Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RIBEIRO, Daniel - Quando A Pessoa Vira Mundo e o Mundo Vira Gente
RIBEIRO, Daniel - Quando A Pessoa Vira Mundo e o Mundo Vira Gente
Guarulhos
2015
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
2
Guarulhos
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal
de São Paulo
Ribeiro, Daniel
Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente: A "crise da presença"
no candomblé de São Paulo /
Daniel Ribeiro ; orientadora Cristina Pompa. - Guarulhos, 2015.
150 f.
3
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
___________________________________
Profa. Dra. Maria Cristina Pompa (Orientadora)
Unifesp
___________________________________
Profa. Dra. Melvina Afra Mendes de Araújo
Unifesp
___________________________________
Prof. Dr. Adone Agnolin
USP
4
Resumo
Abstract
5
Riassunto
Questa ricerca è uno sforzo teorico e metodologico per identificare ciò che Ernesto De
Martino ha chiamato "crisi della presenza", quando ha analizzato il tarantismo nel sud
Italia, nel Candomblé di San Paolo. Da una possibilità di confronto storico indicato
dall'autore italiano, cerco di aggiornare il concetto di "crisi della presenza" per il mondo
urbano e articolare i postulati di De Martino a pensatori contemporanei, al fine di
dimostrare come la sua teoria anticipa, in almeno mezzo secolo, le idee presenti
nell'attuale dibattito antropologico. Attraverso una analisi sul campo e l’articolazione
con altri autori come Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl e Miriam Rabelo,
estrapolo le ipotesi di De Martino per portare la questione delle interazioni con i non-
umani.
Resumen
6
AGRADECIMENTOS
Os pouco mais de dois anos que passei no mestrado foram um grande aprendizado
durante o qual eu tive o privilégio de conviver com vários mestres. A todos os que
cruzaram meu caminho neste período o meu mais sincero muito obrigado. Com todos os
momentos de dúvida, certa solidão da pesquisa, cansaço físico e mental, o mestrado foi
um processo prazeroso e feliz.
Ao Ricardo Pagliuso Regatieri que foi o responsável por eu ter “tomado coragem” para
escrever meu projeto e encarar esta empreitada. A Sylvia Caiuby Novaes, por ter
reiterado esse encorajamento com preciosas sugestões.
Aos professores da Universidade de São Paulo com os quais cursei duas disciplinas e
fui orientado em leituras que deram um novo (e melhor) rumo à proposta inicial desta
pesquisa: Paula Montero, Renato Sztutman e Stélio Marras.
Aos queridos colegas do mestrado que foram de grande apoio, conforto e compreensão.
Em especial a aqueles que se tornaram amigos: Andréa Barbara Azevedo, Bruno Marco
Cuer dos Santos, Paulo RIgolin de Moraes, Thiago Fijos e Deise Casado.
Aos amigos que a vida generosamente me deu e foram essenciais nos momentos de
dúvidas e, naturalmente, nos de festa. Mirella Franco, Marcus Samed, Júlia Caiuby,
7
Camila Novaes, Débora Costa e Silva, David Santos Jr., Jenifer Souza, Tarcísio
Cardoso, Anselmo Calzolari, Claudia Montin Franco, Felipe Gonçalves, Luiz O.
Esteves, Elaine, Marcelo, Maria Paula e Jorge Torresi, Patrícia Mara Barros, Paulo
Caires, Paulo Henrique Araújo, Hugo Prudente, Daniela Majori, Bruna Stella, Clara
Dias e Gil Alessi.
Ao Pai Pedro de Xangô e ao Pai Cristiano de Ogum e suas respectivas famílias de santo
pelo acolhimento, paciência e respeito.
Toda gratidão e carinho a minha orientadora, Cristina Pompa, que pela imensa ajuda e
cuidado com o meu trabalho. Sem ela, nada disso teria acontecido.
Aos tantos autores, que apesar de nunca ter conhecido de fato, me fizeram companhia e
me mostraram “que não estava louco”, ou, pelo menos, não sozinho. Ao Jorge Amado,
cujos retratos literários da realidade me inspiraram a olhar com mais generosidade para
a vida.
Aos meus pais, Terê e Birinho, irmãos, André e Claudia, e sobrinhos, Taiany, Letícia,
Matheus, Lucas e Júlia, por terem sempre sido incentivadores e acolhedores em todos os
momentos e decisões da minha vida. A Cleusa Cunha e ao Gilmar Cunha e toda sua
grande família. Ao Damián Aloisi.
A CAPES pelo apoio financeiro fundamental à realização deste trabalho. A todos que eu
possa ter esquecido de mencionar.
8
SUMÁRIO
9
Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.
10
Apresentação: Guerra e crise
Nas histórias de vida dos filhos de santo e frequentadores dos terreiros é sempre
contado com ênfase como as dificuldades foram vencidas com a ajuda dos rituais. O
discurso é quase sempre de que há uma guerra. Ou muitas. Desde uma grave doença
tratada com o que os antropólogos convencionaram chamar de cura mágica, até os casos
mais banais de picuinhas no ambiente de trabalho são relatados como batalhas. A vida é
muitas vezes descrita como uma batalha. O corriqueiro modo de cumprimentar que
usamos, perguntando “tudo bem?”, suscita respostas como “na batalha” ou “sempre
lutando”.
Esta não é uma narrativa singular ao candomblé. A narrativa da guerra está presente no
dia a dia em todos os ambientes. Não são somente os filhos de santo que se apresentam
como guerreiros. Em discursos políticos, quantas vezes não se ouviram os candidatos ou
parlamentares se referir a um povo guerreiro que batalha por sua sobrevivência. A
referência corriqueira à vida como luta,no candomblé, é celebrada como força vital.
Estar em luta para o seus adeptos é estar vivo e atuante.
O discurso de que há uma guerra, de que a vida é uma batalha, uma sucessão de lutas
diárias é uma constante nos terreiros de candomblé. A cura está associada à vitória. As
conquistas são vitórias. Aqueles que alcançam seus objetivos, seja ela a cura de uma
doença, de uma depressão ou um carro novo, são vitoriosos na batalha. Porque todo
processo é uma luta. O candomblé, ao contrário do que possamos pensar em uma
análise rasa, é a celebração da guerra e não da paz. A luta diária pela sobrevivência é o
11
que dá tônus ao ritual. E quando uma vitória é conquistada, prontamente a pessoa
responde que está “pronta para outra”, já que a luta é cíclica.
O primeiro orixá saudado em qualquer ritual, seja público ou privado, é Exú, o orixá do
movimento, do caos. A centralidade do culto de Exú no candomblé demonstra como
este é um ritual voltado para o movimento e para a luta, que no discurso pode aparecer
como sinônimo de trabalho, conquista, movimento, rompimento e poder, como os
exemplos etnográficos demonstrarão.
Relatar a vida e a própria história como uma guerra e se colocar como um guerreiro é
quase um a priori quando se escuta o relato de qualquer filho de santo. As histórias de
vida são sempre contadas com ênfase nas dificuldades e como elas foram vencidas, ou
em como a nobreza de cada um e suas virtudes de guerreiro são testadas a todo instante.
Guerreiro, por sinal, é elogio dos mais valiosos.
Por meio das oferendas e dos rituais coreico-musicais, os adeptos do candomblé buscam
estar em sintonia com os orixás que são as forças da natureza personificadas capazes de
agir em seus corpos. A natureza à qual candomblé busca se conectar, no entanto, não é a
natureza passiva, regrada e controlada que a ciência clássica procurou esquematizar. A
natureza do candomblé é imprevisível e, muitas vezes, violenta. Para os adeptos, é
preciso dialogar com a natureza, render-lhe oferendas e atender aos seus desejos para
estar em sintonia e beneficiar-se de seus movimentos. Estar em harmonia com a
natureza, no entanto, não exclui que eventualmente o homem seja engolido por ela. O
ritual procura controlar uma crise que existe. O mundo exterior age no homem e esta é
uma condição que não pode ser resolvida, mas apenas controlada. A relação entre a
guerra, a crise e o movimento será mais explorada nos próximos capítulos.
A proposta de analisar a magia como uma técnica para a resolução de crises não é uma
proposta nova. A cura mágica foi tema amplamente tratado pela antropologia e volto a
ela mais à frente. O candomblé, porém, me parece, a partir dessa observação, um campo
propício para analisar o ritual como uma técnica para o controle das crises. Técnica essa
que não se propõe a resolução definitiva masao controle, assim como propõe o
antropólogo italiano Ernesto De Martino, conforme veremos detalhadamente mais à
frente.
12
está em movimento está doente. O movimento, como demonstrarei, está ligado ao ritmo
e à velocidade, logo a pessoa que está fora deste modus operandi veloz está doente. A
partir disso, minha hipótese central nesta pesquisa é a de que o candomblé tem tido um
uso frequente, abundante e bem sucedido como ferramenta para o tratamento das
depressões porque as depressões no mundo contemporâneo estão ligadas aos desajustes
de movimento e velocidade. A hipótese de que a depressão contemporânea seria uma
forma da melancolia freudiana é de Maria Rita Kehl (2009). A religião como técnica foi
defendida por Ernesto De Martino (1962, 1977, 1982, 1996, 2004, 2012), assim como o
conceito de “crise da presença” foi forjado por ele. Nesta pesquisa, procurarei relacionar
a depressão, nos moldes defendidos por Kehl (2009), com a crise da presença
demartiniana.
Para tal tarefa, apresentarei argumentos em prol de uma atualização do que ele chamou
de Crise de Presença para o contexto da “modernidade tardia”, assim como definida por
alguns autores. Ao articular De Martino, que escreveu na metade do século passado,
13
com Ilya Prigogyne e Isabelle Stengers, do fim do século, e Maria Rita Kehl, de
produção recente, procuro demonstrar uma tendência que vem se confirmando ao longo
de mais de meio século de revisitar certos conceitos e atualizá-los para um momento
histórico mais recente (como faz De Martino com o dasein heideggeriano e Kehl com a
melancolia freudiana).
Acompanhei durante pouco mais de dois anos as festas públicas e algumas obrigações
privadas do terreiro Ilê Axé Xangô Airá, em Santo André. Neste mesmo terreiro, tive a
oportunidade de participar de almoços de confraternização, jantares e festas de
aniversário, o que me rendeu um material etnográfico rico sobre a história de vida das
pessoas, além de me esclarecer muitas dúvidas que nos dias de rituais não tinha a
oportunidade de perguntar. Fui convidado a ajudar a organizar algumas festas, buscar
flores, comidas, limpar o terreiro e outras atividades “menores” e esse período foi
14
igualmente frutífero para compreender alguns processos e conversar mais
descontraidamente com os filhos de santo.
Durante a pesquisa visitei outros terreiros e com mais frequência o Ilê Axé Ogunjá, em
Juquitiba, no interior de São Paulo, comandado por Pai Cristiano de Ogum. O terreiro,
apesar de sua localização, é frequentado apenas por pessoas de São Paulo e sua região
metropolitana, já que na época em que o conheci, estava recentemente instalado ali,
vindo de Osasco, também na Grande São Paulo. Ali tive a oportunidade de assistir a
algumas festas e conversar com filhos de santo por diversas vezes. Alguns relatos
poderão estar presentes na etnografia para efeito de comparação. No Ilê Axé Ogunjá
participei de rituais reservados devido á distância. Com efeito, por ser no interior e eu ir
de carona, não teria como voltar antes dos filhos de santo que me levavam, assim assisti
a alguns rituais privados. Em duas saídas de iaô – primeiro ritual público de um
iniciado, quando seu orixá se apresenta para aqueles que não são filhos de santo – pude
conversar com pais de santo mais velhos que Pai Cristiano trazia da Bahia para ajuda-
lo.
Ao longo desse período, tive ainda acesso a muitos filhos de santo de outros terreiros e
visitei algumas outras casas de candomblé, além de compartilhar experiências com
outros pesquisadores das chamadas religiões afro. Alguns relatos podem ser igualmente
úteis para a compreensão do candomblé nos contextos urbanos e para exemplificar a
relação dos candomblés têm entre si, que tende a apresentar conflitos que serão um
elemento importante em minha análise.
15
Capítulo 1: O problema e o método
A hipótese de que a violência e o caos podem fazer parte da “experiência religiosa” foi
explorada por José Jorge de Carvalho em seu estudo sobre o culto da Jurema no Recife.
Carvalho compara a desordem que identifica no culto da Jurema com os cultos
dionisíacos gregos com o argumento de que o caos é gerador da ordem. No momento do
caos ritual surge a oportunidade de criar-se, recriar-se, reinventar-se e recolocar-se no
mundo.
Embora enverede por outros caminhos, ele traz uma importante reflexão para a presente
pesquisa. A ideia de que a homem religioso seria aquele que foi da desordem à ordem,
da maldade à bondade, da violência à paz (Carvalho, 2003:87) deve ser prontamente
descartada. Neste estudo, defenderei a ideia de controle. Esta ideia me parece adequada
porque admite a recorrência das crises, apesar de não descartar a cura compreendida
como solução definitiva.
Como bem nos mostra Asad, a visão de que a religião da Idade Média teria a mesma
essência que tem hoje é falsa e nos levaria a ter que definir a religião como um
16
fenômeno trans-histórico e transcultural. O que a história nos mostra, no entanto, é que
a religião muda, não é algo imutável e estático. Asad reforça seu argumento colocando
que as pré-condições e os efeitos socialmente identificáveis daquilo que era considerado
religião na época cristã medieval são diferentes do que chamamos religião na sociedade
moderna (Asad, 1993). Desse modo, a leitura de qualquer dos fenômenos que
chamamos religião deve ser historicamente localizado para compreendermos em que
momento as práticas se legitimam sob a categoria de religião.
17
de religião como diferencial evolutivo na definição dos estágios culturais, de
Tylor e, naturalmente, o conceito de secularização de Weber, fundamento da
modernidade, como distinção irreversível entre religioso e civil. Ora, é
justamente essa distinção, conquista histórica do ocidente moderno, o
pressuposto epistemológico das pesquisas sobre religião, até nossos dias, em que
raramente há problematização histórica (ou, desconstrução, como preferem
alguns), dos binômios sagrado-profano, público-privado, religioso-civil, tão
frequentemente utilizados ambiguamente, como categorias analíticas e como
realidades empíricas anteriores à análise.” (Pompa, 2012:159)
Até mesmo a perspectiva simbólica de Clifford Geertz, que exerceu grande influência,
principalmente a partir da metade dos anos 80, nas pesquisas voltadas para a
compreensão do sentido atribuído aos símbolos religiosos pelos próprios atores sociais,
não chega a questionar, todavia, o próprio conceito de religião (Ibid.).
“A insistência na tese de que a religião teria uma essência autônoma – que não
poderia ser confundida com a essência da ciência, da política ou do senso
comum – convida-nos, contudo, a definir a religião (assim como qualquer
essência) como um fenômeno trans-histórico e transcultural.” (Asad, 2010:264)
Para Asad, a história é chave para a compreensão do uso da categoria “religião” e sua
apropriação pela antropologia. Sendo o próprio termo fruto de uma construção histórica,
ele não poderia ser universalizado, embora assim pretendesse Geertz.
“O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião,
não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são
historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto
histórico de processos discursivos.” (Asad, 2010:264)
Esta perspectiva tinha sido elaborada, bem antes de Geertz, por uma corrente de
pensamento pouco conhecida no Brasil: a chamada Escola Italiana de História das
Religioes. Esta dissertação é um esforço teórico-metodológico analisar o candomblé de
São Paulo à luz da teoria forjada por um dos expoentes desta corrente: o antropólogo e
18
historiador das religiões Ernesto De Martino. De modo inevitavelmente resumido e
interessado, apresentarei a seguir as linhas gerais desta linha de pesquisa.
A “Escola Italiana de História das Religiões” aponta para o debate entre história e
religião como cerne dos pressupostos teórico-metodológicos desses autores. Os autores
dessa corrente, como aponta Agnolin, partem de uma crítica à vertente sistemática de
Müller, Tylor e Durkheim, e à fenomenologia de Otto e Eliade.
Cabe a Raffaelle Pettazzoni a tarefa de inaugurar esta corrente com o pressuposto “cada
phainomenon é um genomenon”:
"O proposito de Pettazzoni foi sempre uma conciliação entre historicismo (que
na Itália teoricamente recusava, com Benedetto Croce, a autonomia categorial do
religioso) e fenomenologia, à qual é estranho o conceito de historização dos
fenômenos religiosos, de devir." (Pompa, 1995:52-53)
Agnolin, herdeiro desta tradição, assim como Pompa e Mancini, aponta a perspectiva
histórica como alternativa à armadilha de analisar a religião a partir de uma categoria
universal e, ao mesmo tempo, localizada.
19
específico e limitativo do próprio historiador, a partir do momento em que a
religião é objeto de pesquisa histórica não pode ser posta de lado sua observação
em função de uma determinada cultura.” (Agnolin, 2008:22)
Somente a partir deste ponto de vista é possível realizar um estudo comparativo das
religiões sem que este resulte em uma análise universalizante das categorias.
20
“Naquilo que o autor (De Martino) chama de “mundo mágico”, isto é, nas
sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo é uma realidade
a ser (constantemente) (re)construída. A simbologia mítico-ritual é a técnica
protetora contra a ameaça suprema de não”ser/estar no mundo” (possibilidade
sempre aberta e contra a qual se constitui a ação protetora da simbologia mítico-
ritual): é ela, portanto, que funda a presença do homem no mundo e seu
constante esforço para reafirmar essa sua realidade” (Agnolin, 2013:71)
Ernesto De Martino publicou em 1956 o livro La Terra del Rimorso1 dedicado à análise
do tarantismo da Puglia, no sul da Itália. O tarantismo é um conjunto simbólico mítico-
ritual, como dito pelo próprio autor, uma “religião menor” que existiu por alguns
séculos naquela região e até meados do século XX conservava certos resquícios que
puderam ser observados por ele. O tarantismo de forma bastante resumida consiste na
cura coreico-musical da possessão que resulta da “mordida da aranha” em camponeses.
Depois de “mordidos”, os camponeses passam a adotar um comportamento alterado e só
podem ser curados com os rituais de músicas e danças específicas.
1
O título do livro baseia-se no duplo sentido da palavra italiana, “rimorso”, que pode significar tanto “re-
mordida” (da tarântula), seja “remorso”. O “remorso”, no caso, é, para o autor, tanto o sentimento de
culpa do afetado pela crise psíquica (o “mordido”), quanto o remorso do intelectual de esquerda, qual
ele era, frente ao processo de opressão social e política das classes asubalternas do suul da Itália.
21
a Antiguidade, teria sido provocado pela picada de aranhas (as tarântulas);
fenômeno ainda presente no Sul da Itália na época em que o autor empreende
uma importante pesquisa etnográfica e histórico-religiosa a respeito” (Agnolin,
2013:77)
A certa altura o autor sugere que a análise de cultos africanos de possessão deve ser
considerada, com certos limites, um fenômeno molecular, de modo que dele podem
derivar outras práticas como o tarantismo e outros cultos de estrutura semelhante, como
o candomblé no Brasil. A comparação com cultos africanos seria possível dada as
origens da cultura do sul da Itália que recebeu forte influência durante a expansão
Islâmica.
Tal enunciado já seria suficiente para justificar o estudo do candomblé brasileiro sob a
perspectiva demartiniana. O autor, no entanto, insere uma nova observação a respeito do
trabalho do historiado das religiões francês Henri Jeanmaire, sobre o tarantismo em
comparação com os cultos africanos, na qual sugere um paralelo com o candomblé.
2
Todas as citações de textos originais em italiano, espanhol, inglês e francês são traduções minhas.
22
“Ao que destacou Jeanmaire debemos somar a do mundo afro-americano (afro-
brasileiro, adro-cubano e afro-haitiano), onde se desenvolveram uns cultos de
estrutura afim com modalidades particulares e nomes diferentes (macumba,
candomblé, santería, vodú)” (De Martino, 1999:197)
Há ainda outros aspectos acerca do tarantismo assinalados pelo autor que são passíveis
de comparação com o candomblé.
