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Universidade Federal de São Paulo

Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo e o


mundo vira gente:
A "crise da presença" no
candomblé de São Paulo

Guarulhos
2015
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo


e o mundo vira gente:
A "crise da presença" no
candomblé de São Paulo

Dissertação de mestrado em Ciências


Sociais apresentada ao Programa de Pós
Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de São Paulo, sob
orientação da Profa. Dra. Cristina Pompa.

2
Guarulhos
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal
de São Paulo

Ribeiro, Daniel
Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente: A "crise da presença"
no candomblé de São Paulo /
Daniel Ribeiro ; orientadora Cristina Pompa. - Guarulhos, 2015.
150 f.

Dissertação (Mestrado)- Escola de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
Departamento de Ciências Sociais.

1. Religião. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé.


4. Religiões afro-brasileiras. I. Pompa, Cristina,
orient. II. Título.

3
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Daniel Augusto Ribeiro Pereira

Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente:


A "crise da presença" no candomblé de São Paulo

Dissertação de mestrado em Ciências Sociais


apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Federal de São
Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Cristina
Pompa.

___________________________________
Profa. Dra. Maria Cristina Pompa (Orientadora)
Unifesp

___________________________________
Profa. Dra. Melvina Afra Mendes de Araújo
Unifesp

___________________________________
Prof. Dr. Adone Agnolin
USP
4
Resumo

Esta pesquisa é um esforço teórico-metodológico para identificar o que Ernesto De


Martino chamou de “crise da presença”, ao analisar o tarantismo no sul da Itália, no
candomblé de São Paulo. A partir de uma possibilidade de comparação histórica
apontada pelo autor italiano, busco atualizar o conceito de “crise da presença” para o
mundo urbano e articular os postulados de De Martino aos de pensadores
contemporâneos, na empreitada de demonstrar como sua teoria antecipa, em mais ou
menos meio século, as ideias presentes no debate antropológico atual. Por meio de uma
análise de campo e da articulação com outros autores, como Tim Ingold, Isabelle
Stengers, Maria Rita Kehl e Míriam Rabelo, extrapolo os pressupostos demartinianos ao
trazer a questão das interações com os não-humanos.

Palavras chave: 1. Religião. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé. 4. Religiões afro-


brasileiras.

Abstract

This research is a theoretical and methodological effort to identify what Ernesto De


Martino called "crisis of presence" when he analyzed the tarantism in southern Italy in
Candomble of Sao Paulo. From a possibility of historical comparison indicated by the
Italian author, I try to update the concept of " crisis of presence" for the contemporary
urban world and articulate De Martino's postulates to contemporary thinkers in order to
demonstrate how his theory anticipates, in at least half a century, the ideas presented in
the current anthropological debate. Through a field analysis and coordination with other
authors such as Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl and Miriam Rabelo, I
extrapolate the assumptions of De Martino to bring the issue of interactions with non-
humans.

Keywords: 1. Religion. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomble. 4. Afro-Brazilian


Religions.

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Riassunto

Questa ricerca è uno sforzo teorico e metodologico per identificare ciò che Ernesto De
Martino ha chiamato "crisi della presenza", quando ha analizzato il tarantismo nel sud
Italia, nel Candomblé di San Paolo. Da una possibilità di confronto storico indicato
dall'autore italiano, cerco di aggiornare il concetto di "crisi della presenza" per il mondo
urbano e articolare i postulati di De Martino a pensatori contemporanei, al fine di
dimostrare come la sua teoria anticipa, in almeno mezzo secolo, le idee presenti
nell'attuale dibattito antropologico. Attraverso una analisi sul campo e l’articolazione
con altri autori come Tim Ingold, Isabelle Stengers, Maria Rita Kehl e Miriam Rabelo,
estrapolo le ipotesi di De Martino per portare la questione delle interazioni con i non-
umani.

Parole chiave: 1. Religione. 2. Ernesto De Martino. 3. Candomblé. 4. Le religioni afro-


brasiliane.

Resumen

Esta investigación es un esfuerzo teórico y metodológico para identificar lo que Ernesto


De Martino ha llamado "crisis de la presencia" cuando analizó el tarantismo en el sur de
Italia en el candomblé de Sao Paulo. Desde una posibilidad de comparación histórica
indicada por el autor italiano, trato de actualizar el concepto de "crisis de la presencia"
para el mundo urbano contemporáneo y articular los postulados de De Martino a
pensadores contemporáneos con la finalidad de demostrar cómo su teoría anticipa, en al
menos medio siglo, las ideas presentadas en el actual debate antropológico. A través de
un análisis de campo y la coordinación con otros autores como Tim Ingold, Isabelle
Stengers, Maria Rita Kehl y Miriam Rabelo, extrapolo los supuestos de De Martino a
llevar el tema de las interacciones con los no-humanos.

Palabras clave: 1. Religión. 2. Ernesto De Martino. 3. candomblé. 4. Las religiones afro-


brasileñas.

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AGRADECIMENTOS

Os pouco mais de dois anos que passei no mestrado foram um grande aprendizado
durante o qual eu tive o privilégio de conviver com vários mestres. A todos os que
cruzaram meu caminho neste período o meu mais sincero muito obrigado. Com todos os
momentos de dúvida, certa solidão da pesquisa, cansaço físico e mental, o mestrado foi
um processo prazeroso e feliz.

Aos meus professores do curso de jornalismo da Universidade Metodista que


despertaram em mim a semente da vida acadêmica e me estimularam na minha perene
busca por conhecimento: Marli dos Santos, Maria Cristina Gobbi, Verónica Aravena
Cortes, Maria Luiza Rinaldi Hupfer e Marcelo Carvalho (que reencontrei na Unifesp).

Ao Ricardo Pagliuso Regatieri que foi o responsável por eu ter “tomado coragem” para
escrever meu projeto e encarar esta empreitada. A Sylvia Caiuby Novaes, por ter
reiterado esse encorajamento com preciosas sugestões.

Aos professores da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp que me


acolheram e me motivaram. Aos que conduziram as disciplinas que participei: Gabriela
Nunes Ferreira, Lindomar Albuquerque e Christina Andrews. E alguns que não foram
meus professores diretos, mas em estágios, caronas e conversas informais me
inspiraram em temas que vão muito além das suas e da minha pesquisa: Cynthia
Andersen Sarti, Ana Lúcia Teixeira, Marcos Pereira Rufino e Alessandra El Far.

Aos professores da Universidade de São Paulo com os quais cursei duas disciplinas e
fui orientado em leituras que deram um novo (e melhor) rumo à proposta inicial desta
pesquisa: Paula Montero, Renato Sztutman e Stélio Marras.

Aos queridos colegas do mestrado que foram de grande apoio, conforto e compreensão.
Em especial a aqueles que se tornaram amigos: Andréa Barbara Azevedo, Bruno Marco
Cuer dos Santos, Paulo RIgolin de Moraes, Thiago Fijos e Deise Casado.

Aos queridos Daniela Gonçalves e Douglas Barbosa, da secretaria de pós-graduação da


Unifesp, pela atenção e carinho com que sempre me atenderam.

Aos amigos que a vida generosamente me deu e foram essenciais nos momentos de
dúvidas e, naturalmente, nos de festa. Mirella Franco, Marcus Samed, Júlia Caiuby,
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Camila Novaes, Débora Costa e Silva, David Santos Jr., Jenifer Souza, Tarcísio
Cardoso, Anselmo Calzolari, Claudia Montin Franco, Felipe Gonçalves, Luiz O.
Esteves, Elaine, Marcelo, Maria Paula e Jorge Torresi, Patrícia Mara Barros, Paulo
Caires, Paulo Henrique Araújo, Hugo Prudente, Daniela Majori, Bruna Stella, Clara
Dias e Gil Alessi.

Ao Pai Pedro de Xangô e ao Pai Cristiano de Ogum e suas respectivas famílias de santo
pelo acolhimento, paciência e respeito.

Agradeço enfaticamente a professora Melvina Afra Mendes de Araújo por ter


acompanhado de forma atenta e carinhosa o desenrolar da minha pesquisa, primeiro
como comentadora na disciplina de seminários, depois em minha qualificação com
sugestões preciosas. E o Professor Adone Agnolin pela minuciosa e cuidadosa leitura de
meu relatório de qualificação que gerou inspiradoras sugestões para a conclusão desta
obra.

Toda gratidão e carinho a minha orientadora, Cristina Pompa, que pela imensa ajuda e
cuidado com o meu trabalho. Sem ela, nada disso teria acontecido.

Aos colegas do grupo de pesquisa de antropologia e história das religiões: Maria


Cristina Coelho Oliveira, Marcus Barreto, Ana Paula Souza, Ricardo Lopes Dias,
Willian Shinkai, Gabriela Sartori, Fábio Preturlon e Carol Alvim.

Aos tantos autores, que apesar de nunca ter conhecido de fato, me fizeram companhia e
me mostraram “que não estava louco”, ou, pelo menos, não sozinho. Ao Jorge Amado,
cujos retratos literários da realidade me inspiraram a olhar com mais generosidade para
a vida.

Aos meus pais, Terê e Birinho, irmãos, André e Claudia, e sobrinhos, Taiany, Letícia,
Matheus, Lucas e Júlia, por terem sempre sido incentivadores e acolhedores em todos os
momentos e decisões da minha vida. A Cleusa Cunha e ao Gilmar Cunha e toda sua
grande família. Ao Damián Aloisi.

A CAPES pelo apoio financeiro fundamental à realização deste trabalho. A todos que eu
possa ter esquecido de mencionar.

