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O dramaturgo, apesar de criar textos com forte conotação sexual e do seu lado
iconoclasta como uma forma de atingir a moral da época, era um moralista, obcecado
pela ideia de verdade, pureza e moralidade. Sentia culpa de ter feito na vida sexo sem
amor. Rosenfeld (2009) considera que Nelson vê o sexo como degradação do ser
humano, como se o autor vivesse no início do cristianismo, embora Otto Lara Resende
afirmasse que Nelson era a própria Idade Média.
O leitor que aceita o convite de Nelson e não teme (ou pelo menos tem
a coragem de fingir não temer) a morte, aprende com Nelson que a
vida é também dor e sofrimento (condensados no elemento morte), no
qual nem o elenco, nem a plateia estão imunes. [...] o trágico urge
desta ligação indissociável (e conflituosa) entre a vida e a morte, o
sexo e a morte, o amor e a morte. (ROBERT, 2007, p. 115)
Para Nelson Rodrigues, o suicida teria uma nostalgia de voltar às suas raízes
mais primitivas. Essa sua obsessão é interpretada por Valderez Cardoso Gomes (apud
RODRIGUES, 1993) como uma herança paterna, pois o pai de Nelson registrava
diariamente, e durante quase três meses no jornal, os dias transcorridos após o
assassinato de seu filho, Roberto Rodrigues, até o dia de sua própria morte. A reiteração
do tema na obra de Nelson não transcorre apenas desse fato, mais também à medida que
nos apercebemos as lembranças e saudosismos rodriguianos da infância.
Lamenta a perda do hábito de chorar pelo morto nos velórios e durante o cortejo
fúnebre que atravessava toda a cidade. O chapéu era um elemento de reverência. A
cidade inteira cumprimentava o morto tirando o chapéu à passagem de um caixão,
mesmo de quinta categoria. Mas houve a “Gripe Espanhola”, que dizimou pouco mais
de quinze mil pessoas em quinze dias no ano de 1918, com seus mortos abandonados
pelas ruas do Rio de Janeiro, sem os ritos funerários, nem choro nem vela, com o povo
“pisando nas dálias” e “estraçalhando as coroas”. Os mortos eram “despejados em
crateras” e “buracos hediondos”. (RODRIGUES, 2009a)
Para o autor, os velórios deixaram de ser dramáticos, não havia mais acessos de
dor colossais. As mães e esposas não se agarravam ao caixão desesperadamente
implorando para serem enterradas junto ao ser amado. Mas ele lembra que algumas
mulheres faziam um ato de pura encenação e que a capelinha acabou estragando a
beleza das cenas arrebatadoras. A dor então passou a ser disciplinada, polida e
cerimoniosa. O autor acreditava que a Zona Norte era a parte da cidade do Rio que
ainda guardava certas tradições onde talvez fossem possíveis velórios dramáticos, onde
as mulheres “escoiceavam” e “uivavam”, possuídas pela dor.
Em 1917, 18, 19, os enterros saíam mesmo de casa. Não era como
agora. Agora, despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de
rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o
sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial.
Tudo era familiar e solidário: - os móveis, os jarros, as toalhas e, até,
as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade.
Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Ninguém mais
cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto. (RODRIGUES,
2009a, p. 40)
O autor considerava seu teatro cravejado de círios e acreditava que duas mãos
postas e a luz de um círio compunham uma cena magnífica. Em sua obra dramática, a
morte apresenta-se sempre de alguma forma: como morte física, como morte da
consciência ou a morte das aparências. “E, por todo o meu teatro, há um palpitação de
sombras e de luzes. De texto em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa
obsessão feérica que para sempre me persegue.” (RODRIGUES, 2009a, p. 144).
Os personagens de Nelson Rodrigues são movidos pela tensão amor e morte. Ele
não era um pessimista atroz, nem integralmente mórbido, nem um reacionário ferrenho
como muitas vezes gostava de aparentar e afirmava se assumir como tal “só pra chatear”
(RODRIGUES, 2008). Não julgava nem condenava os atos dos seus personagens, mas
os mesmos estão sentenciados à autodestruição e são responsáveis pela sua própria
queda trágica. No fundo, assegurava que tinha uma grande compaixão pelos
personagens que escrevia porque tinha pena, “da cabeça aos pés”, de todos os suicidas e
homicidas da face da terra (RODRIGUES, 2009a). A esperança na humanidade também
é observada em muitas das suas crônicas, entrevistas e memórias, mas ele também fazia
confissões cheias de ressentimentos, de inveja e de solidão artística. Ao mesmo tempo,
dizia que sua obra era um julgamento do mundo, da sociedade e do homem. Era seu
canto desesperado, contra os fatos trágicos vistos em seu cotidiano de repórter. Como
observador perspicaz das ruas cariocas, buscou atingir o mistério da vida. Em Anti-
Nelson Rodrigues, afirma que nunca teve tanta piedade dos personagens como nessa
peça.
