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2.

1 A TRÍADE MORTE, GLÓRIA E HUMILHAÇÃO: UMA LEITURA


DA VIDA E OBRA DE NELSON RODRIGUES

Como todos os meus textos dramáticos,


é uma meditação sobre amor e sobre a morte.
Nelson Rodrigues

A história de vida Nelson Rodrigues acaba adentrando sua obra. As experiências


vividas deixaram grandes marcas em Nelson, que começou a trabalhar aos treze anos de
idade no jornal do pai. “Disse eu que, no fim de um ano de métier, o repórter de polícia
adquire uma experiência de Balzac. Com seis meses de atividade profissional eu julgava
conhecer todas as danações do homem e da mulher.” (RODRIGUES, 2007a, p. 95).
Rodrigues afirma que gostaria de dividir com seus leitores e espectadores o
conhecimento adquirido com sua profissão e com o cotidiano: o que viu sobre as
mazelas humanas por conta de um olhar extremamente observador, cultivado em sua
passagem pela reportagem policial, que o tornou íntimo do cadáver e da morte. Para o
dramaturgo, todo o seu teatro tem a marca dessa passagem.

Mas a biografia de Nelson Rodrigues comporta a leitura do trágico e trouxe


elementos e fatos que enriqueceram dramaturgia e obra como um todo. Declarava
também que seu teatro tem origem na imagem do pai e do irmão: “Ora, meu pai é, na
minha vida, uma figura obsessiva. Eu não seria o que sou, não teria escrito uma frase,
uma linha, uma peça, se não fosse seu filho. Estou todo embebido de sua violência e de
sua fragilidade.” (RODRIGUES, 2008, p. 690). “[...] o meu teatro não seria como é,
nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse
chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto.” (RODRIGUES,
2009a, p. 124). Depois da morte do irmão, aprendera a quase não rir e, durante um
vaudeville que estava com lotação esgotada, todos riam na plateia, menos ele, que
pensava em seu irmão. Na sua “cava depressão”, acreditou que o teatro para rir é tão
absurdo, tão obsceno, tão idiota quanto uma missa cômica. Ao final da peça, diante das
próprias conjecturas, definiu um projeto dramático entre: “teatro e martírio”, “teatro e
desespero”. (RODRIGUES, 2009a, p. 142)

Considerava-se um homem de fixações inarredáveis e assumia o pseudônimo que


seu amigo Cláudio Mello Souza lhe deu de “flor de obsessão”. Para Nelson Rodrigues,
não há santo nem herói nem gênio ou pulha sem ideias fixas, só os imbecis é que não
têm obsessões. E o tema da morte era uma de suas ideias obsessivas. Num movimento
proustiano, ele descreve, sofre, analisa e relata várias histórias de morte em suas
memórias e confissões que se sucederam na sua infância. Assumia que a sua grande
marca foi a vivência de uma infância profunda. Desde a tenra idade, “o anão de
Velásquez”1 era fascinado pela morte. Achava fantástica a chama das velas; não temia
funerais, adorava “peruar enterro”, tinha uma curiosidade mórbida pelas igrejas e
gostava de visitar cemitérios (RODRIGUES, 2009a).

A morbidez o perseguia desde os três anos de idade, quando ainda usava


“camisinha pagã acima do umbigo”. Da infância vivida no bairro Aldeia Campista, o
“pequenino Werther”2 guardou imagens, histórias, acontecimentos e personagens que
marcaram profundamente essa fase da sua vida e que, às vezes, reproduziam-nas ao
brincar no fundo do quintal da sua casa. A partir dos seis ou sete anos, não perdia um
enterro de vizinho, sentia-se como um “anão de Velásquez, pequenino e cabeçudo”:
entrava nos velórios, observava o morto e a chama dos círios. Aos oito anos, queria ser
santo e imaginava alguém enxugando o suor do seu martírio: “Eis o que me fascina no
menino que fui: – o pequenino suicida. E acho lindo, ainda hoje, esse amor pela morte
que lateja no fundo de minha infância.” (RODRIGUES, 2009a, p. 134). Quando
sonhava com a própria morte, imaginava toda a família chorando e a vizinha dos seus
sonhos rezando por ele, logo “mergulhava no caldeirão das delícias ferventes”. Ao
rememorar a infância, perguntava-se se a morte não era a paixão mais sentida do
brasileiro. (RODRIGUES, 2009a)

Na família há histórias, como o assassinato do irmão, a morte do pai, a irmã que


morreu com apenas oito meses de vida, a tuberculose que também o acometeu e acabou
matando seu irmão Joffre e a tragédia do soterramento da família do irmão. Nelson
costumava observar o suicida em potencial que seu irmão Roberto era e como esse
representava a morte nos quadros, nas ilustrações e nas esculturas que fazia. O
assassinato de Roberto dilacerou a família, e o pai de Rodrigues morreria cerca de três
meses depois, com um sentimento de culpa imenso, ao saber que a bala que matou o
filho era para ele. O autor afirmava sentir por muito tempo o grito de dor do irmão:
1
Epíteto que recebeu na infância porque era pequeno e tinha a cabeça grande.
2
Outro epíteto que o próprio Nelson Rodrigues se deu, por causa do livro Os sofrimentos do jovem Werther de
Goethe. O livro conta a história de um amor correspondido, mas impossível de se consolidar porque a amada está
prometida a outro homem. Disponível em:
<http://www.colegiodinamico.com.br/PAGINAS/ALUNO/o_professor/arquivos/kleber/kleber_goethe_os_sofrimento
s_do_jovem_werther.pdf> Acesso em: 26 jan. 2014.
“Nunca mais me libertei do seu grito. Foi o espanto de ver e ouvir, foi esse espanto que
os outros não sentiram na carne e na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraçado ao
grito do meu irmão Roberto Rodrigues.” (RODRIGUES, 2009a, p. 127) Deve ser por
isso que Nelson Rodrigues desejava uma morte compassiva, em que não houvesse
tempo para o medo nem para o grito.