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SUMÁRIO

Apresentação: Guerra e crise........................................................................... 11


Capítulo 1: o problema e o método .................................................................. 16
1.1 A propósito de “religião” .......................................................................... 16
1.2 Tarantismo e candomblé em perspectiva ............................................... 21
1.3 Crise da presença ................................................................................... 29
1.4 O candomblé de Pai Pedro de Xangô..................................................... 42
1.5 Um mundo em movimento, um mundo em guerra .................................. 50
1.6 O mundo mágico demartiniano ............................................................... 58
1.7 O devir como risco .................................................................................. 66
1.8 O risco no mundo contemporâneo .......................................................... 72
1.9 De que mundo estamos falando? ........................................................... 79
Capítulo 2: A análise ........................................................................................ 90
2.1 As pessoas além das pessoas ............................................................... 90
2.2 O atabaque comanda o ritual .................................................................. 91
2.3 O homem é engolido pelo mundo ........................................................... 99
2.4 Olubajé – no banquete do rei tem bolo ................................................. 107
2.5 A religião como técnica – uma proposta demartiniana ......................... 118
Conclusão: Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente ................... 126

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Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.

Jorge Amado, Capitães da Areia.

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Apresentação: Guerra e crise

Em um artigo de 29 de novembro de 2012, no jornal baiano A Tarde, mãe Stella de


Oxóssi, líder do terreiro Opo Afonjá, um dos mais tradicionais do país declara que “E é
Xangô, Deus do Trovão, orixá de “olhos de Orogbó”, sempre abertos e atentos, que com
sua voz rouca grita para que nos levantemos e, como guerreiros, enfrentemos a nossas
lutas diárias” (Santos, 2013). A guerra, eu ousaria afirmar, é o ponto central do
candomblé. Poderia dizer que a guerra é a paisagem mítica na qual o candomblé se
desenrola, mas talvez esta fosse uma afirmação redutiva, já que nas páginas a seguir
tentarei demonstrar como o discurso da guerra é não só o pano de fundo para todo o
desenvolvimento do ritual, como a gramática pela qual se vive.

Nas histórias de vida dos filhos de santo e frequentadores dos terreiros é sempre
contado com ênfase como as dificuldades foram vencidas com a ajuda dos rituais. O
discurso é quase sempre de que há uma guerra. Ou muitas. Desde uma grave doença
tratada com o que os antropólogos convencionaram chamar de cura mágica, até os casos
mais banais de picuinhas no ambiente de trabalho são relatados como batalhas. A vida é
muitas vezes descrita como uma batalha. O corriqueiro modo de cumprimentar que
usamos, perguntando “tudo bem?”, suscita respostas como “na batalha” ou “sempre
lutando”.

Esta não é uma narrativa singular ao candomblé. A narrativa da guerra está presente no
dia a dia em todos os ambientes. Não são somente os filhos de santo que se apresentam
como guerreiros. Em discursos políticos, quantas vezes não se ouviram os candidatos ou
parlamentares se referir a um povo guerreiro que batalha por sua sobrevivência. A
referência corriqueira à vida como luta,no candomblé, é celebrada como força vital.
Estar em luta para o seus adeptos é estar vivo e atuante.

O discurso de que há uma guerra, de que a vida é uma batalha, uma sucessão de lutas
diárias é uma constante nos terreiros de candomblé. A cura está associada à vitória. As
conquistas são vitórias. Aqueles que alcançam seus objetivos, seja ela a cura de uma
doença, de uma depressão ou um carro novo, são vitoriosos na batalha. Porque todo
processo é uma luta. O candomblé, ao contrário do que possamos pensar em uma
análise rasa, é a celebração da guerra e não da paz. A luta diária pela sobrevivência é o

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que dá tônus ao ritual. E quando uma vitória é conquistada, prontamente a pessoa
responde que está “pronta para outra”, já que a luta é cíclica.

O primeiro orixá saudado em qualquer ritual, seja público ou privado, é Exú, o orixá do
movimento, do caos. A centralidade do culto de Exú no candomblé demonstra como
este é um ritual voltado para o movimento e para a luta, que no discurso pode aparecer
como sinônimo de trabalho, conquista, movimento, rompimento e poder, como os
exemplos etnográficos demonstrarão.

Relatar a vida e a própria história como uma guerra e se colocar como um guerreiro é
quase um a priori quando se escuta o relato de qualquer filho de santo. As histórias de
vida são sempre contadas com ênfase nas dificuldades e como elas foram vencidas, ou
em como a nobreza de cada um e suas virtudes de guerreiro são testadas a todo instante.
Guerreiro, por sinal, é elogio dos mais valiosos.

Por meio das oferendas e dos rituais coreico-musicais, os adeptos do candomblé buscam
estar em sintonia com os orixás que são as forças da natureza personificadas capazes de
agir em seus corpos. A natureza à qual candomblé busca se conectar, no entanto, não é a
natureza passiva, regrada e controlada que a ciência clássica procurou esquematizar. A
natureza do candomblé é imprevisível e, muitas vezes, violenta. Para os adeptos, é
preciso dialogar com a natureza, render-lhe oferendas e atender aos seus desejos para
estar em sintonia e beneficiar-se de seus movimentos. Estar em harmonia com a
natureza, no entanto, não exclui que eventualmente o homem seja engolido por ela. O
ritual procura controlar uma crise que existe. O mundo exterior age no homem e esta é
uma condição que não pode ser resolvida, mas apenas controlada. A relação entre a
guerra, a crise e o movimento será mais explorada nos próximos capítulos.

A proposta de analisar a magia como uma técnica para a resolução de crises não é uma
proposta nova. A cura mágica foi tema amplamente tratado pela antropologia e volto a
ela mais à frente. O candomblé, porém, me parece, a partir dessa observação, um campo
propício para analisar o ritual como uma técnica para o controle das crises. Técnica essa
que não se propõe a resolução definitiva masao controle, assim como propõe o
antropólogo italiano Ernesto De Martino, conforme veremos detalhadamente mais à
frente.

Se o movimento é a essência do candomblé e é este movimento que dá o sentido para a


vida, a ausência de movimento é o maior drama para seus adeptos. Uma pessoa que não

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está em movimento está doente. O movimento, como demonstrarei, está ligado ao ritmo
e à velocidade, logo a pessoa que está fora deste modus operandi veloz está doente. A
partir disso, minha hipótese central nesta pesquisa é a de que o candomblé tem tido um
uso frequente, abundante e bem sucedido como ferramenta para o tratamento das
depressões porque as depressões no mundo contemporâneo estão ligadas aos desajustes
de movimento e velocidade. A hipótese de que a depressão contemporânea seria uma
forma da melancolia freudiana é de Maria Rita Kehl (2009). A religião como técnica foi
defendida por Ernesto De Martino (1962, 1977, 1982, 1996, 2004, 2012), assim como o
conceito de “crise da presença” foi forjado por ele. Nesta pesquisa, procurarei relacionar
a depressão, nos moldes defendidos por Kehl (2009), com a crise da presença
demartiniana.

Neste contexto o candomblé contraria a ideia de religião tomada como a priori em


muitos estudos, embora tratado como religião por seus adeptos e, por isso, tomarei aqui
muitas vezes a liberdade de me referir a este sistema mítico ritual como tal. No
candomblé, veremos, a religião não é um caminho para uma suposta “evolução
espiritual”, sequer no discurso ou nas práticas que analisaremos.

Esta pesquisa pretende apresentar uma perspectiva de análise do candomblé como


técnica de proteção e cura da crise da presença, como propõe o pensador italiano
Ernesto De Martino sobre o tarantismo. Grosso modo, o tarantismo é uma prática ritual
coreico-musical de celebração e cura da “mordida da tarântula”. Por meio da música e
da dança ritualística o atarantado – pessoa possuída pela tarântula que o mordeu –
identifica-se com a entidade e a exorciza, quando é o caso. O próprio De Martino a certa
altura aponta a possibilidade de comparar o tarantismo com o candomblé, como
veremos mais adiante.

A partir de pressupostos anunciados pelo próprio De Martino, apresentarei ao longo


desta pesquisa um esforço de encontrar os paralelos históricos entre tarantismo e
candomblé, ambos fenômenos de influência africana que se desenvolveram em
contextos de marginalização, e aplicar os conceitos demartinianos na análise candomblé
urbano.

Para tal tarefa, apresentarei argumentos em prol de uma atualização do que ele chamou
de Crise de Presença para o contexto da “modernidade tardia”, assim como definida por
alguns autores. Ao articular De Martino, que escreveu na metade do século passado,

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com Ilya Prigogyne e Isabelle Stengers, do fim do século, e Maria Rita Kehl, de
produção recente, procuro demonstrar uma tendência que vem se confirmando ao longo
de mais de meio século de revisitar certos conceitos e atualizá-los para um momento
histórico mais recente (como faz De Martino com o dasein heideggeriano e Kehl com a
melancolia freudiana).

Minha empreitada de realizar esse trabalho com a crise da presença e a interpretação


técnica da religião embasam-se no debate que proponho a respeito das múltiplas formas
de conceber a realidade. Algo que o próprio De Martino havia feito no livro Il Mondo
Magico, de 1948, e, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, em A Nova Aliança, de 1984. A
partir da ideia de que a realidade é condenda, como propõe o italiano, também para o
mundo urbano e que a segurança da presença é ameaçada neste contexto, como bem
demonstram Beck e Foucault, por exemplo, preparo terreno para mais tarde ilustrar
essas afirmações teóricas com meu trabalho de campo.

No texto, apresentarei o trabalho de campo realizado ao longo da pesquisa em um


terreiro de candomblé na cidade de Santo André, na Grande São Paulo. Conto também
com relatos e observações em outros terreiros e conversas com adeptos do candomblé
de outras casas que encontrei ao longo da pesquisa e que podem contribuir para a
análise que proporei ao longo deste texto. Também utilizo o recurso de buscar em
outros textos antropológicos passagens e relatos semelhantes aos que observei, ainda
que as análises desses relatos tenham seguido por outras direções teóricas. No que diz
respeito ao terreiro em que realizei a pesquisa, vou apresentar uma etnografia de
algumas festas e também relatos de conversas e encontros que tive com os membros em
dias fora do calendário do candomblé. A etnografia me ajudará a traçar os paralelos com
o tarantismo e me apropriar da teoria demartiniana sobre a crise da presença.