23
depressivos” e a “normalização da crise” que destaca Jeanmaire como
características das práticas africanas” (De Martino, 1999: 199)
Nestes breves textos, De Martino fornece a chave para todo o estudo que se segue. Ao
analisar o candomblé paulista como uma prática que normaliza uma crise por meio de
uma técnica coreico-musical será possível traçar paralelos com o tarantismo e, mais
importante, com a teoria desenvolvida pelo autor a respeito do sistema mítico ritual
como técnica protetora da crise da presença. É importante frisar que, justamente na
linha com o pensamento demartiniano e da Escola italiana de História das Religiões, o
critério de comparabilidade não será analógico, em busca de semelhanças formais, e sim
histórico, em busca de especificidades histórico-culturais de realização de uma estrutura
ritual geral. Nesse sentido, espera-se também com o texto que segue, extrapolar a teoria
demartiniana de que a crise está diretamente relacionada ao que ele chama de “mundo
mágico”, um mundo fundamentalmente rural e “subalterno”, para usar o termo
gramsciano tão caro ao autor, e buscar identificá-la em um contexto urbano, como o
próprio autor apontou inicialmente em seu texto “Furore in Svezia”, publicado no
volume Furore, Simbolo, Valore de 1962, quando analisa grupos de jovens enfurecidos
em Estocolmo.
24
da dança e das cores, que libertam dessa picada envenenada” (De Martino, 1999:
13)
O candomblé, assim como o tarantismo, é conhecido como uma religião que se utiliza
do simbolismo da música, da dança e das cores para realizar seus rituais. No candomblé,
a manifestação nas pessoas é creditada aos orixás, seres espirituais ligados às forças da
natureza. O simbolismo coreico-musical no candomblé busca uma conexão com o
orixá, assim como o tarantismo com a tarântula. O atarantado – pessoa em transe – tem
uma identificação com a tarântula, que é objeto e sujeito ao mesmo tempo. Assim como
na possessão do orixá em que o possuído é o próprio orixá.
Os terreiros do século XXI nas grandes metrópoles têm muitos de seus líderes brancos
de sobrenomes europeus e formação urbana. A presença desses pais de santo brancos e
oriundos de estratos da classe média e da burguesia na comunidade religiosa não
permite mais que se diga que o candomblé de São Paulo é negro e pobre. (Prandi,
1991:20). Parece-me crucial assinalar esta diferença logo em princípio, embora esta seja
consequência do caráter urbano do candomblé em relação ao caráter rural do tarantismo,
como será problematizado mais adiante.
25
vida e visões de mundo imporão uma dinâmica específica ao candomblé desse
estado" (Silva & Amaral, 2003:99)
De Martino relata que seu entusiasmo pelo estudo do fenômeno foram fotos de
atarantadas na Capela de San Paolo di Galatina. Nas imagens, as mulheres “possuídas”
pela tarântula aparecem saltando na mesa do altar e repousando sobre a mesa
eucarística. Ele chama a atenção para a relação entre o tarantismo e o cristianismo.
“Estas simples reflexões sugeriam que por trás dos excêntricos personagens das
fotografias havia uma história substancial, uma história que apontava para
algum onde, quando e como de certas limitações do processo de expansão da
Civilização Cristã” (De Martino, 1999:31)
Verger dedicou-se de forma mais breve à relação do candomblé com o catolicismo. Ele
relata que todos os negros eram batizados quando chegavam ao Brasil como escravos e
recebiam catequese. Apesar disso, segundo Verger, esses negros permaneciam ligados
às suas antigas práticas rituais e crenças. Ele conta ainda que quando questionados sobre
o que significam aqueles cantos e danças por seus senhores respondiam que ao seu
modo e em sua língua adoravam São Jerônimo, Santa Bárbara ou o Senhor do Bonfim.
“É que cada divindade africana havia sido assimilada aos santos e virgens da
religião católica. Foi assim que, ao abrigo de um aparente sincretismo, as antigas
tradições mantiveram-se através do tempo” (Verger, 1999:23-24)
Atualmente não se veem mais imagens de santos católicos nos terreiros de candomblé
com a mesma frequência e os orixás são tratados por seus nomes originais na maioria
das casas. Um informante me contou durante a pesquisa que na Bahia, após o ritual de
iniciação no terreiro, o filho-de-santo precisava participar de uma missa. Tal tradição
nunca teve força no candomblé de São Paulo.
A questão do sincretismo é tema para uma vasta discussão na qual poderíamos evocar
toda uma bibliografia especializada no tema 3. Neste ponto, nos interessa saber que
3
A ideia do sincretismo no candomblé, inaugurado por Roger Bastide (1958) embora já estivesse
presente em Nina Rodrigues, veio se tornar um ponto de partida para um vasto número de autores que
se ocuparam no candomblé. Entre os estudos mais recentes, podemos citar Sérgio Ferreti (1995), que
realiza um estudo sobre o estado da arte da do sincretismo, no qual o considera uma condição sine
qua non para o campo. Pierre Sanchis (2001) afirma que o uso da categoria pode ser frutífero para
pensar as religiões afro-brasileiras, fazendo seu uso tanto como categoria analítica quanto dado.
Melvina Araújo (2011) critica a naturalização da categoria pelos cientistas sociais. A crítica de Araújo
é menos ao uso que a ausência da problematização da categoria ”sincretismo”, que oscila
permanentemente entre conceito e dado objetivo.
26
assim como indicado por De Martino sobre o tarantismo, o candomblé também contém
em sua história uma profunda relação com o cristianismo dominante. A respeito da
hegemonia e posição dominante do catolicismo na sociedade brasileira, Montero
observa que os estudos do catolicismo foram majoritariamente tema de estudo da
sociologia, mais preocupada com as instituições, enquanto os estudos afro-brasileiros
foram mais vezes objeto da antropologia, por sua vez com enfoque mais cultural.
Montero coloca ainda uma importante questão a respeito do “modo tradicional” como as
religiões de matriz africana foram interpretadas. As questões políticas e sociais dessas
práticas foram sempre observadas do ponto de vista marxista.
Oscar Calavia Saez postula que as religiões populares ou subalternas foram tratadas pela
literatura como uma versão empobrecida de cultos mais sofisticados. A respeito disso,
ele afirma que:
27
sociedade. Como o culto “popular” aos santos católicos era permitido, o candomblé
disfarçou-se assim por muito tempo.
“Sabemos com Peter Brown (1980) que o que costumamos chamar de “popular”
no contexto cristão não deve ser visto em função de um contraste entre “povo” e
“elite”, mas de um conflito entre o clero letrado e as elites leigas, esse patriciado
que quer prestigiar sua genealogia com o culto dos santos, e que tem, de resto, os
meios para sufragá-lo: construir santuários, encomendar imagens, publicar
hagiografias, sufragar festas suntuosas. O que se opõe à religião dos santos é a
elaboração letrada (bíblica e doutrinária) de um setor dessa elite, o clero” (Saez,
2009:202)
28
“Por outro lado, a comparação entre o tarantismo e os cultos africanos como o
bori e o zar, e com os cultos afro-americanos conhecidos com os nomes de
macumba, candomblé, santería e vodu, também se reveste de um especial
interesse a partir de um outro ponto de vista porque estes cultos, assim como o
tarantismo, também tiveram que passar pela interpretação naturalista que os
“reduzia” à doença” (DE MARTINO, 1999:204)
Uma participação efêmera na história ameaçada pelo perene e misterioso devir atiça o
sujeito a questionar-se e, em alguns casos, desesperar-se diante do risco de não mais ser-
no-mundo. Nesses casos identificam-se os indícios da crise que pode resultar numa
perda ou alteração temporária da consciência.
De Martino procura investigar a fragilidade psíquica que essa situação gera no sujeito.
Deslocar-se do olhar sociológico e se munir de fontes das ciências da mente, como o
autor defende, pode resultar em uma interpretação mais rica das crises coletivas (De
Martino, 2004). Para fazer um retrato coletivo de uma crise que se resolve em um
horizonte meta-histórico comum, podemos compreender, de forma interessada e
4
Do latim condere, fundar: realidade não dada mas a ser fundada
29
abreviada, a gênese das crises individuais que se encontraram e se resolverão nas
técnicas sociais. Para isso, mais adiante, apresentarei as aproximações entre o postulado
demartiniano e a “Eficácia Simbólica” levistraussiana. Por meio do exorcismo do
“poder do negativo”, conforme o autor italiano descreve, a sociedade garante a presença
atuante na história.
A relação do sujeito em crise com seu espaço e seu tempo são adversas no sentido em
que ele não pode viver o aqui e o agora, pois perde a relação com o passado e com o
futuro. O futuro se torna ameaça e o passado se perde em sua mente em processos
psíquicos de fragilidade.
30
Tal argumentação nos permite a, talvez ousada, tarefa de atualizar a crise da presença
para a sociedade contemporânea. Tarefa que o próprio autor iniciou no livro Furore,
Simbolo, Valore de 1962 e em La Fine del Mondo”, compilado de rascunhos publicado
após sua morte, em 1977, no qual ele analisa os apocalipses culturais. No inicio de sua
obra, no entanto, De Martino, atribui esta crise, sobretudo a padrões de atraso de
desenvolvimento em relação ao mundo moderno. Em “Sud e Magia”, de 1959, o autor
caracteriza a crise na Lucania, região extremamente pobre do sul da itália, como devida
à precariedade de bens e condições básicas de vida, o que ele chamou de “regime
arcaico de existência” (De Martino, 1982:78). Neste mesmo texto sobre a magia no sul
da Itália, De Martino define de forma mais elaborada o conceito de “crise da presença”.
Para ele, a vida de um indivíduo na região da Lucania é marcada desde seu nascimento
até a morte por fatos negativos, como a preocupação de sua mãe com a mortalidade
infantil e suas experiências prévias com abortos espontâneos, por exemplo, que ele
sintetiza na poderosa expressão “poder do negativo”. A partir da história da região e o
drama existencial ali presente por todas as dificuldades de ordem socio-econômica, De
Martino identifica a relação entre a historia daquela sociedade e a fragilidade da
presença.
31
A psicanálise para De Martino é uma importante ferramenta para compreender a crise,
não a cura. O argumento demartiniano defende a ideia de se apoiar em uma literatura
psicanalítica para compreender a crise e os diversos estados psíquicos dos quais o rito se
apropria para promover a cura. Nesse sentido, a psicanálise ajuda a compreender a
relação dialógica que os ritos mantêm com a crise, conferindo sentido a ela. Essa
literatura não explica o rito, mas ajuda a compreender a “doença” para qual o
simbolismo mítico ritual constitui a cura.
A magia é, então, para De Martino uma técnica que protege a presença, criando
ritualmente condições de participação na vida sociocultural. O sujeito que está em vias
de perder essas capacidades – de se colocar socialmente – está em crise e ele mesmo, ou
algum de seus próximos procura a magia como forma de solução do apuro. Nesse
sentido, a presença, como já comentei anteriormente é coletivamente retomada. A magia
não tem por finalidade eliminar o risco do mundo, mas fortalecer a presença e dar
condições ao homem de ser-no-mundo, ainda que este mundo esteja em risco. Nesse
caso, os riscos seguem representando riscos. Esses perigos, no entanto, são suportados
pela presença mediante sua recuperação.
Mancini observa que ao tomar a religião como dispositivo técnico – tema que será
abordado no capítulo 2 - entende-se como o rito “reprograma” sus objetos (Mancini,
33
2008:29). Esta reprogramação, como sugere Mancini, permite o sujeito passar de um
estado a outro, da doença à saúde, de um regime de expressão a outro.
34
A crise se caracteriza por uma perda total ou parcial da capacidade de ação individual e
voluntária do sujeito. A pessoa em crise sente que o mundo age nela e não mais ela no
mundo, então passa a ser uma não-presença ou uma semipresença passiva, no sentido
em que não tem total controle de suas vontades e de suas ações corporais, respondendo
a estímulos externos.
Especialmente em suas obras mais maduras, como Furore, Simbolo, Valore e La Fine
del Mondo – esta última, uma coletânea póstuma de rascunhos – a compreensão dos
fenômenos mágico religiosos, para além das interpretações sociológicas tradicionais,
com base em textos psicanalíticos são mais presentes.
35
da história. Somente após a Primeira Guerra Mundial, e em conexão com as
experiências psicológicas obtidas nesta primeira grande explosão de agressão no
mundo moderno, Freud teorizou um instinto de morte, tanto no sentido de uma
compulsão à repetição de um episódio traumático passado (como aconteceu na
psicose traumática de guerra em que o paciente tendia a repetir a cena terrível
com que tinha sido traumatizado), quanto no sentido de um impulso de
aniquilação voltado contra si mesmo, e, finalmente como uma verdadeira
agressão ao mundo exterior. Em certos episódios da história da vida familiar, a
inclinação para a destruição pode ser encorajada pela atitude hostil dos pais, pela
morte destes, por desmame traumático e várias frustrações relacionadas com a
vida: mas as diversas ocasiões históricas agem como tais apenas enquanto o
risco da angústia da história ameaça, de dentro, o esforço moral de cada
edificação cultural. " (De Martino, 1962:227)
Este artigo, já da fase mais madura do pesquisador, reflete uma preocupação desta
pesquisa que é transportar a análise construída em um ambiente rural, isolado, para o
contexto urbano e desenvolvido. A análise dos ataques de fúria dos jovens suecos, de
Estocolmo, capital daquele país, é um precedente relevante para validar a possibilidade
de reconhecer a crise da presença na cidade.
Segundo o autor, a civilização tem por papel controlar aquilo que Freud chamou de
“instinto de morte” e De Martino de “crise da presença”. A vida na cidade coloca o
sujeito em constante risco, como demonstraremos ao longo deste texto, e este tem a
tendência a suprimir sua presença, a perder o protagonismo de suas decisões para o
mundo. Quando a atividade do mundo exterior - e cabe aqui apenas lembrar que não
estamos falando apenas daquela natureza clássica, mas estamos falando das cidades, do
mundo controlado baseado em dispositivos de segurança, como mostra Foucault, por
exemplo – se desencontra da atividade do sujeito, há uma tendência de retorno ao caos,
ou seja, de retorno a um estado de incompletude. Esse estado de crise não seria um
retorno a um estágio comum de um “homem primitivo”, mas uma perda de controles,
controles que são adquiridos na história e ao longo dela.
"A etnologia e a história das religiões confirmar amplamente a tese de que uma
das funções fundamentais da civilização consiste no controle e na resolução de
que Freud chamou de "instinto de morte", isto é, a abdicação da pessoa como o
36
centro de decisão e escolha segundo valores, a tendência para aniquilar a
existência do que existe, a tentação cega de subversão e caos, a nostalgia do
nada" (De Martino, Ibidem).
De Martino concentra neste trecho o cerne do que venho argumentando: a sociedade usa
de técnicas para controlar o risco perene do homem de perder-se. Por isso, a literatura
psicanalítica deve ser incorporada pela antropologia, como já tem sido feito por alguns
autores, para dar conta de compreender o complexo emaranhado que compõe a vida
humana. A fragilidade psíquica se reflete em cada época por expressões distintas,
historicamente definidas. As técnicas e os mitos atualizam-se para proteger e resgatar a
presença do sujeito em cada tempo.
A atualização da crise da presença para o contexto urbano vem sendo tralhada por
Saunders amplamente. A noção de “ser absorvido pelo mundo” nas grandes cidades e
perder o controle sobre sua própria existência é um ponto de partida fundamental para
sua análise das conversões pentecostais. Ao registrar a história de vida dos
“convertidos”, Saunders busca nas falas os elementos que lhe permitem identificar a
crise da presença e investigar como as igrejas pentecostais atuam no sentido do resgate
da presença. Sua noção de história é especialmente interessante para a condução deste
texto, já que privilegia a atuação do indivíduo em sua construção.
Saunders observa ainda algo que venho argumentando ao longo deste texto. A perda da
presença está relacionada a uma falta da capacidade em distinguir natureza e cultura, no
37
modo clássico de entendimento dessas categorias. A presença para De Martino é o
diálogo entre natureza e cultura, por isso dedicarei aqui algumas páginas à questão do
diálogo do homem com o mundo/natureza.
Para prosseguir com minha análise sobre como o candomblé de São Paulo pode ser
interpretado como uma técnica resolutiva e protetora da crise da presença no contexto
urbano contemporâneo, seguindo a perspectiva demartiniana de compreender o
fenômeno social coletivo considerando a influência das fragilidades psíquicas no
processo, gostaria de apresentar alguns argumentos da psicanalista Maria Rita Kehl que
em seu livro O tempo e o cão, de 2009, procura atualizar o que Freud chamou de mal
estar da civilização para o fenômeno que conhecemos hoje como depressão. Tal
apropriação é válida já que o conceito de “crise da presença” dialoga com outros autores
que o desconhecem e que a “cura da depressão” é um relato frequente entre os adeptos
do candomblé.
Em seu volume, Kehl trata de sua experiência de mais de vinte anos com pacientes
depressivos em análise e traz contribuições eficazes para o melhor entendimento do
comportamento psíquico no meio urbano.
38
Ao retomar brevemente a história da psicanálise, Kehl destaca a instabilidade do fim do
século XIX como um fator relevante.
39
sociedades urbanas em que a ação do homem é sentida de forma mais direta, essa ideia
de mundo em construção é ainda mais evidente. Neste sentido, a literatura psicanalítica
nos ajuda a compreender que há diversos níveis de sutilezas que estimulam as ações
humanas de formas mais ou menos perceptíveis.
A sociedade impõe certos padrões aos quais o sujeito pode ter dificuldade em se
adequar, de modo que cria mecanismos de defesa para se proteger do risco de não ser. A
depressão, vista por Kehl como uma forma de melancolia performatizada é uma chave
interessante para compreender a crise da presença, ainda porque muitos nativos vão
descrever certas situações de melancolia e apatia, que De Martino chamaria
seguramente de crise da presença, como depressão.
Como vieram defendendo diversos autores, em uma sociedade com transformações tão
rápidas em que as pessoas são obrigadas a adquirir constantemente novos
conhecimentos e novas informações, a fragilidade psíquica pode estar mais evidente. A
ideia de um mundo em constante formação, transformação, é facilmente compreendida
quando pensamos que há poucas décadas a comunicação com pessoas entre diferentes
países era intermediada por cartas que demoravam até algumas semanas para chegar ao
seu destino. Hoje, podemos contatar pessoas por vídeo em outra parte do globo pelos
nossos telefones celulares. Os bancos criam novos mecanismos de segurança a cada dia
e a televisão, que tem hoje pouco mais de meio século já é completamente diferente
daquela primeira inventada, tanto em tecnologia como em linguagem. Já podemos
participar em programas interativos e fazer compras pelo controle remoto. O mundo de
hoje não é o mundo de dez anos atrás, a velocidade com que temos vivido as
transformações em nossa sociedade não no permite a ingenuidade de tomar o mundo
como dado.
40
A experiência de velocidade que temos vivido, segundo Kehl (2009:17) nos
desestabiliza do padrão em que somos condicionados. A experiência de um tempo mais
veloz nos enche de incertezas e deixa a sensação comumente proferida de que “não
acompanhamos a velocidade do mundo e dos fatos”. A respeito da segurança, que
trataremos ao longo deste texto, Kehl retoma uma conferência de Lacan na qual o
psicanalista chama a compreensão da frouxidão da consciência de paixões de
segurança. Uma paixão que viria ela mesma produzir o seu oposto, uma ameaça à paz
social.
Para a autora, a paixão de segurança proposta por Lacan aproxima-se “da abordagem
freudiana a respeito da segurança que a massa oferece aos que dela participam” (Kehl,
2009:289). Ideia absolutamente compatível com De Martino, leitor de Freud, quando
fala do rito como técnica de proteção individual e coletiva por meio da de-historificação
do devir.