Das lembranças do bairro, em seu livro de memórias, a primeira história que


marcou o escritor foi a morte de Carlinhos, um rapaz que morava na rua e chamava “o
pequenino Werther” de “batuta”. Carlinhos brigou com a noiva, foi à farmácia e tomou
veneno. Nelson Rodrigues assistiu à cena, mas foi logo expulso do lugar por alguém
que lhe deu uma palmada (RODRIGUES, 2009a). Rodrigues revela que esse suicida foi
quem lhe revelou a morte e o ensinou a morrer. As duas outras histórias foram o caso da
filha que descobriu que a mãe traía o pai e a obrigou a tomar veneno. “ ‘Se você não
beber, eu bebo’, ela disse, e a mãe, vendo nos olhos dela o ódio que havia de perseguir
até a consumação dos séculos, bebeu e caiu ali, aos pés da filha. Achei tudo isso lindo,
como acho qualquer morte, mesmo a natural, sem tragédia trágica.” (RODRIGUES,
2012d, p. 99) e, na crônica intitulada Ser para sempre fiel e morrer, um dia como o ser
amado, rememora o suicídio de outro rapaz do bairro da sua infância que tinha muitos
amores e muitos filhos, concluiu: “Morreu do amor livre e, pois, de falta de amor. Tudo
é falta de amor. O câncer no seio ou qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As
lesões do sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor.” (RODRIGUES, 2007c, p.
116) Para Nelson, a culpa do desespero humano era a ausência de amor. O homem
sempre amou errado e levaria muito tempo para que pudesse amar certo. Já que todo
amor é a história de uma derrota.

Em outros momentos Nelson Rodrigues revela outras histórias de morte que


foram marcantes na sua vida. Numa entrevista, o memorialista revela três casos de pacto
de morte que marcaram profundamente a sua infância e o tornaram fascinado pelo
suicídio, mas nem todos são os mesmos exemplos citados anteriormente. A primeira
história é de uma vizinha que traía seu marido. Esse recebeu uma carta anônima,
revelando a traição, e obrigou a esposa a tomar veneno. A segunda história é a de dois
jovens  namorados que fizeram um pacto de morte para se envenenarem num botequim,
só que a jovem bebeu antes o formicida, e o rapaz fugiu e tomou o bonde. A terceira
história é a mesma contada anteriormente, a da filha que obrigou a mãe a tomar veneno
porque descobriu que esta traía o pai.
Para Nelson Rodrigues, a morte é solúvel porque existe a eternidade, já o amor é
insolúvel. É nessa insolubilidade do amor que reside a angústia humana. Ou o ser
humano internaliza a angústia ou senão apodrece. O amor físico é o que acaba por
corromper o homem. O sexo deixa marcas no ser humano que o torna completamente
infeliz e derrocado ao ter perdido a inocência. Rodrigues sentia uma grande nostalgia da
pureza infantil. A castidade é uma forma de acabar com a angústia sexual do ser
humano, e o próprio autor considera que deveria ter permanecido casto. A atração do
escritor pelo tema do sexo é por conta do seu alto valor trágico. Já pelo tema da morte é
a atração pela morte física e a sua plasticidade num espetáculo como solução visual.
(RODRIGUES, 2009a)

O dramaturgo, apesar de criar textos com forte conotação sexual e do seu lado
iconoclasta como uma forma de atingir a moral da época, era um moralista, obcecado
pela ideia de verdade, pureza e moralidade. Sentia culpa de ter feito na vida sexo sem
amor. Rosenfeld (2009) considera que Nelson vê o sexo como degradação do ser
humano, como se o autor vivesse no início do cristianismo, embora Otto Lara Resende
afirmasse que Nelson era a própria Idade Média.

As imagens trágicas que marcaram profundamente a infância do autor e o


acompanharam ao longo da vida revelam traços e características presentes na sua obra
sobre questões a respeito da vida, da morte, do sexo e do amor. Para ele, o desejo
realiza-se em seus textos em uma atmosfera triste, a volúpia é trágica, e o crime é o
próprio inferno. Quando questionado sobre tanta amargura diante da vida, justificava-a
como elemento próprio do artista ao proporcionar-lhe uma dimensão fantástica da
existência.

O leitor que aceita o convite de Nelson e não teme (ou pelo menos tem
a coragem de fingir não temer) a morte, aprende com Nelson que a
vida é também dor e sofrimento (condensados no elemento morte), no
qual nem o elenco, nem a plateia estão imunes. [...] o trágico urge
desta ligação indissociável (e conflituosa) entre a vida e a morte, o
sexo e a morte, o amor e a morte. (ROBERT, 2007, p. 115)

Outras memórias de morte, descritas por Nelson Rodrigues em suas crônicas


confessionais, vêm acompanhadas de outras lembranças sobre: a gripe espanhola, a
tuberculose e a morte no sanatório, a morte a convite do mar, os suicídios como o de
Marylin Monroe, a morte de Cristo, a fantasia da crucificação ou uma morte simbólica
quando o escritor subiu ao palco para representar o tio Raul, de Perdoa- me por me
traíres. Quando o presidente Getúlio Vargas se matou, sentiu que Deus realmente
preferia os suicidas. Imaginava que seu destino era rente ao meio-fio atropelado como
um garoto que vira ou que morreria como um leproso. Costumava fazer inúmeras
conjecturas sobre a sua própria morte. Acreditava na vida eterna, e quem não
acreditasse deveria se matar, mesmo após a própria morte. O fascínio pelo tema o
obsedava tanto que afirmava sentir vertigens suicidas:

Ali, eu descobri subitamente tudo: – eu sou muito mais suicida do que


homicida. Ainda hoje não posso chegar numa janela alta. Basta olhar
para baixo. E me vem o apelo doce, persuasivo, da morte. Pergunto:
“E se eu me atirasse?” Se eu me atirasse, começaria para mim o tempo
dos mortos; eu seria um deles; e ficaríamos unidos, mortos e unidos,
docemente mortos e irmãos. (RODRIGUES, 2008, p. 254)

Para Nelson Rodrigues, o suicida teria uma nostalgia de voltar às suas raízes
mais primitivas. Essa sua obsessão é interpretada por Valderez Cardoso Gomes (apud
RODRIGUES, 1993) como uma herança paterna, pois o pai de Nelson registrava
diariamente, e durante quase três meses no jornal, os dias transcorridos após o
assassinato de seu filho, Roberto Rodrigues, até o dia de sua própria morte. A reiteração
do tema na obra de Nelson não transcorre apenas desse fato, mais também à medida que
nos apercebemos as lembranças e saudosismos rodriguianos da infância.

