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Lendas e contos do alto

minho

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Lendas e contos do alto minho

ÍNDICE:
Lenda da Veiga da Matança 3
Lenda da Cabeça da Velha 5
Lenda do Mosteiro de Ermelo 9
Lenda a senhora das neves 11
Lenda da Inês negra 13
Lenda Santo Aginha 16
Lenda da Coca 18
Lenda da Conta Encantada de Gieda 20
Lenda Santa Maria da Ísunia 22
Lenda da Jovem Encantada 24

Leonor Teixeira nº13


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Lendas e contos do alto minho

Lenda da Veiga da
Matança
Era uma vez uma veiga a que chamam a Veiga da Matança, em terras de beleza e viço dos Arcos de
Valdevez.

O seu nome nasce da convicção popular de que, em 1143, aí se travou uma batalha sanguinária entre
as hostes de D. Afonso Henriques e as de seu primo, o Imperador e rei D. Afonso VII, de Leão.

O motivo da contenda residia na quebra do tratado de Tuy, em que o primeiro rei de Portugal
prometia vassalagem ao soberano vizinho.

Mas D. Afonso Henriques era um espírito rebelde, valente e determinado, disposto a fazer do
Condado Portucalense que exigira, pelas armas, a sua mãe D. Teresa, um país independente e
dilatado á custa das conquistas dos territórios da Moirama, a estenderem-se do Mondego ao reino
do Algarve.

Tivera, já, sob a proteção divina, uma batalha decisiva, nos Campos de Ourique, além-Tejo, contra
cinco reis moiros.

Como memória desta vitória e da milagrosa presença de Cristo, pois a lenda afirma o seu
aparecimento ao rei, encorajando-o à luta contra os infiéis, a bandeira de D. Afonso Henriques
passou a ostentar, em cinco quinas, as cinco chagas do Crucificado.

Sabendo da entrada do imperador pelo norte do país que estava a construir, com entusiasmo, o rei
português sobe aos Arcos, disposto a terçar armas pelos direitos do seu sonho patriótico. E foi
ocupar logo, para dar batalha, um lugar privilegiado, o alto Castelo de Santa Cruz, onde os seus
cavaleiros aguardaram, impacientes, o inimigo leonês.

Em piores condições encontrava-se D. Afonso VII, à frente das suas mesnadas.

Combater o primo, em tais apuros, era uma temeridade!

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Lendas e contos do alto minho

Então, sabiamente aconselhado, propôs a D. Afonso Henriques o encontro dos dois exércitos na
planura da veiga, não para a violência de uma batalha, mas apenas para a destreza de um torneio, ou
baforada, como então era chamado.

Assim, cada cavaleiro português desafiava um cavaleiro leonês, para um confronto singular.

E venceria quem mais inimigos houvessem derrubado.

D. Afonso Henriques aceitou o repto e, rodeado de bons e esforçados cavaleiros, experientes em


manejar a lança e a espada no corpo do contendor, saiu-se vencedor do bafordo, obrigando o
imperador a regressar aos seus domínios de além-Minho.

Pouco tardou que D. Afonso VII não assinasse um armistício com o primo português, aceitando-lhe,
diante de um alto dignitário da Igreja, o título de rei.

Graças ao acordo entre dois monarcas, a veiga arcuense assistiu, assim, não a uma carnificina, mas
quase a um espetáculo palaciano, embora temerário, que, noutras circunstâncias, poderia, até, ser
admirado por damas e donzéis, entre guiões de seda e ornamentos de festa. Mas a lenda
sobrepõe-se à História.

E, séculos atrás de séculos, o povo olha a pujança pacífica daquela extensa veiga cultivada, como
local fatídico de uma horrenda batalha, com a terra empapada em sangue, cavalos desventurados,
guerreiros agonizantes, segurando, ainda, na mão exangue, lanças, escudos, espadas, gemendo de
dor, suspirando de morte. Incólume, no meio desta hecatombe, empunhado a branca bandeira das
quinas, montando um cavalo banhado de espuma, mas de crinas agitadas ao vento da glória,
qualquer pode imaginar o vulto espesso e nobre de D. Afonso Henriques, o rei-herói, anunciando,
naquela veiga, naquela matança, o Dia Primeiro de Portugal!

Lenda da Cabeça da
Velha
Leonor Teixeira nº13
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Lendas e contos do alto minho

Era uma vez uma jovem chamada Leonor, de rara beleza e dona de fartos haveres.

Órfã de pais, vivia com um tio, D. Bernardo, num pequeno lugar situado na Serra da Peneda,
no Norte português, junto às terras da Galiza.

D. Bernardo, também ele abastado, tinha a sobrinha em muita estima e desejava, para ela,
um casamento feliz mas tardio, para poder beneficiar, até ao fim da sua vida, que prometia
ser longa, pois o fidalgo era, em extremo, robusto e saudável, dos cuidados e carinhos de
Leonor.

A jovem, porém, já se havia enamorado de um seu primo, D. Afonso, moço belo e inteligente,
com nobre solar na região.

Conhecia Leonor os propósitos egoístas de D. Bernardo.

Mas o coração negava-se-lhe a acatar-lhe decisão tão cruel.

E, não resistindo ao sentimento que nutria pelo primo, passou a encontrar-se com ele, no
mais rigoroso segredo.

Tinha uma cúmplice, em tais arrebatados encontros.

Era Marta, uma velha serviçal do tio, que, havendo-a criado de menina, tinha por fiel
confidente.

