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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

O MITO
_____________________________
Imanência das Imagens

Hugo Bernardo Ribeiro Rebelo da Silva Barreiros


(Relatório do Projecto de Investigação)

Mestrado em Belas-Artes — Especialidade de Pintura


Dissertação e Projecto sob a orientação do Professor Dr. Tomás Maia
e a Investigadora Dr. Ana Pérez-Quiroga

2021

1
.

1. Sumário ................................................................................................................................................................... 3
2. Objectivos ................................................................................................................................................................. 3
3. Metodologia ...............................................................................................................................................................4
4. Circunscrição Temática ........................................................................................................................................4
I. Referências Artísticas
II. Referencias Teóricas
5. Projecto Artístico ................................................................................................................................................... 5
6. Estudo Teórico ......................................................................................................................................................13
I. Índice Geral ...................................................................................................................................................... 13
II. Descrição detalhada .................................................................................................................................... 14
III. Bibliográficas .............................................................................................................................................. 25
IV. Áudio-Visuais ............................................................................................................................................. 27

8. Índice Visual ........................................................................................................................................................... 27

2
PROJECTO: O MITO, IMANÊNCIA DAS IMAGENS

1. SUMÁRIO

A concepção deste projecto, uma proposta teórica paralelamente dedicada à prática


em artes plásticas, resulta da necessidade de fundamento e compreensão de um discurso
autoral — uma acção criadora pautada por interrogação. Constitui-se deste modo por
indefinições, produto de uma reflexão e de um pensamento inerentemente impulsionado por
códigos sobre questões míticas.

O Mito enquanto modelo relativo à génese e persistência do fazer artístico será o tema
estrutural desta investigação, uma proposta de estudo e indagação tendo em vista a essência
metafísica e a origem imanente das imagens — a herança do veículo incorpóreo do homem.
Assim, determinando o Rito como concepção de um símbolo de função primitiva, descreverei
a espiritualidade da obra enquanto fenómeno de um arquétipo profundo e consequência de
uma ontologia onírica.

Tal ciclo, veiculado no culto e no artefacto metamorfoseado em objecto artístico


contemporâneo, relata o princípio antropológico da linguagem enquanto primórdio de
potência mítica e narrativa sagrada. Uma ordem da memória, preservada pela força
permanente de um arquivo imaginário, um manancial étnico e legado multicultural pela
demanda de um étimo universal e sentido identitário.

Na senda desta ficção, de grandiosidade épica ou mitológica, contextualizo o gesto


artístico como confronto ou retoma de uma pulsão original — Um retorno actual ao nativo
reviver eterno — ou como proporia Mircea Eliade, um «tempo cósmico, cíclico e infinito», o
mito do eterno retorno.

Palavras-chave: Mito; Rito; Primitivismo; Arquivo; Imanência

2. OBJECTIVOS

1. O presente projecto almeja a investigação como principal objectivo, recorrendo a


uma circunscrição temática ancorada pela ideia do Mito. Pretende-se aprofundar conceitos e
ideias estruturais, solicitando o cruzamento de uma ciência humanista (antropológica) na
filosofia relativa à criação mítica intrínseca à linguagem artística.

2. Deste modo e designando autores, obras e pensadores relativos à produção do


pensamento visual, decorrerá uma análise para a descoberta de uma amplitude referencial.
Tal finalidade visa um conhecimento aprofundado e uma consolidação projectual
simultaneamente plástica e teórica.

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3. Desejo derradeiramente prolongar ou fortificar uma prática de trabalho autoral,
alicerçando a investigação enquanto lógica conceptual da obra. Esta metodologia destina-se
a inquirir sobre múltiplas potencialidades e a maior abrangência do processo artístico regido
por questões centrais.

3. METODOLOGIA

A Metodologia visa conciliar a pesquisa e formulação da Tese com a obra plástica,


um projecto progressivo em resposta aos conteúdos teóricos no âmbito do Mestrado. O teor
metodológico será livre nas analogias visuais e nas metáforas textuais em concordância com
um processo intuitivo.

Teórica: Organização bibliográfica focada em tópicos gerais e específicos, nas


múltiplas aproximações de uma leitura comparativa. A compilação textual agregará conceitos
globais tendo em vista a apreensão de ideias necessárias à área de estudo em questão.

Analítica: A pesquisa ligada maioritariamente a referências visuais provenientes do


fazer e da produção artística, resultará da catalogação e correlação de processos e linguagens
singulares regidas pela influência dos motivos míticos.

Prática: A feitura da obra artística nos seus diversos suportes plásticos, enquanto
testemunho de um pensamento simultaneamente sedeado numa lógica investigativa em
torno de um campo potenciador almejará um discurso interpretativo e original.

4. CIRCUNSCRIÇÃO TEMÁTICA
A seguinte listagem pretende uma breve selecção composta pelos principais artistas
e pensadores no âmbito do critério projectual regido por uma respectiva constelação temática
e propósito analítico.

I. Referências Artísticas

Narrando o mito inerente a práticas ritualísticas tribais, nomearei a obra de Kadder


Attia, Jimmie Durham, Alberto Carneiro ou Pablo Picasso enquanto testemunho modernista
ou contemporâneo de um fetishe apotropaico ou continuação de um alegado primitivismo.

Pela ideia de arquivo visual destacarei Gerhard Richter, Vija Celmins, William
Kentridge ou Bruno Pacheco, frisando a preservação da memória enquanto mítica
corporalizada no registo pictórico. Finalmente sobre o fenómeno metafísico ou espiritual da
arte nomearei as obras de Rui Toscano, Francisco Tropa, Ian Hamilton Finlay ou Andrei
Tarkovsky realçando a imanência enquanto sentido integral da obra.