O escritor, que se considerava um romântico saudosista, também lamentava a


falta das cenas de enterros com cavalos de pelos dourados, ornados com penachos de
plumas negras na cabeça e caixões com alças de ouro ou prata. “[...] Achava a morte
rigorosamente linda. Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, e
pelas alças de prata.” (RODRIGUES, 2008, p. 405). Ouvia falar do enterro do Barão do
Rio Branco que parou a cidade com o povo excitado e eufórico. As ruas ficaram ornadas
de coroas e dálias boiando sobre o asfalto.

Os enterros ricos e pobres eram diferenciados pelos adornos dos cavalos e na


quantidade de cavalos que puxavam o coche. Nos funerais de pessoas abastadas, o
féretro era puxado por dois ou quatro cavalos, enquanto naqueles mais modestos era
puxado por apenas um cavalo. Sabia-se da existência de um enterro numa rua por conta
da quantidade de excremento deixada pelos cavalos. Na peça A falecida, há uma fala de
uma personagem que belos cavalos de enterros chiques são odiados porque soltam fezes
pelo caminho. Sonhava um enterro glorioso para seu pai: “Nas minhas fantasias infantis,
eu imaginava as ruas, as esquinas dizendo: ‘Mataram Mário Rodrigues!’. E meu pai
teria um enterro como nunca se viu no Rio de Janeiro. Quando passasse o carro de
penacho o povo havia de chorar em cima do meio-fio.” (RODRIGUES, 2009a, p. 222).

Lamenta a perda do hábito de chorar pelo morto nos velórios e durante o cortejo
fúnebre que atravessava toda a cidade. O chapéu era um elemento de reverência. A
cidade inteira cumprimentava o morto tirando o chapéu à passagem de um caixão,
mesmo de quinta categoria. Mas houve a “Gripe Espanhola”, que dizimou pouco mais
de quinze mil pessoas em quinze dias no ano de 1918, com seus mortos abandonados
pelas ruas do Rio de Janeiro, sem os ritos funerários, nem choro nem vela, com o povo
“pisando nas dálias” e “estraçalhando as coroas”. Os mortos eram “despejados em
crateras” e “buracos hediondos”. (RODRIGUES, 2009a)

Para o autor, os velórios deixaram de ser dramáticos, não havia mais acessos de
dor colossais. As mães e esposas não se agarravam ao caixão desesperadamente
implorando para serem enterradas junto ao ser amado. Mas ele lembra que algumas
mulheres faziam um ato de pura encenação e que a capelinha acabou estragando a
beleza das cenas arrebatadoras. A dor então passou a ser disciplinada, polida e
cerimoniosa. O autor acreditava que a Zona Norte era a parte da cidade do Rio que
ainda guardava certas tradições onde talvez fossem possíveis velórios dramáticos, onde
as mulheres “escoiceavam” e “uivavam”, possuídas pela dor.

Em 1917, 18, 19, os enterros saíam mesmo de casa. Não era como
agora. Agora, despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de
rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o
sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial.
Tudo era familiar e solidário: - os móveis, os jarros, as toalhas e, até,
as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade.
Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Ninguém mais
cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto. (RODRIGUES,
2009a, p. 40)

O autor considerava seu teatro cravejado de círios e acreditava que duas mãos
postas e a luz de um círio compunham uma cena magnífica. Em sua obra dramática, a
morte apresenta-se sempre de alguma forma: como morte física, como morte da
consciência ou a morte das aparências. “E, por todo o meu teatro, há um palpitação de
sombras e de luzes. De texto em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa
obsessão feérica que para sempre me persegue.” (RODRIGUES, 2009a, p. 144).

Nelson Rodrigues orgulhava-se de ser um homem de espantos, que ainda se


horrorizava. E provavelmente sua forma de canalizar essa experiência consistia em
apropriar-se dela no seu processo criativo e na realização final do seu trabalho artístico
por meio de referências, inspirações, analogias, deslocamentos, repetições, inversões,
etc. Para o dramaturgo, os seres “maravilhosamente teatrais” eram realmente os tarados,
os loucos, os bêbedos, os criminosos, os epiléticos, os santos e os suicidas. Afirmava
que eram os depravados que tinham horror às suas peças, e só quem gostava dos seus
textos eram os virtuosos e honestos.

Os personagens de Nelson Rodrigues são movidos pela tensão amor e morte. Ele
não era um pessimista atroz, nem integralmente mórbido, nem um reacionário ferrenho
como muitas vezes gostava de aparentar e afirmava se assumir como tal “só pra chatear”
(RODRIGUES, 2008). Não julgava nem condenava os atos dos seus personagens, mas
os mesmos estão sentenciados à autodestruição e são responsáveis pela sua própria
queda trágica. No fundo, assegurava que tinha uma grande compaixão pelos
personagens que escrevia porque tinha pena, “da cabeça aos pés”, de todos os suicidas e
homicidas da face da terra (RODRIGUES, 2009a). A esperança na humanidade também
é observada em muitas das suas crônicas, entrevistas e memórias, mas ele também fazia
confissões cheias de ressentimentos, de inveja e de solidão artística. Ao mesmo tempo,
dizia que sua obra era um julgamento do mundo, da sociedade e do homem. Era seu
canto desesperado, contra os fatos trágicos vistos em seu cotidiano de repórter. Como
observador perspicaz das ruas cariocas, buscou atingir o mistério da vida. Em Anti-
Nelson Rodrigues, afirma que nunca teve tanta piedade dos personagens como nessa
peça.