Marta alegrava-se de poder apadrinhar o amor dos dois primos, que a enternecia.

Temendo, no entanto, que a criada, pela fraqueza da velhice, alguma ocasião caísse em
revelar ao amo aquela paixão proibida,

Leonor lembrou-se, gravemente, o mal que atingiria os três, se D. Bernardo soubesse da


desobediência da sobrinha.

Marta indignou-se.

A sua lealdade estava acima de qualquer suspeita.

E afirmou a Leonor:

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- Minha ama: se alguma vez vos trair, ou for obrigada a trair-vos, que me transforme em
pedra, como essas dos cabeços, frias e rudes!

Um dia, D. Afonso esperou por Marta, no recato de um ermo, para lhe entregar uma carta
dirigida a Leonor, a rogar-lhe que fugisse com ele, numa noite próxima, libertando-a da
tirania do tio.

E, na carta, indicava o lugar aprazado para o encontro dos dois fugitivos.

Ele levá-la-ia para o seu solar e lá casariam na capela que, como em todas as grandes
moradias fidalgas, se lhe avultava à ilharga, sempre florida e cuidada.

Marta recebeu a carta e regressou a casa.

Mas, de repente, saiu-lhe ao caminho, vindo do interior de uma mata, onde se entretinha a
caçar, a figura do amo.

Estranhou ele a presença da serva naquele local tão distante do solar.

E logo uma forte desconfiança lhe assaltou o espírito ao ver, na mão da velha criada, a carta
secreta.

Com voz autoritária, exigiu que ela lha entregasse.

Marta procurou resistir àquela ordem que iria fazer a desgraça dos dois jovens e a sua
própria.

Mas D. Bernardo teve artes de lha arrancar, lendo-a de seguida, com as feições
transtornadas pela revelação desse amor que ignorava.

Devolvendo, calado, a carta ao terror de Marta, afastou-se num passo incerto.

Marta pasmou daquele silêncio, supondo, porém, que D. Bernardo, pela muita estima em que
tinha Leonor, aceitara, resignado, os sentimentos dos sobrinhos.

E correu a entregar a carta comprometedora à sua querida ama, ocultando-lhe, todavia, o


encontro com D. Bernardo e a sua estranha atitude.

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Na noite combinada, Leonor, embuçada numa capa escura e comprida, escapou-se do solar
do tio, não sem um olhar húmido de saudade, para procurar os braços de D. Afonso e o
desejado enlace.

Na sombra, umas sombras seguiam-na ao largo.

Procurando por todas as salas desertas do solar a presença de D. Bernardo e dos criados,
Marta compreendeu, por fim, que o amo não perdoara aos sobrinhos e se dispunha a
castigá-los, numa emboscada vingativa.

Correu, então, quanto podiam as suas pernas cansadas da idade, por desvios, por atalhos a
avisar Leonor e D. Afonso da cilada de D. Bernardo.

Chegou a tempo.

Sem atenção, D. Afonso sentou Leonor na garupa do seu cavalo, e, num galope alucinado,
afastou-se da perseguição do tio e dos seus criados bem armados.

Ao olharem, porém, para trás, para agradecerem a Marta aquela prova de lealdade que lhes
salvara a vida e o amor, apenas distinguiram a rijeza de uma pedra, onde se esculpia a face
rugosa da velha criada: o seu nariz adunco, a saliência do queixo.

A jura de Marta havia-se cumprido.

Feita pedra, a velha parecia despedir-se de Leonor e de Afonso, a cavalgarem já longe, com
os seus olhos cegos, que um manto de musgo começava a cobrir, macio e piedoso.

Lenda do Mosteiro de
Ermelo

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Era uma vez um rei chamado Ordonho II, que governava as Astúrias e todos os territórios para o Sul,
conquistados aos guerreiros do Islão.

Neles, figurava o Vale do Vez, com as suas altas montanhas e a beleza do seu rio.

Tinha uma filha: D. Urraca, princesa piedosa, protetora de igrejas e conventos, devotadamente
dedicada à divulgação da fé cristã, em que despendia grande parte das suas riquezas.

Um dia, decidiu fundar um Mosteiro para frades, em lugar sossegado e fecundo, rodeado de
vegetação e boas águas, onde vicejasse uma horta e frutificasse um pomar; onde houvesse ermos
floridos para meditação, vinhedos e trigais que fornecessem o pão e o vinho para o mistério
eucarístico e a sobrevivência da comunidade.

Com o consentimento real, acompanhada das suas aias e alguns soldados protetores, meteu pés a
caminho, por montes e vales do seu reino.

Chegada à Serra da Peneda, que lhe prometia larga vista sobre uma paisagem pacífica e alegre, o
silêncio e a oração, começou a subi-la, com entusiasmo, parando, ora aqui, ora ali, para ganhar forças
e melhor contemplar quanto a rodeava. Uma dessas paragens chama-se, ainda, Bouças das Donas,
lembrando o arvoredo onde D. Urraca e as suas aias repousaram, abrigadas do Sol ardente.

Junto à vila do Soajo, onde se aconchegavam algumas casas de pedra e colmo, achou lugar
apropriado para edificação do Mosteiro e logo contratou pedreiros para lhe abrir os alicerces.

Contente com o lugar que obedecia às condições desejadas, D. Urraca correu à Corte de seu pai, a
participar a D. Ordonho a feliz decisão.

Perguntou-lhe a curiosidade do rei:

- E o que se avista dessas alturas?