Acompanhei durante pouco mais de dois anos as festas públicas e algumas obrigações
privadas do terreiro Ilê Axé Xangô Airá, em Santo André. Neste mesmo terreiro, tive a
oportunidade de participar de almoços de confraternização, jantares e festas de
aniversário, o que me rendeu um material etnográfico rico sobre a história de vida das
pessoas, além de me esclarecer muitas dúvidas que nos dias de rituais não tinha a
oportunidade de perguntar. Fui convidado a ajudar a organizar algumas festas, buscar
flores, comidas, limpar o terreiro e outras atividades “menores” e esse período foi

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igualmente frutífero para compreender alguns processos e conversar mais
descontraidamente com os filhos de santo.

Durante a pesquisa visitei outros terreiros e com mais frequência o Ilê Axé Ogunjá, em
Juquitiba, no interior de São Paulo, comandado por Pai Cristiano de Ogum. O terreiro,
apesar de sua localização, é frequentado apenas por pessoas de São Paulo e sua região
metropolitana, já que na época em que o conheci, estava recentemente instalado ali,
vindo de Osasco, também na Grande São Paulo. Ali tive a oportunidade de assistir a
algumas festas e conversar com filhos de santo por diversas vezes. Alguns relatos
poderão estar presentes na etnografia para efeito de comparação. No Ilê Axé Ogunjá
participei de rituais reservados devido á distância. Com efeito, por ser no interior e eu ir
de carona, não teria como voltar antes dos filhos de santo que me levavam, assim assisti
a alguns rituais privados. Em duas saídas de iaô – primeiro ritual público de um
iniciado, quando seu orixá se apresenta para aqueles que não são filhos de santo – pude
conversar com pais de santo mais velhos que Pai Cristiano trazia da Bahia para ajuda-
lo.

Ao longo desse período, tive ainda acesso a muitos filhos de santo de outros terreiros e
visitei algumas outras casas de candomblé, além de compartilhar experiências com
outros pesquisadores das chamadas religiões afro. Alguns relatos podem ser igualmente
úteis para a compreensão do candomblé nos contextos urbanos e para exemplificar a
relação dos candomblés têm entre si, que tende a apresentar conflitos que serão um
elemento importante em minha análise.

No primeiro capítulo “O problema e o método” faço uma contextualização da escolha


teórica e metodológica com a apresentação dos conceitos demartinianos e a
possibilidade de atualização desses postulados. Articulo as ideias de De Martino com
autores que tratam da relação do homem com a natureza, como Isabelle Stengers e Ilya
Prigogine, e trago as ideias de Maria Rita Kehl, Arjun Appadurai, Mar Augé, Ulrich
Beck, Anthony Giddens para validar a atualidade do debate inaugurado por De Martino.

No segundo capítulo “A análise”, realizo uma interpretação do candomblé a partir dos


pressupostos apresentados e introduzo as ideias de outros autores que pensaram o
candomblé, como Márcio Goldman, Míriam Rabelo e Rosa Maria Susanna Barbara.
Apresento, neste capítulo, uma esforço de introduzir uma outra possibilidade de
articulação com o autor Tim Ingold.

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Capítulo 1: O problema e o método

1.1 A propósito de “religião”

A hipótese de que a violência e o caos podem fazer parte da “experiência religiosa” foi
explorada por José Jorge de Carvalho em seu estudo sobre o culto da Jurema no Recife.
Carvalho compara a desordem que identifica no culto da Jurema com os cultos
dionisíacos gregos com o argumento de que o caos é gerador da ordem. No momento do
caos ritual surge a oportunidade de criar-se, recriar-se, reinventar-se e recolocar-se no
mundo.

Embora enverede por outros caminhos, ele traz uma importante reflexão para a presente
pesquisa. A ideia de que a homem religioso seria aquele que foi da desordem à ordem,
da maldade à bondade, da violência à paz (Carvalho, 2003:87) deve ser prontamente
descartada. Neste estudo, defenderei a ideia de controle. Esta ideia me parece adequada
porque admite a recorrência das crises, apesar de não descartar a cura compreendida
como solução definitiva.

“Por trás das concepções clássicas substantivas do campo religioso, concebido


como terreno do absoluto, do sublime, está implícita uma visão moralizante da
experiência religioso, tida como boa, pacífica, harmônica, geradora de ordem”
(Carvalho, 2003:87)

A apropriação acrítica de conceitos como “religião”, “transcendência”, “fé”,


“sobrenatural”, etc. vem sendo discutida por uma série de autores, dos quais uma
parcela significativa aponta para um ponto comum: a construção histórica das
categorias. Por este caminho seguem autores que tratam da religião com o objeto direto
de suas pesquisas, como Talal Asad, José Casanova, Paula Montero, Cristina Pompa,
Adone Agnolin, Patrícia Birman, Regina Novaes, Silvia Mancini, George Saunders,
somente para citar alguns. Outros, como Isabelle Stengers, Ilya Prigogine, Bruno Latour
e Tobie Nathan, têm a religião como objeto colateral de pesquisa, mas constituem-se
como grandes contribuições para esta reflexão.

Como bem nos mostra Asad, a visão de que a religião da Idade Média teria a mesma
essência que tem hoje é falsa e nos levaria a ter que definir a religião como um

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fenômeno trans-histórico e transcultural. O que a história nos mostra, no entanto, é que
a religião muda, não é algo imutável e estático. Asad reforça seu argumento colocando
que as pré-condições e os efeitos socialmente identificáveis daquilo que era considerado
religião na época cristã medieval são diferentes do que chamamos religião na sociedade
moderna (Asad, 1993). Desse modo, a leitura de qualquer dos fenômenos que
chamamos religião deve ser historicamente localizado para compreendermos em que
momento as práticas se legitimam sob a categoria de religião.

A religião é para a maior parte dos pesquisadores um “a priori do pensamento social”,


como coloca Paula Montero, mas tratar-se-ia, na verdade, de “uma representação
resultante de um processo histórico de longa duração centrado no cristianismo e suas
mutações” (Montero, 2010:259)

Retomo aqui o argumento de que o conceito disseminado de religião enquanto universal


remete à tradição ocidental cristã, especificamente à Igreja Católica dominante na
Europa onde nasceu a antropologia e de onde saíram o grande número de viajantes e
etnógrafos, muitos deles missionários, responsáveis por catequizar os nativos.

“Essa aspiração universal, constatada no nível etnológico desde o início da


antropologia como ciência, seja no campo, seja na literatura, é na verdade um
construto intelectual de uma ciência que acabou herdando categorias construídas
pelo Ocidente cristão e utilizadas na conceptualização das alteridades étnicas
com que ele vinha tendo contato, principalmente pela obra dos missionários, os
primeiros a fazer uma “história comparada” das religiões. Vale lembrar que os
relatos missionários, bem como as elaborações conceituais feitas a partir deles
(Las Casas, Acosta, Lafiteau) foram as fontes principais da etnologia “de
gabinete” em seu início.” (Pompa, 2006:114)

Questionar a categoria de religião é um exercício recente e pode apontar para caminhos


frutíferos para a compreensão da complexa sociedade contemporânea. A antropologia
viciou-se na busca da compreensão de diversos fenômenos por meio de uma chave
metodológica e interpretativa comum. Tradicionalmente nas ciências sociais, a religião
não é apenas um campo empírico privilegiado de investigação, mas, antes, um
fundamento epistemológico das disciplinas:

“Evocam-se imediatamente a efervescência religiosa como celebração do


próprio social e as categorias religiosas de entendimento de Durkheim, as formas

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de religião como diferencial evolutivo na definição dos estágios culturais, de
Tylor e, naturalmente, o conceito de secularização de Weber, fundamento da
modernidade, como distinção irreversível entre religioso e civil. Ora, é
justamente essa distinção, conquista histórica do ocidente moderno, o
pressuposto epistemológico das pesquisas sobre religião, até nossos dias, em que
raramente há problematização histórica (ou, desconstrução, como preferem
alguns), dos binômios sagrado-profano, público-privado, religioso-civil, tão
frequentemente utilizados ambiguamente, como categorias analíticas e como
realidades empíricas anteriores à análise.” (Pompa, 2012:159)

Até mesmo a perspectiva simbólica de Clifford Geertz, que exerceu grande influência,
principalmente a partir da metade dos anos 80, nas pesquisas voltadas para a
compreensão do sentido atribuído aos símbolos religiosos pelos próprios atores sociais,
não chega a questionar, todavia, o próprio conceito de religião (Ibid.).

O antropólogo Talal Asad, preocupado com a apropriação e aplicação descuidada do


termo religião pela antropologia, realiza uma minuciosa análise do trabalho de Geertz
em que critica o lugar da religião na pesquisa social. Mais do que uma crítica ao autor
em questão, trata-se da crítica à universalização da categoria.

“A insistência na tese de que a religião teria uma essência autônoma – que não
poderia ser confundida com a essência da ciência, da política ou do senso
comum – convida-nos, contudo, a definir a religião (assim como qualquer
essência) como um fenômeno trans-histórico e transcultural.” (Asad, 2010:264)

Para Asad, a história é chave para a compreensão do uso da categoria “religião” e sua
apropriação pela antropologia. Sendo o próprio termo fruto de uma construção histórica,
ele não poderia ser universalizado, embora assim pretendesse Geertz.

“O meu argumento é que não pode haver uma definição universal de religião,
não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são
historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto
histórico de processos discursivos.” (Asad, 2010:264)

Esta perspectiva tinha sido elaborada, bem antes de Geertz, por uma corrente de
pensamento pouco conhecida no Brasil: a chamada Escola Italiana de História das
Religioes. Esta dissertação é um esforço teórico-metodológico analisar o candomblé de
São Paulo à luz da teoria forjada por um dos expoentes desta corrente: o antropólogo e
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historiador das religiões Ernesto De Martino. De modo inevitavelmente resumido e
interessado, apresentarei a seguir as linhas gerais desta linha de pesquisa.

A “Escola Italiana de História das Religiões” aponta para o debate entre história e
religião como cerne dos pressupostos teórico-metodológicos desses autores. Os autores
dessa corrente, como aponta Agnolin, partem de uma crítica à vertente sistemática de
Müller, Tylor e Durkheim, e à fenomenologia de Otto e Eliade.