Já com sua primeira peça A mulher sem pecado, de 19403, admitiu que queria
fazer uma chanchada caça-níqueis por conta de dificuldades financeiras. Sua intenção
era ganhar muito dinheiro, pois há muito tempo no teatro eram as comédias (o “teatro
para rir”) que mais rendiam na bilheteria. Na época, não acreditava nem em si, nem

3
Alexandre Callari corrobora que A mulher sem pecado foi escrita no final de 1940 quando Elza, esposa de Nelson,
estava grávida de Jofre, nascido em agosto de 1941 e começou a escrever para teatro para ganhar dinheiro porque sua
esposa estava grávida. Callari retifica a data, a partir da confirmação de um escrito de Nelson afirmando que escreveu
sua primeira peça em 1940. (CALLARI, 2012)
muito menos no teatro brasileiro. Após escrever o primeiro ato, sua grande ambição
literária aflorou e ele não se importou mais se o seu texto seria ou não remunerado. O
que ele queria era o elogio divulgado e impresso. Mas suas expectativas foram
frustradas e ele afirma ter sido a única peça que fez concessão ao público.

A glória só veio com sua segunda peça, Vestido de noiva, de 1941, com a qual
ambicionou que fosse um texto para agredir o público. Queria que o elogiassem, por
mais humilhante que fosse pedi-lo, como se ele o suplicasse ao estender o chapéu ou o
pires na mão, feito um pedinte, ou saísse batendo de porta em porta implorando
enaltecimento. Portanto passou a escrever para quem admirava. “Não fazia uma linha,
sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu sofrimento, a minha visão do amor e da
morte. Tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Só os admiradores
existiam." (RODRIGUES, 2008, p.54). Entregou Vestido de noiva primeiro a Manuel
Bandeira para ler e apelou, num tom de humildade, que o poeta escrevesse sobre a peça.
Enfim obteve o elogio impresso tanto desejado. “ ‘Vestido de noiva, em outro país,
consagraria um autor. No Brasil - consagrará o público.’ [...] Ah, se eu morresse
naqueles dias, alguém poderia gravar no meu túmulo: - “Aqui jaz Nelson Rodrigues,
elogiado por Manuel Bandeira.” (RODRIGUES, 2007, p. 104-105) Bandeira declarou
que Rodrigues era, de longe, o maior poeta dramático surgido na literatura brasileira. O
dramaturgo estava deslumbrado pelo artigo publicado no jornal O Globo. Mostrou-o em
casa a todos e acreditava que o elogio era mais importante que a própria criação.
“Ninguém poderia imaginar que eu estava prodigiosamente ébrio de mim mesmo. Eu,
eu, eu, eu. Se a mulher amada me aparecesse, eu não a reconheceria e, se a
reconhecesse, passaria adiante.” (RODRIGUES, 2007a, p. 105). O autor viveu nas
nuvens com os elogios do poeta.

Quando Vestido de noiva estreou no Teatro Municipal, em 28 de dezembro de


1943, Nelson Rodrigues foi ovacionado no final da peça. Ao clamarem pelo autor,
Nelson teve medo, pois havia entrado no Teatro Municipal como um pobre-diabo, não
se sentia um dramaturgo glorioso. O dramaturgo estava no balcão com a família e
acreditou que a plateia se viraria e o aplaudiria, mas o público estava virado para o
palco e não o viu. Esperava que os artistas, de cima do tablado, o apontassem no local
onde Nelson se encontrava, mas isso também não aconteceu. Ficou dilacerado de
vergonha e frustrado porque se sentiu marginal da própria glória como um morto num
funeral luxuoso. Só recebeu seus merecidos aplausos quando desceu do balcão e entrou
na caixa do teatro. Ficou emocionado, de pernas bambas e vista embaçada diante da
ovação. Enfim, foi reconhecido pelo seu público. Recebeu a glória e sentia-se “boiando
entre as coisas” quando saiu do Teatro. (RODRIGUES, 2009a).

Mas a glória sentida no teatro esbarrou-se com as limitações do seu cotidiano de


um jornalista assalariado. Para a comemoração foi, como de costume, para a Leiteria
Nevada comer o conhecido almoço Nevada (bife, batata fritas ou dois ovos estrelados,
pão, manteiga e pudim)4 porque era o que podia pagar. Já o elenco da sua peça foi
comemorar na Confeitaria Brasileira, cara para seus padrões na época. Nos dias
seguintes, esperava que alguém o reconhecesse nas ruas, no entanto ninguém o
reconhecia, nem o apontava nas avenidas, nas esquinas, nos táxis e nos ônibus.
Ninguém estava a par do seu sucesso. Era nominalmente célebre, mas fisicamente um
desconhecido. Apesar da humilhação de ser olvidado, desconhecia o sentimento de
humildade. Sentia-se como uma das maiores vaidades existentes no país.

Disse eu que o brasileiro é um pobre ser, crispado de humildade. Bem.


Já faço uma ressalva: essa humildade para no autor teatral. Portanto, a
verdade retificada é a seguinte: somos todos humildes, menos o autor
teatral. Este não o é jamais. O sujeito que, aqui, faz uma peça é capaz
de tudo. Toma-se de uma autopaixão, de um narcisismo homicida.
(RODRIGUES, 2007c, p. 337)

Nelson Rodrigues relata que passou a escrever só para os admiradores com a


finalidade de receber elogios. Mas percebia a dependência ao elogio “tóxico”, “vil”,
“vicioso”, mas sempre muito sedutor e doce. Seus irresistíveis coautores – os
admiradores – quase provocaram sua morte artística. Quando percebeu o perigo, passou
a destruir todas as admirações do seu caminho. (RODRIGUES, 2008) Por conta dessa
admiração sedutora, Vestido de noiva o desgostava profundamente, como se fosse um
grande mal entendido, um entrelaçamento de equívocos. Nelson passa a afirmar então
que o sucesso e o fracasso de qualquer obra sua tornaram-se indiferentes após dez anos
fazendo teatro.