Respondeu-lhe a princesa:

- Longes e longes. Vêem-se, para o Sul, as torres da Sé de Braga e o imenso casario da antiga cidade.
Para o Norte, as Catedrais de Tuy e de Ourense, junto ao rio Minho. Para o Oeste, praias onde vão
quebrar-se as ondas bravias do mar. Para Leste, campos e montes sem conta, onde pastam rebanhos
e cavalgam guerreiros dos vossos exércitos.

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D. Ordonho manteve-se por uns momentos calado, com uma ruga na testa, como quem segue a
seriedade de um pensamento.

Depois, disse a D. Urraca:

- Minha filha, gostaria bem de satisfazer a tua vontade de servir a Deus, com a construção desse
Mosteiro. Mas não posso, para isso, despender, em tal projeto, metade do meu reino. É
demasiadamente grande esse horizonte. Terás que descobrir outro sítio menos amplo para morada
dos teus frades.

Triste com esta decisão real, a princesa, todavia, não desistiu do seu intento e resolveu, então,
mandar edificar o seu Mosteiro, não no desafogo dos cimos do monte, mas na profundeza do vale,
quase oculto pela densidade das brenhas, sempre coberto de sombras, escutando um rio discreto,
mirando a solidão do ermo.

E deu-lhe o nome de Mosteiro de Ermelo.

Lenda A Senhora das


Neves
Há muito tempo, vivia nas fraldas da Serra D’Arga, no local onde hoje está a capela da
Senhora da Serra, um pobre monge, metido na toca de um sobreiro velho, fazendo
penitência e rezando pelos pecados do mundo. Toda a sua atenção ia para Deus,
prometendo grandes privações ao corpo, na comida e na bebida. Vivia o santo do frade
sozinho, tendo como única companhia uma pequena imagem de Nossa Senhora, que
carregara consigo do convento de onde viera.
Todos os dias o frade confidenciava com a Virgem os seus pensamentos e as suas orações.
Havia-a colocado num altar improvisado dentro da cavidade onde morava, para melhor a
homenagear e louvar, confiando na sua intercessão para conseguir a purificação total para
si, e a salvação para os homens.
Ora aconteceu que um dia, no maior pico do verão, no mês de Agosto, o frade sentiu uma
sede terrível que lhe afogueava a garganta. Bem queria o pobre do frade aguentar a sede,
dando assim testemunho da capacidade de sofrimento e de penitência com que queria

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presentear continuamente a Virgem e seu bendito filho. Mas era de tal forma quente o dia,
que resolveu suspender a dura penitência, para ir ali perto, junto de um fonte bem fresca,
apagar a secura que lhe afligia a garganta.
Quando regressou ao seu poiso, notou, com extrema surpresa, que a Virgem já lá não
estava!
Entristecido e aflito, pensou logo que a Virgem o tinha abandonado, por não ter resistido à
sede.
Ajoelhou-se com o rosto por terra, e suplicou à Senhora:
- Ó Virgem, Santa Mãe de Deus! Perdoai a minha falta de sacrifício! Por amor do vosso Santo
Filho, meu Salvador, não me abandones!
Nisto, ouviu um grande estrondo! Temeroso do poder de Deus, tapou o rosto com as mãos,
até que o silêncio voltou. Levantou lentamente a cabeça e olhou então para o alto. O
sobreiro estava desfeito e envolto em brancura! Era a imagem da Virgem rodeada de neve,
fitando-o com extrema doçura! E se aquele era um dia esbraseado de Agosto, logo se
transformou em dia fresco e acolhedor, que nem a mais suave Primavera.
Vendo tão grande milagre, pegou o frade na imagem da Senhora, e aí lhe construiu um lindo
nicho de pedra para a colocar. A partir daquele dia começou a chamar-lhe Nossa Senhora
das Neves!

Lenda da Inês Negra


Acabados os ecos da retumbante batalha de Aljubarrota, urgia consolidar a independência
da Portugal, reconquistando terras e praças-fortes ainda na posse dos castelhanos, que
recusavam a autoridade do rei D. João I.

O Mestre de Avis empenhou-se pessoalmente na tarefa de levar para a bandeira portuguesa


as praças-fortes do extremo norte do reino, local onde pouco antes estivera, aquando dos
esponsais com a bela Filipa de Lencastre na Ponte de Mouro. Para cumprir este ensejo, veio
para Melgaço corria o mês de Janeiro de 1388. Aqui chegado com sua comitiva, fez recolher
a Rainha, D. Filipa, e suas damas, ao Convento de Fiães, para testemunharem deslumbradas
a bravura das hostes portuguesas, que o rei se prontificou evidenciar, planeando o assalto às
muralhas com que D. Dinis envolvera a torre afonsina. Dentro das muralhas, a guarnição de
trezentos homens, comandada por D. Álvaro Pais de Souto Maior, estava disposta a
defender-se das pretensões do Mestre de Avis e impunha aos pacíficos moradores o
domínio castelhano. Entre as famílias que aí habitavam havia a de uma portuguesa que era

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toda de paixões pelas hostes castelhanas, vindo a ter, por isso, a alcunha de «arrenegada»,
nome pelo qual ficou depois a ser conhecida toda a família.