O líder aqui poderia ser o xamã d’”A Eficácia Simbólica”, de Levi Strauss, ou o ritmista
que conduz o ritual do tarantismo, ou do pai-de-santo do candomblé. Lembro-me de
uma entrevista em que a filósofa suíça radicada no Brasil, Jeanne Marie Gangnebin diz
que o jovem ao conhecer o mundo das artes, da literatura, do cinema e ter contato com
os grandes clássicos percebe que não é louco já que compartilha das mesmas
inquietações dos grandes gênios, dos clássicos. Ainda mais quando esses artistas e
filósofos conseguem dar a essas angústias bonitas formas, o jovem se identifica e se
inspira. Essa sensação de pertencer a uma “tradição milenar” de pensar um mundo em
constante mudança proporciona a esse jovem o “sentimento oceânico” do qual fala
Kehl, de pertencer a algo maior e, de certo modo, mais relevante que sua
individualidade, ao mesmo tempo em que reforça o questionamento individual que leva
a um fortalecimento desta identidade. Encontramo-nos novamente com o argumento
demartiniano de que o sujeito resolve sua crise individual no coletivo.
41
Nesse sentido, a crise, assim como toda a vida individual, deve se enquadrar em um
padrão para ser socialmente aceita e que seu exorcismo seja bem sucedido. Uma crise
individual que não encontra um padrão coletivo coerente é entendida como um
transtorno, mas se essa crise se encontra em um padrão conhecido pelo grupo, seu
exorcismo é realizado para o resgate do indivíduo e do grupo. De certo modo, o que é
entendido aqui é uma necessidade de ordenar o mundo constantemente já que este está
em constantes mudanças, logo, em desordem. Construir o mundo, não o tomando como
dado, é organizar o caos recorrente em categorias conhecidas, ou ainda criando novas
categorias que deem conta do novo mundo ao redor.
Antes de ir chegar ao terreiro de umbanda, Pedro teve passagens por igrejas evangélicas
e católica. Ele conta que sempre sentiu uma forte presença espiritual e precisava “se
entender” com isso. Pedro lembra que foram muitos os episódios em que passou mal
nos cultos, tendo crises de consciência e chegou a acordar diversas vezes no altar, ou
42
mesmo, do lado de fora da igreja. “Hoje eu sei que era o orixá que já me pegava naquela
época. Ele que me tirava da igreja”, afirma. Pedro relata ainda fortes crises de dor de
cabeça sem diagnóstico pela medicina tradicional.
“Antes ainda da Dona Lazara, eu rodei em tudo quanto é lugar. Eu tinha isso.
Não sabia que era o santo me chamando, mas eu tinha que achar um lugar, que
achar alguma coisa. Fui em muita igreja evangélica e passava mal em todas,
tinha dores de cabeça todos os dias” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev.
2014)
Ao contar de sua saída do terreiro de Dona Lazara, Pedro lembra que fora avisado de
que ali não seria sua casa definitiva.
“O baiano (entidade) da mãe me disse: “Filho, aqui não é seu lugar. Você é bem-
vindo e pode voltar sempre, mas aqui não é seu lugar”. Eu fiquei perdido. Saí de
lá e fui continuar procurando. Daí, fui pro kardecismo. Fiquei num centro um
tempo. Mas não me adaptei. Um dia o Jerônimo Medonça – conhecido médium
kardecista tetraplégico e cego – foi dar uma palestra lá e na saída pegou a minha
mão e disse: “Pedro é pedra. O primeiro apóstolo do Senhor. Pedro, seu lugar
ainda não é aqui. Vai procurar o seu lugar. Não desista”. Foi então que fui parar
numa casa de candomblé, muito desconfiado. E descobri que era filho de
Xangô”. (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)
A saída da casa de umbanda não se deu nas melhores condições. Pedro diz que já não se
sentia mais tão bem lá, mas foi por conta de uma fofoca que acabou se afastando
definitivamente e continuou a procurar uma outra solução para sua crise espiritual.
43
Apesar de estar bem na casa de D. Lázara, ele não sentia que sua vida estava
completamente organizada.
A trajetória de Pedro no candomblé não finda os conflitos de sua trajetória de vida, mas
os ressignifica. A história de Pedro desde quando foi iniciado até o momento dessa
pesquisa não é uma história de resolução de crises, mas de controle, de acordo com a
ideia demartiniana de que o ritual é uma técnica para o controle da crise da presença.
Quando Mãe Cidália convida Pedro a abrir a sua casa e, ao mesmo, tempo abandonar
seu pai de santo original, vemos claramente que o conflito não é evitado. Sequer
44
cogitam-se formas mais ou menos diplomáticas de tomar as decisões. Após a
confirmação dos búzios, as decisões são tomadas sem se preocupar com o conflito que
possam gerar. Pedro, mais de uma vez, disse que “o povo de santo não foge da luta”.
Pedro abriu então sua casa de candomblé em um espaço que ocupava cerca de um
quarto do terreno total da casa de sua família, atrás da casa de seu irmão, Sinval, que
havia construído no mesmo quintal.
No começo dos anos 2000, a Prefeitura de Santo André ordenou a demolição da casa do
irmão do babalorixá do terreiro Ilê Axé Xango Ayra, Pai Pedro de Xangô. Com a casa
seriam demolidos também os quartos de santo, já que as construções ficavam no mesmo
terreno. No terreno da casa herdada por ele e seus quatro irmãos ficava a casa dos pais,
onde hoje moram o irmão dela com a irmã, o cunhado e o sobrinho. No fundo da casa
construída pelo pai, fica a casa do sacerdote. Na outra lateral do terreno ficava a casa do
outro irmão e, atrás dela, o barracão - lugar onde se realizam as festas - e os quartos de
santo. A notícia da demolição foi uma surpresa para toda a família. A decisão foi
tomada com base no argumento de que a construção era irregular. A casa era lajeada e o
terreno ao lado pertence à empresa União Petroquímica para passagem de tubulação.
45
todos. Mas não fizeram. A união era só na hora do candomblé porque um
precisava do outro. Era só na hora que precisava. Daí o povo falou na época que
eu não tinha dado amalá direito (comida de Xangô preparada toda quarta-feira
no terreiro), que tinha furado com alguma obrigação, que tinha feito isso e
aquilo errado. O povo fala. Por isso que eu não faço candomblé pra povo de
candomblé. Faço pro orixá, pros filhos de santo, pros amigos, pros clientes, mas
não fico agradando povo de santo. O terreiro foi pro chão e subiu de novo, mais
bonito e com mais axé” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)
Após a demolição, o barracão foi refeito com cobertura de telhas, que era permitido pela
prefeitura. Novos quartos de santo foram construídos na lateral direita do terreno e no
fundo. E o candomblé voltou a funcionar ali. Pai Pedro recorre à narrativa da guerra
para contar a história.
“Não sei o que os orixás queriam, mas queriam o melhor porque o terreiro está
aí firme e forte. O Sinval (irmão que teve a casa demolida) está na casa dele, tem
mais espaço, as coisas estão melhores do que antes. Foi uma batalha grande,
minha, da família, do axé (como às vezes se referem ao terreiro), dos filhos de
santo que ficaram comigo, de todo mundo. Mas a gente passou no teste
direitinho. Estamos de pé.” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)
A narrativa de Pedro é marcada pela vontade do orixá. Quando ele afirma que o orixá o
tirava da igreja evangélica tomando seu corpo e sua consciência, ou quando diz que não
sabe qual era a intenção do orixá no episódio da demolição do terreiro. O protagonismo
do orixá nos episódios de crise são uma condição importante do relato dos adeptos.
Vagner Gonçalves da Silva destaca que muitos iniciados tiveram seu primeiro contato
com o orixá ao “bolar no santo”, um indício da necessidade da iniciação. Bolar no santo
é a manifestação do orixá quando a pessoa não foi iniciada e o orixá não foi assentado,
conforme os relatos de Pedro quando o orixá “o pegava”. Ele observa ainda que a
iniciação de fato depende do desejo da pessoa e de outros fatores:
46
custos materiais consideráveis (roupas, assentamentos, animais para sacrifícios,
etc.) nem sempre compatíveis com a situação financeira da pessoa.
Idiossincrasias para assentar e cultuar determinados orixás podem complicar
ainda mais esse aspecto” (Silva, 1995: 123)
A vulnerabilidade do sujeito para a possessão não é vista nestas práticas como fraqueza,
mas recurso indispensável para a condução do resgate da presença.
Em outros relatos, a manifestação do orixá e o cuidado com sua vontade, são igualmente
perceptíveis. Igualmente, é um traço importante dos relatos dos adeptos do candomblé o
“estar perdido” antes de encontrar a religião e o “encontra-se” após este processo.
A fim de ilustrar este processo que vai do “estar perdido” ao “encontrar-se”, separei
alguns trechos de relatos que Reginaldo Prandi reproduziu em seu livro Herdeiras do
Axé, de 1996, das entrevistas que fez com quatro mães de santo de candomblés de São
Paulo.
Mãe Manduê de Iansã conta que, apesar de nascida em um terreiro enquanto sua mãe
dava as obrigações, ela se afastou por um longo período do candomblé, em que viveu
situações de dificuldade.
“Fui presa, sofri, fiquei três meses na prisão, sofrendo. Aí que o moço, não sei
porque diabo, me deixou liberta, e eu fugi. Quando eu fugi para ir atrás da minha
família, me perdi, tudo isso, passei muita fome, não vou nem contar, passei
fome, comia coisas da lata do lixo” (Prandi, 1996:169)
O sofrimento que precede o encontro com a religião parece qualificar estes iniciados
que “já passaram por muita coisa”, “conhecem a dificuldade” – citando aqui palavras
que ouvi de muitos filhos de santo – e, por isso, sabem valorizar e compreender aqueles
que estão em uma situação de vulnerabilidade. Mãe Manduê conta que fazer o santo foi
a solução para seus descaminhos.
“Quando eu cheguei na casa da minha vó (que era mãe de santo), fui procurar
me cuidar, tratar de mim. Aí viram que eu estava precisando fazer o santo, e eu
com aquela ignorância, achando que era tudo bobagem” (Prandi, 1996:170)
Mãe Cidinha de Iansã ficou doente e mesmo depois de percorrer vários hospitais e
terreiros continuou sem um diagnóstico. Até que “virou no santo em casa”. As entidades
orientaram seu marido de que ela deveria abrir uma casa de umbanda, e assim fizeram.
48
Depois de um ano o caboclo, entidade da mãe de santo, disse que ela deveria procurar
um terreiro de candomblé para iniciar-se.
Como o marido era contra matança, eles não foram para o candomblé e mãe Cidinha
começou a adoecer novamente. A mudança para o candomblé foi um assunto retomado
em inúmeras situações. Neste caso, observo o que já venho afirmando que o conflito
não é evitado quando este é considerado necessário.
“A gente estava falando agora sobre como se resolve esse conflito da mudança
da umbanda pro candomblé. Olha, o conflito eu senti logo a primeira vez nós
fomos dançar pro santo. Porque aí começou: passa mal uma pessoa, passa mal
outra. Porque você sabe, você chama um santo, os outros todos querem ver:
“Bom é minha vez, como é que fica?” Aí eu chamei elas todas, as filhas. E eu
estava muito doente na época. Eu disse assim: “Vocês querem fazer um
umbandomblé, ou vocês querem só umbanda? Eu quero que vocês decidam
agora”. Todo mundo levantou a mão e disse: “Eu prefiro uma mãe de santo do
candomblé viva, do que uma mãe de santo da umbanda morta”. Meu marido
levantou a mão e disse: “Eu quero umbanda”. Aí eu fiquei muito, bem dividida.
Eu disse assim pra ele: “Você é o esteio da minha casa, você me deu isso, você
me deu tudo o que eu tenho, você é meu braço direito. Só que eu não tenho
condições mais de viver na umbanda. Porque eu sinto que eu não tenho
condições de virar sem Iansã comandar”. (Prandi, 1996:180-181)
Mãe Sandra de Xangô, uma das entrevistadas por Prandi, também iniciou-se no
candomblé depois de um período de doença sem diagnóstico. Ela desmaiava e ficava
agressiva em qualquer lugar ou situação. Um amigo de sua irmã que indicou que ela
procurasse o terreiro onde foi iniciada. Depois de um médico ter dito a seu pai que ela
ficara louca e não tinha jeito, ela foi levada para o terreiro de sua mãe de santo e saiu de
lá raspada, ou seja, iniciada.
Paula Montero trabalha a noção de doença nos relatos dos adeptos da umbanda em seu
livro “Da doença à desordem: cura mágica na umbanda”, de modo substancialmente
49
proveitoso para esta pesquisa. “Com efeito, no discurso dos adeptos, a categoria
“doença” oscila constantemente, ora designando distúrbios especificamente orgânicos,
ora remetendo a realidades mais abrangentes” (Montero, 1985:118).
Friso esta passagem porque a doença pode ser observada como um “segundo idioma”,
no sentido que Evans-Pritchard interpretou a bruxaria entre os Azande. Ou seja, os
adeptos compreendem que um distúrbio, um desajuste, que pode ser explicado como
doença, mas que significa algo mais subjetivo. As doenças que ninguém pode explicar
são razões comuns pelas quais as pessoas são levadas ao culto. Pai Pedro tinha crises de
perda de consciência, Mãe Sandra de Xangô “desmaiava”, assim como outros casos
aqui já postos e outros que estão por vir.
50
Exú é o primeiro a ser agraciado porque ele é o orixá responsável pela comunicação e
do movimento. O movimento é parte essencial do ritual do candomblé. Nas festas, os
filhos de santo dançam para saudar os orixás e quando estes tomam o corpo de seus
filhos, dançam para saudá-los. As festas começam com o xirê, um ciclo de cantigas
tocadas e dançadas para todos os orixás, menos Exú que é saudado separadamente antes
do início da festa. Nos candomblés da nação Ketu, como é o caso dos exemplos que
trarei nesta pesquisa, são 16 orixás cultuados.
A coreografia de cada cantiga é um elemento importante e que deve ser seguida à risca.
No terreiro de Pai Pedro de Xangô é frequente que ele levante de sua cadeira, onde fica
na maior parte das festas e entre na roda de filhos de santo durante o xirê para corrigir
os passos e demonstrar o modo correto de se dançar.
Presenciei no fim de uma festa, Pai Pedro chamar uma filha de Iansã – orixá do vento –
e a equede –filhas de santo que não “viram no santo”, ou seja, não são possuídas pelos
orixás - que a acompanhava enquanto incorporada já que raramente os orixás dançam
sozinhos, para falar sobre o modo correto de Iansã dançar com as mãos mais próximas
ao corpo com gestos menos “arredondados”, como ela havia feito na hora da festa.
Durante a iniciação que dura vinte e um dias, uma das tarefas é ensinar o filho de santo
a dançar quando estiver com seu orixá.
Há, segundo esses autores, uma razão histórica para que o candomblé tenha se
configurado em torno da dança. “Os africanos e seus descendentes, despojados de
qualquer referência material, contavam somente com o corpo e a memória, que traziam
como referências, revivendo e reativando identidades no contexto perverso da
escravidão no Brasil” (Sabino & Lody, 2011:79-80). No candomblé, assim como no
tarantismo apuliano, é a performance corporal que protagoniza o ritual. Sem o corpo
expressivo não há trabalho.
51
A noção do corpo no candomblé é um ponto importante a ser compreendido. Como
observa a socióloga Rosamaria Barbara, o corpo é um instrumento de integração.
“No candomblé o corpo é percebido como algo flutuante, não é ligado a uma
lógica polarizada, é um corpo com a possibilidade de sentir, de dançar, etc., que
transforma a própria força como sua base, dinamizando as experiências e sua
própria existência e, principalmente, vivendo no mundo e não fora dele, como
nas religiões de salvação” (Barbara, 2002:65)
Pai Cristiano tem o hábito de convidar pais e mães de santo do terreiro do qual é filho,
na Bahia, para os rituais de feitura. Nesta ocasião, estavam ali duas mães de santo, um
pai de santo e um ogan – cargo de quem toca atabaque, também chamado de alabê -,
todos tratados com muita reverencia. Após o panã, que consiste em um ritual simples
em que os iaôs realizam as tarefas, ganham dinheiro das pessoas presentes e levam um
surra simbólica com um galho fino, há um período de descontração. O Ilê Axé Ogunjá
foi fundado em Osasco, na grande São Paulo, mas mudou-se para um sítio, em
Juquitiba. Nesta ocasião, após a cerimônia, fomos todos, pais e filhos de santo e
convidados, que neste dia éramos somente uma amiga do mestrado e eu, para a área
externa da casa onde são realizados os rituais e nos sentamos para comer petiscos e
tomar cerveja.
Nesta tarde, os Ogãs tocavam os itãs – cantigas em iorubá com as histórias de cada
orixá – e as mães de santo ensinava, ou ensaiavam, os filhos de santo com cada
coreografia. O clima era de descontração e brincadeira. Uma das mães de santo chegou
52
a me chamar para me ensinar as danças do meu orixá, que o pai de santo havia
enxergado num jogo de búzios. Não havia nesta tarde qualquer cobrança, obrigação ou
protocolo para orientar a atividade. Era um momento de confraternização. O ogã
convidado repetiu diversas vezes: “Isso era a brincadeira dos africanos. Nossos
antepassados faziam isso, bebiam, tocavam e dançavam para chegar na hora do xirê –
conjunto de danças para todos os orixás que dá início ás festas - e fazer bonito para o
orixá”.
Sabino e Lody afirmam que por meio desse tipo de brincadeira há uma transmissão de
“sentimento patrimonial” que fortalece os laços da comunidade.
53
Os movimentos devem ser sincronizados para que os outros filhos sigam dançando. Há
uma coreografia para dar espaço para que os filhos batam cabeça enquanto os que estão
em pé continuam dançando parados em seus lugares.
A antropologia tem se ocupado do corpo enquanto construção social desde, pelo menos,
“As Técnicas do Corpo” (1935) e “A Expressão Obrigatória dos Sentimentos” (1921) ,
de Mauss. Em seu livro mais recente, “Antropologia do Corpo e Modernidade” (Vozes,
2011), David Le Breton remonta a tradição antropológica desses estudos e identifica
como a relação com o corpo nas culturas ocidentais passou em uma “polissemia
corporal”.
54
Observar a construção do corpo e seus movimentos é crucial para a compreensão do
candomblé sob diversos aspectos. A técnica corporal é o meio pelo qual se acessa todo o
arsenal mítico e dá sentido ao ritual. As danças dos orixás contam suas histórias,
demonstram suas qualidades e personalidade. Le Breton observa que a concepção
moderna de corpo nas sociedades ocidentais contribui para a ideia de que o homem está
separado do cosmo. No candomblé observamos o corpo como conexão, já que é nele
que se manifestam as entidades não-humanas, além de sua relação com a terra, a
comida, a água, como explorarei em detalhes mais à frente.
Os filhos de santo têm uma tarefa de rotina essencial, o ossé, que é o ato de limpar o
quarto do santo e seus objetos. Todos esses rituais aqui descritos seguem o mesmo rigor
55
coreográfico, cada um a seu modo. Há uma ordem para realizar a limpeza, há cantigas
que devem ser cantadas. Tudo no candomblé se faz em movimento.
Todas as práticas do candomblé que vão desde o jogo de búzios executado pelo pai de
santo, quando se lançam as conchas em uma bandeja redonda feita de uma trança de
material semelhante ao vime, aos borís, que são os rituais para “dar de comer à cabeça”,
até as festas, que envolvem movimentos, coreografias, protocolos de deslocamentos.
Tanto nas práticas como nos discursos, o movimento é importante. Pai Pedro me disse
em muitas ocasiões que se irritava quando um filho de santo tinha o mesmo problema
por muito tempo. “É preciso se mexer. A gente precisa mudar até de problema”, ele
dizia. O pai de santo me relatou certa vez, a respeito de um jogo de búzios que tinha
feito, que o consulente não tinha dinâmica. Segundo ele a vida do filho não “ia para
frente” porque ele não tinha dinâmica e, por isso precisava ser feita uma oferenda para
Exú e Ogum, orixá da comunicação e movimento, e orixá da guerra, respectivamente.
“Ele precisa levantar e ir à luta. As coisas não são fáceis e na vida não tem moleza.