Rodrigues reconhece que encontrou o sucesso com Vestido de noiva, mas o


perdeu com os textos seguintes. Sofreu uma grande rejeição e reprovação do público e
teve sua genialidade bastante questionada. Grandes nomes que o encheram de elogios
4
Leiteria Palmira no largo da Carioca comer o “Jantar Avenida” com bife, batata frita e dois ovos. O pão era pago
por fora.
passaram a virar-lhe as costas. Os amigos e inimigos dos seus textos tornaram-se
muitos. Manuel Bandeira perguntou-lhe por que não escrevia sobre pessoas normais;
cogitou responder-lhe que escrevia sobre pessoas como o poeta, como ele próprio, como
todo mundo. Nelson Rodrigues recebeu os epítetos de tarado e obsceno, após a peça
Álbum de família, de 1945. Uma tragédia em que todos os personagens estão
condenados a um destino implacável e destrutivo. O autor escreveu um manifesto em
defesa de sua dramaturgia e denominou “teatro desagradável”. Um teatro feito de obras
malditas que buscava insurgir os monstros mais hediondos existentes dentro de nós ao
explorar o lado sórdido e miserável do nosso ser a fim de purgar-lhe o mal e purificá-lo.
Passou a questionar-se que caminho enveredado foi esse:

Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim - desagradável.


Numa palavra, estou fazendo um teatro desagradável, peças
desagradáveis. No gênero destas, incluí, desde logo, Álbum de família,
Anjo negro e a recente Senhora dos afogados. E por que peças
desagradáveis? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas,
fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia.
(FOLHETIM, 2000, p. 8)

A exploração de um “teatro desagradável” era uma forma de tornar-se


independente do público, de não tornar-se subserviente. Afinal o teatro não deveria ser
“bombom com licor”. Nelson passou a admitir que essa forma de provocar o público era
para que o mesmo se sentisse mais dilacerado e pudesse receber o mistério do
espetáculo. (RODRIGUES, 2008). Essa obsessão de Nelson, fazer o espectador
chafurdar na lama, tinha como finalidade fazer emergir as mazelas humanas a fim de
atingir a essência divina do homem ao expô-lo ao sofrimento tanto quanto a personagem
em cena. “A partir do momento em que a plateia deixa de existir como plateia – está
realizado o mistério teatral. O ‘teatro desagradável’ ofende e humilha e, com o
sofrimento, está criada a relação mágica”. (RODRIGUES, 2008, p. 202) Para o
dramaturgo, após o fim de uma peça no palco é que começaria a verdadeira vida teatral,
seria o momento pelo qual o espectador faria a meditação sobre o amor e a morte;
sentisse a plenitude desse teatro de vida e morte. A proposta do seu teatro era de
empatia e comunhão entre personagem e plateia. Diante do teatro realizado nessa época,
o autor passou a ser chamado de “cérebro doentio”.
[...] foi montado na cidade, e no resto do país, todo um folclore
pornográfico em torno do meu nome e da minha obra. (...) Eu me
imaginava pulando o muro do cemitério, e violando túmulos recentes.
Ou então, de mãos entrelaçadas, num caixão ensaiando a minha
própria morte. Tudo, rigorosamente tudo, eu devo ao meu teatro. Sim
a imagem que as minhas peças vendem do autor é a de um sujeito às
abjeções mais tenebrosas. (RODRIGUES, 2008, p. 52)

Dilacerado por vaidade, orgulho, frustações, ressentimentos e humilhações,


passou a escrever boas críticas sobre suas peças e desfazia dos críticos que falavam mal
delas. No final, entregava-as aos amigos para que as assinassem e só depois as
publicava; ou escrevia crônicas sobre seus concorrentes ocultando-se sob pseudônimos
e com tamanha crueldade que depois se sentia “um pulha” (RODRIGUES, 2009a).
Contraditoriamente, dizia não ler as coisas que escreviam a seu respeito. Não respeitava
nenhum nome no teatro brasileiro, fosse do passado ou do seu tempo. Parecia querer
destruí-los. Considerava que os autores ou eram falsos profundos ou patetas, mas se
simpatizava mais com a última classe apesar de saber que seu julgamento era sumário e
injusto. Sentia o quanto seu ressentimento literário era extremamente vingativo, mas
percebia que seu narcisismo estava por trás de tudo.

O dramaturgo magoado respondeu a alguns agravos, como o do poeta Carlos


Drummond de Andrade que endossou a crítica de Álvaro Lins contra Álbum de família.
Lins publicou que a peça “[...] só poderá despertar prazer ou interesse lascivo naqueles
que estejam atingidos por alguma perversão nos últimos graus da baixeza humana.”
(LINS, 1963, p. 325). Outro crítico ferrenho, Oswald de Andrade, chamava Nelson de
“o analfabeto coroado de louros”, “taradão ilustre, mas de poucas letras” e clamava por
uma “polícia literária” que impedisse a obra de Nelson porque não passava de “um
folhetim de jornalão de quinta classe” (CASTRO, 1992, p. 256). O afastamento do
público e da crítica tornou-se cada vez mais frequente devido à morbidez e às situações
ilógicas existentes nas peças do “teatro desagradável”. Décio de Almeida Prado
afirmava que Nelson:

[...] parecia ferir de propósito, pelo prazer de quebrar barreiras morais


e estéticas, tanto o bom senso quanto o bom gosto [...] Em última
análise, ninguém saberia julgá-lo – gênio ou talento superficial e
sensacionalista, poeta maldito ou simples manipulador, embora hábil,
de enredos melodramáticos? (PRADO, 2009, p. 53)
Apesar de ter seu talento inicialmente reconhecido e restarem-lhe ainda alguns
admiradores, Nelson Rodrigues teve medo de ser esquecido após a glória no Teatro
Municipal, mesmo tendo desejado ser olvidado para sempre após quinze dias de ovação.
“Até o meio de minha carreira, tive a obsessão da posteridade.” (RODRIGUES, 2009a,
p. 336) Por conta disso passou a ter uma nostalgia da posteridade, pois o momento ideal
da sua morte deveria ter sido a estreia de Vestido de noiva. Morreria durante a
representação ou a apoteose, ou imediatamente após a apoteose. Se tivesse morrido
naquele momento, não seria esquecido jamais. Sua posteridade estaria salva. Fantasiava
expirar nos braços de uma atriz da peça.

