras começava a declinar por outros
motivos.

Além da pirataria, a internet permitia, pela primeira vez, que informações pudessem ser
trocadas entre consumidores de diferentes partes do mundo, sem um intermediário filtrando
esse conteúdo. Um músico polonês pode mostrar seu trabalho diretamente para um ouvinte
no interior da Bolívia. E, em uma inédita via de duas mãos, o consumidor pode falar com seu
artista sem se deslocar até ele. Com a evolução de sites, blogs e páginas em redes sociais, o
contato entre o músico e o seu mercado consumidor se viu completamente alterado.

Os canais de distribuição de sua obra também. Para o álbum de nosso hipotético polonês
chegar a seu fã na Bolívia, antes se fazia necessário reproduzir fisicamente o disco em algum
lugar do mundo, transportá-lo até o país de destino e colocá-lo à venda em uma loja. Além
disso, o consumidor teria que ser informado, por rádio ou por cartazes, que aquele disco
poderia interessá-lo e que estava disponível para compra em sua cidade. Finalmente, nosso
boliviano poderia ouvir o disco, adquirindo-o e bancando os custos desse processo todo.

Tudo isso se torna obsoleto quando o artista pode avisar seu público diretamente por e -mail
que um novo conjunto de canções está disponível online. Mas demorou mais de uma década e
muitos processos legais para a indústria começar a se reinventar e passar a comercializar, além
da obsoleta mídia física, os arquivos eletrônicos por download e, mais recentemente, o acesso
por assinatura a inúmeras músicas via streaming.

V – O Som Atual

A informática é essencial na atualização das tecnologias de estúdio e na distribuição e


divulgação de música. A evolução do estúdio também gera novas ferramentas e facilitadores
de criação.
Para um compositor solitário, muitas vezes trabalhar em uma peça com apenas um
instrumento musical não é suficiente. O computador pode ser bastante útil no auxílio à
composição, fornecendo suporte. Existem hoje tecnologias capazes de fornecer
acompanhamento rítmico e harmônico em tempo real, praticamente músicos virtuais. Estão
disponíveis instrumentos como baixos, baterias e teclados. Muito além de fornecer timbres,
esses programas de fato adicionam fatores à composição, colaborando com o arranjo de forma
semiautomática. Assim, o computador, a partir de bancos de som prontos, abre espaços
sonoros para as criações do compositor.

Importante perceber, porém, que essa liberdade é limitada pelo conteúdo do equipamento
utilizado. Da mesma maneira que um piano só consegue tocar a escala ocidental de doze notas
por oitava, um baterista virtual apenas pode executar o que foi pré-programado, ficando
dentro dos limites de quem o criou. Ferramentas analógicas permitem uma customização,
mesmo que limitada – é possível utilizar um piano como instrumento percussivo ou convertê -
lo em uma unidade de reverberação microfonando suas cordas soltas, por exemplo. Porém é
bem mais complexo alterar um software para executar algo não previsto inicialmente. Um
programa que sugere harmonias a partir de melodias do usuário não consegue sair dos
padrões de fábrica.
As tecnologias novas também podem ser fontes importantes de inovação artística, além de
funcionar apenas como suporte. Ainda na década de 1970, o músico e produtor Brian Eno
enxergou um uso inusitado para o gravador de rolo de fita magnética, utilizando-o como
instrumento musical em experimentos sonoros pioneiros, desenvolvendo as chamadas
músicas ambiente e generativa – onde a interação de um músico ou uma gravação com um
algoritmo analógico construído com o gravador gerava consequências sonoras indiretas,
inusitadas mesmo que teoricamente previsíveis (Scoates 2013: 110).

Novas interfaces também criaram outras possibilidades de interação: tablets como o iPad
permitem uma série de aplicativos diferentes voltados à criação facilitada de música, de uma
maneira totalmente inédita e independente da lógica original dos estúdios. Apresentados
quase como entretenimento, eles conseguem sugerir acordes, acompanhar musicalmente o
usuário e criar composições inteiras com alguns poucos toques na tela, além de utilizar de
câmeras e giroscópios como geradores de sons. Mais de três décadas depois de fazer um
gravador distorcer a execução de um quarteto de cordas, Brian Eno lançou uma série de
aplicativos de iPhone e iPad que geram harmonias, melodias e ritmos a partir do toque na tela
do usuário e dos movimentos do aparelho.

Algumas mentes criativas utilizam o computador como ferramenta de invenção de novas


interfaces musicais. Existem hoje plataformas de desenvolvimento abertas como o Max e o
Arduino, que permitem a criação de inéditos efeitos, instrumentos e sonoridades. Neles é
possível, por exemplo, utilizar um sensor de umidade e algum banco de dados online para
controlar parâmetros de um sintetizador virtual. A limitação passa finalmente das mãos do
criador do software para as do compositor – e também para o ouvinte, graças à programação
em aberto que permite uma interação complexa entre consumidor e obra.

VI – O Som do Futuro

A crise criativa das artes tem grandes laços com a aversão ao risco em tempos de crise
financeira. O cinema atual nos presenteia com inúmeras produções independentes,
inovadoras e de baixo custo que dividem espaço com blockbusters projetados para dar lucro e
suas calculadas apostas em soluções já aceitas pelo público. Com a música a situação é
bastante parecida. As gravadoras investem nos artistas consagrados ou nos novos que já se
encaixem em seu modelo de sucesso atual. As experimentações acabam acontecendo em
iniciativas de menor porte. Se elas fazem sucesso, acabam sendo absorvidas.