Refilona de trato, fervia-lhe o sangue ao ver, do alto das muralhas, os preparativos dos seus
compatriotas lá para as bandas da Senhora da Orada. Ali instalados, os soldados
portugueses armaram um engenho que permitia lançar projéteis para a vila sitiada, e
iniciaram a construção de uma bastida, torre de assalto sobre rodas, de modo a superar a
aparente invulnerabilidade das muralhas. Enquanto preparava o assalto, D. João passava
longos momentos a meditar todas as estratégias que melhor defendessem os seus homens,
ao mesmo tempo que desejava afirmar o seu domínio, tanto sobre a praça, como sobre o
coração da sua jovem esposa, a gozar uma lua-de-mel tão atribulada. Quanto mais cedo a
resolução do esforço militar, mais cedo se entregaria ao gozo nupcial.

Foram de tal forma resolvidos os projetos do Rei, que logo dentro muralhas o ódio e a força
passaram do espanto ao medo! Assustados perante os aparatosos engenhos, apressaram-se
os de dentro a pedir tréguas. Propuseram a el-rei que João Fernandes Pacheco
conferenciasse com Álvaro Pais. Acedendo ao diálogo, o Mestre de Avis enviou Pacheco à
barbacã onde falou com o comissário castelão, barricado intramuros. Longo espaço de
tempo durou esta conversação entre os dois guerreiros. Enquanto eles falavam, assediados e
assediadores tinham dificuldade em suportar o silêncio que entretanto viera com a
suspensão das investidas. Os mais pacíficos estavam esperançados na concórdia, mas os
mais belicosos estavam impacientes por recomeçar a pugna. A conferência estava a
revelar-se difícil, pois D. Álvaro, num orgulho irrefletido, estava a exigir condições e benesses
ultrajantes às armas e brios lusitanos. A falta de acordo fez com que D. João tomasse a
resolução de humilhar o infame capitão da Praça com um forte assalto às muralhas. Ele
mesmo iria à frente dos seus soldados, desejoso de defender a honra das suas armas. Sabia
o Rei que, apesar da sua força, muitos soldados lusitanos iriam perecer, dadas as
dificuldades do campo de batalha. Mas dentro dos muros, perante o impasse das
conversações, a «arrenegada» deu azo aos seus ímpetos belicosos, que a traição alimentava.
A cobardia dos seus e a certeza da inferioridade militar impeliu-a à provocação e ao desafio,
querendo com isso provar a razão da tão ignominiosa traição. Propôs um combate singular
para resolver a contenda: ela mesma iria lutar com outra mulher, de quem conhecia o
patriotismo, e que morava nas redondezas. Essa mulher era «Inês Negra», uma patriota até
à raiz dos seus cabelos negros, a coroar o rosto trigueiro que a singularizava entre os seus
conterrâneos. Há muito tempo que a «arrenegada» estava desejosa de provar pela força, o
que antes já discutira com essa adversária.

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Inês, intimorata, aceita logo o desafio, farta que estava da vaidade e da traição da
«arrenegada», escoltada pelas boas graças dos ocupantes. De bom grado acordou tal peleja
o Rei, estupefacto pelo patriotismo e coragem da mulher que se lhe apresentou para
defender a honra dos lusitanos.

Aprazada a pugna para o dia 3 de Março, el-rei enviou à rainha recado para que viesse, pois
tudo se conjugava para que o desfecho da contenda estivesse para breve: os engenhos
estavam concluídos, o caminho para a progressão da bastida estava aplanado. Em Fiães, aos
ouvidos da Rainha e das damas de companhia, junto com o recado do rei chegara também a
notícia do desafio entre as duas mulheres de Melgaço. Logo as mais velhas comentaram tão
descomposta escaramuça. Nas mais novas havia grande jubilação com a expectativa de
comoções. Quando a comitiva da rainha desce de Fiães, eram agitadas as discussões do
projetado combate, somente interrompidas pelas exclamações aflitas das timoratas e pelas
risadas escarninhas das resolutas, na iminência de um tropeção das montadas. Nestas
ocupações, quase esqueciam a paisagem deslumbrante, o panorama das extensas
ondulações que formam o berço delicioso em que se espreguiça voluptuosamente o rio
Minho. Chegadas ao acampamento, el-rei apressou-se em receber a rainha para acrescentar
ao olhar amoroso a explicação do uso dos engenhos, e como se realizaria a escaramuça
entre as duas mulheres. Ao comentar as diferentes posições e dúvidas quanto ao desfecho
de tão insólito desafio, D. Filipa sentenciou: “Inês tem a razão e a Graça de Deus pelo seu
lado. A vitória será da coroa portuguesa!”

Finalmente, amanheceu o dia 3 de Março, numa Primavera que se anunciava prometedora.


Logo o povoléu correu em direção ao terreiro para assistir à luta. Todos, de um lado e do
outro, se dispuseram a presenciar o espetáculo: os de dentro acudindo aos parapeitos das
cortinas e bastiões, debruçavam-se curiosos; os de fora formaram um círculo ao redor do
local do encontro. A «arrenegada» saiu por um postigo da fortaleza, avançando com um
nodoso bordão. Foi estrondosa a gritaria do povo ao avistar a «arrenegada». No centro do
terreno a desnaturada castelã aguardou pela rival perante as vaias e os apupos da multidão,
ainda preocupada com a acomodação. Um burburinho cresceu de repente, e a multidão
abriu alas para deixar passar Inês. Do campo lusitano saiu um grito de encorajamento e de
carinho à mulher que avançava com olhar determinado e seguro. O primeiro recontro
passou pelos dentes cerrados e olhos fuzilantes com que as duas adversárias se
presentearam.