— Kadder Attia, Jimmie Durham, Alberto Carneiro, Pablo Picasso, Gerhard Richter, Vija
Celmins, Jim Shaw, Bruno Pacheco, William Kentridge, Rui Toscano, Philip Glass, Andrei
Tarkovsky, Ian Hamilton Finlay, Francisco Tropa

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II. Referências Teóricas

Tomando a teoria como princípio ou estímulo do pensamento artístico focarme-ei


em diversos campos lógicos pela procura de respostas exclusivas, nomeadamente na
concepção antropológica de Claude Levi Strauss, na definição mitológica de Mircea Eliade
ou na «ciência imagética» de Hans Belting.

Sobre o impulso arquivista abordarei Hal Foster e Jacques Derrida equiparando a


metáfora do Atlas de Aby Warburg ou o Museu Imaginário de André Malraux como
resultado de um arquétipo ou acto mnemónico na sua dimensão documental. Na noção de
corpo inteligível convocarei o animismo pagão de David Abram, a visão critica de Tomás
Maia, a concepção metafísica de Martin Heidegger e ainda a ideia de imanência expressa no
pensamento demiúrgico Platónico.

— Gilles Deleuze, Jacques Ranciére, Hal Foster, Hans Belting, Claude Lévi-Strauss, Mircea Eliade,
Sabine Melchior-Bonnet, Tomás Maia, Jacques Derrida, George Bataille, Giorgio Agamben, David
Abram, André Malraux, Aby Warburg, Martin Heidegger

5. PROJECTO ARTÍSTICO

Partindo de uma obra alicerçada no desenho, o esqueleto compositivo e pensamento


formal do trabalho, recorro ao dispositivo pictórico na sua virtude plástica e tradição
iconográfica, a impressão enquanto multiplicidade da imagem e a instalação como imersão.

Desta maneira, fazendo uso de diversos suportes e veículos, do papel ao tecido, da


madeira ao metal e do espelho ao vidro, emprego tinta ou riscador e por vezes gravo ou
imprimo foto-mecanicamente. No geral, parto de uma procura contínua, prática ou exercício
radicado na tradição da disciplina, perseguindo a sua definição e posteriormente a derivação
de um campo expandido ou linguagem híbrida alargada.

Agrego deste modo a temática de um pensamento ancorado conceptualmente por


conteúdos relativos à investigação — a questão mítica e primitiva sobre a essência artística, a
iconografia arquivista referente à criação de imagens ou a metáfora de uma simbólica
metafísica contida no objecto de culto contemporâneo.

Afirmo o que por norma apreendo na produção serial suportada por sucessiva
experimentação, a repetição e procura empírica de regras contaminadas por inéditas soluções
e o impulso da mudança para novas indagações.

Em suma, anseio potenciar a obra pela invenção de novas possibilidades discursivas


através de um dispositivo complexo composto pelo engenho da pintura no seu sentido
actualizado. No fundo, o desejo de uma sucessiva duplicação ou variabilidade do sentido face
a uma idiossincrática progressão autoral.

5
Fig.1 Meta-Reflexo #1-4 (primitivismo), 2020. Óleo e resina s/ vidro e espelho, cimento, 60 x 80 cm (vidros)
Galeria Mota Galiza, Porto (vista instalativa)

Fig.2 Sem título (meta-ocular), 2020. Óleo sobre tela, 140x140cm

6
Fig.3 Objecto anamórfico (arqueologia), 2017. Óleo s/madeira e metal cromado, 120 cm (diâmetro)
Museu Geológico, Lisboa (vista instalativa)

Fig.4 Objecto Anamórfico (cosmologia), 2017. Óleo s/ madeira e aço polido, 55 cm (diâmetro)

Fig.5 Objecto Anamórfico (oceanologia), 2018. (detalhe). Óleo s/madeira e aço polido, 60 x 60cm
(detalhe)

7
Fig.6 Anamorfose (objectos), 2019. Óleo s/madeira, 60 x 60 cm

Fig.7 Anamorfose (cosmologia), 2019. Óleo s/madeira, 60 x 60cm

8
Fig.8 S/Título (objectos), 2019. Óleo s/tela, 150 x 200 cm

Fig.9 Anamorfose (aerologia), 2019. Óleo s/madeira, 220 cm (diâmetro)

9
Fig.10 S/Título (cosmologia), 2018. Óleo s/madeira, 30 x 40 cm. AZAN, Lisboa (vista expositiva)

Fig.11 S/Título #1-5 (cosmologia), 2017. Gravuras e cianotipias s/papel, 50 x 60 cm; 30 x 40 cm


Locus19, Lisboa (vista expositiva)

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Fig.12 S/Título (objectos), 2019. Grafite, carvão e foto-transferência s/papel, 145 x 187 cm

Fig.13 Monotipia (antropomorfia), 2017. Impressão a óleo s/papel, 100 x 70cm

11
Fig.14 S/Título (osmóptico), 2017. Água-tinta s/papel, 70 x 50 cm

Fig.15 Maqam (primitivismo), 2020. Carvão, grafite, chine-collé


e foto-transferência s/papel, 70 x 50 cm

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6. ESTUDO TEÓRICO

O presente estudo descreve detalhadamente o Projecto Investigativo na sua vertente


teórica, incluindo a síntese de um índice geral sobre os capítulos previstos para a Tese de
Mestrado acompanhada dos respectivos ensaios introdutórios e comparativos sobre as
diversas temáticas

ÍNDICE GERAL

1. INTRODUÇÃO: O MITO (Origem)


- Reporta o mito na sua génese primitiva e concepção primordial, a definição
da sua origem (arquétipo) na relação com o gesto criador.

2. CAPÍTULO I: RITO APOTROPAICO (Primitivismo)


- Concepção do gesto artístico enquanto alusão de um alegado ritual originário
no artefacto e no culto de função invocatória apotropaica.

3. CAPÍTULO II: MNEMÓNICA DO ARQUIVO (Memória Visual)


- Classificação do Arquivo como preservação da memória testemunhada pelo documento
como repositório visual e manancial discursivo.