E viria um sujeito, ao palco, chorando. Pediria silêncio à plateia


alucinada. Quando passassem as palmas, os vivas, a pessoa diria: -
“Nelson Rodrigues, o autor de Vestido de noiva, acaba de morrer.” Ou
melhor: – não “de morrer”, mas de “falecer”. Seria um corre-corre no
palco e na plateia. O elenco aos soluços. Morreu como? De quê? Eu
próprio, na cama, fantasiando a minha morte, repetia a pergunta: –
“De quê?” (RODRIGUES, 2009a, p. 337)

O autor boiava entre a suprema vaidade e a insistente humilhação. Desde a escola,


guardava “uma antologia de humilhações” como um “perene menino humilhado”.
(RODRIGUES, 2008) No colégio, durante as aulas, a professora fazia escândalos e o
repreendia por não ter educação nem tomar banho direito já que as orelhas e o pescoço
de Nelson estavam sempre sujos. Quando coçava a cabeça, a professora chamava-o para
olhar qual era o motivo e descobria piolhos e lêndeas que eram denunciados para toda a
sala. “Até o fim da aula teci toda uma fantasia fúnebre. Sonhava com a minha morte. Se
eu morresse, Lili [a vizinha amada] teria pena de mim, amor por mim.” (RODRIGUES,
2007c, p. 45). Quando trabalhava no jornal o Globo, o diretor Roberto Marinho
confidenciou ao irmão de Nelson que ele usava um único terno e fedia. A humilhação
era recorrente em sua vida.

Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações


hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas
frustações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se
um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: –
não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.
“Há vinte anos queria ter o meu nome no jornal de qualquer maneira e
a qualquer preço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim mesmo.
Assinava com um nome inventado e mandava publicar. E, depois,
vinha perguntar cá fora: – “Conhece esse sujeito? Escreveu sobre
mim. Não sei quem é.” Pois bem: e comecei a entrar em todos os
concurso de peças, de reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo
mundo era premiado, menos eu. No primeiro ano, segundo, terceiro,
eu estrebuchava de humilhação. Por fim, veio um doce e compassivo
fatalismo. Repito: – “Não ser premiado” é o meu hábito de vinte e
tantos anos. (RODRIGUES, 2007a, p. 125)

Em 1946, o dramaturgo escreve Anjo negro, que, após ser rejeitada, foi
questionada por conta da morbidez da trama. Nelson Rodrigues respondeu que o tema
da morte: “[...] parece incontestável e, sobretudo, necessária. Artisticamente falando,
sou mórbido, sempre fui mórbido, e pergunto: ‘Será um defeito?’ Nem defeito, nem
qualidade, mas uma marca de espírito, um tipo de criação dramática.” (RODRIGUES,
2000, p. 11) O autor questionava por que não poderia utilizar a morbidez em sua criação
dramática se a literatura e a pintura repousam seu valor estético sobre uma “morbidez
rica, densa, criadora, transfigurante” (RODRIGUES, 2000). Magaldi considera Nelson
Rodrigues o primeiro dramaturgo a valorizar o lado mórbido da personalidade em
coexistência com os traços normais.

No programa da estreia de Senhora dos afogados, em 1954, escreveu que era


uma peça triste, tristíssima, pois teatro não é um lugar de recreio irresponsável.
Dorotéia, de 1949, é considerada o mito da morte contraposta à vida ou a implacável
vitória da morte sobre a vida. Após essa peça, a dramaturgia de Nelson envereda por
outro caminho, com o monólogo Valsa nº 6, de 1951, em que a personagem Sonia é
uma espécie de Alaíde que rememora sua morte trágica, a consciência e a inconsciência
voltam a conviver, como em Vestido de noiva, sem criar no público um repúdio tão
grande à obra do dramaturgo como estava acontecendo com as quatro peças anteriores a
esse monólogo. Nelson não via problema algum, do ponto de vista dramático, no fato de
que a personagem estivesse morta (MAGALDI, 2010). Após Valsa nº6, a classe média
passa a ser tema de grande interesse para dramaturgia de Nelson Rodrigues depois da
experiência com crônicas bem sucedidas.

Se, por um lado, nas suas memórias e outros escritos autobiográficos,


Nelson Rodrigues reforçava a sua personagem de autor carioca,
reelaborando episódios de sua infância na Zona Norte como
fundamentais para sua formação de dramaturgo, por outro, ele quase
sempre rechaçava a ideia de que as suas peças atacavam a classe
média, se limitavam a retratar tal universo. Ele sempre ressaltava a
idéia de que a sua visão valia para qualquer ser humano,
independentemente de pertencimentos de classe, nacionalidade etc.
(FACINA, 2004, p. 73-74)

Mas também afirmava que achava formidável a classe média, especialmente a


suburbana, mais interessante e mais humana. Fascinava-se por essa classe ou por uma
classe muita baixa. Os grã-finos já não o interessavam, pois eles precisariam de “vinte e
cinco mil estímulos” para matar enquanto a classe média era mais heroica por ser capaz
de matar e de matar-se.

A falecida, de 1953, é a primeira peça dessa nova fase. A morte torna-se quase
uma protagonista da peça, e a personagem principal sonha com um enterro de luxo,
sonho recorrente em mais duas peças do autor: Boca de Ouro, de 1959, e Bonitinha,
mas ordinária, de 1962. Das personagens dessas peças, Zulmira (de A falecida) é a
personagem mais obsessiva por um funeral grandioso como compensação para seu
ressentimento em relação à vida, assim como Boca (de Boca de Ouro) e Heitor (de
Bonitinha). O enterro era uma forma de redimir-se diante de uma vida medíocre e
frustrada. Zulmira tem seu sonho malogrado, pois seu enterro é de "quinta categoria",
com o caixão mais barato que havia na funerária. Boca também quer um enterro
suntuoso para fins compensatórios por conta de um passado de humilhações como o
nascimento numa pia de gafieira, e Heitor deseja um enterro como reparação de uma
vida de contínuo. Em todas essas peças, os personagens procuram transcender a miséria
de suas vidas por meio dos ritos funerários luxuosos que desejam para si. Há, porém
diferenças: Boca de Ouro é rico, ele tem o poder em suas mãos e até paga caixão para os
pobres; Zulmira, por sua vez, não possui esse poder, e parece que, inconscientemente,
ela procura se unir a alguém capaz de realizar seu desejo de ostentar, diante dos
vizinhos e parentes, alguma "glória", nem que fosse em seu último ato: a morte. Já
Edgar apropria-se da frase: “o mineiro só é solidário no câncer”; para justificar o mau-
caratismo e poder ter um enterro digno e luxuoso. Um enterro rico e glorioso parece
tornar-se a única saída para os ressentidos e frustrados em seus desejos.