“Para delinear as precípuas características desta última, isto é, as próprias


tendências historiográficas peculiarmente italianas, quem entre os nossos
historiadores falou, em primeiro lugar, em “escola romana de História das
Religiões” foi Angelo Brelich, que a denotou enquanto crescida ao redor de um
centro referencial (o Instituto di Studi Storico-Religiosi) da Universidade La
Sapienza, e de um nome, Raffaele Pettazzoni, o fundador dessa perspectiva
historicista com relação à análise (comparativa) das religiões” (Agnolin,
2013:54)

Cabe a Raffaelle Pettazzoni a tarefa de inaugurar esta corrente com o pressuposto “cada
phainomenon é um genomenon”:

“formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade, queria destacar


como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetificação – é possível
re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-
objetizá-lo””. (Agnolin, 2008: 21).

A perspectiva de Pettazzoni, em oposição à fenomenologia, foi a base desta corrente de


pensamento, como coloca Pompa.

"O proposito de Pettazzoni foi sempre uma conciliação entre historicismo (que
na Itália teoricamente recusava, com Benedetto Croce, a autonomia categorial do
religioso) e fenomenologia, à qual é estranho o conceito de historização dos
fenômenos religiosos, de devir." (Pompa, 1995:52-53)

Agnolin, herdeiro desta tradição, assim como Pompa e Mancini, aponta a perspectiva
histórica como alternativa à armadilha de analisar a religião a partir de uma categoria
universal e, ao mesmo tempo, localizada.

“O fato é que, se a religião pode ser analisada segundo diferentes perspectivas


(filosófica, teológica, psicológica, etc.), sendo, todavia, a cultura o objeto

19
específico e limitativo do próprio historiador, a partir do momento em que a
religião é objeto de pesquisa histórica não pode ser posta de lado sua observação
em função de uma determinada cultura.” (Agnolin, 2008:22)

Somente a partir deste ponto de vista é possível realizar um estudo comparativo das
religiões sem que este resulte em uma análise universalizante das categorias.

“Esta preciosa ferramenta metodológica, enfim, constitui a comparação


histórica, não enquanto uma comparação horizontal estéril dos fenômenos
culturais dados, mas enquanto uma comparação de processos históricos: isto
significa que não se trata de uma comparação dedicada a nivelar e reduzir
“fenômenos religiosos”, mas, ao contrário, de um instrumento comparativo
destinado a diferenciar e a determinar as peculiaridades precípuas de cada
processo histórico (que só a comparação pode destacar), para entender também,
além das texturas fundamentais comuns, as não repetíveis soluções criativas
concretas, historicamente realizadas.” (Agnolin, 2008:25)

Neste contexto, Ernesto De Martino desenvolve seu pensamento e torna-se o mais


famoso (Agnolin, 2013: 68) expoente dessa escola. Pouco conhecido no Brasil, De
Martino é autor de uma extensa bibliografia, que recentemente vem sendo retomada em
artigos, principalmente europeus, devida à sua grande conexão com pensadores
contemporâneos, pois, como tentarei demonstrar ao longo deste texto, ele anuncia uma
série de pressupostos que só recentemente estão sendo trazidos ao debate.

A obra de Ernesto De Martino não foi traduzida para o português e poucos


pesquisadores o conhecem no Brasil. Em outros países, a obra do italiano vem sendo
debatida e considerada, tendo sido traduzido para o alemão, francês, espanhol – em
edições espanholas e argentinas, e inglês – nos Estados Unidos. Suas ideias vêm sendo
retomadas e postas com destaque no debate por pesquisadores de diversos países,
ocupados em compreender os “movimentos religiosos” do mundo contemporâneo.

A proposta de De Martino é encarar a religião como uma técnica, no sentido


Heidegeriano, para garantir a presença. O conceito de Presença foi elaborado pelo
italiano a partir do Dasein do filósofo alemão. O “estar-aí” no mundo, conforme
traduzido do italiano esserci nel mondo por Cristina Pompa (1998), é para De Martino a
capacidade do homem de reconhecer-se no mundo.

20
“Naquilo que o autor (De Martino) chama de “mundo mágico”, isto é, nas
sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo é uma realidade
a ser (constantemente) (re)construída. A simbologia mítico-ritual é a técnica
protetora contra a ameaça suprema de não”ser/estar no mundo” (possibilidade
sempre aberta e contra a qual se constitui a ação protetora da simbologia mítico-
ritual): é ela, portanto, que funda a presença do homem no mundo e seu
constante esforço para reafirmar essa sua realidade” (Agnolin, 2013:71)

A contribuição de De Martino é particularmente fértil para a antropologia, no sentido


em que o autor realiza uma etnografia interpretativa da prática ritual.

“Levando em consideração essa preciosa herança de De Martino para a postura


interpretativista da Antropologia contemporânea – e tendo em vista seu
desenvolvimento com relação a quanto dissemos anteriormente a respeito desse
rito, isto é, como da problemática tradicional, relida segundo essa nova
perspectiva, surge essa nova postura intelectual e metodológica -, nós a
encontramos, de fato, já implícita e ricamente delineada na primeira obra de
nosso autor” (Agnolin, 2013: 73)

1.2 Tarantismo e candomblé em perspectiva

Ernesto De Martino publicou em 1956 o livro La Terra del Rimorso1 dedicado à análise
do tarantismo da Puglia, no sul da Itália. O tarantismo é um conjunto simbólico mítico-
ritual, como dito pelo próprio autor, uma “religião menor” que existiu por alguns
séculos naquela região e até meados do século XX conservava certos resquícios que
puderam ser observados por ele. O tarantismo de forma bastante resumida consiste na
cura coreico-musical da possessão que resulta da “mordida da aranha” em camponeses.
Depois de “mordidos”, os camponeses passam a adotar um comportamento alterado e só
podem ser curados com os rituais de músicas e danças específicas.

“Fenômeno “histérico convulsivo” que, preparado e acompanhado por danças


fortemente rítmicas, com base em crenças difundidas na área mediterrânea desde

1
O título do livro baseia-se no duplo sentido da palavra italiana, “rimorso”, que pode significar tanto “re-
mordida” (da tarântula), seja “remorso”. O “remorso”, no caso, é, para o autor, tanto o sentimento de
culpa do afetado pela crise psíquica (o “mordido”), quanto o remorso do intelectual de esquerda, qual
ele era, frente ao processo de opressão social e política das classes asubalternas do suul da Itália.

21
a Antiguidade, teria sido provocado pela picada de aranhas (as tarântulas);
fenômeno ainda presente no Sul da Itália na época em que o autor empreende
uma importante pesquisa etnográfica e histórico-religiosa a respeito” (Agnolin,
2013:77)

De Martino dedica todo o livro à descrição e análise do fenômeno. As pessoas que


sofriam a mordida entravam em um transe do qual a comunidade se apropriava para a
realização de um ritual que envolvia diversas pessoas, assim como ambientes
específico, roupas, objetos e música. Os comportamentos, no entanto, são distintos na
medida em que cada aranha tem uma personalidade particular, que exige uma música e
uma dança próprias para seu exorcismo.

A certa altura o autor sugere que a análise de cultos africanos de possessão deve ser
considerada, com certos limites, um fenômeno molecular, de modo que dele podem
derivar outras práticas como o tarantismo e outros cultos de estrutura semelhante, como
o candomblé no Brasil. A comparação com cultos africanos seria possível dada as
origens da cultura do sul da Itália que recebeu forte influência durante a expansão
Islâmica.

"Essa perspectiva é ainda mais justificada historicamente se o objeto de estudo é


o Tarantismo, porque esta não se refere apenas à história dos cultos orgiásticos e
iniciáticos da civilização clássica e aos paralelos africanos que, dentro de certos
limites, são próprios de civilizações proto-mediterrâneas, mas deve a sua
formação de fenômeno molecular identificado historicamente ao fato de que
durante a Idade Média a vida cultural da população costeira do sul da Itália foi
particularmente exposta - especialmente a partir da rápida expansão do Islã no
século VII – à influência plurissecular que podemos chamar genericamente de
afro-mediterrâneas "(De Martino, 1999: 196)2.

Tal enunciado já seria suficiente para justificar o estudo do candomblé brasileiro sob a
perspectiva demartiniana. O autor, no entanto, insere uma nova observação a respeito do
trabalho do historiado das religiões francês Henri Jeanmaire, sobre o tarantismo em
comparação com os cultos africanos, na qual sugere um paralelo com o candomblé.

2
Todas as citações de textos originais em italiano, espanhol, inglês e francês são traduções minhas.

22
“Ao que destacou Jeanmaire debemos somar a do mundo afro-americano (afro-
brasileiro, adro-cubano e afro-haitiano), onde se desenvolveram uns cultos de
estrutura afim com modalidades particulares e nomes diferentes (macumba,
candomblé, santería, vodú)” (De Martino, 1999:197)

De Martino aponta ainda o caminho para um estudo comparativo indicando algumas


semelhanças encontradas no trabalho de Jeanmaire entre o tarantismo e os cultos
africanos. Tais apontamentos servem ao mesmo tempo como facilitador e como
problema do presente estudo, já que o candomblé pensado por De Martino nos anos 40
e 50 ganhou novas características com o passar das décadas e peculiaridades fornecidas
pelas mudanças de contexto histórico.

“Nesta descrição global, necessariamente genérica, advertimos - postos os


importantes diferenciais – algumas afinidade notáveis com o tarantismo, como a
limitação do fenômeno ás classes populares, a ampla participação feminina, a
coexistência de formas superiores de vida religiosa (cristianismo, islamismo)
com as conseguintes combinações sincréticas, a terapia coreico-musical da crise,
a variedade de personagens e tendências do espirito possessor que retoma a
tarântula “libertina”, “tempestuosa” ou “triste e muda” do tarantismo, assim
como a relação entre cada espirito e o tipo de música e comportamento coreico
associado à sua manifestação” (De Martino, 1999: 199)

Há ainda outros aspectos acerca do tarantismo assinalados pelo autor que são passíveis
de comparação com o candomblé.