4. CAPÍTULO III: ANTROPOLOGIA OCULAR (Multiculturalismo)


- Raiz antropológica referente a vocabulários etnográficos designados por multiculturalismo
e hibridez no contexto contemporâneo.

5. CAPÍTULO IV: BROTAR DO ESPÍRITO (O Imanente)


- Dimensão imaterial da obra descrita pela simbólica de códigos sobre uma índole
metafísica ou imanente.

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1. O MITO (Origem)

Fig. 1 Homem-Leão (Löwenmensch),


Holenstein-Stadel (Alemanha), c. 31.000 – 35.000 A.C.

“O Mito é uma história do tempo em que os homens e os animais ainda não eram diferentes” 1
Claude Lévi-Strauss, De Perto e de Longe

Considerando a génese do Mito enquanto linguagem inerente à soberania de


narrativas sobre a «valorização metafísica da existência humana», referindo o «regresso
periódico ao tempo das origens», abarcarei a sucessiva repetição consubstanciada na criação
enquanto gesto que contempla um desejo inteligível e primordial. 2

Assim, e equacionando «problemas fundamentais», enquanto meio de conhecimento


e reflexão sobre uma «ontologia arcaica», falarei do símbolo aliado ao mito e ao rito enquanto
reviver de um sistema invocatório.3 Neste significado utópico, o Mito expressa uma «verdade
absoluta» baseada numa narrativa sagrada, tomando um modelo «exemplar ou universal»
resultante da formulação de uma «linguagem eterna». 4

Emergindo de um «universo onírico», em dinamismo e tensão entre sonhos e


imaginação, surgem símbolos, imagens e figuras sobre acontecimentos ocultos, um discurso
mitológico. Na «auto-definição» da sua narrativa fenomenológica, facto ou acontecimento
espiritual que suplanta e transcende, o Mito excede a compreensão natural. 5

Nesta experiência ou conhecimento simbólico sobre o fenómeno mítico resulta uma


«posição ou coordenada metafísica», Mircea Eliade descreve poeticamente a presença desta
ausência — “Mas, se a palavra falta, a coisa existe: só que ela é «dita», isto é, revelada de
modo coerente — por símbolos e mitos. “6

Desta maneira, uma eventual «eficácia mítica» definida pelo símbolo, afirma um
«fundamento ritualístico» pela transição da realidade biológica até à psicológica, partindo de
uma exteoridade até à uma interioridade, o campo para a possível intimidade do «sonho».7
______________
1. Lévi-Strauss, Claude. De Perto e de Longe, Nova Fronteira (trad. Léa Mello e Julieta Leite), 1990. p.178
2. Eliade, Mircea. Mito do Eterno Retorno, Edições70 (trad. Manuela Torres), 2019. p.9
3. Idem. p.10, 13
4. Eliade, Mircea; Mitos, Sonhos e Mistérios, Edições70 (trad. Samuel Soares), 2019. p.9,15
5. Idem. p.8-15
6. Eliade, Mircea. Mito do Eterno Retorno, p.13
7. Lévi-Strauss, Claude. Structural Anthropology, Basic Books, 1963. pp.193-207 14
Enquanto «símbolo», atentemos o artefacto proveniente da gruta Holenstein-Stadel
(Alemanha) originário do 3º milénio a.c. (fig.1), a ancestral estatueta em marfim esculpido
figurando uma criatura zoo-antropo-mórfica, besta humana (teriantropo) ou homem-leão —
«corpo vivo» afirmado por uma «supernatureza» de potência mítica.7 Tomemos
metaforicamente a sua autoridade sagrada e “postura aureolar” enquanto artefacto de
hierofania e mítica individualizante, tal como prenuncia Eliade:

“Entre muitas outras pedras, uma torna-se sagrada (...) impregnada de ser - porque constitui uma
hierofania (...) porque a sua forma reflecte um certo simbolismo, ou ainda porque comemora um acto mítico
(…) O objecto surge como um receptáculo de uma força exterior que o diferencia do seu meio e lhe confere
significado e valor (…) Incompreensível, invulnerável, ela é aquilo que o homem não é — Uma pedra vulgar
será promovida a «preciosa», ou seja, impregnada de uma força mágica ou religiosa em virtude da sua forma
simbólica única ou da sua origem” 8

Em suma o homem procura a «revolta contra o tempo histórico», integrando o


infinita nostalgia mítica da repetição, na esperança da «abolição do tempo».— Deste modo,
«os arquétipos surgem enquanto meta-narrativas» sobre a actividade da morte e do
nascimento, «a criação de um homem novo num plano supra humano, homem deus evadido
da história» participando ele próprio no «estatuto ontológico do universo».9

Cueva de las Manos (fig.2), grupo de cavernas localizado em Santa Cruz (Argentina),
complexo arqueológico na paisagem da Patagónia, demonstra em pinturas rupestres (13.000-
9.000 a.c) a remota presença humana retratada por silhuetas do passado, mãos de toda uma
comunidade no seu refúgio. Esta imagem Mítica constitui um «contar» sobre a presença de
outrora, um veículo e relato sobre uma «mimética identificatória».10

Eudoro de Sousa proporia que na busca desse ser-original humano, «sobre um


abismo sem fundo», encontraríamos a «intimidade do homem dentro de qualquer um dos
homens».11 O mito resume-se desta forma a algo essencial — “que nos põe diante do
Princípio e do Fim, mas do Fim que se religa ao Princípio — o mito da Origem.” 12