As tendências atuais do mercado podem ilustrar um pouco essa situação. Grandes nomes de
décadas passadas fazem turnês mundiais e lançam discos com alarde apenas pontual. Nomes
populares do rap, hip hop e música eletrônica têm suas carreiras mantidas por lançamentos e
presença contínua na mídia. Enquanto isso, artistas independentes de todos os estilos lançam
seus materiais com o marketing possível, financiados por iniciativas privadas ou captação
coletiva de recursos – mesmo a mais humilde obra musical consegue facilmente estar
disponível em ferramentas como a Apple Music Store ou o Spotify. Assim, o público de toda
essa produção é potencialmente global, influenciando também o trabalho dos artistas. Talvez a
categoria “World Music” esteja pouco abrangente, e toda música feita atualmente seja de
alguma forma World Music!

A virtualização da música, separando conteúdo de mídia física, levou a uma consequência


curiosa: o próprio formato de álbum, como conjunto coeso de músicas de um artista, tem
caído em desuso. As gerações mais recentes ouvem playlists, conjuntos de músicas de
diferentes artistas, ordenados por gosto próprio ou por programação do serviço de streaming.

A ausência de mídia física também permite às obras terem qualquer tamanho. Vários novos
artistas têm lançado material em conjuntos chamados de EP – talvez muitos deles nem
percebam que a sigla vem de Extended Play, o formato de disco de vinil maior que o single,
comportando cinco ou seis músicas. Também é possível desconsiderar a quantidade de áudio
que um CD comporta e lançar um álbum virtual com quatro horas contendo apenas duas
músicas: não existem mais limites impostos pelas mídias físicas. Hoje, as imposições de
formato são heranças culturais, sem mais restrições técnicas.

O acesso à informação pela Internet cria a possibilidade de uma troca imensa de informação
entre localidades diferentes, permitindo um intercâmbio cultural jamais visto na história. Um
jovem pode carregar em seu bolso hoje mais músicas do que seus pais possuíam em casa
quando tinham a mesma idade. Mas a mesma ferramenta que permite um acesso ilimitado
também abre o canal para uma ferramenta de divulgação maciça. As grandes gravadoras estão
brigando ainda com forças menores, e o resultado é que as influências musicais nos grandes
centros urbanos estão semelhantes em todo o planeta. O potencial de pesquisa e acesso é
enorme, mas a convergência para poucos produtos também. O que poderia ser a audição
contínua de infinitos artistas diferentes se transforma, muitas vezes, na audição infinita de
poucos artistas parecidos.

A tecnologia que barateia a criação e a gravação da música ganha ainda mais importância com
essa perspectiva de independência necessária para que a inovação tenha espaço.
Naturalmente, mesmo que ainda seja caro desenvolver programas complexos como os
utilizados para fazer música, como o custo de reprodução é extremamente baixo, eles acabam
muito mais acessíveis do que antigos equipamentos cheios de painéis, botões,
transformadores e válvulas. Novamente temos alguma convergência, e os melhores softwares
acabam nas mãos da maioria dos criadores de conteúdo musical.

Como ferramenta de suporte à criação, o computador transformou a complexa arte do estúdio


analógico em selecionar sonoridades com cliques. Essas facilidades, porém, não vêm sem um
preço. Se antes os produtores e músicos tinham que se esforçar e criar soluções dentro do
estúdio, hoje tudo vem pré-programado, parametrado para funcionar – o que significa que as
soluções já estão prontas, sem tanto espaço para a invenção. Há uma forte homogeneização
na maneira como os músicos gravam suas canções hoje. Aquele baterista virtual, pré -
programado, não vai compor nada novo, ele apenas imita muito bem algo já pronto. Aquele
software para iPad, que toca sozinho junto com o que o usuário canta, está apenas repetindo
uma sequência já desenvolvida de acordes, sons ou ritmos. A criação musical, apesar de ter
sido popularizada por esses facilitadores, fica perigosamente restrita a esses parâmetros de
software. A expressão musical pode acabar refém dessas sonoridades prontas.

As tecnologias atuais são extremamente bem-vindas para abrir caminho a novas possíveis
influências, permitir a divulgação dos trabalhos e auxiliar a produção musical, fornecendo
suporte na composição, gravação e mixagem. É preciso atentar, porém, para que as facilidades
disponíveis hoje em dia não se transformem em limitações coletivas, reduzindo os horizontes
da criatividade e consequentemente da diversidade musical.

Referências

Byrne, D. (2012) How Music Works, San Francisco: McSweeney’s.

Cummings, A.S. (2013) Democracy of Sound: Music Piracy and the Remaking of American
Copyright in the Twentieth Century, New York: Oxford University Press.

Gibney, A., diretor (2015) Sinatra: All or Nothing at All. Jigsaw Productions. TV.

Grohl, D., diretor e produtor (2013) Sound City. Roswell Films, 2013. Blu-Ray.

Hamilton, J. (2009) The Music Industry. Greenhaven Press

Hanks, C., director (2015) All Things Must Pass: The Rise and Fall of Tower Records. Produção
de Sean Stuart. Company Name. Blu-Ray.

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1. Paulo Assis é engenheiro de áudio e produtor no seu Estúdio Audioclicks, em São


Paulo, Brasil. Presta consultoria em acústica e equipamentos musicais, e tenta evitar
que a tecnologia tome decisões artísticas por ele. Tem poucos discos de vinil e muitos
CDs, mas acaba ouvindo música em mp3.↵

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