“Sem dúvida, no caso do tarantismo, a relação com o latrodectismo, a influência


da noção cristã da possessão diabólica e as confusões sincréticas com os santos
católicos, atenuaram consideravelmente a transformação da tarântula em um
autêntico “espirito protetor” como o bori sudanês ou o zar egípcio. Mas também
neste caso, sobretudo nas formas mais antigas do tarantismo, os diálogos e
negociações com a tarântula, os poderes de clarividência, o cenário agradável
do rito, o cuidado com que as mulheres, ao se aproximar do lugar cerimonial, se
submetiam a tabus de alimentação, faziam abstinência sexual e guardavam
dinheiro, apontam uma relação que não pode ser atribuída ao tema da “expulsão
do espirito maléfico”, e melhor se aproxima da “transformação dos fatores

23
depressivos” e a “normalização da crise” que destaca Jeanmaire como
características das práticas africanas” (De Martino, 1999: 199)

Nestes breves textos, De Martino fornece a chave para todo o estudo que se segue. Ao
analisar o candomblé paulista como uma prática que normaliza uma crise por meio de
uma técnica coreico-musical será possível traçar paralelos com o tarantismo e, mais
importante, com a teoria desenvolvida pelo autor a respeito do sistema mítico ritual
como técnica protetora da crise da presença. É importante frisar que, justamente na
linha com o pensamento demartiniano e da Escola italiana de História das Religiões, o
critério de comparabilidade não será analógico, em busca de semelhanças formais, e sim
histórico, em busca de especificidades histórico-culturais de realização de uma estrutura
ritual geral. Nesse sentido, espera-se também com o texto que segue, extrapolar a teoria
demartiniana de que a crise está diretamente relacionada ao que ele chama de “mundo
mágico”, um mundo fundamentalmente rural e “subalterno”, para usar o termo
gramsciano tão caro ao autor, e buscar identificá-la em um contexto urbano, como o
próprio autor apontou inicialmente em seu texto “Furore in Svezia”, publicado no
volume Furore, Simbolo, Valore de 1962, quando analisa grupos de jovens enfurecidos
em Estocolmo.

Para se apropriar das ideias demartinianas para observar o candomblé de modo


semelhante ao que ele utilizou para a análise do tarantismo, parece-me necessário
compreender de modo mais apurado as proximidades entre esses dois fenômenos.

De Martino entende o tarantismo testemunhado por ele na metade do século XX como


resquícios de uma prática que fora mais presente e importante. O candomblé de São
Paulo dos anos 2000 é uma prática pulsante, que não pode ser tratada como “resquício”
de algo maior, mas uma prática de resistência construída na história inicialmente pelos
escravos e negros libertos, que depois ganhou adeptos brancos e hoje é um ritual que
recebe pessoas de diversas origens sociais, econômicas e culturais, como será
demonstrado ao longo do texto. Ainda no prefácio de La Terra del Rimorso, De Martino
coloca de forma breve sua definição para o tarantismo.

“Trata-se de uma formação religiosa “menor”, sobretudo camponesa – ainda que


houve uma época em que também estiveram envolvidas classes mais elevadas -,
caracterizada pelo simbolismo da tarântula que morde e envenena, e da música,

24
da dança e das cores, que libertam dessa picada envenenada” (De Martino, 1999:
13)

O candomblé, assim como o tarantismo, é conhecido como uma religião que se utiliza
do simbolismo da música, da dança e das cores para realizar seus rituais. No candomblé,
a manifestação nas pessoas é creditada aos orixás, seres espirituais ligados às forças da
natureza. O simbolismo coreico-musical no candomblé busca uma conexão com o
orixá, assim como o tarantismo com a tarântula. O atarantado – pessoa em transe – tem
uma identificação com a tarântula, que é objeto e sujeito ao mesmo tempo. Assim como
na possessão do orixá em que o possuído é o próprio orixá.

O candomblé se desenvolveu e proliferou principalmente pelo Estado da Bahia e foi


objeto de estudo de Roger Bastide que publicou em 1958: O candomblé da Bahia. De lá
para cá, a participação de brancos nos rituais foi ampliada e atualmente o candomblé é
uma religião diversa daquela registrada pelo sociólogo francês.

Os terreiros do século XXI nas grandes metrópoles têm muitos de seus líderes brancos
de sobrenomes europeus e formação urbana. A presença desses pais de santo brancos e
oriundos de estratos da classe média e da burguesia na comunidade religiosa não
permite mais que se diga que o candomblé de São Paulo é negro e pobre. (Prandi,
1991:20). Parece-me crucial assinalar esta diferença logo em princípio, embora esta seja
consequência do caráter urbano do candomblé em relação ao caráter rural do tarantismo,
como será problematizado mais adiante.

"Assim, o candomblé paulista é provavelmente o mais heterogêneo do Brasil em


termos de configuração racial e classial. Isso se explica em parte pelo próprio
processo de inserção dessa religião na região para a qual as grandes contingentes
populacionais migraram a partir da década de sessenta, vindos de todas as partes
do país. Entre os muitos migrantes, chegaram também pais e mães de santo que
instalaram terreiros em vários pontos da capital, não só oferecendo seus serviços
mágicos, mas também iniciando pessoas, muitas delas tendo já passado pela
umbanda, então muito difundida entre a classe média paulista.

Recrutando seus adeptos entre os habitantes de São Paulo, o candomblé paulista


formará, então, uma inédita família de santo, com negros, brancos, japoneses,
turcos, judeus, professores, militares, domésticas etc. E as questões raciais e
classiais postas pela convivência das mais diferentes pessoas, grupos, estilos de

25
vida e visões de mundo imporão uma dinâmica específica ao candomblé desse
estado" (Silva & Amaral, 2003:99)

De Martino relata que seu entusiasmo pelo estudo do fenômeno foram fotos de
atarantadas na Capela de San Paolo di Galatina. Nas imagens, as mulheres “possuídas”
pela tarântula aparecem saltando na mesa do altar e repousando sobre a mesa
eucarística. Ele chama a atenção para a relação entre o tarantismo e o cristianismo.

“Estas simples reflexões sugeriam que por trás dos excêntricos personagens das
fotografias havia uma história substancial, uma história que apontava para
algum onde, quando e como de certas limitações do processo de expansão da
Civilização Cristã” (De Martino, 1999:31)

Verger dedicou-se de forma mais breve à relação do candomblé com o catolicismo. Ele
relata que todos os negros eram batizados quando chegavam ao Brasil como escravos e
recebiam catequese. Apesar disso, segundo Verger, esses negros permaneciam ligados
às suas antigas práticas rituais e crenças. Ele conta ainda que quando questionados sobre
o que significam aqueles cantos e danças por seus senhores respondiam que ao seu
modo e em sua língua adoravam São Jerônimo, Santa Bárbara ou o Senhor do Bonfim.

“É que cada divindade africana havia sido assimilada aos santos e virgens da
religião católica. Foi assim que, ao abrigo de um aparente sincretismo, as antigas
tradições mantiveram-se através do tempo” (Verger, 1999:23-24)

Atualmente não se veem mais imagens de santos católicos nos terreiros de candomblé
com a mesma frequência e os orixás são tratados por seus nomes originais na maioria
das casas. Um informante me contou durante a pesquisa que na Bahia, após o ritual de
iniciação no terreiro, o filho-de-santo precisava participar de uma missa. Tal tradição
nunca teve força no candomblé de São Paulo.

A questão do sincretismo é tema para uma vasta discussão na qual poderíamos evocar
toda uma bibliografia especializada no tema 3. Neste ponto, nos interessa saber que

3
A ideia do sincretismo no candomblé, inaugurado por Roger Bastide (1958) embora já estivesse
presente em Nina Rodrigues, veio se tornar um ponto de partida para um vasto número de autores que
se ocuparam no candomblé. Entre os estudos mais recentes, podemos citar Sérgio Ferreti (1995), que
realiza um estudo sobre o estado da arte da do sincretismo, no qual o considera uma condição sine
qua non para o campo. Pierre Sanchis (2001) afirma que o uso da categoria pode ser frutífero para
pensar as religiões afro-brasileiras, fazendo seu uso tanto como categoria analítica quanto dado.
Melvina Araújo (2011) critica a naturalização da categoria pelos cientistas sociais. A crítica de Araújo
é menos ao uso que a ausência da problematização da categoria ”sincretismo”, que oscila
permanentemente entre conceito e dado objetivo.
26
assim como indicado por De Martino sobre o tarantismo, o candomblé também contém
em sua história uma profunda relação com o cristianismo dominante. A respeito da
hegemonia e posição dominante do catolicismo na sociedade brasileira, Montero
observa que os estudos do catolicismo foram majoritariamente tema de estudo da
sociologia, mais preocupada com as instituições, enquanto os estudos afro-brasileiros
foram mais vezes objeto da antropologia, por sua vez com enfoque mais cultural.

“O catolicismo goza de uma dupla legitimidade: é uma religião tradicionalmente


percebida como expressão dos valores culturais da nação, e está organizada
institucionalmente na mesma escala do Estado, aparecendo muitas vezes como
seu contraponto. As religiões africanas, ao contrário, sempre representadas como
sobras de superstição e ignorância encapsuladas nas margens da sociedade não
mereciam senão o combate ideológico dos católicos (e dos sábios).” (Montero,
1999:340)

Montero coloca ainda uma importante questão a respeito do “modo tradicional” como as
religiões de matriz africana foram interpretadas. As questões políticas e sociais dessas
práticas foram sempre observadas do ponto de vista marxista.

“Em segundo lugar, pode-se observar que as questões da dominação política e da


exclusão social organizavam, em chave predominantemente marxista, o campo
reflexivo sobre o catolicismo, o tema das classes e da dominação propriamente
políticas estão totalmente ausentes dos estudos sobre os cultos afros” (Montero,
1999:341)

Oscar Calavia Saez postula que as religiões populares ou subalternas foram tratadas pela
literatura como uma versão empobrecida de cultos mais sofisticados. A respeito disso,
ele afirma que:

“A única alternativa real a esse paradigma não é mostrar a fluidez ou o


hibridismo do popular, mas postular que a religião popular é a religião normal,
não uma versão empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior
eficiência – algo que boa parte dos estudos sobre religião subalterna manifesta à
revelia do paradigma em que se desenvolvem” (Saez, 2009:201)

O candomblé, considerado uma religião popular ou subalterna, sustenta esta relação


com a igreja católica, como demonstra a história da prática, para poder coexistir na

27
sociedade. Como o culto “popular” aos santos católicos era permitido, o candomblé
disfarçou-se assim por muito tempo.