Fig. 2 Cueva de Las Manos, Perito Moreno (Argentina), c. 9.000 – 13.000 A.C.
______________
7. Julian Bell, O Espelho do Mundo – Uma Nova História da Arte, Orfeu Negro, 2009. p.12
8. Eliade, Mircea. Mito do Eterno Retorno, p.14
9. Idem, pp.135-139
10. Lacoue-Labarthe, Philippe e Nancy, Jéan-Luc. Le mythe Nazi, Éditions de l’aube, Paris, 1991. pp.32-40
11. Sousa, Eudoro. Mitologia – História e Mito, IN Casa da Moeda, 2004. p.27
12. Idem. p.50
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2. RITO APOTROPAICO (Primitivismo)

Fig.3 Ritual Makishi, Tribo Chowke (Zâmbia) Fig.4 Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern
Museu de Arte Moderna (MoMa), Nova Iorque. 1984 (vista expositiva)

D'où Venons Nous? Que Sommes Nous? Où Allons Nous? — De onde vimos? Quem somos? Para onde vamos? 1
Paul Gaugin, Summa 1897-98

Seguindo a epígrafe de Gaugin sobre uma acepção primitiva, indígena ou nativa pelo
que de ritualístico, mágico ou xamânico poderá conter, analisarei estéticas, códigos e crenças
enquanto estruturas fundamentais para um diálogo entre o passado e o presente, o lugar
temporal dos vivos e a infinitude dos mortos.

Dessa forma e analisando a cerimónia Mize encenada pela tribo Chowke, povo
autóctone do sudoeste Africano (Zâmbia) entre Angola e o Congo, atentarei à representação
ancestral de espíritos invocados por ritos dançantes na mascarada Makishi (fig.3), uma crença
primitiva sobre a voz dos mortos em concílio com os mortais.2

Encarnando outras entidades, jovens mascarados realizam um acto iniciático


(mukanda), pernoitando num cemitério possuídos por «máscaras», representam e revivem
formas antepassadas e arquétipos improváveis sobre a existência. Empregando materiais
embebidos de poder espiritual, «máscaras incompreensíveis» sobre “reflexões ocultas imersas
de significado”, involuntariamente libertam-se das palavras — a máscara torna-se desta
maneira um meio para a «transformação exterior», uma possível alteridade 3

Deste modo o “nativo aceita o símbolo” enquanto «poder mágico» e a manifestação


de uma visão corporalizada por artefactos e objetos descritivos de um «mundo onírico»,
possivelmente uma realidade mítica ou metafísica «entre o homem e o animal».4 Tais figuras
desconhecidas, presenças de um “saudoso espírito benigno ou temível sombra irracional da
humanidade”, afirmam «consolando ou ameaçando», a «aparição e presságio» de uma
autoridade e epifania co-partilhada.5
______________
1. Foster, Hal. Prosthetic Gods, MIT Press, 2004. Gaugin, summa [1987-98]. p.5
2. Jórdan, Manuel. Makishi: Mask Characters of Zambia, Fowler Museum, 2006
3. Bell, Julian. Espelho do Mundo – Uma Nova História de Arte, Orfeu Negro, 2009. pp.24-25
4. Gombrich, Ernst H., A História da Arte, Phaidon Press, 2008. pp.40-46
5. Sloterdijk, Peter. Sobre a viragem antropotécnica – Tens de Mudar de Vida, Relógio de Água, 2018. p.13

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Transportando o significado ritualístico do seu contexto primitivo até à
modernidade, aponto a exposição Primitivism in 20th century Art (fig.4) enquanto emblema e
transferência de uma mística para o cenário artístico ocidental. A iniciativa testemunha um
multiculturalismo uno na relação entre obra de arte moderna e artefacto tribal, uma analogia
entre o primitivo e o civilizado, a encenação de um lugar de curiosidades (kunstkammer) ou
um diálogo sobre uma alterada mitologia.

Pablo Picasso enquanto expoente absoluto desta Modernidade e apropriação


primitiva de uma pretensa «magia» ou linguagem obscura ao serviço do artifício (arte),
possibilita a abstracção metamorfoseada geometricamente até ao Cubismo.6 Em 1907 na
visita ao Museu de Etnologia (Museé de L’Homme) no Trocadéro (Paris) Picasso faria a
descoberta destes objetos exóticos, artefactos e arqueologias místicas, da qual resultaria uma
revelação paradigmática e um alterado estado de espírito.6

Em conversa com André Malraux (1937), descreveria as Demoiseles d’Avignon (fig.4)


como o seu primeiro «quadro sobre exorcismo», sugerindo que “as obras de arte tribais
avistadas seriam objetos mágicos, interceptores contra tudo, contra o desconhecido –
espíritos ameaçadores”. Declararia que «os mesmos seriam armas para afastar as pessoas de
serem dominadas por espíritos, de forma a libertá-las».7

Nesta epifania pela “simultânea atracção ou repulsa primitiva”, emerge o “desejo por
uma identidade alternativa”, a vontade de «possuir o primitivo» enquanto objeto de
identificação ou «rendição», comprova-se a procura de uma «natureza selvagem» inclusa no
próprio «âmago civilizacional».8

No seu «valor ritualístico, poder fetiche» ou «magia bélica», apotropaica, emerge um «veículo
contra os espíritos», um “desejo suspenso entre identificação, atracção e ansiedade”9. Em
Demoiseles D’Avignon compreende-se a expressão de uma «alteridade sexual» simbolizada por
figuras femininas primitivas, alegadamente «prostitutas» invocadas enquanto «armas».10