Apesar de tornar-se um nome de grande referência no teatro brasileiro, Nelson


Rodrigues sentia-se um solitário. Ao escolher a solidão, chegou a imaginar a encenação
de uma peça de sua autoria, no Teatro Municipal, que só tivesse ele próprio como
espectador, pois assim não existiria ninguém para vaiar. Sabia que os amigos e inimigos
dos seus textos eram muitos. Quando atuou em Perdoa-me por me traíres, no Teatro
Municipal, o vereador Wilson Leite Lopes empunhou o revólver feito um Tom Mix 5
para fuzilar o seu texto. As senhoras grã-finas subiram nas cadeiras, assoviaram feito
apaches, e uma o chamou de tarado. “Em suma: - eu, simples autor dramático, fui
tratado como no filme de bangue-bangue se trata ladrão de cavalos. A plateia só faltou
me enforcar num galho de árvore.” (RODRIGUES, 2008, p. 203) Percebeu depois que a
vaia foi a glória, um momento eterno e fulminante: quem não gosta de uma peça vai
para casa e não sobe pelas paredes feito “lagartixa profissional” como as senhoras no
Teatro fizeram. No final das contas, sentiu-se completamente realizado, mas, tempos
depois, sentiu-se um fracassado, como confidenciou a um repórter.

Também temia a posteridade e o esquecimento, o aplauso e a vaia, a glória


(como a Zulmira quer um enterro luxuoso) e a humilhação (o enterro de quinta categoria
“presentado” à Zulmira). Numa crônica, afirma que foi assistir à sua peça A última
virgem6 e saiu desiludido do teatro porque o público não vaiou. Talvez por equívoco,
mas depois, felizmente, os críticos lhe deram por compensação a vaia impressa. Já com
a peça Perdoa-me por me traíres diz ter recebido a vaia mais fantástica de todos os
tempos, razão pela qual sentiu o maior orgulho.

Sonhava fazer uma peça de nove atos, porque teria muito a confessar sobre suas
lembranças e da qual pudesse sentir-se orgulhoso. Seria uma peça autobiográfica, que
fizesse um mergulho na realidade brasileira, baseada em seu livro de memórias. A
dúvida seria se ela deveria ser representada de uma vez só ou se se dividiria em três dias
consecutivos, e indagava-se se o público suportaria assistir a algo tão longo. Como

5
Personagem de western do cinema-mudo norte-americano, sendo um dos primeiros grandes ídolos do cinema.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tom_Mix>. Acesso em: 23 mai. 2013 às 23:12h.
6
A crônica a qual o dramaturgo conta essa história é: Quase enforcaram o autor como uma ladrão de cavalos para o
jornal O Globo em 22/01/69 (RODRIGUES, 2008, p. 204) A última virgem é uma encenação de Jô Soares na cidade
de São Paulo em 1969 que trocou o nome da peça Os sete gatinhos. Fazia parte do elenco: Jofre Soares, Dirce
Migliaccio e Ruthinéa de Moraes. Nelson Rodrigues disse sobre a peça: “O primeiro equívoco começa com a direção.
[...] A última virgem será dirigida por um diretor inteligente. Vem daí toda a minha amarga perplexidade. Teria
preferido um diretor de profunda imbecilidade ao talento de Jô Soares, que me esmaga, tanto ou mais que o seu peso
material.” (RODRIGUES, 2012d, p. 88). O crítico Marco Antônio de Menezes comentou a peça: “É assim sua
“Última Virgem”, carioca e contraditória: Nelson consegue transmitir a beleza da virgem que se entrega por amor,
mas não consegue transmitir a beleza (trágica, é certo, mas igualmente bela) da mulher que se entrega e mata,
também por amor. Um moralista que se deseja moderno, um conservador que se deseja progressista, Nelson está em
cada um de seus personagens, nesta peça e fora dela. É bom voltar a vê-lo no palco, apesar de tudo, pois é, sem
dúvida, quem escreve teatro no Brasil com a maior dose de talento. Sem ser, entretanto, nosso melhor autor.” Jornal
da Tarde em 16 jun. 1969. Disponível em: <http://www.nelsonrodrigues.com.br/site/criticasteatro_det.php?Id=26 >.
Acesso em 23 mai. 2013 às 23:47h.
afirmava que, entre o público e a obra de arte, quem tem razão é sempre a obra de arte e
a função do público era apenas a de pagante, o dilema era o se o público não suportasse
torna-se contraditório. Também lamentava não ter feito uma peça em que o segundo ato
fosse feito de variações delirantes de um ato sexual. Admitia ter um fôlego de fazer
vinte peças por ano. O autor não realizou esses sonhos, mas, no final da vida, parece que
seu único amor voltou: Elza, a primeira esposa, após 15 anos de separação.

Segundo as palavras da irmã do escritor, Elza aproximou-se de forma solícita,


doce, gentil e compassiva. No início, ela passou a tomar conta das finanças do marido.
Depois que o filho Nelsinho foi solto é que ele passou a ser o mentor do dinheiro do pai,
entregando-lhe apenas uma parte. Nelsinho foi anistiado por conta de um apelo ao
presidente João Figueredo por carta e no programa de TV de Flávio Cavalcanti quando
Nelson já estava debilitado pela doença.