“Sabemos com Peter Brown (1980) que o que costumamos chamar de “popular”
no contexto cristão não deve ser visto em função de um contraste entre “povo” e
“elite”, mas de um conflito entre o clero letrado e as elites leigas, esse patriciado
que quer prestigiar sua genealogia com o culto dos santos, e que tem, de resto, os
meios para sufragá-lo: construir santuários, encomendar imagens, publicar
hagiografias, sufragar festas suntuosas. O que se opõe à religião dos santos é a
elaboração letrada (bíblica e doutrinária) de um setor dessa elite, o clero” (Saez,
2009:202)

Marcio Goldman observa a diversidade de influencias que compõem o candomblé ao


tentar defini-lo em um artigo de 2005 sobre a diversidade de ontologias presentes na
prática.

“Constituído, aparentemente, a partir do século XIX – ao menos tal qual como o


conhecemos hoje -, o candomblé inclui, também, em maior ou menor grau,
elementos de cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo
popular e do espiritismo de origem europeia. Pode-se observar, igualmente, uma
bem marcada diversidade entre os diferentes grupos de culto, diversidade ligada
à região da África de onde provém a maior parte do repertório de cada grupo,
assim como às modalidades e intensidades de suas conexões “sincréticas” com
outras tradições religiosas” (Goldman, 2005: 102-103)

De Martino se mostra novamente como uma possibilidade teórica inovadora no sentido


em que apresenta uma nova abordagem da participação das classes subalternas nessas
práticas. A esse respeito, Pompa introduziu uma parcela deste pensamento demartiniano
em seu trabalho sobre o Pau de Colher, movimento messiânico “rustico”, considerado
tão “marginal” pelas elites letradas do começo do século quanto o tarantismo e o
candomblé.

A abordagem do autor traz a atenção para a questão da “crise” que caracteriza a


possessão, tema central para o desenvolvimento desta pesquisa, e uma possível
interpretação a partir do plano psicopátológico para este estado alterado do corpo e da
mente, sem, no entanto, cair no redutivismo da “doença mental”.

28
“Por outro lado, a comparação entre o tarantismo e os cultos africanos como o
bori e o zar, e com os cultos afro-americanos conhecidos com os nomes de
macumba, candomblé, santería e vodu, também se reveste de um especial
interesse a partir de um outro ponto de vista porque estes cultos, assim como o
tarantismo, também tiveram que passar pela interpretação naturalista que os
“reduzia” à doença” (DE MARTINO, 1999:204)

A partir deste ponto me parece razoável que mergulhemos um pouco mais em


profundidade no pensamento demartiniano, para então seguir a análise do candomblé
como sistema mítico-ritual e técnica coreico-musical de cura da crise da presença, a
partir dos dados etnográficos.

1.3 Crise da presença

A noção de realidade condenda4 em De Martino proporciona uma conjuntura específica


para o aparecimento de crises. Viver em um mundo incerto e tomar consciência da
fragilidade de sua presença leva o homem a questões para as quais pode não haver
resposta e tal vulnerabilidade o deixa suscetível a crises existenciais. A noção de
presença dopensador italiano vem do Dasein de Heidegger, e também das leituras de
psiquiatria, chamadas por De Martino de “ciências da mente”, em Il Mondo Magico
(2004 [1948]).

Uma participação efêmera na história ameaçada pelo perene e misterioso devir atiça o
sujeito a questionar-se e, em alguns casos, desesperar-se diante do risco de não mais ser-
no-mundo. Nesses casos identificam-se os indícios da crise que pode resultar numa
perda ou alteração temporária da consciência.

De Martino procura investigar a fragilidade psíquica que essa situação gera no sujeito.
Deslocar-se do olhar sociológico e se munir de fontes das ciências da mente, como o
autor defende, pode resultar em uma interpretação mais rica das crises coletivas (De
Martino, 2004). Para fazer um retrato coletivo de uma crise que se resolve em um
horizonte meta-histórico comum, podemos compreender, de forma interessada e

4
Do latim condere, fundar: realidade não dada mas a ser fundada

29
abreviada, a gênese das crises individuais que se encontraram e se resolverão nas
técnicas sociais. Para isso, mais adiante, apresentarei as aproximações entre o postulado
demartiniano e a “Eficácia Simbólica” levistraussiana. Por meio do exorcismo do
“poder do negativo”, conforme o autor italiano descreve, a sociedade garante a presença
atuante na história.

A crise da presença, conforme define o autor, é uma incerteza existencial de estar no


mundo, de fazer parte da história, de estar inserido no curso dos acontecimentos e ter
participação neles. O ser em crise é alguém que põe em cheque sua presença, alguém
que está vulnerável a perdê-la no mundo e perder-se de si mesmo desse modo.

A relação do sujeito em crise com seu espaço e seu tempo são adversas no sentido em
que ele não pode viver o aqui e o agora, pois perde a relação com o passado e com o
futuro. O futuro se torna ameaça e o passado se perde em sua mente em processos
psíquicos de fragilidade.

Em um artigo de 1956, intitulado “Crisi della presenza e reintegrazione religiosa”, De


Martino já anunciava o argumento que defenderei aqui de que a depressão é um sintoma
desta crise existencial que ele chamou de crise da presença.

"Da mesma forma, a depressão melancólica, com os seus sentimentos de culpa e


monstruosas abjeção, contém uma forma inadequada de defesa interpretativa,
que se manifesta precisamente estes sentimentos. Esta experiência é, certamente,
fundada em uma impotência radical do ser-aí, mas tão pouco aberto a valores e
história que às vezes pode assumir a forma de um ciclo naturalista, isto é, uma
oscilação periódica entre depressão e mania (o chamado maníaco - psicose
depressiva). O caso limite de defesa inadequada é o bloqueado vontade de
estupor catatônico quando todos os conteúdos possíveis tornar-se perigoso e
cada momento se torna perigoso para a presença. Em seguida, tem-se a reação
patológica do bloco psíquico, ou a tentativa espasmódica de fazer-se prisioneiro
de um conteúdo particular. Para manter esta prisão, todas as mudanças impostas
do exterior são rejeitadas até o ponto de exaustão física, como em catalepsia, ou
repetidamente espelhado, como em ecolalia ou eco-mimetismo” (De Martino,
2012:436-437)

30
Tal argumentação nos permite a, talvez ousada, tarefa de atualizar a crise da presença
para a sociedade contemporânea. Tarefa que o próprio autor iniciou no livro Furore,
Simbolo, Valore de 1962 e em La Fine del Mondo”, compilado de rascunhos publicado
após sua morte, em 1977, no qual ele analisa os apocalipses culturais. No inicio de sua
obra, no entanto, De Martino, atribui esta crise, sobretudo a padrões de atraso de
desenvolvimento em relação ao mundo moderno. Em “Sud e Magia”, de 1959, o autor
caracteriza a crise na Lucania, região extremamente pobre do sul da itália, como devida
à precariedade de bens e condições básicas de vida, o que ele chamou de “regime
arcaico de existência” (De Martino, 1982:78). Neste mesmo texto sobre a magia no sul
da Itália, De Martino define de forma mais elaborada o conceito de “crise da presença”.

Para ele, a vida de um indivíduo na região da Lucania é marcada desde seu nascimento
até a morte por fatos negativos, como a preocupação de sua mãe com a mortalidade
infantil e suas experiências prévias com abortos espontâneos, por exemplo, que ele
sintetiza na poderosa expressão “poder do negativo”. A partir da história da região e o
drama existencial ali presente por todas as dificuldades de ordem socio-econômica, De
Martino identifica a relação entre a historia daquela sociedade e a fragilidade da
presença.

"Mais conclusivo torna-se o discurso analítico quando tentamos trazer o


significado psicológico de quanto indicamos como “poder do negativo” no
regime existencial lucano. Agora, este significado psicológico destaca um
negativo mais grave do que a falta de um bem particular: destaca o risco da
mesma presença individual se perder como o centro de decisão e escolha, e
naufrague em uma negação que afeta a própria possibilidade de qualquer
comportamento cultural" (De Martino, 1982:79)

Defensor de que a literatura psicanalítica poderia ajudar na interpretação das crises


culturalmente apropriadas pelas técnicas de resgate e proteção da presença que são, ao
mesmo tempo, individuais e coletivas, De Martino faz essa defesa ainda em Il Mondo
Magico, quando afirma que as ciências da mente nos fornecem as chaves para a
compreensão desses fenômenos. Essa bibliografia se faz presente em toda a obra
demartiniana, na qual o autor recorre em diversos momentos a Freud, mas também a
Jung (De Martino, 1977).

31
A psicanálise para De Martino é uma importante ferramenta para compreender a crise,
não a cura. O argumento demartiniano defende a ideia de se apoiar em uma literatura
psicanalítica para compreender a crise e os diversos estados psíquicos dos quais o rito se
apropria para promover a cura. Nesse sentido, a psicanálise ajuda a compreender a
relação dialógica que os ritos mantêm com a crise, conferindo sentido a ela. Essa
literatura não explica o rito, mas ajuda a compreender a “doença” para qual o
simbolismo mítico ritual constitui a cura.

A busca de soluções mágicas é, para o autor, o reflexo da instabilidade da vida na região


gerada pela falta de recursos e conexões históricas consistentes, como pertencer de fato
a um Estado-Nação. No horizonte mágico, a fragilidade daquele povo ganha sentido
encontra proteção contra o risco de não-ser-no-mundo.