Sobre esta «objectualidade protectora», rege um alegado exorcismo para uma


libertação. Hal Foster refere os fetishes primitivos enquanto o potenciar imaginativo de
«projecções intensas», uma demanda sobre “histórias únicas, heróis fictícios, implicações de
enigma e desejo” – transparecem «representações apotropaicas» sobre uma «alteridade
racial».11
Em suma «a cena primitiva» (conceito Freudiano) reclama uma «acção performativa
especial, um reencenar ou renascimento no lugar do outro» — um “ritual de passagem para
a vida «selvagem»”. Tais «mitos fundadores» afirmam ultimamente um «idioma sobre o medo
e o desejo» sobre as profundezas da psicologia humana.
— Evoca-se um «regressar à origem e à própria infância da humanidade».12
______________
6. Picasso Primitif – Musée Du Quai Branly, Flammarion, 2017
7. Rick Rubin sobre Picasso, Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern, MOMA [1984]. 2002
8. Foster, Hal. Prosthetic Gods, MIT Press, 2004. p.31
8. Idem pp.8-12
9. Idem pp.32-46
10. Idem. (prefácio). p.12
11. Idem p.21
12. Idem p.46 17
3. ANTROPOLOGIA OCULAR (Multiculturalismo)

Fig. 5 Magiciens de la Terre, 1989. Grand Halle Parc de la Villette, Paris. Fig.6 Jimmie Durham, Elk, 2017.
(vista da exposição) Migrosmuseum, Zurique (vista instalativa)

A paradigmática exposição Magiciens de la Terre (fig.5), apresentada no centro George


Pompidou e simultaneamente em Halle de la Vilette em Paris (1989), surge como mostra
internacional contemporânea reunindo artistas de proveniência global. Comissariada por
Jean-Hubert-Martin, enquanto proposta divergente do «cânone ocidental» pela inclusão de
cruzamentos culturais distintos, anuncia uma selecção aglutinante de linguagens provenientes
da Ásia, África, Médio Oriente, América Latina e povos da Oceânia.1

Contra a hegemonia ditada pelo Ocidente, um refúgio de herança etnocentrista e


tradição colonialista, a referida iniciativa contraria o descrédito pela divergência geográfica,
declarando a importância de uma pluralidade etnográfica e complementaridade cultural.
Hubert-Martin condenando a armadilha de um preconceito sobre as culturas nativas furta-
se à apropriação caricatural empobrecedora da sua génese simbólica, íntegra e profunda.2

A pertinência desta exposição repercute até à actualidade pelo revolucionário tema,


um protótipo e limiar de pensamento sobre a descentralização do discurso artístico. Na
dinâmica global de comunicação massificada, nos seus polos de mercado, nomadismo
artístico, agendas e poder cultural «geo-político» ou institucional chega a urgência de um
debate acerca do futuro identitário intrinsecamente universal e «dentro de nós».3

Sobre esse motivo evoco Kader Attia (1970), artista de ascendência franco-argelina
usuário de uma apropriação arquivista e jogo combinatório repleto de analogias e misturas.
Falarei do ponto de contacto e das divergências entre culturas modernas ocidentais e
primitivas de origem étnica, uma equivalência ou substituição (metonímia) pelo restituir da
memória, algo que o artista agencia através da sua recuperação ou tal como descreve, «na sua
reparação».4
______________
1. Martin, Jean-Hubert. Magiciens de la Terre : Retour sur une exposition légendaire, Centre Georges Pompidou, 2014
2. Cohen-Solal, Annie. “Revisiting Magiciens de La Terre”, Stedelijk Journal, 2020
fonte: https://stedelijkstudies.com/journal/revisiting-magiciens-de-la-terre/
3. Ibidem
4. Attia, Kadder. Repair, Black Jack Editions, 2014

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Estes objectos e simulacros de cariz arqueológico ou documental (fig.7), artefactos
étnicos (objets trouvés) e dissimulações tribais, representam lugares de fetiche e de catarse, a
revisitação de uma «herança resgatada». Prenuncia-se a uma procura ancestral, um
sentimento de nostalgia pelo reencontro de uma fonte de origem e quiçá lugar primitivo, uma
realidade perdida sobre a génese da arte.

Acresce uma reflexão antropológica e política sobre deturpações pós-colonialistas e


paternalismos raciais, autoria das civilizações europeístas reclamando a imposição do
progresso e da modernização. Sobre a presente questão Serge Gruzinski defende o referido
conceito proposto por Said — “Tal como demonstrou Edward Said em Orientalismo, o
Ocidente orientalizou o Oeste de modo a controlá-lo. Ao enfatizar a ideia de que o progresso
seria sinónimo do hoje e do amanhã, mas nunca do ontem, o Ocidente excluí a tradição e a
cultura dos povos não ocidentais das suas vidas.” 5

Pressupõe-se uma alegada «ferida histórica», ilibadora da perda do passado, fabrica-


se um tributo que «recupera e sara» a ascendência de uma proveniência que se «remodela e
eterniza», é este o processo realizado por Kadder Attia. Uma reflexão simbólica em torno da
narrativa multicultural, a demanda hipotética de múltiplos artefactos, recuperando e
recriando, numa mistura secularizada e num «teatro de ecos» para o advento mitológico de
um primitivismo resgatado para a luz do presente.6

Nesta suposta reparação ou re-convocação histórica, uma nova antropologia sobre


objectos de sociedades em reconstrução etnológica, permite uma equivalência ou extensão
do real e um desdobrar identitário. A obra de Jimmie Durham (fig.3) e semelhantemente as
palavras de Gilles Deleuze personificam tal hipótese: “Identidade e semelhança deixariam de
ser ilusões evitáveis – em outras palavras, conceitos de reflexão referentes ao nosso
inveterado hábito de pensar sobre a diferença no pressuposto de uma categoria
representativa.” 7
______________
5. Gruzinski , Serge. Repair: Architecture, Reappropriation, and The Body Repaired, 2013
fonte: http://kaderattia.de/repair-architecture-reappropriation-and-the-body-repaired/
6. Ibidem
7. Deleuze, Gilles. Diference and repetition, Bloomsbury, 2014. p.146

Fig.7 Kadder Attia, Sacrifice and Harmony, 2016


Museu de Arte Moderna, Frankfurt (vista instalativa).