Já com sua primeira peça A mulher sem pecado, de 19403, admitiu que queria
fazer uma chanchada caça-níqueis por conta de dificuldades financeiras. Sua intenção
era ganhar muito dinheiro, pois há muito tempo no teatro eram as comédias (o “teatro
para rir”) que mais rendiam na bilheteria. Na época, não acreditava nem em si, nem
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Alexandre Callari corrobora que A mulher sem pecado foi escrita no final de 1940 quando Elza, esposa de Nelson,
estava grávida de Jofre, nascido em agosto de 1941 e começou a escrever para teatro para ganhar dinheiro porque sua
esposa estava grávida. Callari retifica a data, a partir da confirmação de um escrito de Nelson afirmando que escreveu
sua primeira peça em 1940. (CALLARI, 2012)
muito menos no teatro brasileiro. Após escrever o primeiro ato, sua grande ambição
literária aflorou e ele não se importou mais se o seu texto seria ou não remunerado. O
que ele queria era o elogio divulgado e impresso. Mas suas expectativas foram
frustradas e ele afirma ter sido a única peça que fez concessão ao público.
A glória só veio com sua segunda peça, Vestido de noiva, de 1941, com a qual
ambicionou que fosse um texto para agredir o público. Queria que o elogiassem, por
mais humilhante que fosse pedi-lo, como se ele o suplicasse ao estender o chapéu ou o
pires na mão, feito um pedinte, ou saísse batendo de porta em porta implorando
enaltecimento. Portanto passou a escrever para quem admirava. “Não fazia uma linha,
sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu sofrimento, a minha visão do amor e da
morte. Tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Só os admiradores
existiam." (RODRIGUES, 2008, p.54). Entregou Vestido de noiva primeiro a Manuel
Bandeira para ler e apelou, num tom de humildade, que o poeta escrevesse sobre a peça.
Enfim obteve o elogio impresso tanto desejado. “ ‘Vestido de noiva, em outro país,
consagraria um autor. No Brasil - consagrará o público.’ [...] Ah, se eu morresse
naqueles dias, alguém poderia gravar no meu túmulo: - “Aqui jaz Nelson Rodrigues,
elogiado por Manuel Bandeira.” (RODRIGUES, 2007, p. 104-105) Bandeira declarou
que Rodrigues era, de longe, o maior poeta dramático surgido na literatura brasileira. O
dramaturgo estava deslumbrado pelo artigo publicado no jornal O Globo. Mostrou-o em
casa a todos e acreditava que o elogio era mais importante que a própria criação.
“Ninguém poderia imaginar que eu estava prodigiosamente ébrio de mim mesmo. Eu,
eu, eu, eu. Se a mulher amada me aparecesse, eu não a reconheceria e, se a
reconhecesse, passaria adiante.” (RODRIGUES, 2007a, p. 105). O autor viveu nas
nuvens com os elogios do poeta.
Em 1946, o dramaturgo escreve Anjo negro, que, após ser rejeitada, foi
questionada por conta da morbidez da trama. Nelson Rodrigues respondeu que o tema
da morte: “[...] parece incontestável e, sobretudo, necessária. Artisticamente falando,
sou mórbido, sempre fui mórbido, e pergunto: ‘Será um defeito?’ Nem defeito, nem
qualidade, mas uma marca de espírito, um tipo de criação dramática.” (RODRIGUES,
2000, p. 11) O autor questionava por que não poderia utilizar a morbidez em sua criação
dramática se a literatura e a pintura repousam seu valor estético sobre uma “morbidez
rica, densa, criadora, transfigurante” (RODRIGUES, 2000). Magaldi considera Nelson
Rodrigues o primeiro dramaturgo a valorizar o lado mórbido da personalidade em
coexistência com os traços normais.
A falecida, de 1953, é a primeira peça dessa nova fase. A morte torna-se quase
uma protagonista da peça, e a personagem principal sonha com um enterro de luxo,
sonho recorrente em mais duas peças do autor: Boca de Ouro, de 1959, e Bonitinha,
mas ordinária, de 1962. Das personagens dessas peças, Zulmira (de A falecida) é a
personagem mais obsessiva por um funeral grandioso como compensação para seu
ressentimento em relação à vida, assim como Boca (de Boca de Ouro) e Heitor (de
Bonitinha). O enterro era uma forma de redimir-se diante de uma vida medíocre e
frustrada. Zulmira tem seu sonho malogrado, pois seu enterro é de "quinta categoria",
com o caixão mais barato que havia na funerária. Boca também quer um enterro
suntuoso para fins compensatórios por conta de um passado de humilhações como o
nascimento numa pia de gafieira, e Heitor deseja um enterro como reparação de uma
vida de contínuo. Em todas essas peças, os personagens procuram transcender a miséria
de suas vidas por meio dos ritos funerários luxuosos que desejam para si. Há, porém
diferenças: Boca de Ouro é rico, ele tem o poder em suas mãos e até paga caixão para os
pobres; Zulmira, por sua vez, não possui esse poder, e parece que, inconscientemente,
ela procura se unir a alguém capaz de realizar seu desejo de ostentar, diante dos
vizinhos e parentes, alguma "glória", nem que fosse em seu último ato: a morte. Já
Edgar apropria-se da frase: “o mineiro só é solidário no câncer”; para justificar o mau-
caratismo e poder ter um enterro digno e luxuoso. Um enterro rico e glorioso parece
tornar-se a única saída para os ressentidos e frustrados em seus desejos.