Foi logo impetuoso o primeiro embate das justadoras. O choque foi tremendo, e num
instante, os bordões quebraram-se. Agora, sem armas, atirando-se uma à outra com rancor,
rasgavam reciprocamente as carnes com as unhas e os dentes. Atropelando-se, arrancando

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os cabelos, afogando-se nos fortes e rudes braços, derrubando-se alternadamente na luta,


prolongaram durante minutos a encarniçada peleja. Estava a multidão excitada com tal
drama, tentando discernir as fraquezas e as habilidades das lutadoras, quando a arrenegada
entrou a fraquejar, saindo logo desfalecida, coberta em sangue e em lama. É o delírio da
multidão e a glória de Inês Negra, que é levada em triunfo e aclamada como a heroína das
hostes portuguesas. A arrenegada, no meio da confusão, arrasta-se para o interior do
castelo, onde a derrota atravessa todos os olhares. Animados e excitados pelo exemplo de
Inês, as hostes lusitanas tomam de vencida as muralhas de Melgaço. Os de dentro,
amedrontados e conscientes sua inferioridade dão luta por pouco tempo, pedem tréguas,
aceitando todas as condições do Mestre de Avis, que os obrigou a sair desnudados, para
escárnio do rapazio. Ao entrarem na Fortaleza, depararam com o corpo da «arrenegada»
com um punhal cravado no coração. Inês sobe ao alto da torre e, abraçando as ameias, grita
sem cessar:

“-Tornaste a nós! És do rei de Portugal!”

Os reis portugueses, ladeados por Inês, agradeceram à Senhora da Orada tão feliz desfecho,
e entregaram a guarda e governo do Castelo da Vila de Melgaço a João Rodrigues de Sá.
Depois, quando retiravam festivamente, com sua comitiva, em direção a Monção, do alto da
muralha, virada a noroeste, um vulto de mulher agitava com ufania a bandeira gloriosa das
quinas que empunhava. Era Inês Negra!

Lenda Santo Aginha


Há muitos, muitos anos, vivia na Serra d’Arga um perigoso salteador de estradas e casais, de
seu nome Aginha. Por entre os arvoredos, caminhos e casas da Serra corria o temor de
algum dia ser-se confrontado com tão perigoso meliante. A sua fama corria por todos os
recantos, espalhando um misto de pânico e admiração. Já ninguém se atrevia a cortar a
serra sozinho e, muito menos, de noite. Contavam-se histórias e histórias dos seus feitos,
durante os serões da serra, ao calor das fogueiras. Os mais velhos, querendo o respeito e a
obediência das crianças, ameaçavam com a presença do Aginha. Mas estas, depois da
repreensão, preferiam brincar recriando as aventuras do malvado.

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Lendas e contos do alto minho

Quando menos esperava, o viajante via aparecer-lhe pela frente, de punhal em riste e
chapelão, o malfadado Aginha! E se não levasse consigo fazenda ou moeda, passava um mau
bocado, porque o assaltante só desistia da presa depois de a esbulhar, nem que tosse da
roupa que trazia. Qualquer gesto de autodefesa era suficiente para a aventura não ficar
apenas pelo roubo. Ao maltratar as vítimas mais intimoratas, Aginha marcava a fronteira do
medo, e justificava a impunidade conquistada. Descia um dia, ainda noite alta, um frade do
convento de S. João para a missa da matina em Arga de Baixo, quando o meliante lhe saltou
ao caminho. A escuridão confundiu-se no hábito do frade. Aginha só reconheceu o homem
de Deus quando o confrontou em pleno caminho. Mas Aginha não era homem de grandes
rezas, e seria muito mau para a fama conquistada, se não fizesse o que sempre fazia nestes
casos. Por isso, apontando o grande facalhão ao pobre do frade atónico, exigiu o salteador:
- A bolsa ou a vida!
A normalidade da sua exigência deu com a anormalidade do caminhante. O frade nem tinha
bolsa, nem se preocupava muito com a vida terrena:
- Ó meu filho, não tenho nada de valor comigo, a não ser as pobres vestes de frade e a cruz
que trago ao peito!

De que lhe serviam tais «trastes»? Nem umas botas ele trazia! Aginha não sabia o que fazer,
pois tal nunca lhe havia acontecido. Vendo-o assim sem jeito e mudo, o pobre do frade lá foi
conversando com o salteador, usando palavras mansas e sábias, às quais, perplexo, o Aginha,
sentado agora, respondeu com um longo silêncio. Ainda hoje ninguém sabe o que o frade
lhe disse! O certo é que, em puro milagre, decidiu abandonar aquela vida de salteador!
Caindo aos pés do frade, banhado em lágrimas de arrependimento, confessou os seus
crimes e converteu-se. Como penitência, impôs-lhe o frade a missão de permanecer na
serra, ajudando agora aqueles que antes havia maltratado.

Poucos dias depois, passou por ali um lavrador, decidido a atravessar a serra com um carro
de lenha. Ainda não era noite. Por isso, apesar de receoso, o nosso lavrador foi avançando
apressado, como sempre fazia quando passava por tão mal afamado sítio. Na pressa não
reparou numa grande pedra do caminho que, repentinamente, lhe tombou o carro em
tremenda barulheira.

Não podia o dia ser tão azarado! Como podia aquilo acontecer mesmo ali! Depois de soltar
dois ou três palavrões, sempre olhando em volta, assustado, decidiu o lavrador que a única
solução era levantar o carro e atrelar novamente os animais o mais depressa possível. Mas
como podia fazê-lo sozinho?