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4. MNEMÓNICA DO ARQUIVO (Memória Visual)

Fig. 8 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, [1924-29]


Haus der Kulturen der Welt, Berlim, 2020 (vista instalativa)

“A memória é o grande critério da arte; a arte é a mnemotecnia do belo” 1


Le souvenir était le grand criterium de l’art; l’art est une mnémotechnie du beau — Charles Baudelaire, 1846

Reflectindo sobre a definição de arquivo e memória, enquanto repositório de objetos e


documentos regidos por um arquétipo ou «comando» de «ordem histórica», abordo o «lugar
de começo» do «fundamento ontológico» do homem.2 O Arquivo «em si» designa este
«princípio primitivo», uma «raiz original», manifesta metaforicamente por uma ideia de
«domicílio» materializada em «documentos guardiões» estruturais para a própria civilização.3

Assinalando o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg (fig.8) enquanto testemunho deste


mesmo arquivo, investigação ou exercício de preservação da memória (mnemónica), sobre a
revisitação iminente de «um retorno à origem», atento sobre Jacques Derrida quanto a uma
«compulsão ou nostalgia pelo desejo do arquivo» — a procura do «lugar do começo mais
arcaico e absoluto» — uma ideia de «pertença ao mundo».4

Imaginando esta figura mitológica do Atlas, enquanto acção de preservação ancestral,


equiparo o gesto de André Malraux emblematizado no Museu Imaginário 5 enquanto
evidência de um repositório e discurso conceptual fértil — inéditas possibilidades e um
usufruto documental ilimitado, o conteúdo enquanto princípio fundamental da criação.

A obra de Gerhard Richter, o Atlas e resultante produção pictórica, especificamente


os 48 retratos (fig.9), representação Alemã na Bienal de Veneza de 1972, afirma a dita
referência enciclopédica e o questionar iconográfico sobre uma «identificação colectiva
paterna». Nesta instalação em formato de pequeno «mausoléu» Europeísta, fotografias
corporalizadas pictoricamente, num reflexo cultural sobre o passado denuciam um silêncio
simbólico sobre um «presente eternamente sem resposta».6
______________
1. Baudelaire, Charles. Salon 1846 – Curiosités Esthétiques, Michel Levy Editeurs, 1868. p.138
2. Derrida, Jacques. Archive Fever: A Freudian Impression, University of Chicago Press (trad. Eric Prenowitz), 1998. p.9
3. Ibidem
4. Idem. p.57
5. Referência ao «Museu Imaginário», autoria de André Malraux [1935]. Edições70, 2011.
6. Gerhard Richter at MACBA Collection, 2000 — https://www.macba.cat/en/art-artists/artists/richter-gerhard/48-portraits

20
Fig. 9 Gerhard Richter, 48 Retratos, 1972
Permanente no Museu Ludvig, Colónia, Alemanha (vista expositiva)

Derradeiramente a contemporaneidade afirma-se enquanto «nostalgia arquivista»7,


seja nos simulacros cosmológicos de Vija Celmins, vistas Museológicas de Thomas Struth,
imagens recombinadas de Batia Sutter ou narrativa ficcional de Wallid Raad no colectivo
Atlas Group — assim, confirma-se o documento artístico enquanto registo de teor
enciclopédico ou coleccionista.

Deste modo a operação arquivista alude a um «estado secretivo embebido de


potência», espaço impenetrável e «por transpor». Nas palavras de Jacques Le Goff “o
documento expressa o passado (ou presente), o poder da sociedade sobre a memória e sobre
o futuro: o que resta é o documento.” 8

Neste mesmo pressuposto, o arquivo na qualidade onírica, duplamente «factual e


fictícia», «universal ou privada» e fruto de “uma acção transformadora de «lugares de
escavação» em “lugares de construção” 9, resulta numa possível arqueologia mítica.9
Hal Foster declara-o (arquivo) como «objecto museológico», na tarefa de «restituição ou
ampliação» de um sentido histórico, na função mnemônica enquanto dissipação de um
«arquivo virtual», a«função aureolar» de um espetáculo sobre o fenómeno arquivista. 10

Aproprio-me das palavras de Ilya Kabakov sobre a obra The Man Who Never Threw
Anything Away (1996), reforçando a presente hipótese sobre o indispensável renascimento
da memória por via do documento enquanto fabricação mítica e herança para a fabricação
de uma futura identidade.

“Um simples sentimento sobre o valor e a importância das coisas (...) esta é a
memória associada a todos os eventos ligados a cada um destes documentos. Privarmo-nos
destes testemunhos e documentos simbólicos, é privarmo-nos de nós mesmos e de algum
modo das nossas memórias. Na nossa memória tudo se torna igualmente valioso e
significativo. Todos os pontos das nossas recolecções estão inter-ligados. Juntos formam
cadeias e conexões na nossa memória, algo que derradeiramente define a história da vida” 11
______________
7. Derrida, Jacques. Idem. p.57
8. Le Goff, Jacques. History and Memory, trad. Steven Rendall - Elizabeth Claman, Columbia University Press, 1996. p. 59-60
9. Foster, Hal. An Archival Impulse, October books, 2004. p.5
10. Idem. p.190
11. Kabakov, Ilya. The Man Who Never Threw Anything Away, Harry N. Abrams, 1996. p.33

21
5. O BROTAR DO ESPÍRITO (Corpo Imanente)

Fig.10 Ian Hamilton Finlay, Little Sparta (See Poussin Hear Lorrain),
c.1966 – 1991. Pentland Hills (Edimburgo)

Little Sparta, a derradeira obra do casal Sue e Ian Hamilton Finlay, um jardim onírico
nas imediações de Edimburgo (Escócia), recria conceptualmente um terreno íntimo e um
simulacro utópico Arcádico. Nas 270 «paisagens específicas» (termo empregue por Finlay) um
megalómano empreendimento integra esculturas, artefactos e templos fictícios, configurando
aforismos filosóficos sustentados por uma narrativa poética e autêntica compulsão
mitológica.1