Antes do retorno da esposa, as irmãs cuidavam da saúde de Nelson,


principalmente Stella Rodrigues, que era médica. Após a morte do escritor, ela escreveu
uma biografia do irmão. Segundo Stella (1986), as irmãs tiveram suas visitas a Nelson
barradas pela esposa em conformidade com o filho, e depois passaram a ser impedidas
de visitá-lo, assim como também o foram os amigos, com a justificativa de que o
dramaturgo não poderia sofrer abalos emocionais. A autora apresenta um relato de um
amigo da família afirmando que Nelsinho se vingava da forma de pensar do pai ao
adotar tais atitudes. A irmã denominava Nelsinho de “carcereiro de olhar implacável e
impiedoso” e a indiferença dele, junto com a mãe, pelo estado de saúde de Nelson e
pelas vontades e desígnios deste, que não foram respeitados nem nesses anos finais nem
depois da morte do autor. Stella Rodrigues ainda relata outras atitudes do filho
esquerdista do escritor, como ter censurado uma capa na qual figurava uma imagem do
autor pintado por ela e ter mandado inutilizar mil capas do “Teatro completo de Nelson
Rodrigues” porque o nome de Stella Rodrigues aparecia na orelha do livro. Percebe-se
nessa biografia um grande ressentimento da irmã por ter sido mantida afastada de
Nelson nos últimos anos de vida deste. (RODRIGUES, 1986)

Próximo da morte, Nelson Rodrigues ficou temporariamente cego por conta da


saúde precária. Os reflexos foram reduzidos. Temia a cegueira porque via, na infância,
três cegos pedintes que vez por outra apareciam à sua rua. Escrevia sob o efeito de
crises cardíacas, tranquilizantes e febre alta.
Eu tenho várias crises de saúde que foram verdadeiras catástrofes
individuais. Então sonhei com todos os mortos da família. Sonhei com
o Carlos Lacerda, um sonho que considero profético, que foi poucos
dias antes de sua morte. Mas deixa isso pra lá. Sonhei com uma
senhora que foi minha vizinha e que eu não sabia que tinha morrido. E
outros mortos. Minha cunhada Maria Natália, meu irmão Paulo,
Milton, Mário Filho. Eu verdadeiramente os ouvia e, mais do que isso,
os via. Eles estavam me olhando, estavam esperando, e, quando
adquiri uma faísca de consciência, disse para todo mundo que me
cercava que eu estava no limite, no extremo limite da vida. Eles me
olhavam, me olhavam, e, com uma faísca de consciência que ainda
tive, disse a eles: Voltei! (RODRIGUES, 1986, p. 115)

Nelson Rodrigues morreu quase às oito horas da manhã do dia 21 de dezembro


de 1980. No mesmo dia acertou 13 pontos da loteria esportiva num bolão, mas a “flor de
obsessão” não resistiu a sete paradas cardíacas e morreu de “[...] trombose e de
insuficiência cardíaca, respiratória e circulatória.” (CASTRO, 1992, p. 420) Carlos
Heitor Cony tentou realizar o velório do escritor no Teatro Municipal, mas não
encontrou o secretário da prefeitura do Rio de Janeiro que poderia autorizar tal
cerimônia. No final das contas, o corpo foi velado numa capela, espaço tanto criticado,
do cemitério São João Batista. Compareceram ilustres personalidades da cultura
nacional como Austregésilo de Athaíde, Fernanda Montenegro e Fernando Torres, o
Presidente Médici, Arnaldo Jabor, Neville de Almeida, Zuenir Ventura, Dina Sfat,
Bruno Barreto e Walter Clark, entre outros. Foi enterrado com a bandeira do
Fluminense, seu “time de coração”, e deixou seis filhos.

Tinha plena consciência de que a morte e as humilhações foram fundamentais


para o desenvolvimento e consolidação da sua personalidade e da sua visão de mundo.
Temia o sofrimento da morte, mas não a morte em si. Granja (2009) aponta para um
contraponto entre a morte pranteada, quando é rodeada de relações comunitárias
amorosas, e a morte cercada de relações sem afetividade, típicas da sociedade moderna.
Nelson Rodrigues pode não ter tido a morte e o velório com os quais sonhara, mas os
admiradores, artistas, intelectuais e o povo que ele retratava o homenagearam e sentiram
o seu desaparecimento. Na biografia do autor, sua irmã agradece nominalmente e de
forma desenvolvida a todos os artistas, políticos, amigos e familiares que conviveram
com ele e o cercaram de afetividade; mas excluiu, de uma lista imensa de
agradecimentos, os nomes de Elza e Nelsinho. O perdão parece não ter-lhes sido
concedido e, assim tal qual os personagens do escritor, o ressentimento também faz
parte dos afetos.

Nelson Rodrigues não teve todos os entes queridos chorando a sua perda nem a
espetacularização do seu velório no palco. Não morreu de nenhuma das mortes que
imaginara em vida, alguma que não houvesse tempo nem para a dor nem para
arrependimentos. No seu enterro não houve cavalos de pelos dourados com plumas
negras na cabeça nem caixão com alças de ouro ou prata. Sem dálias, coroas e “cocô de
cavalo” “boiando” no asfalto. Não teve um cortejo fúnebre acompanhado por vários
carros. Não houve cavalheiros nas calçadas tirando o chapéu à sua passagem nem o
povo chorando, uivando e irrompendo em pranto causado por dores colossais na rua.
Nelson Rodrigues teve um velório de “dor disciplinada” na capelinha. Sua carência por
reconhecimento e admiração era quase como a de um cego pedindo esmola em seu
pires. O dramaturgo obteve a glória e a admiração, o elogio intelectual e a aclamação
pública ainda em vida, mesmo que alguns sonhos tenham sido desfeitos, e outros, nem
sequer iniciados. Ele pôde purgar muito das humilhações, frustrações e ressentimentos
através da sua arte confessional. A vida parece ter-lhe pregado uma peça, como a
Zulmira, mas o seu legado artístico permanece. Ele imaginava encontrar, após sua
morte, todos os mortos da família “[...] nas absurdas profundidades marinhas, onde as
águas têm frio e sonham.” (RODRIGUES, 2009a, p. 471) Assim, descansaria em paz e
“docemente unido” como irmão ao tempo dos mortos, pois acreditava na vida eterna.
Ao final, parece que “[...] toda a sua vida não passou de uma meditação sobre a morte.”
Cícero (apud MONTAIGNE, 1996, p. 416)

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