Sonhava fazer uma peça de nove atos, porque teria muito a confessar sobre suas
lembranças e da qual pudesse sentir-se orgulhoso. Seria uma peça autobiográfica, que
fizesse um mergulho na realidade brasileira, baseada em seu livro de memórias. A
dúvida seria se ela deveria ser representada de uma vez só ou se se dividiria em três dias
consecutivos, e indagava-se se o público suportaria assistir a algo tão longo. Como
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Personagem de western do cinema-mudo norte-americano, sendo um dos primeiros grandes ídolos do cinema.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tom_Mix>. Acesso em: 23 mai. 2013 às 23:12h.
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A crônica a qual o dramaturgo conta essa história é: Quase enforcaram o autor como uma ladrão de cavalos para o
jornal O Globo em 22/01/69 (RODRIGUES, 2008, p. 204) A última virgem é uma encenação de Jô Soares na cidade
de São Paulo em 1969 que trocou o nome da peça Os sete gatinhos. Fazia parte do elenco: Jofre Soares, Dirce
Migliaccio e Ruthinéa de Moraes. Nelson Rodrigues disse sobre a peça: “O primeiro equívoco começa com a direção.
[...] A última virgem será dirigida por um diretor inteligente. Vem daí toda a minha amarga perplexidade. Teria
preferido um diretor de profunda imbecilidade ao talento de Jô Soares, que me esmaga, tanto ou mais que o seu peso
material.” (RODRIGUES, 2012d, p. 88). O crítico Marco Antônio de Menezes comentou a peça: “É assim sua
“Última Virgem”, carioca e contraditória: Nelson consegue transmitir a beleza da virgem que se entrega por amor,
mas não consegue transmitir a beleza (trágica, é certo, mas igualmente bela) da mulher que se entrega e mata,
também por amor. Um moralista que se deseja moderno, um conservador que se deseja progressista, Nelson está em
cada um de seus personagens, nesta peça e fora dela. É bom voltar a vê-lo no palco, apesar de tudo, pois é, sem
dúvida, quem escreve teatro no Brasil com a maior dose de talento. Sem ser, entretanto, nosso melhor autor.” Jornal
da Tarde em 16 jun. 1969. Disponível em: <http://www.nelsonrodrigues.com.br/site/criticasteatro_det.php?Id=26 >.
Acesso em 23 mai. 2013 às 23:47h.
afirmava que, entre o público e a obra de arte, quem tem razão é sempre a obra de arte e
a função do público era apenas a de pagante, o dilema era o se o público não suportasse
torna-se contraditório. Também lamentava não ter feito uma peça em que o segundo ato
fosse feito de variações delirantes de um ato sexual. Admitia ter um fôlego de fazer
vinte peças por ano. O autor não realizou esses sonhos, mas, no final da vida, parece que
seu único amor voltou: Elza, a primeira esposa, após 15 anos de separação.
Nelson Rodrigues não teve todos os entes queridos chorando a sua perda nem a
espetacularização do seu velório no palco. Não morreu de nenhuma das mortes que
imaginara em vida, alguma que não houvesse tempo nem para a dor nem para
arrependimentos. No seu enterro não houve cavalos de pelos dourados com plumas
negras na cabeça nem caixão com alças de ouro ou prata. Sem dálias, coroas e “cocô de
cavalo” “boiando” no asfalto. Não teve um cortejo fúnebre acompanhado por vários
carros. Não houve cavalheiros nas calçadas tirando o chapéu à sua passagem nem o
povo chorando, uivando e irrompendo em pranto causado por dores colossais na rua.
Nelson Rodrigues teve um velório de “dor disciplinada” na capelinha. Sua carência por
reconhecimento e admiração era quase como a de um cego pedindo esmola em seu
pires. O dramaturgo obteve a glória e a admiração, o elogio intelectual e a aclamação
pública ainda em vida, mesmo que alguns sonhos tenham sido desfeitos, e outros, nem
sequer iniciados. Ele pôde purgar muito das humilhações, frustrações e ressentimentos
através da sua arte confessional. A vida parece ter-lhe pregado uma peça, como a
Zulmira, mas o seu legado artístico permanece. Ele imaginava encontrar, após sua
morte, todos os mortos da família “[...] nas absurdas profundidades marinhas, onde as
águas têm frio e sonham.” (RODRIGUES, 2009a, p. 471) Assim, descansaria em paz e
“docemente unido” como irmão ao tempo dos mortos, pois acreditava na vida eterna.
Ao final, parece que “[...] toda a sua vida não passou de uma meditação sobre a morte.”
Cícero (apud MONTAIGNE, 1996, p. 416)