Num dos inúmeros locais, uma placa em pedra semelhante a uma lápide, enuncia
numa epígrafe ou possivelmente num epitáfio, a parábola ⎯⎯ See Poussin Hear Lorrain (fig.10).
Tal mensagem reporta à paisagem numa referência sobre o ver e ouvir do lugar. Analogamente
a alusão a Claude Lorrain e Nicolas Poussin sugere uma estética pitoresca, o representar do
movimento do vento, a quietude e silêncio das folhagens ou a flutuação da água, uma
experiência sensível sobre o espírito que brota.2

Neste jardim ecoa um silêncio incluso ⎯⎯ um pousio onde reverbera um animismo


pagão ou potência mágica contida no campestre. De acordo com David Abram, a
manifestação de uma «magia sensível» num lugar onírico ⎯⎯ Assim, e “juntamente com os
outros animais, as pedras, as árvores e as nuvens, somos personagens dentro de uma imensa
história que está a desdobrar-se visivelmente à nossa volta, participantes na vasta imaginação,
ou sonho, do mundo.” 3

No fundamento de que «nada é permanente», comprova-se a «natureza que se


oculta», algo que mesmo na «morte faz nascer» (physis, kryptestai, phileî) 4 e que se desvela numa
omissa e fugaz presença intra-natural. Hegel abordaria este mesmo paradoxo, na tese de que
«por detrás da hipotética cortina que esconde o mundo interior, nada poderia ser
vislumbrado», a menos que «atravessássemos para o outro lado»5 ⎯⎯ assim designaria a
realidade contida por uma interioridade inexplicável.
______________
1. Com referência: https://www.littlesparta.org.uk/
2. Sheeler, Jessie. Little Sparta: A Guide to the Garden of Ian Hamilton Finlay, Birlinn Ltd, 2015
3. Abram, David. Magia do Sensível, Fundação Calouste Gulbenkian (trad. João Duarte), 2007. p.167
4. Heráclito. Fragmentos, Imprensa Nacional Casa da Moeda (trad. Alexandre Costa), 2006. fr. 123
5. Hegel, Friedrich. The Phenomenology of Spirit , Cambridge University Press (trad. Terry Pinkard), 2018. p.101

22
De igual maneira Heidegger ao declarar que «as verdadeiras coisas seriam a pedra, o
outeiro, o pedaço de madeira, coisas inanimadas da natureza e do uso» 6 anunciaria a condição
imanente do mundo. Seria por via deste «instalar do mundo e produzir da terra na própria
obra», que se poderia alcançar a «verdade intrínseca à Natureza». Concluiria que ⎯⎯ «quem daí
a conseguisse arrancar, possui-la-ia.» 7

No encalço desta força que jaz, incorpórea e sobrenatural, consagrarei a sepultura e o


corpo jacente enquanto símbolo da ressurreição que brota na deposição. «No corpo que
voltará para o pó da terra, de onde veio, e no espírito que voltará para quem o deu» 8, traço a
obra Gigante (fig.11, p.24) de Francisco Tropa como signo deste pacto conjugal, contínuo e
gigantesco ⎯⎯ o espírito em uníssono e a humanidade embebida de carácter eterno.

Sobre tal visão, Tomás Maia alega que «enterrá-los seria a maneira de os tornar
intocáveis», de «inumá-los em si», numa espécie de «mediação da morte».9 Estes «dois
esqueletos abandonados»10 seriam ultimamente prestados a um interminável renascimento,
produto do rito de que quem «cultua os mortos como origem da cultura»11 e sob a tutela da
arte enquanto força criadora de objectos animados por corpos «mortos-imortais».12

Maia revela que a «arte fala de algo que não foi vivido», permitindo assim «revivê-lo
miticamente» no plano de uma «suposta vida futura». Sobre esta evidência, eis como engloba
a respectiva questão ⎯⎯ “A exumação repetida (mítica) começa depois do princípio (...) Tudo
parece indicar uma operação arqueológica (...) trata-se da repetição do primeiro rito. O
princípio já é repetido: estes ossos provêm de todos os lugares da terra, e os dois esqueletos
deitados (...) são na realidade múltiplos do mesmo esqueleto natural.”13

Na verdade, será neste «momento do sono que se transforma num caminho sem
regresso» que advém a «reflexão sobre a morte e a infinita ressurreição» 14, a transformação
de corpo e «peso da matéria» a «leveza do espírito»15. Poderá contemplar-se a máxima de
Platão como síntese do fenómeno da imanência, a razão de um «espírito mais fecundo do
que o corpo»16 ⎯⎯ a potência da vida depois da morte. Eis o momento do novo-lugar, o
fundamento de que “os olhos do espírito só começam a ver quando os do corpo se fecham”17

______________
6. Heidegger, Martin. A Origem da Obra de Arte, Edições70 (trad. Maria da Conceição Costa), 2004. p.15
7. Idem, pp.38-56
8. Bíblia Sagrada (Jerusalém), Livro Eclesiastes 12:7, Edições Paulistas, 1989. p.1180
9. Maia, Tomás. Arqueologia do não-saber Gigante), Galeria Quadrado Azul, 2010. pp. 10-11
10. Idem, p.16
11. Maia, Tomás. Res Prima, Sistema Solar (Documenta), 2019. p.5
12. Idem p.8
13. Arqueologia do não-saber, pp.12-14
14. Chafes, Rui. Entre o Céu e a Terra, Sistema Solar (Documenta), 2012. p.22
15. Idem, p.19
16. Platão, O Banquete (O Simpósio), Guimarães Editores (trad. Pinharanda Gomes), 2003. p. 101
17. Idem, p.121

23
Fig. 11 Francisco Tropa, Gigante, 2006. Galeria Quadrado Azul (detalhe)

24
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16x9 PB e Cor, 125 minutos. Leopardo Filmes, Obra Integral, 2016

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https://www.mariangoodman.com/exhibitions/314-william-kentridge-the-magic-flute-drawings-and-
projections/

HOCKNEY, David [1978] – The Magic Flute - Die Zauberflöte (W. Mozart, 1791), Deutsche
Grammophon, 16:9 Cor, 180 minutos, 1991
https://thedavidhockneyfoundation.org/series/the-magic-flute

REGGIO, Godfrey [1983-2002] – The Qatsi Trilogy (Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Naqoyqatsi),


Criterion Collection, 1:85, Cor, 274 minutos, 2012.