Cada um precisa lutar pelas suas coisas porque orixá não faz nada por ninguém. O cara
precisa lutar com o orixá e não é deixar o orixá lutar por ele. A gente alimenta o orixá
pra fortalecer o axé dele e o nosso, pra ele levar a gente pra batalha”.
Não demora para perceber que a natureza à qual Pai Pedro se refere é uma natureza em
constante movimento. O vento de Iansã, o fogo de Xangô, as matas de Oxóssi, tudo no
candomblé está em constante transformação e construção. A relação com a natureza é
mais sofisticada que uma barganha. Os filhos de santo dão de comer às forças dessa
natureza para se aliar a elas. “O candomblé não vai eliminar seus problemas. As filhas
de Iansã vão ventar. Um dia mais forte e outro dia mais fraco. Mas se você está ligado
com o orixá, você venta junto com ele. Tem dia que o orixá está mais calmo e tem dia
56
que está agitado. Precisa ser assim. Na vida, a gente precisa ser assim, uma hora mais
calmo e outra mais agitado”, afirma.
A natureza que se apresenta como orixá em sua dimensão mais etérea é a mesma que se
apresenta tangível pelas ciências, como a física, a química e a biologia. O vento do
candomblé não é diferente do vento que faz os barcos à vela navegarem. Para os adeptos
é tudo uma coisa só que atua em diversos níveis.
Uma conversa que tive com a equede de Pai Pedro em uma festa de um outro terreiro
em que a encontrei ilustra o que argumento. Alice, que é também irmã de sangue do pai
de santo, me contava sobre uma cirurgia pela qual ele passou para a colocação de uma
prótese no fêmur. Ela mora no mesmo quintal do Pedro, no mesmo terreno onde fica o
ilê. A casa antiga era dos pais deles e ficou de herança para os cinco filhos. Lá moram
Alice e outro irmão na casa maior na lateral do terreno. Pedro mora nos fundos dessa
casa em uma casa um pouco menor. No outro lado do terreno que é um retângulo
comprido, fica um jardim, a garagem e, no fundo ao lado da casa de Pai Pedro, o terreno
onde se realizam os rituais com quartos de santo na parede da esquerda e na parede do
fundo.
Pai Pedro é um homem negro de 53 anos, baixo e acima do peso. Ele é muito ativo e
ansioso, de fala rápida e com gestos apressados. Posto isso, comentei com a equede em
tom de brincadeira: “O Pedro deve estar dando muito trabalho sem poder se mexer”. Ela
me respondeu imediatamente:
“Olha, achei que fosse, mas ele está super bem. A recuperação dele foi
excelente e até o médico ficou impressionado. Mas também, ele teve um bom
médico, depois teve um bom cuidado em casa e ele é um homem de muita fé,
muito correto com as suas obrigações (se referindo às obrigações de alimentar os
seus orixás), então não tinha como dar errado. Ele foi bem cuidado,
materialmente, espiritualmente e pela família. Logo ele está pulando com o
Xangô dele”. (Equede Alice de Obá, Santo André, abril. 2014)
57
Continuo o assunto perguntando a Alice, que é funcionária pública da área da saúde, por
quanto tempo durará a recuperação e quais serão as limitações do pai de santo neste
período. Ela me responde:
“O pior mesmo já foi, fio. A cirurgia era a parte que a gente tinha mais medo e
correu tudo bem, com a graça de Xangô. Agora é outra luta que é a prótese
encaixar e não ficar diferença porque, às vezes, o médico disse, tem gente que
fica meio manco depois porque é normal a próteses subir um pouco. Não
acabou. Não dá pra achar que já tudo resolvido só porque o pior já passou.”
(Equede Alice de Obá, Santo André, abril. 2014)
O devir e suas possibilidades são um risco para o homem. Por isso a hipótese de
trabalhar a religião como técnica de dehistorificação do devir, como propõe De Martino,
pode ser uma tese válida para o candomblé. Se o adepto do candomblé está em
constante interação com as “forças da natureza” para equilibrar-se e proteger-se, está no
devir o risco. O risco de não ser mais no mundo.
58
“Por meio do problema da realidade dos poderes mágicos, por meio da análise
dos conceitos de natureza mágica e pessoa mágica, o pensamento é, de fato,
constantemente chamados a lutar contra esta última Thule na qual o realismo
ingênuo se refugia, que é a dualidade que opõe o indivíduo, enquanto o dado, a
um mundo dos fatos naturais, considerados também como dados” (De Martino,
2004:62).
Aproximar-se então do que ele chama de mundo mágico requer uma pré-disposição a
ampliar o método historicista – no sentido em que procura na história o sentido das
práticas- em busca de elementos que contribuam para a ampliação da compreensão
desses fenômenos.
A compreensão de que o “mundo como dado” não é uma ideia universal, enraizada
culturalmente em todos os povos, me parece a chave para compreender certas nuances
da cultura, como os problemas dos poderes mágicos, por exemplo, e a vulnerabilidade
psíquica que pode levar os indivíduos a crises nas quais a realidade é posta em cheque.
Desafiar a consistência do “real” só seria possível num mundo no qual o real fosse
passível de questionamento. Para De Martino, como demonstrarei a seguir, o mundo
não é dado, no mundo mágico a realidade é uma realidade condenda, ou seja, uma
realidade em feitura, em constante fundação.
59
“No mundo mágico, a individuação não é um dado, mas uma tarefa histórica, e
o ser-no-mundo é uma realidade condenda. Daí um complexo de experiências e
de representações, de medidas protetoras e práticas, que expressam ora o
momento de risco existencial mágico, ora o resgate cultural, e que formam, em
dramática polaridade, o mundo histórico da magia. A própria presença pessoal, o
ser-no-mundo, a alma, "foge" de sua morada, pode ser "pega", "roubada",
"engulida", etc.; é um pássaro, uma borboleta, um sopro; ou ainda deve ser
"protegida", "recuperada"; ou mesmo deve ser "mantida", "fixada", "localizada"”
(De Martino, 2004:141)
60
distinção prevalente entre o homem e o mundo exterior, há aí uma crise da presença, um
momento de fragilidade psíquica em que a autoconsciência pode se perder
momentaneamente e deve ser resgatada.
“Para esta resistência da presença que quer ser, o colapso da presença se torna
um risco preso em uma angustia característica, e para a reconfiguração deste
risco, a presença se abre para a tarefa de seu resgate mediante a criação de
formas culturais definidas. Para uma presença em colapso sem compensação, o
mundo mágico ainda não apareceu; para uma presença resgatada e consolidada,
que já não percebe o problema de sua instabilidade, o mundo mágico já
desapareceu” (De Martino, 2004:139)
61
O homem detentor de autoconsciência e conhecimento do mundo estaria pois garantido?
Este sujeito seria a priori integrado ao mundo sem a necessidade de técnicas para
desabrigar sua presença e coloca-lo como protagonista de sua história social? De
Martino anuncia que o princípio supremo da unidade transcendental comporta um risco
supremo para pessoa.
“No limite, qualquer relação da presença com o mundo torna-se um risco, uma
queda de horizonte, um não-manter-se, um abidcar sem compensação; algo
semelhante à situação que força o ezquisofrênico a uma imobilidade estatuária
de estupor catatônico, ou seja, a vontade travada, espasmódicamente fechada ao
assédio do mundo. A magia retoma este declive e se opõe definitivamente ao
processo de dissolução. Operando uma série de distinções mediante as quais o
risco é identificado e combatido” (De Martino, 2004: 235)
62
a ciência se construiu como categoria. Stengers e Prigogine dizem que “a ciência
(clássica) podia ser descrita como uma tentativa de comunicar com a natureza,
estabelecer com ela um diálogo, donde se destaquem, pouco a pouco, perguntas e
respostas” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:2). Os autores seguem sua definição
colocando mais argumentos para que seja possível, segundo eles, diferenciar o homem
de ciência moderna de um mago ou dum feiticeiro.
A ciência busca na sua experimentação algo além da interpretação da natureza, mas sim
criar métodos de interferir em seu funcionamento, assim como a magia busca o diálogo
como o mundo para, por meio de sua compreensão, realizar o resgate da presença em
risco.
“A experimentação não supõe a única observação fiel dos fatos tais como se
apresentam, nem a única busca de conexões empíricas entre fenômenos, mas
exige uma interação da teoria e da manipulação prática, que implica uma
verdadeira estratégia.” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:3).
Stanley Tambiah defende que tanto ciência quanto religião são construções históricas e
que os conceitos são definidos a posteriori de uma certa prática. Ou seja, não há um
conjunto de práticas e ideias que nascem como ciência, ou religião, ou qualquer outra
categoria , mas a uma certa distância, essas ideias são chamadas ciência, religião, etc.
“Ora, não se pode dizer que os antigos gregos desenvolveram esta mentalidade
científica de uma só vez ou de forma generalizada. Os gregos não tinham a
concepção de "ciência", que pode ser considerada equivalente ao nosso próprio
conceito de ciência que se desenvolveu no século XVII (e tornou-se atual,
digamos, na Royal Society de Londres por volta de 1645)” (Tambiah, 1990:9)
Isto quer dizer que, num primeiro momento, a ciência não se opõe, e sim surge no
interior do próprio pensamento religioso (ou mágico). É somente no século XVII que há
uma separação formal entre essas categorias. Uma separação historicamente construída.
63
“A primeira vez em que um escrito grego - na verdade, alega-se, na literatura
ocidental existente - quando um conjunto de crenças foi explicitamente
declarado mágico estava em um texto médico da última parte do quinto ou o
início do quarto século A.C., o texto em questão era A doença sagrada. Ele
pertencia ao Corpus Hippocraticum e seu objeto era a epilepsia” (Tambiah,
1990:9)
Tento argumentar aqui que estas hierarquias que parecem funcionar para efeitos de
classificação perdem suas distinções na observação das práticas. Religião e ciência
continuam a ser práticas distintas conectadas pela tentativa de comunicação com o
mundo.
64
contemporânea que se dedica a pensa na separação (ou, melhor, a não separação) entre
sociedade e natureza (Latour, 1979; Wagner,1981; Stengers,1984). De Martino encontra
no rito uma técnica que reintegra o homem no mundo, num mundo que compreende
sociedade e natureza já em seus escritos dos anos 1950, quando esta era uma hipótese
inovadora. O regime protegido para o autor é o que permite uma alteração da ordem
“dada” para a compreensão dessa ordem num tempo outro pelo indivíduo “como se aí
não estivesse”.
A busca por fontes alhures à antropologia pode ser um caminho frutífero ao antropólogo
que busca uma compreensão ampliada dos fenômenos que estuda. Esta pode ser
também uma ferramenta valiosa para escapar de certa linha de pensamento que vê no
ritual um sinal de atraso e falta de uso “correto” da razão.
65
1.7 O devir como risco
De Martino reconhece esse risco nas sociedades que chama de Mundo Mágico. “No
mundo mágico a individuação não é um fato, mas a tarefa histórica, e o ser-no-mundo é
uma realidade condenda” (De Martino, 2004:141). Ao aplicar o termo “realidade
condenda”, De Martino retoma o tema da historicidade e coloca o problema de que o
mundo físico, a natureza, não deve ser tomado como dado, mas o antropólogo deve
refazer um percurso histórico da construção das categorias que definem a própria
realidade em cada sociedade.
66
ensaio A Eficácia Simbólica, de 19495. No artigo, o autor analisa a etnografia de um
ritual Cuna em que a comunidade entoa cânticos liderados por um xamã para salvar uma
parturiente em processo complicado para dar à luz.
A participação social é fundamental para dar sentido à crise individual. Mais para frente
trataremos da questão do fim do mundo, em que sem a apropriação da natureza pela
cultura, o mundo perde o sentido e passa mesmo a não existir. Objetivar a dor e
compreende-la em um horizonte meta-histórico, como diria De Martino, é a chave para
resgatar a parturiente que se perde em uma dor “incoerente e arbitrária” para o mundo,
ou para o sistema, em que tudo se encaixa.
5
Vale ressaltar que o texto de De Martino é de 1948, de um ano anterior à publicação do artigo de Lévi-
Strauss. Na obra de De Martino há escassas referências à escola sociológica francesa, apesar dele ter
coordenado e prefaciado a publicação de três ensaios de Durkheim, Mauss e Hubert, com o título Le
origini dei Poteri Mágici. Em outros textos demartinianos, Lévi-Strauss, embora Tristes Trópicos
seja homenageado em la terra del Rimorso, é liquidado rapidamente na análise como ‘anti-histórico.
67
inconsciente são trazidos à tona para a cura. Para o autor, o xamã é assimilável ao
psicanalista, pois suas técnicas trabalham níveis variados da consciência.
Chamo a atenção aqui para o uso o termo “crise existencial” que torna a crise da
presença algo mais profundo que o simples medo da morte. No momento de crise, não é
o fim da vida que resulta da perda, mas sim o fim do próprio mundo. A falta de
capacidade de objetivar o que é o sujeito e o que é o mundo, causa neste sujeito a perda
do mundo, a perda do referencial histórico. Perder a presença no mundo é perder o
próprio mundo no sentido de que este não é dado, mas sim constantemente construído
pela história.
“Uma vez que a relação que a presença estabelece é a mesma relação que faz
com que a cultura seja possível, o risco de uma história humana não existente se
forma como o risco de perder a cultura e recuar sem atenuação na natureza.
Quando esse risco cresce em um determinado momento "crítico" da existência
histórica, a presença perde o poder para defini-lo conscientemente ou superá-lo,
68
e fica enroscada, entrando em uma profunda contradição existencial com ela
mesma” (De Martino, 2012: 435)
A presença para De Martino, assim como em Heidegger e Hegel, sugere uma autonomia
do sujeito, o que Hegel chama também de “consciência”, ou seja, uma intenção de estar
aí. Essa consciência do estar no mundo, a presença, em termos demartinianos, é a
capacidade do indivíduo de produzir a si mesmo. Quando há a incapacidade de fazê-lo,
pode-se falar em crise da presença.
A relação do homem com o tempo é crucial para a tese demartiniana. Não apenas no
sentido de defesa do método de observação histórica que não deixa de sugerir uma
leitura processual das práticas, mas também pela relação do sujeito com o devir. Por um
lado, há uma percepção do tempo cíclico no mundo mágico e o ritual como uma
paralisação desse tempo para a resolução da crise a partir de uma atualização do mito de
“um tempo outro”. Nisso está a diferença entre De Martino e Mircea Eliade, que as
noções de “dehistorificação” e de “eterno retorno” poderiam aproximar. Com efeito, De
69
Martino vê na sociedade ocidental a herança judaico-cristã da irreversibilidade do
tempo. A narrativa da salvação quebra o eterno retorno do tempo mítico e,
aparentemente, elimina o risco do devir uma vez que a salvação está dada. A salvação
está dada, mas não está. Há que se realizar uma série de atos rituais, marcados pelos
momentos do ano litúrgico, para sua garantia.
“ou seja, a tarefa de lutar contra o sábado fariseu e dissipar o equívoco, sempre
renovado, segundo o qual o produto da atividade pessoal escapa ao drama de
produzir e, portanto, é considerado como isolamento do dado. Tal Consciência
da autonomia da pessoa tem, no curso da história da civilização ocidental seu
vértice ideal, que é a descoberta da unidade transcendental da autoconsciência”
(De Martino, 2004:226)
70
homem que a descreve”... “Numerosos críticos da ciência moderna acentuaram o caráter
de passividade e submissão que a física matemática empresta à natureza que descreve”
(PRIGOGINE e STENGERS, 1984:205).
Esta natureza passiva, este mundo exterior dominado e controlado certamente não
justifica uma crise da presença no modelo demartiniano, pois não tem a capacidade de
“atacar” o sujeito com imprevistos. A natureza dominada e passiva, apesar de estranha,
não oferece o risco. A respeito disso, lembramos que De Martino concebe o mundo
mágico como composto de indivíduos sem o conhecimento científico desta natureza.
Nessa chave seria um exercício frustrante a empresa de encontrar alguma crise de
presença no mundo ocidental urbano contemporâneo.
“Abriram-se, por isso, ao diálogo com uma natureza que não pode ser dominada
mediante um golpe de vista teórico, mas somente explorada, com um mundo
aberto ao qual pertencemos e em cuja construção colaboramos” (PRIGOGINE e
STENGERS, 1984:209).
O sociólogo Ulrich Beck nos traz aos dias atuais ao relatar a sensação de estar em risco.
“O risco é ambivalência. Estar em risco é a maneira de ser e de governar no mundo da
modernidade; estar em um risco global é a condição humana no início do século XXI”
(Beck, 2008). Para ele, a sociedade moderna é caracterizada pelo constante debate sobre
os riscos que a própria sociedade cria, ou seja, a sociedade representa um risco para si
mesma. O risco não é a catástrofe senão sua antecipação, um permanente estado de
espera pela tragédia.
Beck faz ainda uma interessante afirmação para o problema da pesquisa aqui proposta.
“O risco aparece no cenário mundial quando Deus o deixa. Riscos pressupõem decisões
humanas. Eles são, em parte, as consequências positivas, em parte negativas, face das
consequências das decisões humanas e intervenções” (Beck, 2008). Para ele, os riscos
se tornam sólidos na condição dos homens como senhores de si. Dessa forma, ao sentir-
se agido pelo mundo, para usar a expressão de De Martino, sob um risco que sua
racionalidade não pode resolver, como o de perder a presença no mundo, o sujeito busca
no ritual a segurança desejada.
72
ação, o sujeito se vê sugerido a agir para se proteger. A ação, no entanto, não elimina o
risco por isso deve ser regular. Proteger-se é uma atividade periódica.
Penso nos vírus de computador como exemplo hipotético: a cada e-mail aberto que
contenha um anexo, o software pergunta ao usuário se ele correrá o risco de abrir aquele
arquivo. Ter o antivírus instalado não elimina o risco, apesar de deixar o usuário com a
sensação de proteção. A ameaça da perda da presença é uma constante.
Anthony Giddens aponta este diálogo do homem com a natureza como um fator de risco
em si mesmo. Segundo ele, em O Mundo na Era da Globalização, de 1999, não seria
73
possível afirmar se a variação de temperatura que temos experimentado nas últimas
duas décadas são fruto da interferência do homem no clima mundial, mas devemos
considerar esta possibilidade. Temos atualmente mais evidencias para acreditar que sim,
as ações humanas interferem diretamente no clima, para Giddens, no entanto, em 1999,
tal fato deveria ser tomado como possibilidade. O autor aponta essa interação como um
fator de risco.
Em uma breve análise do próprio termo “risco”, Giddens nos dá ainda algumas ideias
chave para a interpretação da crise da presença nos moldes demartinianos. Quando me
aproprio do conceito de risco para argumentar que a fragilidade da presença identificada
pelo autor italiano na análise do tarantismos pode ser um ponto de partida para a
compreensão do candomblé brasileiro preciso explicar aqui que a ideia de risco é um
conceito recente, como mostra Giddens. Tento neste trabalho juntar peças até este
momento soltas para apontar certa coerência entre o pensamento demartiniano e, por um
lado, uma recente corrente de pensamento crítico a respeito da chamada modernidade
tardia (Giddens, Beck) e, por outro, a perspectiva às vezes chamada “construtivista” de
Latour, Stengers e Prigogine, na empresa de contribuir para o pensamento antropológico
dos fenômenos que chamamos religiosos.
74
tempo, indispensável para o cálculo das consequências prováveis de
determinado investimento, tanto para os credores como para os devedores.
Acabou por se referir a uma enorme diversidade de situações onde existe a
incerteza" (Giddens, 2006:32)
Neste breve parágrafo encontramos uma complexa ideia também trabalhada por De
Martino, como espero ter demonstrado anteriormente. A relação que Giddens aponta
entre o risco ter sido historicamente relacionado ao espaço e ao tempo, ou melhor,
dizendo, às incertezas que conectam espaço e tempo, é bastante semelhante à ideia de
fragilidade da presença de De Martino, que coloca a técnica do simbolismo mítico-ritual
como um tempo e espaço protegidos para o resgate da presença. Se Giddens nos aponta
a incerteza como essência do risco, também De Martino coloca a incerteza das
possibilidades como fragilidade da presença sempre em risco de perder-se.