"Em um regime de existência em que a força do negativo afeta o próprio centro


de positividade cultural, isto é, a presença enquanto energia operacional, mantém
valor e função o uso da potência técnica do homem, não no sentido profano de
produzir os bens materiais econômicos, ou os instrumentos materiais para um
melhor controle da natureza, mas no sentido de defesa do bem fundamental que
é a própria condição de participação, por mais estreita que seja, na vida cultural"
(De Martino, 1982:85)

A magia é, então, para De Martino uma técnica que protege a presença, criando
ritualmente condições de participação na vida sociocultural. O sujeito que está em vias
de perder essas capacidades – de se colocar socialmente – está em crise e ele mesmo, ou
algum de seus próximos procura a magia como forma de solução do apuro. Nesse
sentido, a presença, como já comentei anteriormente é coletivamente retomada. A magia
não tem por finalidade eliminar o risco do mundo, mas fortalecer a presença e dar
condições ao homem de ser-no-mundo, ainda que este mundo esteja em risco. Nesse
caso, os riscos seguem representando riscos. Esses perigos, no entanto, são suportados
pela presença mediante sua recuperação.

"Plano realístico e plano mágico da técnica não entram em contradição subjetiva


um com outro porque a magia não tem exatamente como objetivo, como a
técnica profana, a supressão deste ou daquele mal, mas a proteção da presença
contra o risco de a crise existencial frente à manifestação do negativo" (De
Martino, 1982:85)
32
A crise existencial provoca pelo risco do devir pede uma técnica resolutiva que dê conta
de alocar o devir num plano meta-histórico, para que ele se integre a uma sequência
tradicional de fatos “sagrados”. Desse modo, o devir histórico deixa de ser uma ameaça
desconhecida e torna-se uma ameaça conhecida e, portanto, passível de ser controlada.
É a de-historificação:

"Em primeiro lugar, o plano funda um horizonte representativo estável e


tradicionalizado no qual a variedade de riscos de uma possível crise individual
encontra o seu momento da parada, de configuração, de unificação e de
reintegração cultural. Ao mesmo tempo, o plano meta-histórico funciona como
lugar de "de-historificação" do devir, isto é, como um lugar no qual, por meio da
interação de modelos operacionais, pode ser recorrentemente reabsorvida a
proliferação histórica do acontecimento, e aqui amputado sua negatividade atual
e possível" (De Martino, 1982:85-86)

De Martino chama a possibilidade de estar na história como se aí não estivesse de de-


historificação. Por meio da repetição ritualística de um modelo de crise e solução do
tempo mítico, o sujeito e o grupo conseguem restabelecer-se enquanto presença no
mundo em um regime protegido, para usar o termo demartiniano.

“Nessas culturas, a simbologia religiosa permite, ocasional ou


institucionalmente, a de-historificação do devir, instaurando um regime
protegido em que é possível "estar na história como se aí não se estivesse".
Neste tempo, como que suspenso e sacralmente protegido, a execução do rito
reatualiza os tempos míticos dos primórdios em que tudo foi decidido. À perda
da presença, isto é, à alienação do ser, que o autor chama de "de-historificação
irrelativa", contrapõe-se uma "de-historificação institucional", fixada numa
ordem meta-histórica (mito), com a qual entra-se em contato através de uma
ordem meta-histórica de comportamentos (rito)” (Pompa, 1998: 195)

Na repetição do modelo mítico, a presença é replasmada na medida em que a crise se


torna história, ou seja, o sujeito vê na repetição ritual do mito sua crise já resolvida. A
de-historificação não é a suspensão da historicidade (Pompa, 1998), mas a atuação
histórica do mito em um regime protegido em que se pode passar da crise à cura.

Mancini observa que ao tomar a religião como dispositivo técnico – tema que será
abordado no capítulo 2 - entende-se como o rito “reprograma” sus objetos (Mancini,

33
2008:29). Esta reprogramação, como sugere Mancini, permite o sujeito passar de um
estado a outro, da doença à saúde, de um regime de expressão a outro.

“Em suma, a técnica da “de-historificação mítico-ritual”, que está no


núcleo da vida mágico-religiosa, se apresenta como uma aplicação específica e
institucionalizada d a utilização desta faculdade que o psiquismo humano tem de
funcionar sob diferentes registros da consciência e, consequentemente, de
dissociar voluntariamente a unidade do eu” (Mancini, 2008:30)

A presença em crise está relacionada à incerteza, mais que à insegurança. Incerteza no


sentido de que a certeza está mais ligada ao devir que a segurança, já que a presença
entre em colapso diante do risco potencial também e não apenas do risco real. A
possibilidade do risco, a ideia de uma ameaça é suficiente para colocar a mente (e o
corpo) em um estado de crise.

O plano meta-histórico permite então ao sujeito recuperar a presença em desordem e dar


sentido à crise. As formas precárias de vida ganham então um novo sentido, que pode
ser o mesmo de modo recuperado. Resta-nos aqui relembrar a reflexão sobre as formas
de vida no contexto urbano e sua precariedade. No momento ritualístico, que De
Martino chama de “regime protegido”, o sujeito encontra a possibilidade de viver sua
crise, performatizando-a, e seu resgate em um modo de vida temporário asilado.

Esse estado de crise se manifesta, principalmente, de maneira física. De Martino ilustra


diversos casos de perda ou dificuldade no controle dos movimentos, choro
descontrolado, silêncios, entre outras formas corporais de expressão da crise.

"Estar-aí no mundo, ou seja, manter-se como presença individual na sociedade e


na história, significa agir como potencial de decisão e escolha de acordo com os
valores, operando e re-operando constantemente a nunca definitiva separação da
mera vitalidade natural, e alcançando a vida cultural: a perda deste poder, o
enfraquecimento da capacidade interior para exercê-la constituem o risco radical
que, com relação à presença empenhada sem sucesso em resistir, se configura
com a experiência de ser agido por [essere-agito-da], onde o ser agido envolve
a totalidade da personalidade e da força operante que a funda e a mantém” (De
Martino, 1982: 87-88)

34
A crise se caracteriza por uma perda total ou parcial da capacidade de ação individual e
voluntária do sujeito. A pessoa em crise sente que o mundo age nela e não mais ela no
mundo, então passa a ser uma não-presença ou uma semipresença passiva, no sentido
em que não tem total controle de suas vontades e de suas ações corporais, respondendo
a estímulos externos.

"Na raiz da crise radical da presença encontra-se a incapacidade de colocar a


vida (il Vitale) em relação dialética com o ethos e logos, de modo que a vida,
neste contexo não-dialético, deixa de ser uma vida e uma paixão vital - que
conduz à civilização e à história – configurando-se como mero "sofrimento",
como a impulsividade, a representação parasitária, culpa inexorável, e assim por
diante. Este foi, se não observado, pelo menos vislumbrado por alguns
representantes da psiquiatria moderna" (De Martino,2012:437)

Especialmente em suas obras mais maduras, como Furore, Simbolo, Valore e La Fine
del Mondo – esta última, uma coletânea póstuma de rascunhos – a compreensão dos
fenômenos mágico religiosos, para além das interpretações sociológicas tradicionais,
com base em textos psicanalíticos são mais presentes.

Em Furore, Simbolo, Valore, o autor analisa um fenômeno sueco da década de 1960,


em que jovens se reuniam para noites de fúria coletiva que culminavam em atos de
violência. De Martino realiza a análise pela chave da falta de sentido da existência e o
risco de não-ser no mundo, como vinha desenvolvendo ao longo de sua obra. Os
ataques de violência coletiva, ou “o retorno ao caos”, como ele os chama, são
performances recorrentes nas sociedades arcaicas e do mundo antigo como forma de
dehistorificação do devir. Ao reproduzir o comportamento de um tempo mítico em que
o caos reinava e a partir dele nasceu a ordem, o mundo ordenado, os indivíduos
envolvidos conseguem resgatar a ordem, resgatar a presença. Para De Martino,
expressar a violência contida e descarregar uma certa frustração nesses atos, era o
correspondente não institucionalizado de rituais como os saturnalia romanos, por
exemplo. De Martino recorre ainda a Freud, no que diz respeito ao que chamou de
“instinto de morte”, uma tendência a acabar com a existência em momentos de crise.

"Este perigo é a angustiante sensação de ser tomado pela nostalgia do não-


humano, é o desejo de deixar apagar a luz da consciência vigilante e de destruir
o que, no homem e em torno do homem, testemunha em favor da humanidade e

35
da história. Somente após a Primeira Guerra Mundial, e em conexão com as
experiências psicológicas obtidas nesta primeira grande explosão de agressão no
mundo moderno, Freud teorizou um instinto de morte, tanto no sentido de uma
compulsão à repetição de um episódio traumático passado (como aconteceu na
psicose traumática de guerra em que o paciente tendia a repetir a cena terrível
com que tinha sido traumatizado), quanto no sentido de um impulso de
aniquilação voltado contra si mesmo, e, finalmente como uma verdadeira
agressão ao mundo exterior. Em certos episódios da história da vida familiar, a
inclinação para a destruição pode ser encorajada pela atitude hostil dos pais, pela
morte destes, por desmame traumático e várias frustrações relacionadas com a
vida: mas as diversas ocasiões históricas agem como tais apenas enquanto o
risco da angústia da história ameaça, de dentro, o esforço moral de cada
edificação cultural. " (De Martino, 1962:227)

Este artigo, já da fase mais madura do pesquisador, reflete uma preocupação desta
pesquisa que é transportar a análise construída em um ambiente rural, isolado, para o
contexto urbano e desenvolvido. A análise dos ataques de fúria dos jovens suecos, de
Estocolmo, capital daquele país, é um precedente relevante para validar a possibilidade
de reconhecer a crise da presença na cidade.

Segundo o autor, a civilização tem por papel controlar aquilo que Freud chamou de
“instinto de morte” e De Martino de “crise da presença”. A vida na cidade coloca o
sujeito em constante risco, como demonstraremos ao longo deste texto, e este tem a
tendência a suprimir sua presença, a perder o protagonismo de suas decisões para o
mundo. Quando a atividade do mundo exterior - e cabe aqui apenas lembrar que não
estamos falando apenas daquela natureza clássica, mas estamos falando das cidades, do
mundo controlado baseado em dispositivos de segurança, como mostra Foucault, por
exemplo – se desencontra da atividade do sujeito, há uma tendência de retorno ao caos,
ou seja, de retorno a um estado de incompletude. Esse estado de crise não seria um
retorno a um estágio comum de um “homem primitivo”, mas uma perda de controles,
controles que são adquiridos na história e ao longo dela.