O estrondo do acidente atraiu Aginha. Vendo a incapacidade do lavrador, decidiu ir ajudá-lo,


e assim dar cumprimento à penitência prescrita pelo frade.

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Lendas e contos do alto minho

Quando os olhos do lavrador deram com a figura conhecida do Aginha, sentiu que o sangue
lhe fugia pelas pernas, e, por momentos, ficou petrificado, pois desconhecia a intenção do
penitente. Julgava o lavrador que Aginha vinha para o maltratar, já que não o sabia
convertido. Mais refeito da surpresa, e vendo-o sem guarda, pegou na machada de cortar a
lenha, e desferiu-lhe um golpe na cabeça, que o matou.

Angustiado por tão hediondo crime, apesar de se julgar em autodefesa, arrastou o cadáver
para o matagal mais próximo, e regressou, ainda assustado, à aldeia.

Passados dias, chegou à Serra d’Arga uma ordem do rei que prometia grande prémio a quem
terminasse as aventuras do temível salteador, O lavrador, ao ter conhecimento desta ordem,
e desejando fazer-se ao prémio, logo denunciou o seu feito heróico. Porém, chegados ao
local onde tinha lançado o cadáver, povo e autoridades ficaram estarrecidos ao ver o corpo
intacto! Aproximaram-se mais um pouco e, segundo dizem, sentiram que o corpo exalava
um suave cheiro de flores silvestres, não obstante terem decorrido já alguns dias após o
trágico desfecho. A estupefação só ficou mitigada quando souberam, pelo frade, da
conversão do ladrão. Imediatamente o povo aclamou Aginha como santo, construindo ali
uma capela em sua honra.

Lenda da Coca
Era uma vez um jovem moço de gentil disposição e de grandes forças que nasceu de pais
novos e ricos, lá para os lados do oriente e a quem deram o nome de Jorge.

Desde novo se dedicou às armas, servindo o imperador Diocleciano no seu exército. O


grande valor e coragem que demonstrava nas batalhas fizeram-no ser estimado por todos os
companheiros que o nomearam seu tribuno e mestre de campo. Mas o Imperador que
servia moveu uma impiedosa perseguição aos cristãos, o que levou o valente guerreiro a
descobrir a força que levava aquela gente a preferir a morte a negar o seu Deus.
Converteu-se a Cristo e jurou servir a sua vontade, dando proteção e auxílio aos que dele
necessitavam.

Andava um dia S. Jorge nas terras da Líbia quando escutou um grito e desesperado. Acorreu
o jovem guerreiro àquele apelo de ajuda. Quando chegou junto ao local de onde viera o
grito deparou com um terrível animal e uma jovem donzela. Era esse monstro um enorme

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Lendas e contos do alto minho

dragão que tentava devorar a jovem. S. Jorge não hesitou um segundo e, avançando de
lança em punho, feriu de morte a fera assassina.

Perante tal ato de bravura, a jovem, que S. Jorge vem a saber ser um aprincesa filha do rei da
Líbia, impressionada pela heroicidade do cavaleiro, descobre a fé do santo, vindo também
ela a converter-se.

Muitos foram ainda os feitos de este santo guerreiro, desejoso de vencer o mal e fazer reinar
o bem. Por esta razão o povo de Monção celebra a vitória de S. Jorge sobre Coca no dia da
sua maior festa, a festa do Corpo de Deus. Assim celebram a luta contra o mal e triunfo do
bem.

Lenda da Moira Encantada


de Giela
Era uma vez um rei moiro, cujo nome se perdeu na memória dos tempos.

Viera d’além-mar, com outros reis e guerreiros da sua raça, levando de vencida o povo
cristão até as montanhas das Astúrias, onde este encontrou reduto e alcançou coragem para
expulsar, por fim, o invasor e o inimigo da fé.

O rei habitava um esplêndido palácio, rodeado de conforto e de riqueza, com os seus pátios
rendilhados e as suas fontes jorrando frescura, com os seus jardins aromáticos de flores,
num lugar altaneiro, chamado Giela, avistando a paz de um vale, por onde desliza, entre
salgueirais, manso e transparente, o rio Vez.

Tinha o monarca uma filha muito famosa, que mantinha encerrada nas salas e aposentos do
seu palácio, longe das vistas dos seus vizires e cavaleiros, reservando-a para um casamento
com algum califa vizinho que lhe aumentasse a fortuna e o território.

Não lhe permitia, mesmo, assomar a uma janela para contemplar a paisagem que as aias e
os criados lhe diziam ser maravilhosa.

Um dia, porém, a princesa conseguiu que a obediência e simpatia dos seus servos lhe
ajaezassem um dos cavalos do pai e, ao raiar de um dia calmo de Verão, cavalgou, livre,
sozinha, até às margens do Vez.

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Lendas e contos do alto minho

É difícil de imaginar o seu contentamento e o seu encantamento!

Desmontando do veloz ginete e descalçando a delicadeza das suas babuchas bordadas a


oiro, mergulhou a perfeição dos pés morenos na claridade da corrente.

Súbito, ao erguer os olhos para a margem oposta, viu sair do bosque que a circundava um
jovem cavaleiro revestido de uma armadura prateada, montado num soberbo cavalo branco,
de compridas crinas oscilando à brisa matutina.

Era decerto um guerreiro cristão, perdido do seu exército.

Trazia na mão, coberta por um guante de ferro, um altivo pendão, desenrolando a heráldica
de um brasão, onde se enguia um castelo de oiro em fundo vermelho.