Naturalmente não tento produzir aqui uma concordância fictícia entre os autores.
Giddens aponta o risco como exclusivo das sociedades modernas, da era industrial,
orientadas para o futuro (ver Giddens, 2006:33). Ele vê as sociedades tradicionais
conectadas ao passado e argumenta que situações que na atualidade entendemos
claramente como risco eram entendidas como “destino”, ou “vontade dos deuses”.
75
Ao considerar o risco de perder a presença no mundo como resultante de um processo
histórico da formação social associado a uma vulnerabilidade psíquica, De Martino
rompe algumas barreiras conceituais que no forçam a entender os processos técnicos de
resgate da presença em um sentido mais complexo em que não cabe reduzir a magia à
crença.. O resgate da presença, ou a salvação do risco de perder-se no mundo observado
pelo italiano em diversas sociedades tradicionais e analisado em Il Mondo Magico
(1948), nos dá argumentos para observar a ocorrência de tais fenômenos no mundo
moderno, como ele fez em La Terra del Rimorso (1956). Por isso, a compreensão do
conceito de risco no mundo moderno nos é de grande valor, ainda que Giddens
desconsidere o risco naquilo que De Martino chamou e “mundo mágico”.
"A nossa sociedade vive pra lá do fim da natureza. o fim da natureza não
significa, como é óbvio, que o mundo físico e os processos físicos tenham
deixado de existir. Refere-se ao fato de agora existirem poucos aspectos do
76
ambiente material que nos rodeia que não tenham sido afetados pela intervenção
humana" (Giddens, 2206:36)
A ideia apresentada acima por Giddens nos dá pistas de como o risco da presença é
perene na sociedade contemporânea. Se é verdade, como diz Giddens, que chegamos ao
fim da natureza e todo o mundo físico foi tocado pelo homem, uma corriqueira
enchente, comum em grandes centros urbanos é como disse Pompa “um fim de mundo”.
O transbordar de um rio que invade as casas e faz as pessoas perderem móveis, por
exemplo, representa para o mundo urbano o fim de uma ordem estabelecida pelo
homem em oposição à natureza. Comumente escutamos comentários sobre desastres
naturais como sendo uma “vingança”, ou “resposta” da natureza às ações humanas. O
diálogo com o mundo põe em risco a ordem estabelecida, a presença do homem neste
mesmo mundo. Se a ciência moderna instituiu a ideia do homem como intruso em seu
próprio mundo, como bem coloca Stengers, a insistência da natureza em não acabar
ameaça o mundo constituído pelo homem.
77
Cabe aqui dizer que também Michel Foucault se dedicou a pensar o que chamou de
“dispositivos de segurança”. Para Foucault o surgimento do mundo urbano está
diretamente relacionado à gestão dos riscos. O filósofo argumenta que os dispositivos
de segurança são as ferramentas essenciais para manter a ordem no meio urbano. Os
governos, segundo Foucault, mantém a ordem social por meio da garantia de segurança.
Essa ideia surge em um momento oportuno quando argumentamos que o risco de perder
a presença no mundo mágico demartiniano é provável no mundo urbano moderno.
Claramente focado em uma compreensão política, Foucault aborda neste curso de 1978
diversos exemplos para explicar os dispositivos de segurança, como a escassez de
alimento e a epidemia. Evoco-o aqui apenas para ressaltar o argumento de que a
preocupação com a segurança e com a solução das crises estão apontadas de diferentes
78
formas por pensadores da sociedade. De Martino, Prigoggine e Stengers, Beck, Giddens
e Foucault pensam o risco cada um a seu modo.
A partir dessa ideia do risco perene de diversas naturezas que assola a existência do
homem, voltemos a pensar em como a ideia de um mundo a construir, uma realidade
condenda pode ser apropriada para a atualidade. Até aqui me parece que a ideia da
presença do homem e do risco está relacionada a um “lugar”. O homem constrói a
realidade e o mundo físico é a medida e o contraponto dessa realidade. Até aqui,
procurei deixar clara a ideia de presença no mundo, mas de que mundo estamos
falando?
Uma boa pista para iniciar esta etapa da discussão são os próprios títulos que De
Martino escolhe para suas publicações: Il Mondo Magico, Sud e Magia, La Terra del
Rimorso, La fine dal Mondo. A dimensão histórica proposta pelo italiano faz sentido
quando associada a uma dimensão geográfica bem estabelecida. Na comparação que De
Martino sugere entre tarantismo e candomblé, a conexão apontada por ele é espacial, ou
seja, as origens africanas de certos aspectos do culto. As conexões históricas (temporais)
em que De Martino se apoia para traçar a trajetória do tarantismo são conexões entre
lugares. De Martino, ao descrever o mundo mágico fala dos povos, mas também dos
lugares. O tarantismo do sul está intimamente ligado à paisagem rural, à vida no campo,
de certo modo isolada. A relação do homem com a paisagem soa especialmente frutífera
para a compreensão da construção da presença no mundo, e a construção, o
entendimento, do próprio mundo.
79
A ideia defendida por De Martino de um mundo não-dado, mas em construção vem
sendo trabalhada com diferentes abordagens por outros autores, como já mostramos
anteriormente em Isabelle Stengers e Ilya Prigogine. A ideia do lugar como condição do
fazer antropológico é um tema amplamente explorado por Marc Augé em seu volume
Não Lugares – Uma Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade, de 1992.
Para Augé o lugar antropológico é sempre uma invenção, uma co-criação do povo
nativo e do antropólogo.
“Esse lugar comum ao etnólogo e a seus indígenas é, num certo sentido (no
sentido do latim invenire), uma invenção: ele foi descoberto por aqueles que o
reivindicam como seu. Os relatos de fundação são, raramente, relatos de
autoctonia, na maioria das vezes, ao contrário, relatos que integram os gênios do
lugar e os primeiros habitantes à aventura comum do grupo em movimento. A
marca social do solo é muito necessária porque nem sempre ela é original”
(Augé, 2013:44)
80
Quando trata a noção dos indígenas e um mundo fechado e fundado de uma vez por
todas como fantasia, Augé aponta o desafio mais arrojado desta pesquisa de questionar a
noção de mundo do homem ocidental urbano do século XXI. Nosso argumento até este
ponto foi de que a ciência e o cristianismo interceptaram-se ao longo de nossa história
recente na tentativa de afirmar suas ideias de mundo fechado com limites bastantes
conhecidos.
Quando Augé diz que o sujeito precisa reconhecer-se em seu mundo, nos remete
imediatamente à crise da presença, na qual De Martino elabora uma crise existencial
provocada por um risco de perder-se no mundo. Ou seja, a interação do ambiente
externo em constante risco e mutação com o homem, também em constante mudança,
provoca uma crise de auto reconhecimento. O homem que não se reconhece em seu
lugar está perdido de si mesmo.
Augé ainda coloca neste breve parágrafo uma outra ideia importante que nos ajuda a
compreender em outras formas o pensamento do autor italiano, a questão de
previsibilidade dos fatos, mesmo os imprevistos. De Martino trabalhará o conceito, pelo
qual passamos brevemente e retomaremos, de de-historificação do devir, ou seja,
suspender o devir histórico e sua periculosidade, agindo nele como se se estivesse
repetindo um ato cosmogônico, de fundação. Por meio do mito, o imprevisto é
reconfigurado e resolvido, porque em um tempo outro (illo tempore), no mito, aquela já
era uma situação prevista e foi resolvida positivamente.
“Nascer é nascer num lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar
de nascimento é constitutivo da identidade individual e acontece, na África, de a
criança nascida por acidente fora da aldeia receber um nome particular
emprestado de um elemento da paisagem que a viu nascer” (Augé, 2013:52)
Augé faz uma observação especialmente interessante para a análise que propomos nesta
pesquisa: “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (Augé,
2013:53). Neste ponto, justifica-se exatamente a crise da presença no sentido de uma
81
crise de separação da história. O resgate do sujeito é justamente sua realocação na
história – e no mundo.
Em La Fine del Mondo, De Martino relata um episódio em que deu carona a um senhor
pelas estradas da Calábria. O autor conta que o homem fitava o campanário de
Marcellinara, sua vila, como uma referência. Ao perder de vista o campanário, o velho
ficou nitidamente agitado, olhando a todo momento em direção ao horizonte buscando
alguma outra referência que pudesse por fim á sua angustia. O autor afirma que
“certamente a presença entra em risco quando chega o limite da sua pátria existencial,
quando perde o “campanário de Marcellinara” (De Martino, 1977:480-481). O autor
argumenta que ao perder seus referenciais de localização a presença precisa localizar-se
no espaço e na história. Esta afirmação possa ser uma pista para compreender a angustia
existencial de viver em “não-lugares”.
Augé avança em sua reflexão sugerindo que a supermodernidade, como ele chama os
tempos contemporâneos, deu lugar a um novo conceito espacial, os “não lugares”.
82
Certas características apontadas até aqui por Augé parecem bastante propícias para a
análise da crise da presença. Os não lugares são passageiros e não estabelecem um
diálogo claro com o homem. A paisagem urbana é especialmente fértil para este
fenômeno, já que o homem rural estabelece o diálogo com a “natureza” no longo prazo
no processo que vai do preparo da terra à colheita. No mundo urbano, as relações com o
mundo são imediatas e passageiras. Se chove, usa-se um guarda-chuva para
deslocamentos necessários. O sujeito nos não lugares é um indivíduo sem relações, sem
história, com uma frágil presença em constante risco.
Para Appadurai, a construção de casas, preparo das terras, negociações dos espaços
públicos são todas formas de construir o lugar, de “construir o mundo”, como temos
tratado. As práticas rituais são, para o autor, formas de construção de localidade, como
ele defende.
“Como alguns dos melhores trabalhos sobre a lógica social dos rituais nas
últimas décadas mostram tão amplamente (Lewis, 1986; Munn, 1986;
Schieffelin, 1985), espaço e tempo são eles próprios socializados e localizados
por meio de práticas complexas e deliberadas de performance, representação e
ação. Temos a tendência a chamar essas práticas cosmológicas ou rituais -
83
termos que, distraindo-nos do seu caráter ativo, intenciona e produtivo, criam a
impressão dúbia de reprodução mecânica” (Appadurai, 1996:180)
Essas ideias nos ajudam a pensar como a crise da presença pode ser reconfigurada em
uma sociedade da era global, como chama o indiano. Preocupado com a reflexão sobre a
questão da territorialidade e identidade, argumenta em um artigo intitulado “Soberania
sem Territorialidade - Notas para uma geografia pós-nacional” a necessidade de pensar
para além da nação.
84
Apenas para validar aqui o argumento que tenho tentado defender de que a fragilidade
da presença observada por De Martino em seu mundo mágico rural pode ser
ressignificada para o contexto urbano, quero registrar a questão das conexões locais que
De Martino observou no tarantismo Apuliano. A região parecia especialmente fértil para
o desenvolvimento de técnicas de reintegração como o tarantismo por uma certa
desconexão histórica daquele povo com o entorno. As influências sofridas pela região e
suas indefinições políticas – a região foi uma das últimas a ser incorporada à Itália,
embora nunca tenha sido autônoma – geravam as condições para uma crise, no sentido
em que o mundo era um risco mais evidente por não ser propriamente definido (De
Martino, 1999).
“Uma das raízes deste problema está nas concepções modernas de cidadania
que, ligadas a várias formas de universalismo democrático, tendem a demandar
um povo homogêneo com conjuntos padronizados de direitos.” (Appadurai,
1997:36)
O que Appadurai nos mostra com seu conceito de “trabalho da imaginação” é que o
contato com realidades diferentes tem a capacidade de impulsionar os indivíduos a
tomar atitudes rumo a um novo status social que desejam. O antropólogo esclarece que
a imaginação não tem a força de concretizar realidades, mas o trabalho da imaginação é
reagir. A imaginação tem um sentido de projeção, de ser um prelúdio para a ação
(Appadurai, 1996:7).
Appadurai coloca ainda que a ficção consumida por uma sociedade tem um forte peso
na alimentação de seu repertório imaginário. O antropólogo sugere que ao analisarmos a
literatura lida por um povo, por exemplo, poderemos compreender algumas das
aspirações desse povo, já que a ficção amplia o repertório e as possibilidades de
adequação social (Appadurai, 1996:58).
86
A ficção, por meio da literatura, filmes, telenovelas e mesmo dramatizações teatrais
influencia o imaginário na medida em que apresentam possibilidades de movimentos
sociais e releituras de situações por diferentes ângulos culturais. Dessa forma, uma
mulher asiática que lê um romance norte-americano poderá facilmente se apropriar
daquele contexto e imprimir em seu relacionamento elementos oriundos de tal literatura.
O imaginário também influencia a ficção em sua construção. Ao contar uma história
fictícia e colocá-la em um tempo localizado na história, mesmo com dados a respeito da
determinada época, o autor colocará ali elementos que imagina serem parte daquele
contexto.
O risco de perder o mundo está menos relacionado ao risco do fim da paisagem, do fim
do lugar, do território, do que ao fim de autorreconhecimento no mundo. A crise da
presença como incapacidade temporária de objetivação do mundo é uma crise de fim de
mundo no sentido de que o sujeito está no lugar, mas ele o é. As fronteiras entre homem
e mundo são rompidas e não há mais distinção entre um e outro. Nesse sentido, o sujeito
em crise não se reconhece no mundo porque não há mundo.
87
problemas que já tenho", esbravejou ele, "preciso me preocupar também com o
baht?". Rossi fala do ponto de vista de uma geração para a qual o mundo parecia
imenso, inesgotável, no qual as capitais de países nunca visitados ou sequer
imaginados eram "mero verbete de aula de geografia — Afeganistão, capital
Cabul" (Folha de S. Paulo, 04/07/97, p. 1/2)" (Montero, 1997:48)
A autora questiona neste artigo como a questão das relações interculturais desse mundo
globalizado dialoga com as diferenças. Segundo ela, a antropologia como disciplina
deve se dispor a esta empresa de compreender o lugar da diferença em um mundo que,
segundo o argumento de alguns, caminharia para a homogeneização. Se pensamos nos
nossos objetos, o tarantismo e o candomblé, essa é uma preocupação já contida no
pensamento demartiniano que entendia o tarantismo, como bem coloca na introdução de
seu volume Terra del Rimorso, como um resquício de uma cultura isolada e que poderia
desaparecer na medida em que essa sociedade se integrava a uma sociedade maior e
mais organizada.
A convivência das diferenças em um mesmo espaço físico nos leva a uma nova
reflexão. Um ponto importante a ser compreendido é que a antropologia nasce com o
objetivo de diminuir as diferenças e, assim, humanizar os bárbaros (Montero, 1997:53).
Até aqui creio ter demonstrado argumentos suficientes para defender a hipótese de que a
fragilidade da presença no mundo urbano pode incitar uma crise que encontra no
simbolismo mítico-ritual do candomblé um horizonte histórico de resolução. Tal crise
seria resultado de uma fragilidade psíquica estimulada pelas inseguranças e incertezas
do conceito de mundo neste contexto. Os contrastes propostos pela globalização de um
mundo em expansão, que é ao mesmo tempo, pequeno gera a todo tempo uma
experiência de incerteza e inconsistência da presença.
Autores como Appadurai, que traz a questão da territorialidade, Augé com sua noção de
não lugares e Montero em sua defesa de uma antropologia que dê conta de um mundo
de múltiplas diferenças parecem conversar com o pensamento demartiniano de meados
do século XX, embora com alguma discrepância de termos, permeados por uma questão
comum que é o homem num mundo de movimentos mais rápidos. O propósito dessa
composição de autores é demonstrar a relevância de De Martino ao antecipar em
88
algumas décadas uma discussão que vem ganhando corpo apenas muito recentemente
por essa “antropologia da modernidade tardia”.
89
Capítulo 2: A análise
M. foi feita em outra casa de santo e foi procurar o Ilê Axé Xangô Airá depois de alguns
anos de santo completos. Ela, como muitos outros adeptos, foi procurar o candomblé
porque estava “ficando louca”. E quando chegou no terreiro onde se iniciou fez o santo
rapidamente.
O pai de santo identificou que ela era filha de Oiá – outro nome de Iansã – e foram
feitas obrigações para a orixá em uma iniciação considerada bem sucedida. Anos se
passaram e ela sentia que pouca coisa tinha mudado em sua vida. Oriunda de uma
tradição de umbandistas, ela continuou a tocar umbanda em sua casa e cuidar dos orixás
no candomblé.
“Não era problema de misturar. Uma coisa é uma coisa e a outra, outra. Mas eu
fiz cabeça e nada. As mesmas atrapalhações. A minha vida era uma coisa
empacada. Eu andava e não me mexia. Daí vim pra cá e aí aconteceu tudo isso.
Resolvi as coisas” (Agosto/2013)
De fato, M. nunca me contou que tinha sido feita para a orixá errada. Pai Pedro foi
quem me disse em uma ocasião que havia uma briga na cabeça dela, já que ela prestava
todas as obrigações para Oiá. Oxum sentia-se deixada de lado, segundo o pai de santo, e
prejudicava sua vida, sobretudo nos termos dos relacionamentos e da estabilidade.
M. tomou suas obrigações com Pai Pedro e hoje é uma de suas filhas mais velhas. A
virada em sua vida que era descrita como uma vida “parada” foi ainda mais significativa
porque Pai Pedro é de Xangô e M., sendo feita para Iansã, tornou-se uma figura
90
importante no terreiro. É a Iansã dela quem dança com o Xangô do pai de santo nas
festas, já que ela é uma filha de santo de meia idade que une duas características
importantes: o conhecimento dos preceitos do orixá e o vigor físico para realizar as
coreografias.
A filha de santo construiu não apenas um lugar para si, ao se tornar filha daquela casa e
ter seus santos assentados ali, mas também uma posição de importância. Ela deixou de
ser a pessoa com problemas e tornou-se a Oiá que dança com o Xangô que é dono da
casa. Uma posição de honra e destaque.
Apresento este recurso linguístico porque ele é amplamente usado nos relatos de vida
dos filhos de santo do candomblé. O recurso demonstra, na linguagem, as sensações,
muitas vezes difíceis de descrever, dos adeptos do candomblé ao viverem suas crises e
ao contar as histórias que antecedem sua adesão à religião.
91
- O atabaqueiro lá de cima morreu. Da Mãe Cleusinha.
- Vixe. O povo lá deve estar triste. E agora fica muito sem trabalho.
- Acho que lá eles fazem diferente. Na minha outra casa a gente chegava a ficar um ano
fechado quando era assim.
- Lógico, o tabaqueiro é o mais importante, sem ele não tem festa. Ele que levanta ou
derruba a festa.
A orixá Oxum tem uma dança em que coloca uma série de pulseiras nos braços, que em
muitos terreiros se faz simbolicamente, somente indicado o gesto de colocar as joias,
mas há terreiros em que Oxum coloca, de fato, as pulseiras. Depois de encher os braços
com muitas delas e mostra-las vaidosa a toda gente, Oxum as joga para longe. Já me
disseram que nesta dança Oxum quer mostrar que pode ficar bonita com ou sem as
pulseiras, transmite a mensagem de que não precisa dos adereços para estar bonita.
Xangô dança com fogo na cabeça e carrega um machado, Iansã com uma quartinha de
água, Oxumarê entra em uma bacia com água e cospe para o alto, Ogum tem suas
armas, espadas, Omulu carrega cabaças e dessa forma cada orixá tem seus objetos. O
terreiro é repleto de coisas físicas, os assentamentos são as representações, ou melhor
dizendo, as porções físicas dos orixás.
92
Os atabaques são frequentemente chamados de curimba, palavra que pode significar o
ritual em si. Geralmente há um número ímpar de atabaques, três ou cinco, sendo três o
mais tradicional. Ogan é o nome que se dá aos homens não-rodantes – que não viram no
santo – e tocam os atabaques. O ogan alabê é o mais graduado entre eles e acumula a
função de puxar as cantigas. Diz-se que os ogans são o segundo cargo na hierarquia do
candomblé.