ÍNDICE VISUAL

I. Projecto Artístico [Todo o registo fotográfico do trabalho é da autoria do artista]

Fig.1 - Meta-Reflexo #1-4 (primitivismo), 2020. Óleo e resina s/ vidro e espelho, cimento,
60x 80 cm (vidros), Galeria Mota Galiza, Porto (vista instalativa)

Fig.2 - Sem título (meta-ocular), 2020. Óleo sobre tela, 140 x 140 cm

Fig.3 - Objecto anamórfico (arqueologia), 2017. Óleo s/madeira e metal cromado,


120 cm (diâmetro). Museu Geológico, Lisboa (vista instalativa)
Fig.4 - Objecto Anamórfico (cosmologia), 2017. Óleo s/ madeira e aço polido,
55 cm (diâmetro)

Fig.5 - Objecto Anamórfico (oceanologia), 2018. (detalhe). Óleo s/madeira e aço polido, ´
60 x 60cm (detalhe)

Fig.6 - Anamorfose (objectos), 2019. Óleo s/madeira, 60 x 60 cm

Fig.7 - Anamorfose (cosmologia), 2019. Óleo s/madeira, 60 x 60cm

Fig.8 - S/Título (objectos), 2019. Óleo s/tela, 150 x 200 cm

Fig.9 - Anamorfose (aerologia), 2019. Óleo s/madeira, 220 cm (diâmetro)

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Fig.10 - S/Título (cosmologia), 2018. Óleo s/madeira, 30 x 40 cm. AZAN, Lisboa (vista
expositiva)

Fig.11 - S/Título #1-5 (cosmologia), 2017. Gravuras e cianotipias s/papel, 50 x 60 cm; 30x40
cm. Locus19, Lisboa (vista expositiva)

Fig.12 - S/Título (objectos), 2019. Grafite, carvão e foto-transferência s/papel, 145x187cm

Fig.13 - Monotipia (antropomorfia), 2017. Impressão a óleo s/papel, 100x70cm

Fig.14 - S/Título (osmóptico), 2017. Água-tinta s/papel, 70x50 cm


[ Osmóptico, gravuras a quatro-mãos: Hugo Bernardo e Ana Rafael, 2017 ]

Fig.15 - Maqam (primitivismo), 2020. Carvão, grafite, chine-collé e foto-transferência s/papel,


70x50 cm [Maqam, desenhos a quatro-mãos: Hugo Bernardo e David Correia Gonçalves,
2017]

II. Ensaios [Proveniência das Imagens]

Fig.1 - Homem-Leão (Löwenmensch), Holenstein-Stadel (Alemanha), c. 31.000 – 35.000


A.C. Domínio: Ulmer Museum Fonte: https://www.researchgate.net/figure/The-therianthropic-
statuette-Loewenmensch-from-the-Hohlenstein-Stadel-cave-photograph_fig4_286381212

Fig.2 - Cueva de Las Manos, Perito Moreno (Argentina), c. 9.000 – 13.000 A.C. Domínio:
Público. Fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Cueva_de_las_Manos

Fig.3 - Ritual Makishi, Tribo Chowke (Zâmbia) Domínio: François d’Elbe. Fonte:
https://www.francoisdelbeephotography.com/chokwe/

Fig.4 - Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern
Museu de Arte Moderna (MoMa), Nova Iorque. 1984 (vista expositiva). Domínio: MoMa.
Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/1907/installation_images/24718

Fig.5 - Magiciens de la Terre, 1989. Grand Halle Parc de la Villette, Paris


(vista da exposição). Domínio: Centre George Pompidou
Fonte:https://www.centrepompidou.fr/fr/programme/agenda/evenement/c5eRpey

Fig.6 - Jimmie Durham, Elk, 2017. Migrosmuseum, Zurique (vista instalativa). Domínio:
Migrosmuseum Fonte: https://www.kurimanzutto.com/news/jimmie-durham-god-s-children god-s-poems

Fig.7- Kadder Attia, Sacrifice and Harmony, 2016. Museu de Arte Moderna, Frankfurt
(vista instalativa). Domínio: Galerie Nagel Draxler. Fonte: https://www.e-
flux.com/announcements/278578/kader-attia/

Fig.8 - Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, [1924-29]. Haus der Kulturen der Welt, Berlim,
2020 (vista instalativa) Domínio: Warburg Institute
Fonte:https://kunstkritikk.com/mnemosyne-lost/
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Fig.9 - Gerhard Richter, 48 Retratos (Bienal Veneza), 1972. Permanente no Museu Ludvig,
Colónia, Alemanha (vista expositiva). Domínio: MACBA. Fonte:
https://www.macba.cat/en/art-artists/artists/richter-gerhard/48-portraits

Fig.10 - Ian Hamilton Finlay, Little Sparta (See Poussin Hear Lorrain), c.1966 – 1991.
Pentland Hills (Edimburgo). Domínio: Little Sparta Trust. Fonte:
https://www.littlesparta.org.uk/

Fig.11- Francisco Tropa, Gigante, 2006. Galeria Quadrado Azul (detalhe). Domínio: cortesia
do Artista e da Galeria Quadrado Azul. Fonte: http://gregorpodnar.com/francisco-tropa/

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