O cavalo branco curvou o pescoço elegante para beber, a largos haustos, a água límpida do
rio. Então, os olhos azuis do cavaleiro, como um céu muito puro, mergulharam nos olhos da
princesa, negros como as trevas da noite.

E dir-se-ia que uma flecha de amor atravessou, silvando, ambos os corações.

Nesse exato momento, surgiram, por detrás da princesa, duas dezenas de soldados moiros
que, respeitosamente, a convidaram a regressar ao palácio, onde o pai a esperava, numa
preocupação.

Mas, vendo, na outra margem, o cavaleiro cristão, atravessaram o rio, com grande restolhar
de água, para lhe dar combate.

Ante o desespero da princesa, foi breve o entrechoque das armas, tão desigual!

Feridos pela espada do cavaleiro, alguns soldados ficaram por terra, sangrando e gemendo.
Mas os restantes, em altos brados, foram em perseguição do jovem inimigo, que se
embrenhou na mata, sem possibilidade de despedaçar, um por um, aquele numeroso grupo
de infiéis.

Lamentando um amor tão cedo desaparecido, a princesa voltou aos braços do pai, jurando,
no entanto, jamais conceder a mão de esposa senão àquele cavaleiro dos olhos azuis que lhe
arrebatara o coração.

E, na esperança de o reencontrar, descia constantemente até ao Vez, e ali ficava carpindo-se,


com os olhos rasos de água, vendo-lhe as margens desertas.

Assim passaram anos.

Assim passaram séculos.

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Lendas e contos do alto minho

Mas, ainda hoje, na paisagem adormecida, há quem consiga adivinhar, junto à placidez do
rio, um vago vulto de mulher, com um leve véu ocultando-lhe a formosura do rosto, olhando
fixamente o escuro arvoredo da margem.

É a moira de Giela, aguardando que surja, do segredo da noite, um cavalo branco montado
pelo jovem cavaleiro de olhar azul, revestido de prata e trazendo, na mão, a heráldica de um
pendão, onde, em fundo vermelho, brilha um castelo de oiro.

Lenda Santa Maria da


Ínsua
Frei Diogo Arias olhou para a pequena ermida solitária, ali junto à foz do Minho, numa língua
de areia a querer invadir o mar. O santo frade tinha finalmente encontrado o lugar onde
poderia entregar-se a Deus e meditar as palavras divinas. Juntamente com um pequeno
grupo de irmãos, aventurou-se até à imagem da Senhora de Carmes e confiou-lhe o seu
segredo. Servo do menino que estava ao colo da Senhora, prometeu Frei Diogo que ali
ergueria um convento, para, longe do barulho do mundo, entregar-se à sua proteção.
Os irmãos que o seguiam, bem compreendiam e admiravam a vontade e coragem do seu
patrono, mas descriam das possibilidades de levar a bom termo tal propósito. Afinal, aquele
lugar não era tão sujeito aos caprichos e rumores do mar e suas tempestades? Como
encontrar ali o sossego? Ausente a vozoaria humana, como silenciar a dos elementos da
natureza? E como se podia ali viver em qualquer fonte de água doce?
Frei Diogo pressentia a descrença dos irmãos, mas não via neles qualquer desânimo, O
entusiasmo com que levava por diante as obras e a fé que transmitia, iam contagiando,
lentamente, todos os frades. — Valha-nos Deus e a Virgem! Era o crédito para todas as
dúvidas.
Ao longe passavam os marinheiros e pescadores, os quais, atónitos, iam registando os
progressos das obras. Grande coragem e fé teriam que ter aqueles frades, para desejarem
viver tão pobremente, sem comodidade e sem água doce, pensavam os homens do mar.
Acabadas as obras e celebrada a inauguração e dedicação da capela, foram, logo desde os
primeiros dias, surpreendidos os frades por tão doce quietude do mar. Mas a surpresa
aumentou quando, por mais alterado que fosse o mar, e a tormenta afastasse qualquer
navegador, dentro do convento, principalmente na capela, não se ouvia qualquer barulho!
Era o silêncio um convite à oração, que assim lhes permitia elevar o espírito para as coisas

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celestes! Aquele era na verdade um lugar protegido e abençoado pela Virgem Senhora da
Conceição, que frei Diogo Arias havia colocado no altar da capela, e que agora recebia o
nome do local: Senhora da Ínsua!
E se a alegria e a fé cresciam a cada dia nos corações dos irmãos, ela ficou para sempre
fortalecida quando Frei Diogo lhes indicou, a mando da Senhora que lhe havia aparecido em
sonhos, um local para escavar. Assim fizeram. Ainda a escavação estava no início, e logo um
jorro de água doce a todos maravilhou! Milagre! Foi este o grito entusiasmado e fervoroso
de todos, pelo inusitado do local e pela qualidade da água que aí brotava.
Pelas redondezas passou o relato de tal feito milagroso. Todos acorriam para ver e beber de
tão ditosa fonte, vindo esta a ser conhecida como “Fonte Milagrosa”, e as suas águas
pretendidas para todas as curas.
Junto à imagem, Senhora da Conceição, Frei Diogo Arias agradecia as graças concedidas pela
Virgem que, daí em diante, seria sempre a Estrela-do-mar para os mareantes e pescadores, e
o último remédio para a saúde de todos.

Lenda da Jovem
Encantada
Vivia no lugar do Quinjo, em Castro Laboreiro, uma princesa que tinha sido encantada sob a
forma de uma serpente, e que trazia uma flor presa na boca.