Nas ocasiões de festas, os ogans chegam a passar o dia ensaiando para saber cada toque
que o pai de santo possa chamar. Cada orixá tem suas cantigas que, por sua vez, têm seu
jeito de ser tocadas. De Martino observa no tarantismo um status parecido dos músicos.
Os atabaques são os condutores do ritual porque são eles que induzem ao transe,
chamam os orixás e estimulam a possessão. Gilbert Rouget dedicou um extenso volume
à relação da música com o transe. E a primeira diferença que faz notar é uma
conceitualização de êxtase, transe xamânico e o transe de possessão. Para ele, o êxtase é
um estado de silêncio, imobilidade e solidão. Já o transe é uma crise evidente marcada
pelo movimento. O transe xamânico é, segundo o autor, uma viagem ao mundo dos
espíritos. O transe de possessão é quando um espírito passa a agir no corpo do possuído.
No caso do candomblé, o transe de possessão é a crise recorrente no ritual.
“O transe si, em outras palavras, o período durante o qual o sujeito se instala, por
assim dizer, na sua outra persona e coincide totalmente com ela, tem, pelo
contrário, uma relação bastante estável com música. Em sua forma mais plena, e
refiro-me à forma que exibe durante as cerimônias públicas de possessão, o
transe consiste, na maioria das vezes, em dançar ao som da música que pertence
à divindade, ou, se existem várias pessoas, ao som da música que corresponde
coletivamente a todas as divindades presentes” (Rouget, 1985:323)
A música, para Rouget, opera três papeis fundamentais nas cerimônias. O primeiro é
criar a atmosfera adequada para que os adeptos se conectem emocionalmente com os
93
outros membros e o ritual. O segundo é conduzir os adeptos à uma “mutação” de seus
estados. E o terceiro é a condução da manifestação do transe.
Toda a coreografia do ritual organiza a crise de modo que ela possa ser celebrada em
segurança, em um momento de suspensão do tempo histórico que o autor chama de
“regime protegido”. O ritual é regrado em completude.
94
preservação. Esses recursos incluem a capacidade de de-realização se si ou parte
do si, à qual o eu é submetido, por exemplo, para fins terapêuticos, no contexto
do médico e da hipnose” (Mancini, 2008: 58-59)
Ao analisar o tarantismo apuliano, De Martino encontra nos gregos uma chave para a
compreensão da relação da música com a possessão. O antropólogo italiano busca na
história da civilização ocidental uma certa referência estrutural do uso ritual da catarse
musical. De Martino alerta que sua comparação faz sentido porque existiu um
“complexo arcaico protomediterrâneo” (De Martino, 1999:239) que conecta a cultura
apuliana dos anos 50 ao mundo grego antigo.
De Martino busca em Platão, em seus escritos sobre os cultos orgásticos, a chave para a
interpretação da catarse musical no tarantismo.
95
mítico-ritual se concentra na crise, imitando-a para liberta-la, para mudar de
signo e conduzir à sua resolução” (De Martino, 1999:242)
Carpitella afirma que a proteção da crise se dá por meio de gestos, sons, figuras, etc. que
compõem um modelo tradicionalizado e aceito socialmente. Isto é, a crise que é tomada
inicialmente como algo fora de padrão, é modelada de modo a ganhar sentido em um
horizonte mítico compartilhada. Fora do contexto ritual, a coreografia pode significar
uma desordem, mas quando a crise é apropriada pelo grupo e significada ela se torna um
poder organizador da vida. Ao fazer o que todos fazem, o sujeito é incluído em um
tempo-espaço no qual pode dar vazão ao seu potencial catártico.
96
necessita de um sentido narrativo coerente. Assim como no candomblé, ou nos odissis
indianos, a dança conta uma história.
A relação do som com o movimento é física, conforme explica José Miguel Wisnik, em
seu livro “O Som e o Sentido”. O som são as ondas produzidas pelas vibrações dos
corpos – corpos como porções de matéria, no sentido da física- alternando entre
impulsões e repousos.
“Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se
transmite para a atmosfera sob forma de uma propagação ondulatória, que o
nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe
configurações e sentidos" (Wisnik, 2002:17)
A partir dessa concepção fica muito mais evidente a relação que o candomblé tem com
o som. A música é o elemento central de uma prática corporal (coreica) para garantir a
presença, ou seja, a presença atuante na história. A música estimula o corpo a uma
coreografia ritmada de modo a conectar corpo e som, mundo físico e mundo psíquico
em um movimento coordenado e contínuo.
“A música encarna uma espécie de infraestrutura rítmica dos fenômenos (de toda
ordem). O ritmo está na base de todas as percepções, pontuadas sempre por um
atabaque, um modo de entrada e saída, um fluxo de tensão/distenção, de carga e
descarga. O feto cresce no útero ao som do coração da mãe, e as sensações
rítmicas de tensão e repouso, de contração e distenção vêm a ser, antes de
qualquer objeto, o traço de inscrições das percepções" (Wisnik, 2002:29)
Pai Pedro me disse mais de uma vez que é muito importante monitorar o filho de santo
enquanto ele está irradiado do orixá, uma das palavras que usam para falar da possessão.
“A gente fica o tempo todo medindo a pulsação do filho de santo enquanto está de
97
orixá. A irradiação é muito forte e a gente precisa controlar, pedir pro santo parar de
dançar um pouco às vezes para baixar os batimentos” (Pai Pedro de Xangô, Santo
André, ago. 2013).
F., filho de Omulu e um dos mais velhos da casa de Pai Pedro, tem um dos orixás que
realizam as danças mais vigorosas do terreiro. As danças de Omulu são rápidas e
repletas de pulos e giros. A família adotiva de F. sempre frequentou o candomblé e sua
mãe adotiva era iniciada para Iemanjá. Apesar de ter contato com sua mãe biológica e
relacionar-se bem com ela, os detalhes da história de sua adoção nunca me foram
revelados. O curioso é que F. foi feito para Omulu que, segundo a lenda, foi adotado por
Iemanjá após ser rejeitado por Nanã.
F. é gay, como muitos dos outros filhos de santo de seu terreiro, e apesar de muito bem
sucedido, um de seus assuntos preferidos em rodas de conversa é reclamar o quanto é
dura sua vida profissional. Ele ocupa um cargo de confiança em uma empresa que
presta serviços para altos executivos de grandes corporações. F. lida diariamente com
trâmites de alto valor financeiro.
O filho de santo conta que em sua iniciação ele sofreu um infarto dentro do roncó –
quarto onde ficam os iaôs durante a iniciação ou suas obrigações periódicas. F. foi
iniciado por outro pai de santo e somente depois de algum tempo tomou obrigações com
Pai Pedro. Ele conta que teve um transe mais cedo naquele dia e estavam raspando sua
cabeça e achou que teria outro, mas o pai de santo chamou uma ambulância. Ele foi
levado ao hospital com metade da cabeça raspada e “sujo de roncó”, como ele mesmo
descreve. No hospital foi identificado que ela estaria sofrendo “princípio de infarto”.
Depois de medicado e estabilizado, ele assinou um documento assumindo a
responsabilidade de sua saída do hospital. F. voltou ao terreiro, teve um transe e deram
“rum” em seu orixá – conduzir o orixá em um circuito coreográfico - e os outros dias da
iniciação correram normalmente.
Míriam Rabelo, ao propor o estudo da religião a partir do corpo, reforça a ideia de que a
estabilidade social depende de uma estabilidade entre corpo e lugar. Estar aí, ou a
presença em termos demartinianos, é estar presente, alocado, ter um lugar. Os corpos
localizam-se em um mundo em movimento por meio do movimento orientado pelo som.
98
No ritual do candomblé o som conduz os corpos a um movimento ritmado que os alinha
com todo o universo vibrante. Ao analisar um ritual de bori, ela diz:
A ideia do corpo ajustado ao entorno está de acordo com a ideia, que defendo aqui, de
que a música é central no candomblé ao promover o encontro do corpo com o som e
com “o sentido”, o significado a ser atribuído à crise e, portanrto, sua resolução. Rabelo
(2011:25) avança ainda em sua hipótese ao analisar a relação dos objetos no candomblé
e afirma que a pedra do assentamento dos orixás – otá – não é uma representação do
orixá, ou seja, ela não simboliza o orixá, ela é o orixá.
Baseado nessa ideia, retomo o que afirmei no começo deste capítulo que o atabaque é o
elemento central do terreiro. O ogan é importante porque faz produzir som do atabaque,
mas é o atabaque em si que comando o ritual. O atabaque é cuidado com a mesma
cerimônia que os outros objetos do ritual, recebendo reverência e zelo.
Quando Saunders argumenta que há na ideia de “ser absorvido pelo mundo” uma
implícita dificuldade na diferenciação entre natureza e cultura, ou de objetivação do
mundo, encontramos uma chave para a interpretação do ritual como técnica de resgate
da presença ameaçada. O candomblé reintegra a presença por meio da replasmação do
99
homem e do mundo e da quebra de fronteiras culturalmente estabelecidas entre o sujeito
e o mundo “externo”.
No ritual, a relação com o mundo externo, ou seja com a natureza no modo como foi
concebida pela ciência a partir do século XVI, e com tudo aquilo que está fora do
homem é em regime de diálogo. O mundo tem voz, reage e é reagido. A começar pelo
jogo dos búzios que é o oráculo determinante do candomblé. Tudo é decidido por meio
do jogo, inclusive as sucessões, quando um pai ou mãe de santo morre, são designadas
com o jogo.
100
“Neste percurso é a comida (e não o corpo) quem age – absorvendo as energias
negativas nele retidas. Talvez seja melhor dizer que o corpo e comida se
misturam (as fronteiras entre eles são temporariamente afrouxadas)” (Rabelo,
2013:89)
A autora ainda ressalta o papel da comida como um elo entre a pessoa e o orixá. A
comida que passou pelo corpo do sujeito é um bom modo e compreender a
performatização do ser engolido pelo mundo. A comida que age sobre o corpo do filho
de santo foi preparada por ele, ou por outros filhos de santo seguindo uma rígida
coreografia em sua preparação.
Em sua pesquisa no tradicional terreiro baiano Ilê Opô Afonjá, de Mãe Stella de Oxóssi,
a pesquisadora Rosamaria Barbara destaca o seguinte depoimento que recolheu de uma
mãe de santo:
"É assim, cortar quiabo é um negócio sério, dá força. Olha ontem comecei a
cortar lá pelas 21 horas e hoje comecei cedo. Devo tudo a ele, ao meu senhor, ele
me deu uma casa; dinheiro nunca me faltou para alimentar meus filhos. Ele
sempre me ajuda na luta, que a vida, filha, é luta. E, olhe lá, uma mulher deve
ser independente do marido. COm eles nunca se sabe, não prestam, homens não
prestam... e de dinheiro. Quando precisei, Xangô sempre me ajudou a mim e à
minha família" (Barbara, 2002:35)
A coreografia no candomblé não é apenas a dança que os filhos realizam para os orixás,
ou quando estão possuídos por estes, mas é também uma dança que se faz com o
mundo. No ritual do candomblé, as fronteiras entre pessoas e mundo são
constantemente afrouxadas, muitas vezes até seu completo rompimento. Os orixás são
as forças da natureza, mas seus filhos são essencialmente como seus orixás. Iansã é a
orixá do vento e é, ela mesma, o próprio vento. Quando os filhos de santo saúdam Iansã
estão saudando o vento.
Descrevo a seguir uma parte da festa de Xangô no terreiro de Pai Pedro para efeito de
ilustração deste argumento.
101
Na festa de Xangô, que é o orixá de Pai Pedro, há uma fogueira no quintal da frente da
casa onde fica o terreiro. As casas de santo e as danças são realizadas no fundo do
terreno em uma área coberta de telhas. Após o xirê, quando os filhos de santo cantam e
dançam para os 16 orixás cultuados no candomblé de nação ketu, o pai de santo se
aproxima da roda – antes ele fica mais afastado em sua cadeira – e começam então a
cantar para Xangô.
Nesse momento, Pedro não está mais ali, ou como descreve De Martino, está como se
não estivesse. Seu corpo, segundo as descrições dos adeptos, é controlado pela vontade
dos orixás. Embora muitos filhos de santo declarem uma consciência do que acontece,
eles explicam que se tentam realizar gestos diferentes daqueles que o orixá quer, este
assume o comando da consciência.
O pai de santo é o primeiro a ser levado pelas equedes para o quarto de santo para que
Xangô vista suas roupas rituais. Antes do transe, o pai de santo está vestido para a festa
com suas roupas. Quando o santo chegue, o vestem com as roupas dele, em suas cores e
com seus adereços, como um machado, no caso de Xangô. Os outros filhos de santo e
pessoas não iniciadas que entraram em transe são levados depois para os quartos de
santo e “desvirados”, ou seja, as equedes “orientam” o santo a despossuir a pessoa, que
volta para a roda, ou para as cadeiras onde ficam os expectadores. Em algumas festas,
alguns santos continuam virados. Nas festas de Xangô, as Iansãs e as Oxuns costumam
ficar, neste dia específico que relato aqui, as filhas de santo voltaram para a roda fora de
transe.
102
Após realizar suas danças por cerca de meia hora, Xangô dançando puxou sem muita
força a roupa das duas filhas de Iansã presentes que imediatamente foram possuídas por
seus orixás e acompanharam o Xangô de Pedro em sua dança que saiu dos limites da
roda e entrou no quarto de santo. As Iansãs foram em direção à fogueira na parte da
frente do quintal. Nesse momento, outros filhos de santo levantaram a base de madeira
onde ficam encaixados os atabaques e levaram os instrumentos enquanto estes eram
tocados pelos ogãns para próximo da fogueira. As Iansãs ficaram em torno da fogueira
enquanto alguns filhos de santo derrubaram a fogueira e espalharam as brasas.
Pai Pedro, possuído de seu Xangô, saiu do quarto de santo carregando na cabeça um
prato de barro grande e fundo em chamas e dançando se dirigiu à fogueira, agora
espalhada pelo chão em brasas, e dançou sobre ela. Xangô dançou por cerca de três
minutos entre a brasa e o chão de cimento do quintal e foi até as Iansãs e deu a colocou
na boca e cada uma um pedaço da brasa que pegou do prato que carregava na cabeça
ainda em chamas. As Iansãs saudaram Xangô com gritos e um tremer dos ombros típico
da apresentação dos orixás e comeram a brasa oferecida por Xangô.
É interessante destacar aqui que todo o processo de dança e todo o período em que o
orixá possui seus filhos, eles permanecem de olhos fechados. Das cerimonias que
acompanhei, vi apenas um Ogum abrir os olhos para dar uma bronca em um filho de
santo e ouvi relatos de Oxumaré dançar de olhos abertos, embora tenha sempre visto em
vídeos na internet Oxumaré dançar de olhos fechados.
Estar de olhos fechados durante a realização de todas essas ações enfatiza a ideia de ser
envolvido pelo mundo. Quando o sujeito é privado de seu sentido que mais representa a
conexão com a ideia de realidade, o mundo exterior, o mundo passa então a agir no ser e
misturar-se a ele.
Quando o Xangô de Pai Pedro anda sobre a brasa é uma demonstração de múltiplas
realidades sobrepostas. Xangô é o orixá do fogo, por isso, o próprio fogo. O ato é,
portanto, a integração do fogo personificado com o fogo enquanto elemento puro. A
ação prova ainda a força e a presença do orixá ao realizar algo que o filho de santo
humano, livre de sua influência, teria dificuldade para fazer. Quando Xangô dança sobre
a brasa não há separação entre espíritos, humanos e natureza. Todas essas realidades
estão fundidas em um único ato. A personalidade de Pedro é irrelevante, ao mesmo
tempo, é seu corpo que possibilita a ação do santo. Pedro está aí, como se aí não
103
estivesse. Em Il Mondo Magico, De Martino dedica algumas páginas de seu primeiro
capítulo aos rituais em que as pessoas caminham sobre brasas, ou pedras quentes (De
Martino, 2004:74-83).
Depois das festas sempre há uma comida que é servida aos convidados e membros da
comunidade do terreiro. Comer depois do ritual é o momento em que a ordem cultural
das coisas retorna a um padrão estabelecido. O banquete pós-ritual é um momento
importante para o relaxamento e a reintegração das pessoas com a vida cotidiana. A
comida que nos rituais internos e durante as oferendas ganha outros status volta a ser
alimento que sustenta.
Como observa Rabelo, a comida tem uma “presença conspícua” nos rituais de
candomblé. Essa presença é, no entanto, uma presença mutável e assume diferentes
papéis em cada etapa do ritual. Durante o ritual do bori, usado por Rabelo para
ilustração de seu argumento, a comida é derramada nos filhos de santo. Noto que assim
como De Martino argumenta que a presença é replasmada ao longo do ritual, também a
comida o é. Nesse sentido, meu argumento de que o adepto do candomblé rompe as
barreiras objetivas da realidade e integra-se ao mundo, a comida é uma importante de
referência de objetivação e desobjetivação. Se há momentos em que ela engole o sujeito
ao ser derramada sobre sua cabeça, no fim dos rituais, com a presença resgatada, ela
volta a ser comida objetivada, controlada e engolida pelos participantes.
O momento do banquete final das festas públicas é quando todos os santos já foram
alimentados, receberam suas oferendas, foram cuidados, vieram dançar para seus filhos
e agora estão calmos. As festas públicas, no entanto, são o rito final das obrigações que
os filhos de candomblé têm. Pai Pedro de Xangô explica que as obrigações são feitas
em rituais internos durante alguns dias antes das festas públicas. Segundo Pai Pedro:
“As festas são um momento de festa mesmo, de celebração que o orixá aceitou
as oferendas, que a casa e os filhos estão em equilíbrio. Por isso que o orixá vem
dançar para as pessoas, porque está feliz, está satisfeito e quer mostrar seu axé
para todo mundo que vier” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, ago. 2013)
104
Antes das festas são preparadas as comidas dos santos, as matanças quando se oferece o
sangue dos animais sacrificados para os orixás e muitas outras atividades “secretas”.
Coloco a palavra secretas entre aspas por essa se tratar de uma discussão contemporânea
entre muitos antropólogos dedicados aos temas das religiões afro. Há registros,
inclusive etnográficos, de práticas consideradas secretas e há ainda uma grande
discussão entre terreiros de quais rituais são passíveis de publicação e quais não. Fato é
que há uma grande parte da prática do candomblé em que o público não-adepto não é
bem-vindo.
Há nas práticas mais internas um espaço muito maior para o caos que nas festas
públicas. As festas públicas seguem um roteiro muito mais rígido e, por ser o fim das
obrigações, nessas aparições há pouca interação dos orixás. Os orixás vêm, dançam e
vão embora. Assistir às festas é bastante pouco para conhecer o candomblé, mesmo do
ponto de vista meramente ritual.
Ao longo das páginas que precedem argumentei como o mundo não é um dado,
conforme escreveu De Martino, e como mesmo no mundo urbano contemporâneo, a
realidade está a todo tempo em transformação e o candomblé, assim como o tarantismo,
é uma técnica para construção das pessoas e do mundo.
Marcio Goldman afirma que a construção da pessoa deve ser encarada a partir da ideia
de que o “eu” possui um caráter múltiplo (Goldman, 1985). Para o autor, o candomblé
não segue um modelo ocidental de construção de identidade individual e particular. O
candomblé se baseia em um modelo não-individualista de pessoa. Tanto na interação
com o orixá, mas não somente dele, como de seus irmãos de santo, ou seja, pessoas que
compartilham do mesmo orixá.
105
O autor apresenta neste trecho elementos importantes para sustentar os argumentos que
venho defendendo. O primeiro é de que a pessoa se constrói ao longo do tempo, de
modo que o devir é contemplado no candomblé como elemento fundamental à pessoa,
ao mesmo tempo que a coloca em risco, o risco de nunca ser completa caso algum
percalço a desvie no longo do caminho. Goldman traz ainda, neste pequeno trecho, o
movimento coreografado: há no passar do tempo uma coreografia, um movimento da
vida que vai se tornando cada vez mais complexo.
“Percebe-se então que o ser humano é pensado no candomblé como uma síntese
complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes materiais e
imateriais – o corpo (ara, o Ori, os orixás, o Erê, o Egum, o Exú” (Goldman,
1985: 37)
Quero extrapolar esta hipótese para afirmar que o mundo, assim como a pessoa, é
construído constantemente no candomblé. O candomblé cria uma forte conexão entre o
sujeito e o mundo ao longo de sua convivência nas práticas rituais. O assentamento
realizado durante a iniciação é o momento mais marcante para o que afirmo. Na
iniciação, não por acaso chamada de feitura de santo, é construído um objeto material
que é o santo, o orixá.
O assentamento é basicamente composto por um grande vaso com uma pedra que
representa o orixá, adornado com seus objetos como armas, panos da costa (que
compõem as roupas do santo), pratos, entre outros que variam para cada orixá, podendo
incluir penas e outras partes de origem animal. O orixá deve ser assentado e estar aí
fisicamente representado e parte importante das obrigações do candomblé está na
limpeza e manutenção da porção física de seus orixás e dos orixás do terreiro.
As conexões materiais se dão desde o jogo dos búzios até o assentamento. A comida é
utilizada ritualisticamente dessa mesma maneira, senda ela ainda mais flexível já que é
um dos elementos que protagonizam a interação do sujeito com o mundo.
Quando Goldman afirma que o “eu” é composto por diversas partes, muitas partes não-
humanas, conferimos a estas partes o poder de atuar no mundo como se fossem seres
humanos. O mundo age como se fosse gente e a ele são conferidas vontades. A vontade
do que está fora das pessoas interfere em suas vidas assim como uma outra pessoa pode
fazê-lo. Aqui me interessa dizer que o mundo do candomblé não só age sobre as
pessoas, como tem vontades, o desejo do orixá, já disse Silva (1995: 123), é uma das
mais frequentes razões que levam a pessoas a iniciarem-se. O mundo é como se fosse
gente.
Encontro aqui o conceito de De Martino de agir “como se” quando ele afirma que na
possessão, o homem está na história como se aí não estivesse. O mundo age como
gente, como se fosse gente, sem deixar de ser mundo. Podemos ver aqui que, se o risco
supremo da presença é o de “ser agido” pelo mundo e não mais agir no mundo, o ritual
institucionaliza (de forma, portanto, controlada), este agir do mundo, como necessária
mediação para a reintegração da presença.
6
A grafia do nome dos orixás varia entre os autores. Omulu pode ser grafado Omolu, assim como é
possível encontrar grafias diferentes para Oxóssi, como Oxóce, Oxóci. Ou Yemanjá e Iemanjá, Iansã e
Inhasã, e assim por diante.
107
Obaluaiê, o orixá da terra e das doenças. Omulu é retratado na literatura brasileira como
o orixá da bexiga, como era chamada popularmente a varíola. Por ser o orixá da doença,
Omulu é também o orixá da cura. Explica-se no candomblé que não se pede saúde a ele,
pede-se que leve embora a doença.
A lenda de Omulu conta que sua mãe Nanã queria um filho de Oxalá e roubou seu
sêmen. Como castigo, Omulu nasceu repleto de chagas pelo corpo e, como era de
costume, foi rechaçado por Nanã e abandonado. Iemanjá o criou como seu filho e deu a
ele todas as conchas do mar, por isso Omulu dança com um barajá, colar feito de búzios
escamados um por cima do outro. Durante a vida, Omulu se curou, mas anda sempre
com uma roupa de palha que lhe cobre todo o corpo, roupa essa que Iemanjá fez para
ele para que pudesse andar pelo mundo sem ser apontado. Omulu dança no terreiro com
uma roupa de palha que o cobre da cabeça aos pés.
Acompanhei diversas festas na casa de Olubajé no Ilê Axé Xangô Airá, de Pai Pedro, e
houve sempre algumas pequenas variações entre uma e outra. Conto a de 2012 em que
um episódio específico me ajudará a comentar os conceitos trabalhados até aqui.
A festa começa com o Xirê como todas as outras e logo após é servido o banquete do
rei. Os filhos de santo saem do espaço onde é realizada a dança, com os atabaques e
seguem para um corredor lateral onde estão colocadas em uma mesa grandes recipientes
de louça ou barro com comidas. Cada comida é de um orixá, há, por exemplo, os
acarajés de Iansã, amalá de Xangô, bananas fritas de Obá, uma farofa de Logun Edé,
feijão preto de Ogum e a pipoca de Omulu. Com as comidas na cabeça os filhos de
santo entram entoando um canto que será repetido enquanto durar esta etapa do ritual
seguindo a equede que dá o ritmo da dança com uma grande esteira de cipó.
A equede estende a esteira no centro do terreiro, e ali os filhos de santo dispõem todos
os recipientes em torno da esteira, como em uma mesa, e os filhos de santo, exceto o
filho de Omulu e as filhas de Iansã, sentam em bancos baixos em torno da esteira. O pai
de santo coloca então alguns pratos na frente do filho de Omulu que se ajoelha e bate o
prato em seu peito, sua cabeça, seus ombros, sua testa e sua nuca. O canto segue
108
ininterruptamente, mas ganha agora um vigor extra acompanhado pelos atabaques. O
filho de Omulu é tomado por um tremor, assim como as filhas de Iansã e uma filha de
Oxum, novata, sentada em dos bancos. Logo ouve-se o grito de Omulu, alto e forte.
Omulu está em terra, como costumam dizer. As Iansãs também gritam e todos do
terreiro gritam saudações tomados por uma emoção coletiva. Atotô é como se saúda “o
velho”, como também é chamado o orixá. O filho é levado para o quarto de santo onde
irá vestir sua roupa de palha, bem como as Iansãs.
Enquanto Omulu está recolhido para vestir-se, ouvem-se seus gritos. Provavelmente
porque “sobe”, ou seja, deixa de possuir o corpo de seu filho de santo, que será tomado
pelo erê, entidade infantil ligada ao orixá que será vestido para que o orixá volte e
apareça em público. Normalmente, o orixá não fica presente para a realização desta
atividade que é feita pelo erê.
Do lado de fora, os filhos colocam uma pequena porção de cada alimento em uma folha
de mamona e servem primeiramente aos convidados externos e depois a cada filho de
santo, inclusive os ogans. Nenhum destes alimentos é temperado com sal. Cada pessoa
recebe a folha com as comidas, come – muitas comem “simbolicamente” por não gostar
do sabor das comidas e só pegam um pouco – depois cada pessoa se dirige ao canto do
terreiro onde há uma bacia em frente à porta da casa de Omulu, passa a folha pelo corpo
terminando na cabeça e coloca na bacia. Os filhos de santo servem ainda uma bebida do
orixá que lembra uma garapa. Depois que todos comem o olubajé, há um intervalo de
10 minutos, quando as comidas são colocadas todas dentro do quarto do santo, assim
como as folhas limpas que sobraram e as usadas pelas pessoas.
O orixá vem então dançar. Saem do quarto de santo, Iansã e Omulu, ambos vestidos.
Iansã com uma roupa em tom que varia entre o vinho e o cobre. Omulu com uma
vestimenta que impressiona, uma grande cobertura de palha com uma coroa de material
na mesma cor da palha adornada com cabaças, que pertencem ao orixá, e búzios. Iansã e
Omulu dançam em roda uma cantiga e então Iansã é coloca na lateral do terreiro onde
fica enquanto Omulu dança.
Omulu dança primeiro o Opanijé, um ritmo sem letra em que dança primeiro uma
coreografia completa para os atabaques, e depois de frente para as pessoas que assistem
ao ritual. O Opanijé é dançado com ritmo bem marcado. Omulu aponta para a boca três
vezes, andando com o corpo para a direita, depois, três, para a esquerda. Com o mesmo
109
gesto aponta para os olhos, para o ouvido, para a cabeça, para os braços e para o
coração. Em uma batida mais acelerada, Omulu “varre o chão” do terreiro com sua
palha abaixando e balançando com a ajuda das mãos a palha freneticamente enquanto o
público grita sua saudação vigorosamente “Atotô!”.
Depois do Opanijé, Omulu dança ainda por mais ou menos meia hora variando entre
ritmos mais tranquilos e mais agitados quando corre o terreiro girando e pulando.
Omulu grita um urro forte e longo, mais longo que os de Xangô ou Ogum.
O momento mais frenético da festa, já quase no fim é quando Omulu se dirige para os
atabaques e começa a abaixar-se em direção ao chão. Conforme Omulu abaixa, filhos de
santo e pessoas da comunidade ali presentes gritam sua saudação, batem palmas no
ritmo do atabaque, choram. Muitas colocam as mãos sobre os lugares onde têm
doenças, fecham os olhos e rezam. Neste momento, Omulu vai representar sua febre,
quando Iansã o cura e, por isso, ela está ali incorporada. Já vi, em outras festas, Iansã
chegar apenas neste momento. Não é sempre que ela fica incorporada o ritual inteiro.
Omulu então se atira ao chão na frente dos atabaques e treme energicamente. Muitos
filhos de santo incorporam em meio aos gritos cada vez mais intensos de “Atotô” e as
Iansãs dão seus gritos, mais curtos. Omulu rola de um lado para o outro na frente dos
atabaques. Nesse momento, a equede e outro filho de santo cobrem o orixá com um
lençol branco e o pai de santo corre o terreiro jogando pipoca em Omulu e nas pessoas
todas. É um momento de grande entusiasmo. Quando Omulu não realiza este ato é sinal
de algo o desagradou ou de que o ano vindouro não será bom. Omulu levanta, dança
uma coreografia rápida e tira o capacete com as palhas que cobrem o resto de seu corpo
ficando apenas com a saia de palha. Omulu volta para o quarto de santo com o rosto à
mostra. Este também é um sinal de que a festa o agradou. No candomblé, os orixás
nunca desincorporam na frente das pessoas. O processo é sempre feito nos quartos de
santo e cobertos com um pano.
Depois de dançar, Omulu é levado para o quarto de santo e Iansã é puxada para a roda
para algumas danças, a mais importante das quais leva uma quartinha com água na
cabeça até a porta da rua do terreiro e despeja a água na rua. Os orixás dançam sempre
acompanhados de uma equede ou de um filho de santo mais velho. Apenas os orixás
mais velhos, isto é, com mais tempo de santo, é que podem dançar sozinhos. Iansã
dança por cerca de dez minutos e é levada embora.
110
O pai de santo puxa uma cantiga para Oxalá e todos dançam. Oxalá é sempre o último a
ser saudado, enquanto Exú o primeiro e Oxalá o último. Depois que dançam para Oxalá,
o pai de santo abaixa dobrando os joelhos, gesto acompanhado por todos os presentes, e
batem palmas em um ritmo pré-estabelecido marcando o fim do ritual. A festa, no
entanto, não acabou. Neste momento, todos os presentes, inclusive a família de santo, é
convidada para o jantar. No jantar não há um protocolo do que é servido, o pai de santo
pode preparar a carne de algum dos animais que foi oferecido aos orixás, ou, qualquer
outro prato de seu agrado. Esta refeição final é um momento de confraternização, de
realocamento. Uma filha de santo de Pai Pedro uma vez me disse algo importante a
respeito desse momento.
Talvez ela mesma não saiba do quanto sua frase carrega de significados antropológicos.
Neste momento, a comida serve como agente reestabelecedor da ordem social.
No ritual que descrevi, não parece haver qualquer espaço para caos, desordem, ou
imprevistos. Tudo parece muito bem preparado para o que vai acontecer. Os santos
tinham suas roupas separadas, o lençol branco estava a postos para cobrir Omulu e a
pipoca estourada em quantidade o suficiente para que fosse atirada a Omulu e aos
demais participantes. O regime protegido de que fala De Martino, em que a crise da
presença pode ser vivida de forma controlada em um contexto em que seu resgate já
está garantido, está aqui representado. Os adeptos podem entregar-se ao transe porque
tudo o que precisam está aí preparado, à mão. As oferendas já foram feitas e há, depois
da dança e do êxtase, o jantar, o momento de confraternizar e “voltar” para o mundo.
Os atos que precedem o ritual, no entanto, são mais caóticos. Nesta festa que relatei, há
uma particularidade: no fim da festa cantaram parabéns para um jovem que fazia
aniversário, cuja família é uma grande contribuinte do terreiro. Embora não seja
oficialmente membro da família de santo, oferece ajuda financeira para a realização das
festas. O curioso é que dias antes, enquanto realizavam-se as obrigações internas,
Omulu pediu um bolo.
O pedido foi recebido com estranheza e, por isso, confirmado nos búzios, mesmo tendo
o próprio orixá incorporado ter feito o pedido. Bolo não é comida de qualquer santo e,
por isso, não faz parte do Olubajé. Tampouco é costume servir bolo de sobremesa, mas
para aquele ano, Omulu pediu um bolo. Explicou que queria um doce grande como o
111
que fazem para o panã e cantam para as crianças novas. Um bolo? Perguntaram. Sim,
um bolo. Omulu então disse que queria um bolo pelos dezesseis odus –as combinações
formadas na queda dos búzios e podem representar um ano - de uma pessoa que viria à
festa.
No dia da festa após o jantar, Pai Pedro chamou a atenção de todos e disse: “Vamos
cantar parabéns para um grande amigo do terreiro, filho de grandes amigos nossos e que
hoje completa 16 anos, 16 voltas no destino”.
Pai Pedro e outros filhos de santo comentaram que até a tarde do dia da festa houve uma
grande tensão em relação ao bolo. Até que alguém da comunidade comentou sobre o
aniversário do garoto que, por gostar tanto de Omulu e do olubajé, viria ao candomblé
ao invés de ir comemorar seu aniversário com os amigos. Todos então sentiram um
alívio ao descobrir a informação. Algo tão fora do esperado no ritual, sobretudo na
festa, poderia não ser um bom presságio.
Nos atos que precedem as festas públicas, reservados aos filhos de santo, a impressão
de desordem é mais nítida. Nestes momentos, os orixás podem aceitar ou não suas
oferendas, dar corretivos em seus filhos – um costume menos frequente, descrito por
alguns membros mais antigos, era o orixá dançar enquanto dava chibatadas em seu filho
de santo para corrigir alguma má conduta - e até mesmo recusar oferendas. Ou, como
aconteceu no olubajé que descrevi, o orixá pode fazer um pedido absolutamente
inusitado.
Ainda que haja um protocolo do que se espera dessas obrigações, é comum os orixás,
principalmente dos filhos mais novos, virem a qualquer momento. E quando digo que
esses rituais são lambuzados, é literal. Em muitas ocasiões durante os borís ou
obrigações sazonais os filhos recebem comida em suas cabeças, são derramados certos
líquidos e, nos dias em que há matança, alguns orixás dançam lambuzados com um
pouco de sangue derramado em sua cabeça.
As roupas que se usam para esses atos são mais simples. Durante a iniciação, por
exemplo, o filho de santo recebe alguns cortes nos braços, nas costas e na cabeça.
Derrama-se sangue e colocam-se certos elementos orgânicos em seu corpo, como ervas,
112
penas e comida. Há rituais em que o filho de santo tem sangue e penas grudadas em seu
corpo. Nesse momento de completa liminaridade, como coloca Turner, ou seja,
suspensão da ordem social estabelecida, as fronteiras entre homens e mundo externo são
completamente rompidas. Ao realizar esta observação em relação à comida, Rabelo me
inspira a pensar nessas obrigações internas em que as pessoas banhadas em sangue, por
exemplo, são absorvidas pelo mundo.
Durante as iniciações dos candomblés de queto há certos atos realizados para cada orixá
que rompem definitivamente com as categorias humanas com as quais estamos
habituados. Na iniciação dos filhos de Oxumaré, o orixá que é parte do tempo cobra e
outra parte arco-íris, eles são levados à beira de um rio, ou de um poço, e o orixá é
chamado. Incorporado, ele deve se atirar na água e nadar como uma cobra. Oxóssi, o
caçador, é chamado para que busca um animal que é solto no meio do mato –
normalmente um pequeno porco. Naturalmente, esses atos podem sofrer severas
adaptações no candomblé urbano, mas a animalização, por assim dizer, do homem é
uma etapa fundamental dos rituais
113
momento, parte de seu corpo. E, se for rodante, essa pessoa poderá ser possuída por sua
orixá ao entrar em uma cachoeira. Por isso, os filhos de santo têm restrições para ir a
certos lugares nos primeiros meses ou anos após sua feitura, até que aprendam a ter
controle da possessão e não sejam tomados pelo orixá em qualquer momento. A
possessão do orixá, ou, a perda da presença se torna mais controlável a medida em que o
filho de santo tem mais experiência no candomblé. Essas possessões fora de um
contexto ritual são menos frequentes até que o filho de santo consiga um controle mais
consistente (Goldman, 1985).
Rabelo, ainda em suas observações acerca da comida, nota que a duração desses
elementos são informações relevantes. Os atos que envolvem a produção dos alimentos,
como cortar, descansar, moer, descascar, cozinhar, assar, são essenciais para o sucesso
das oferendas.
Ao entregar as oferendas, é feita uma consulta com o lançar dos obis –sementes de cola
- que ao caírem demonstram pelo modo como repousam se o orixá ficou ou não
satisfeito com as entregas. É comum que quando os obis caiam de modo favorável, o
orixá tome o corpo de seu filho.
“Nesse sentido, pode-se dizer que o candomblé não apenas ressalta e cultiva a
transformação – fato bastante visível na centralidade que assumem, nesta
religião, atividades relacionadas à comida – mas que no terreiro cultiva-se a
atenção e a sensibilidade às várias e diferentes (às vezes bastante pequenas)
durações em que os materiais (e as pessoas) se transformam” (Rabelo, 2013:97)
114
“Há uma sintonia ou reforço mútuo entre corpo e lugar da qual depende a
estabilidade da vida social bem como nosso senso de pertença e o relativo
ajustamento a ela. A configuração dos lugares que habitamos demanda certos
modos de engajamento corporal, reforçando e naturalizando padrões de ação e
interação (com base em diferenças de classe, gênero, geração,etc.); assim como
as disposições e técnicas corporais socialmente constituídas revelam os lugares
como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e às
classificações ou ideias estereotipadas que elas corporificam” (Rabelo, 2011:19)
Quando dança sobre o fogo Xangô realiza este duplo encontro do corpo com o elemento
e da criação de um lugar. Um lugar que é do orixá, mas também do filho de santo.
Deste mesmo modo, ao encontrar-se com o mundo, fundir-se com ele e animalizar-se, o
homem toma para si lugares que antes não lhe pertenciam (ou aos quais não peertencia).
O mundo que o ameaça, incluídas nessa ideia as criaturas que o ameaçam, são agora
parte dele mesmo. A comida, o barro, os búzios, o sangue e os próprios animais
constituem a presença do homem. Neste sentido, minha proposta extrapola a de
Goldman de que a identidade é constituída de sete elementos espirituais e sugiro que a
pessoa se construa no candomblé a partir de uma intensa relação com o mundo e seres
não-humanos.
115
e longe da vida terrena e da animalidade. O homem religioso, no entender ocidental, é o
sujeito que busca distanciar-se do que entendemos por instintivo e selvagem.
Iansã é borboleta. Oxumarê é cobra. Espera-se desses orixás e de seus filhos que se
comportem como tal. Inclusive os descrevem com características destes animais. Os
filhos de Oxumarê tendem a ser magros com corpos flexíveis. As Iansãs são rápidas e se
movem com fluência. Para os adeptos do candomblé a separação entre os homens e os
116
animais não passa de uma condição temporária e passível de transformação, como tudo.
O homem pode e deve aproximar-se dos animais afim de garantir sua condição humana.
O sujeito se completa na medida em que está mais conectado às suas várias partes.
Inclusive às animalescas.
Ao afirmar que o corpo é uma realidade mutante, Le Breton abre caminhos para
imaginarmos outras formas de corpo e compreender que algumas sociedades já o fazem.
O corpo de cobra, ou o corpo de pedra dos filhos de Xangô são uma realidade, não são
simbólicos, no sentido de representar algo que ali não está presente.