Era esta princesa fabulosamente rica e estava disposta a dividir a sua riqueza com quem a
desencantasse. Como ia de 100 em 100 anos à feira de Entrime, em Espanha, altura em que
recuperava a sua forma humana, lá contou como deveria proceder a pessoa que estivesse
disposta a desencantá-la: ir ao lugar do Quinjo e dar um beijo à flor que ela, já na forma de
cobra, trazia na boca.

Se os séculos foram passando sem que aparecesse alguém suficientemente corajoso para
realizar tal façanha, nem por isso se pode dizer que o tempo tenha apagado nos homens a
crença no tesouro escondido ou tenha esmorecido a fé na sua recuperação, mesmo que
para tal se tivesse de cumprir o ritual prescrito pela lenda. A cobiça era sentimento mais
forte que a repugnância e o medo, sem contar ainda que a astúcia humana é de tal forma
atrevida e pretensiosa que só por si consegue dar, a quem dela resolva largar mão, uma

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coragem inicial que na maioria dos casos, se não é condição de sucesso é pelo menos de
chegada à última etapa possível.

Foi assim que um dia, levados pela cobiça e apoiados na astúcia, um grupo de homens,
tentaram desencantar a princesa. Se o pensaram, logo programaram a aventura, animados
pelo facto de um deles conhecer os segredos do livro de S. Cipriano, que ajudaria a tomar o
tesouro escondido e defendido pela serpente.

Havia contudo uma dificuldade que a todos transtornava, e que não viam meio de a superar.
Como ganhar coragem para beijar a serpente? Lembraram-se então os nossos heróis de um
cego que havia no lugar e que, pelo facto de não ver, não sentiria repugnância em praticar o
ato. Bastante instado, mas sem saber bem ao que ia, o pobre lá anuiu em juntar-se-lhes.
Reunido o grupo no local certo, no dia e hora combinados, resolveu o animador da proeza,
na intenção talvez de melhor avivar os pormenores da façanha, puxar do livro e ler a lenda
aos companheiros no próprio cenário onde se iria desenrolar o drama. A um dado passo da
leitura, porém, fez-se ouvir um barulho medonho que, repercutindo-se pelas fragas adiante,
parecia querer fendê-las para delas fazer sair a figura de um monstro.

Nem se interrogaram a respeito do estranho fenómeno: gasta a última reserva de coragem,


hei-los numa corrida doida, galgando e descendo penedos. na ânsia de alcançar a segurança
do lugar onde habitavam que, estranho ao facto, recuperava no sono a energia gasta num
dia de luta árdua.

Sozinho no lugar do Quinjo, ficou o cego, desprotegido de tudo e de todos, e


completamente amedrontado. Valeu-lhe o bordão, seu único apoio e guia, para descobrir
forma do chegar a chão seguro e sossegado. E chegou, passados uns dias a Pereira, uma
pequena povoação espanhola, que lhe deu guarida.

Depois de conhecida a aventura no lugar, nunca mais ninguém daqueles lugares pensou em
repetir a proeza.

Em tempos mais recentes, um jovem, ao saber, por um pastor, da existência da serpente,


logo se lembrou da sua terrível história de amor. A mãe da sua namorada contrariava muito
seriamente o namoro e afeição que a filha mantinha com ele, facto que os obrigava a
encontrarem-se às escondidas por entre as penedias. Não tardou muito que a mãe desse
com o esconderijo dos namorados e, desesperada com a desobediência da filha, lhe
lançasse esta maldição:

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- «Que de futuro andes de rastos como as cobras no alto do Quinjo».

Passados dias, desapareceu a rapariga sem deixar rasto!

Associando os factos, não restaram dúvidas ao rapaz de que se tratava da namorada que
cumpria o fado a que fora condenada pela mãe. A confirmá-lo, lá estava a flor que ele lhe
oferecera e que ela, numa atitude garrida, trazia entre os dentes no momento em que
recebera a maldição.

Desesperado pela triste sorte da jovem e também pela sua infelicidade, subiu ao monte e
perguntou à serpente quais as possibilidades que havia de lhe quebrar o encanto.
Respondeu-lhe esta que bastaria que ele, rapaz, tivesse a coragem de a beijar na boca. Mas,
cautela, se à terceira tentativa o não conseguisse, redobraria o seu encanto e não mais podia
trazê-la à vida e ao seu amor.

Voltou o rapaz mais tarde, acompanhado com gente amiga, para realizar o desencanto:
porém, na altura em que se aproximou da serpente, esta lançou tais silvos e contorceu-se de
tal maneira que pôs em fuga todos os que presenciavam a cena. Não desistiu o namorado e,
na segunda tentativa, fez-se acompanhar de um padre, para ajudar o ritual com as suas
rezas, e, esquecido do que havia acontecido aos outros seus conterrâneos, de um ceguinho
que, pelo facto de não ver, poderia substitui-lo no ato de beijar a serpente com menos
repugnância. Repetiu-se a cena anterior e tanto o padre como o cego fugiram
desaustinados.

Entendeu o rapaz que teria que ser ele sozinho, e sem a ajuda ou apoio de ninguém, mas
amparado pelo amor que nutria pela jovem, a cumprir o feito. Enchendo-se de coragem,
aproximou-se da serpente e, sem dificuldade de maior, deu-lhe o beijo, recebendo em troca
nos seus braços a namorada. Regressaram felizes a Ribeiro de Baixo, seu lugar de
nascimento, e casaram mais tarde na vila.

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