Rosamaria Barbara analisa os rituais do candomblé com especial atenção para o aspecto
coreográfico do rito. A respeito de De Martino, a autora faz algumas observações que
me distanciam de sua interpretação, mais sociológica, quando afirma que:
“em alcançar uma relação com a divindade que, posteriormente, se torna nosso
guia, mas que antes poderia ser uma angustiosa fragilidade; consiste também m
aprender o poder de dialogar com esse e de torna-lo um ponto de força e não de
fraqueza, ou seja, conquistar o poder de conter e dominar a própria fragilidade e,
depois, a dos outros” (Barbara, 2002:63)
A relação que venho defendendo neste texto é uma relação que extrapola a categoria de
divindade e perpassa o mundo material, físico e o psíquico. Tornar a fragilidade força
está, ao meu ver, de acordo com o pensamento demartiniano, embora esse não seja um
117
processo de “alcançar o divino”, como a leitura sociológica pode sugerir. Ao contrário,
tenho demonstrado que o candomblé busca alcançar o mundano, o animalesco, o natural
e, também, o divino. O candomblé, pela perspectiva que venho defendendo, não é uma
prática ritual que objetiva a elevação e a diferenciação, mas sim, a integração, ainda que
nunca de forma completa, posto que o resgate da presença é ao retomada da capacidade
de objetivar o mundo. Integrar o homem ao mundo que coexiste em diversos níveis
dimensionais seria mais acertado que pretender uma relação com o divino. Essa seria
uma interpretação simplista.
Desse modo, os adeptos que chegam ao candomblé e descrevem suas experiências como
experiências de deslocamento, encontra aí uma técnica de integração. Por meio da
compreensão ritual de que fazem parte do mundo e este mesmo mundo é constituído
pela diferença e pelo conflito, os adeptos encontram aí os sentidos de suas crises.
Para abordar a religião por uma “terceira via”, recorrerei aqui a Ernesto De Martino, que
primeiro apresentou esta hipótese, antecipando em algumas décadas a discussão
antropológica contemporânea chamada por alguns de pós-moderna. Em um texto da
coletânea Furore, Simbolo, Valore, intitulado “Mito, scienze religiose e civiltà
moderna", o autor afirma:
118
Segundo De Martino os rituais, sobretudo aquele que envolvem uma alteração da
consciência, são técnicas de dehistorificação do devir. O ritual atua como uma
paralisação do tempo social para reorganização e concessão de sentido à vida.
Para o filósofo alemão, a técnica não deve ser vista meramente como um meio para fins,
ou um fazer do homem. A técnica é dotada de uma determinação instrumental e
antropológica por levar o homem a um fim, mas também mudar o próprio neste
processo. Por meio da técnica, o homem pode “ocasionar” algo novo que terá impacto
no próprio homem após seu surgimento e durante seu processo de feitura. A questão da
técnica reside, para Heidegger, em “desabrigar”, trazer à presença, desocultar.
“Em vista disso, o que é produzido manual e artisticamente, por exemplo, a taça
de prata, tem a irrupção do produzir não em si mesmo, mas num outro, no
artesão e no artista.” (Heidegger, 2007:379)
“O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar? Resposta: tudo. Pois
no desabrigar se fundamenta todo o produzir. Este, porém, reúne em si os quatro
modos de ocasionar – a causalidade – e os perpassa dominando. A seu âmbito
pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este vale como traço
fundamental da técnica. Questionemos passo a passo o que a técnica
representada como meio é em sua autenticidade e então chegaremos ao
desabrigar. Nele repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo.”
(Heidegger, 2007: 380)
Desabrigar é o modus operandi da técnica. Uma técnica artística tira a obra do abrigo
nebuloso das ideias do artista e a torna presença, a torna realidade. Seja a dança
executada pelo dançarino, seja a tela do pintor, ambas retiram a obra do mundo
nebuloso das ideias e as colocam expostas ao mundo, desabrigadas para serem então
presença.
“Armação significa a reunião daquele por que o homem põe, isto é, desafia para
desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação
significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não
é propriamente nada técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o
que conhecemos como sendo estruturas, camadas e suportes, e que são peças do
que se domina como sendo uma montagem.” (Heidegger, 2007: 285)
120
estruturação e ordenamento dessas notas musicais para que a melodia seja plenamente
revelada e se torne presença.
De Martino define a cultura como o exorcismo solene do risco de “não ser no mundo”
.Para ele, em muitas sociedades o “ser no mundo”, ou seja, a própria ideia da presença
do homem no mundo das coisas físicas não é um dado. A presença depende da
participação dos homens da história.
“Naquilo que ele chama “o mundo mágico” [De Martino, 1948], isto é, as
sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo não pertence à
ordem do dado, mas é uma realidade condenda (do latim condere = fundar), uma
realidade a construir. A simbologia mítico-ritual constitui uma série de
mecanismos, de técnicas protetoras contra a ameaça suprema de “não ser mais
no mundo” e, ao mesmo tempo, fundam a presença do homem no mundo, sua
realidade”. (POMPA, 1998)
121
vento, em vez de ouvir as palavras, se torna a palavra que ouve , etc.”. (De
Martino, 2004:137)
De Martino desenvolve aqui o cerne de sua teoria que interpreta os rituais mágicos,
sobretudo os que envolvem a “perda temporária da consciência ou dos controles” como
uma forma simbólica de compartilhar o temor da perda, a perda propriamente dita e o
resgate da presença. Ao compartilhar um horizonte meta-histórico comum, o grupo
enxerga um sentido e uma resolução para sua crise. Nesse sentido, ao criar uma
narrativa para seus anseios compartilhados, o grupo encontra sentido e ordem no
mundo.
A história como devir torna-se um fim e um meio em si mesma, assim como Heidegger
tratou da questão técnica. Se perfomatizar a história mítica, como diz De Martino,
coloca o sujeito na história corrente, o simbolismo mítico ritual, ou seja, o que é
geralmente definido religião, pode ser lido como técnica. Uma técnica que protege o
homem do risco do devir ao desabriga-lo do mundo nebuloso do risco e armar sua
presença no mundo histórico.
122
“Apoiando-me em uma tese proposta na década de 40 pelo historiador italiano
das religiões Ernesto De Martino, gostaria, antes de salientar o seguinte.
Considerado do ponto de vista do seu modo de funcionamento e da eficácia, o
dispositivo mítico-ritual - enquanto instituição cultural - paira precisamente
sobre uma busca pela contribuição dos estados psíquicos dissociados, que esse
dispositivo submete a uma economia específica. Se percebermos esta hipótese,
então, na vida mágica religiosa, estaríamos enfrentando o que poderia ser
qualificado como o uso "estratégico" dos diferentes regimes psíquicos que não é
improvisado ou deixado ao acaso: ele é feito de acordo com protocolos sociais
rigorosamente estruturados, e está enquadrado por uma tradição coletiva e requer
procedimentos técnicos precisos" (MANCINI, 2008:23)
O que De Martino chama de “estar aí como se não estivesse” é um recurso técnico para
atuar na história sem estar na história. Para o autor este recurso é fundamental para o
resgate da presença em crise. O risco de perder a presença no mundo é salvo pelo ato de
perder-se simbolicamente.
O autor, por outro lado, reconhece na ampla variedade de estados psíquicos uma força
da cultura em resolver as crises pelo estímulo para que esses momentos de descontrole
aconteçam em um regime protegido. Quando o sujeito está em crise, o grupo encontra
no ritual, uma maneira de “evocação, configuração, liberação e resolução dos conflitos
psíquicos (De Matino, 2000: 64). A religião como técnica pode ser compreendida como
123
um método gradual de resolução de crises psíquicas individuais e coletivas que buscam
reintegrar o indivíduo em grupo e a ordem do mundo.
“Podemos afirmar que o tarantismo como rito está representado pela resolução
gradual coreico-musical de um estado de crise dominada pela queda da presença
individual, de modo que, se o discurso musical é interrompido ou não se observa
rigorosamente sua coerência melódica, o processo de resolução passa por uma
detenção automática e crise se reprouz. Tudo acontece como se certa ordem
rítmica de sons desbloqueasse ese elementaríssimo da vida que é o
movimiento, ao mesmo tempo, a disciplina do ritmo impedisse que o
movimiento se liquide em uma mera descarga desarticulada: a ordem coreico-
musical se configura assim como um amplíssimo horizonte simbólico de
recuperação, o mais amplo do que aquele que o tarantismo dispõe, quase como
uma ponte entre Escila e Caridbis, ou seja, entre a suspensão angustiante de
esturpor inerte e a explosão frenética de uma vitalidade delusória direcionada
sem destino humano para consumo rápido e aniquilamento total” (De Martino,
2000:139)
Os filhos de cada orixá são essencialmente diferentes uns dos outros, embora
absolutamente complementares. O candomblé estimula seus adeptos a observar que está
na diferença a força complementar de cada um. As filhas de Oxum e Iansã terão
episódios de conflitos e desentendimentos, mas dividem o amor de Xangô e precisam da
força vital uma da outra para sobreviver. O homem integrado à natureza, como a
concebemos em nossa cultura ocidental, é o ser da presença garantida, embora
constantemente sob ameaça.
124
determina se o fenômeno será considerado doença ou ritual. Uma possessão que
acontece em um supermercado é uma doença, mas uma festa de candomblé em que não
há possessão, em que o orixá não vem toma o corpo de seus filhos para saudar a
comunidade é um infortúnio.
A presença, no entanto, é algo que se fortalece com o tempo. Quanto mais tempo de
santo, menos frequentes são as manifestações dos orixás e menos lambuzadas são as
obrigações. Na medida em que a pessoa gradua-se no candomblé, sua presença é
fortalecida e menos ela a perde. Os filhos de santo mais velhos chegam a passar um ano
sem a manifestação de seu orixá pessoal (Barbara, 2002).
125
Conclusão: Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente
“Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz.
Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma graça
a seu deus. – Sua voz era amarga, uma voz que não parecia de mãe de santo
Don’Aninha. – Não se contentam de matar os pobres à fome. Agora tiram o
santo dos pobres... – e alçava os punhos” (Amado, 1973:107)
Amado escreve que Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si e sabia que, como dizia o
padre, os pobres iriam para o céu, mas sentia que a justiça na terra sempre pesava contra
os menos abastados. Pedro Bala avisou aos outros que iria encarar a missão mais
complexa que já enfrentara e poderia ir parar no reformatório. Amado escreve que:
“Mas Don’Aninha bem que merecia que se corresse esse risco por ela. Quando
tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas, tratava dele, muitas vezes
o curava. E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava
como a um ogã, dava-lhe do melhor para comer, do melhor para beber” (Amado,
1973:113)
Ele foi então até a delegacia e depois de uma noite e uma longa história inventada, o
garoto recuperou a imagem do santo.
126
A passagem do romance de Jorge Amado ajuda a ilustrar como o candomblé se
relacionada historicamente na sociedade brasileira. Elaborado entre os negros, a história
do candomblé é uma história de perseguições e resistência. O candomblé sempre foi a
casa dos excluídos. Aqueles que não eram mais aceitos em qualquer outra esfera social
encontravam nos terreiros acolhimento e proteção.
Se o candomblé foi o refúgio dos negros e pobres no passado, ainda hoje é a casa
daqueles que se sentem à parte em outras esferas da vida social. A narrativa da guerra
não é apenas um recurso linguístico, mas histórias reais de pessoas que buscam estar
inseridas em um sistema que pouca ou nada as acolhe. Aquelas pessoas que foram
diagnosticadas como loucas, ou, ainda pior, não tiveram seus males identificados, os
gays, os negros, aqueles que se sentem perdidos e toda sorte de excluídos compõem as
rodas de santo a cantar para os orixás. O candomblé reconstrói o mundo daqueles que
não se sentem parte dele.
Ao defender a prática ritual como uma técnica para o resgate da presença no mundo, De
Martino nos fornece a chave para entender o sofisticado mecanismo do candomblé de
manutenção da presença e da dignidade de seus adeptos. Ao promover práticas que
integram seus membros ao mundo, no sentido mais literal, ao mergulha-los em um rio,
derramarem porções de comida em suas cabeças e faze-los dançar rastejando como
cobra ou voando como borboleta, os pais e mães de santo ajustam a presença de seus
filhos, e as suas próprias, demonstrando como podem fluir entre o estado mais
desconectado e o mais coeso daquilo que chamamos civilização.
Ingold nos mostra como, ao procurarmos nos diferenciar dos animais, ao mesmo tempo
em que reconhecemos no fato de sermos animais, temos uma compreensão melhor de
nós mesmos. Ser animal, ser pedra, ser vento ou ser cachoeira é uma condição dialógica.
Quando descrevo que Iansã dança como uma borboleta, não afirmo apenas que a pessoa
animaliza-se, mas o animal humaniza-se. Na prática ritual, a borboleta toma emprestado
os movimentos das articulações dos braços para alçar seu voo bípede. O relacionamento
da pessoa com o mundo no candomblé é uma via de mão dupla, um diálogo no qual
ambos têm voz e as mesmas condições de expressão.
De Martino, quando fala das tarântulas, observa que a elas são atribuídas caraterísticas
humanas e personalidade. Cada tarântula tem sua música e sua dança de acordo com
127
seus gostos e temperamento. O autor não se aproxima de minha afirmação sobre os
animais que se humanizam, mas dá pistas para que eu tenha chegado a esta ideia.
Em sua última entrevista ao jornalista Luís Pellegrini para a revista Planeta, Pierre
Verger respondeu que sua dedicação ao candomblé não significava nada
espiritualmente. Questionado se ele não acreditava em nada do que tinha visto e vivido,
Verger responde:
“Pela manhã, antes de vir me visitar, você não disse que foi ao Pelourinho e
comeu um acarajé feito por aquela baiana que monta seu tabuleiro ao lado da
Fundação Jorge Amado? Pois bem, aquela mesma baiana, igual a tantas outras,
vestida de baiana e coberta de balangandãs, que passa o dia fritando acarajé para
ganhar a vida, você sabe o que acontece à noite, quando ela vai para o seu
terreiro, quando ela dança e entra em transe ao som dos atabaques e incorpora a
Oxum que carrega? Preste atenção: ela deixa de ser uma simples baiana, igual a
milhares de outras, para se transformar naquilo que realmente é - uma rainha.
Uma rainha, sim, na profundidade do seu ser. Respeitada, tida e havida como tal
por toda a comunidade do seu terreiro. E aquele estivador que passa o dia
carregando sacos no cais do porto, sabe o que acontece quando ele incorpora no
terreiro o Xangô que carrega? Acontece o mesmo: ele se transforma num rei,
porque a sua verdadeira natureza é a de um rei. Você me perguntou, eu
respondo: foi para isso, sim, que dediquei a maior parte da minha vida. Para
128
contemplar e tentar entender esse espetáculo único, o maior espetáculo da Terra,
que é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano. A verdade
profunda que é representada pelo orixá. E, se mais dez vidas eu tivesse, de bom
grado dedicaria todas elas a esse mesmo objetivo.” (Verger, 2010)
129
mesmo céu que sorri ao ver o santo recuperado. O mundo ainda nos ataca e as pessoas
seguem em guerra contra ele e também a seu favor.
Minha conclusão não poderia ser outra senão a de que o candomblé, assim como o
tarantismo, é uma prática requintada de resgate da presença dos excluídos. O candomblé
celebra o caos como gerador de ordem, reconhece que é somente a partir da total
desconstrução do ser que ele pode ser compreendido e completado em um processo de
vida.
Tudo no candomblé é tempo, é cíclico e sazonal. Há os dias certos para louvar a cada
orixá. Há o tempo certo para aprender e para completar-se. Há também o tempo certo
para perder-se para o mundo e reintegra-se neste. O candomblé encontra seu espaço em
um tempo e espaço onde vivemos a experiência da velocidade (Kehl, 2009) ao
promover uma nova compreensão do tempo, mas sobretudo, ao estimular a
compreensão do movimento e da fluidez. É possível, saudável e necessário transitar
entre o veloz e o lento. Todos os filhos de todos os santos dançam lentamente para Nanã
e Oxalá. Os mesmos filhos dançam velozes para Iansã e Ogum. No xirê as experiências
de velocidade e o relacionamento do sujeito com o tempo é compreendido como
instável, embora organizado. Toda a história do mundo, da criação e dos orixás é
revivida a cada xirê dançado.
O Pedro Bala, de Jorge Amado, era um menor infrator, líder de uma gangue temida e
rechaçada em Salvador. No candomblé, eram tratados como ogans. Quando precisou-se
de alguém astuto o suficiente para retomar Ogum de uma delegacia, Pedro Bala foi
chamado. Cada orixá tem suas habilidades. A vida só é completa com a presença de
todos. No candomblé, no contexto da prática ritual, não há excluídos, todos descendem
da realeza criadora do mundo. Todos são família real.
130
Bibliografia
AGNOLIN, Adone. “O debate entre História e Religião”, Projeto História, N. 37, 2008,
pp. 13-40
APPADURAI, Arjun. “Soberania sem territorialidade - notas para uma geografia pós-
nacional”, Novos Estudos, N. 49, São Paulo, 1997, pp. 33-46.
BRAZEAL, Brian. “Segredos, Fofoca e Divindades” Afro-Ásia n°32, São Paulo, 2005,
pp. 315-320.
131
CARVALHO, José Jorge de. “Violência e caos na experiência religiosa: A dimensão
dionisíaca dos cultos afro-brasileiros” in Moura, Carlos Eugênio Marcondes de, As
senhoras do pássaro da noite. São Paulo, Edups, 2003.
DUMONT, Louis. “Religion, Politics and Society in the Individualistic Universe” Royal
Anthropological Institute of Great Britain and Ireland.,N. 1970, 1970, pp. 31-41.
132
____________ “Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de
simetrização antropológica” Análise Social, vol. XLIV, 2009, pp. 105-137.
JOHNSON, Paul Christopher. Secrets, Gossip and God, Oxford, Oxford University
Press, 2002.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: atualidade das depressões, São Paulo, Boitempo,
2009.
LATOUR, Bruno. “"Não congelarás a imagem", ou: como não desentender o debate
ciência-religião” Mana, v. 10, n. 2, 2004, pp. 349-375.
____________ Reflexão sobre os cultos modernos dos deuses fe(i)tiches, Bauru, Edusc,
2002
133
____________ “J. Habermas: religião, diversidade cultural e publicidade” Novos
Estudos, N.84, São Paulo, Cebrap, 2009.
POMPA, Cristina. “A construção do fim do mundo. Para uma releitura dos movimentos
sócio-religiosos do Brasil "rústico" Revista de Antropologia, vol.41, N.1, 1998, pp.
177-211.
____________ “Por uma antropologia histórica das missões” in Montero, Paula, Deus
na aldeia. São Paulo: Globo, 2006, pp. 111-142.
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança, Paris, Gallimard, 1984.
ROUGET, Gilbert. Music and trance: a theory of the relations between music and
possession, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1985.
SAEZ, Oscar Calávia. “O Que os Santos Podem Fazer pela Antropologia” Religião e
Sociedade, 29 (2), Rio de Janeiro, 2009, pp. 198-219.
134
SANTOS, Maria Stella de Azevedo. “Balaio de Ideias: O que as folhas cantam” Artigo
publicado no jornal A Tarde em 2 de maio de 2013. Salvador, 2013. Acessado em
20/9/2014 Disponível em: http://mundoafro.atarde.uol.com.br/?tag=mae-stella-de-
oxossi#sthash.EuN5bBDo.dpuf
SILVA, Vagner Gonçalves da & AMARAL, Rita de Cássia. “A cor do axé - brancos e
negros no candomblé de São Paulo” Estudos Afro-Asiáticos, CEAA, n. 25, Rio de
Janeiro, 1993, pp. 99-124.
VERGER, Pierre. “Último encontro com Pierre Verger: há pessoas que deixam balizas
nas memórias dos outros”. Depoiment. Agosto/2010. São Paulo, Revista Planeta.
Entrevista concedida a Luis Pellegrini. 2010. Acessado em 10/12/2014 Disponível em:
http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/reportagens/ultimo-encontro-com-pierre-verger
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas, São Paulo, Cia.
das Letras, 2007.
135