"A etnologia e a história das religiões confirmar amplamente a tese de que uma
das funções fundamentais da civilização consiste no controle e na resolução de
que Freud chamou de "instinto de morte", isto é, a abdicação da pessoa como o

36
centro de decisão e escolha segundo valores, a tendência para aniquilar a
existência do que existe, a tentação cega de subversão e caos, a nostalgia do
nada" (De Martino, Ibidem).

De Martino concentra neste trecho o cerne do que venho argumentando: a sociedade usa
de técnicas para controlar o risco perene do homem de perder-se. Por isso, a literatura
psicanalítica deve ser incorporada pela antropologia, como já tem sido feito por alguns
autores, para dar conta de compreender o complexo emaranhado que compõe a vida
humana. A fragilidade psíquica se reflete em cada época por expressões distintas,
historicamente definidas. As técnicas e os mitos atualizam-se para proteger e resgatar a
presença do sujeito em cada tempo.

Naturalmente não sou o primeiro a assumir a empresa de utilizar os conceitos forjados


por De Martino na análise de outros fenômenos religiosos. Como exemplo, posso citar o
trabalho de George Saunders, com os pentecostais italianos. Saunders demonstra um
especial interesse pela crise da presença.

A atualização da crise da presença para o contexto urbano vem sendo tralhada por
Saunders amplamente. A noção de “ser absorvido pelo mundo” nas grandes cidades e
perder o controle sobre sua própria existência é um ponto de partida fundamental para
sua análise das conversões pentecostais. Ao registrar a história de vida dos
“convertidos”, Saunders busca nas falas os elementos que lhe permitem identificar a
crise da presença e investigar como as igrejas pentecostais atuam no sentido do resgate
da presença. Sua noção de história é especialmente interessante para a condução deste
texto, já que privilegia a atuação do indivíduo em sua construção.

“A crise de presença, além disso, implica a possível perda de um lugar na


história, já que a história é o trabalho de pensar, de agir, de sentir e, talvez,
acima de tudo, "distinguir-se" como seres humanos. A capacidade de distinguir
as categorias e os conteúdos da própria consciência é o alicerce de uma interação
dinâmica com o mundo, e a dialética entre "presença no mundo" e "mundo em
si" reflete sempre (e determina) a posição do indivíduo com respeito a uma
história que se desdobra” (SAUNDERS, 1995:332)

Saunders observa ainda algo que venho argumentando ao longo deste texto. A perda da
presença está relacionada a uma falta da capacidade em distinguir natureza e cultura, no
37
modo clássico de entendimento dessas categorias. A presença para De Martino é o
diálogo entre natureza e cultura, por isso dedicarei aqui algumas páginas à questão do
diálogo do homem com o mundo/natureza.

Para prosseguir com minha análise sobre como o candomblé de São Paulo pode ser
interpretado como uma técnica resolutiva e protetora da crise da presença no contexto
urbano contemporâneo, seguindo a perspectiva demartiniana de compreender o
fenômeno social coletivo considerando a influência das fragilidades psíquicas no
processo, gostaria de apresentar alguns argumentos da psicanalista Maria Rita Kehl que
em seu livro O tempo e o cão, de 2009, procura atualizar o que Freud chamou de mal
estar da civilização para o fenômeno que conhecemos hoje como depressão. Tal
apropriação é válida já que o conceito de “crise da presença” dialoga com outros autores
que o desconhecem e que a “cura da depressão” é um relato frequente entre os adeptos
do candomblé.

Em seu volume, Kehl trata de sua experiência de mais de vinte anos com pacientes
depressivos em análise e traz contribuições eficazes para o melhor entendimento do
comportamento psíquico no meio urbano.

Kehl analisa a atualidade das depressões a partir da hipótese de que “o homem


contemporâneo está particularmente sujeito a deprimir-se” (Kehl, 2009: 13-14) com
especial atenção para o fato de que o diagnóstico das depressões não é preciso e
provavelmente refere-se a uma melancolia (Ibid:14). Esta falta de precisão à qual se
refere Kehl abriu espaço para que eu pudesse realizar uma leitura interessada de seu
texto, buscando identificar nele características semelhantes às da crise da presença,
conforme elaborada por De Martino, que aponta para a ideia de melancolia.

A questão da velocidade das mudanças e a insegurança são abordadas pela psicanalista


como elementos chave para o aparecimento das depressões. Para Kehl, a relação entre
as depressões e a experiência do tempo é fundamental para compreender o fenômeno. A
experiência do tempo, segundo ela, se resume praticamente à velocidade no mundo
contemporâneo. Os depressivos “sofrem de um sentimento do tempo estagnado,
desajustados do tempo sôfrego do mundo capitalista” (Kehl, 2009:17). O desajuste em
relação ao tempo do mundo poderia ser descrito como um sentimento de não pertencer à
história.

38
Ao retomar brevemente a história da psicanálise, Kehl destaca a instabilidade do fim do
século XIX como um fator relevante.

“Entre os fatores presentes na origem da psicanálise, no fim do século XIX,


conta-se a perda das referências estáveis que, desde o feudalismo até antes do
período das revoluções burguesas, condicionavam o pertencimento dos
indivíduos ao meio social. As sociedades modernas, caracterizadas pela
mobilidade social e pela crescente liberdade nas escolhas individuais, tornaram
as condições da inclusão e as regras de convívio cada vez mais abstratas. A
complexidade das estruturas simbólicas, a partir dos primórdios do capitalismo,
tornou o capo do Outro inacessível ao saber (consciente) dos sujeitos sociais”
(Kehl, 2009:45)

A autora retoma ainda “A eficácia simbólica”, de Lévi-Strauss, e sua relação com a


psicanálise para demonstrar novamente a questão da recuperação do sujeito para o
tempo do mundo, assim como se aproxima, ainda que em outros termos, de De Martino
quando fala da dehistorificação do devir. Levi Strauss afirma que a função do mito é a
“procura do tempo perdido”, assim como o método psicanalítico. Voltaremos no final a
Lévi-Strauss e sua “eficácia simbólica”.

Para Kehl, a depressão, apesar de ser um fenômeno considerado individual está


intimamente ligada à conexão com o Outro, ou, melhor dizendo, com os Outros.

“Depressão é o nome contemporâneo para os sofrimentos decorrentes da perda


do lugar dos sujeitos junto à versão imaginária do Outro. O sofrimento
decorrente de tais perdas de lugar, no âmbito da vida pública (ou, pelo menos,
coletiva), atinge todas as certezas imaginárias que sustentam o sentimento de ser.
O aumento da incidência dos chamados “distúrbios depressivos”, desde as três
últimas décadas do século XX, indica que devemos tentar indagar o que as
depressões têm a nos dizer, a partir do lugar até então ocupado pelas antigas
manifestações da melancolia, como sintomas das formas contemporâneas do
mal-estar” (Kehl, 2009:49)

Quando Kehl se refere à perda das certezas imaginárias vai ao encontro da


argumentação demartiniana de que o mundo é uma realidade condenda. Os homens
estão em constante movimento de refação do próprio entorno onde vivem e nas

39
sociedades urbanas em que a ação do homem é sentida de forma mais direta, essa ideia
de mundo em construção é ainda mais evidente. Neste sentido, a literatura psicanalítica
nos ajuda a compreender que há diversos níveis de sutilezas que estimulam as ações
humanas de formas mais ou menos perceptíveis.

A sociedade impõe certos padrões aos quais o sujeito pode ter dificuldade em se
adequar, de modo que cria mecanismos de defesa para se proteger do risco de não ser. A
depressão, vista por Kehl como uma forma de melancolia performatizada é uma chave
interessante para compreender a crise da presença, ainda porque muitos nativos vão
descrever certas situações de melancolia e apatia, que De Martino chamaria
seguramente de crise da presença, como depressão.

“Analisar o aumento significativo das depressões como sintoma do mal-estar


social do século XXI significa dizer que o sofrimento dos depressivos funciona
como sinal de alarme contra aquilo que faz água na grande nau da sociedade
maníaca em que vivemos. Que muitas vezes as simples manifestações de tristeza
sejam entendidas (e medicadas) como depressões graves só faz confirmar essa
ideia. A tristeza, os desânimos, as simples manifestações da dor de viver
parecem intoleráveis em uma sociedade que aposta na euforia como valor
agregado a todos os pequenos bens em oferta no mercado” (Kehl, 2009:31)

Como vieram defendendo diversos autores, em uma sociedade com transformações tão
rápidas em que as pessoas são obrigadas a adquirir constantemente novos
conhecimentos e novas informações, a fragilidade psíquica pode estar mais evidente. A
ideia de um mundo em constante formação, transformação, é facilmente compreendida
quando pensamos que há poucas décadas a comunicação com pessoas entre diferentes
países era intermediada por cartas que demoravam até algumas semanas para chegar ao
seu destino. Hoje, podemos contatar pessoas por vídeo em outra parte do globo pelos
nossos telefones celulares. Os bancos criam novos mecanismos de segurança a cada dia
e a televisão, que tem hoje pouco mais de meio século já é completamente diferente
daquela primeira inventada, tanto em tecnologia como em linguagem. Já podemos
participar em programas interativos e fazer compras pelo controle remoto. O mundo de
hoje não é o mundo de dez anos atrás, a velocidade com que temos vivido as
transformações em nossa sociedade não no permite a ingenuidade de tomar o mundo
como dado.

40
A experiência de velocidade que temos vivido, segundo Kehl (2009:17) nos
desestabiliza do padrão em que somos condicionados. A experiência de um tempo mais
veloz nos enche de incertezas e deixa a sensação comumente proferida de que “não
acompanhamos a velocidade do mundo e dos fatos”. A respeito da segurança, que
trataremos ao longo deste texto, Kehl retoma uma conferência de Lacan na qual o
psicanalista chama a compreensão da frouxidão da consciência de paixões de
segurança. Uma paixão que viria ela mesma produzir o seu oposto, uma ameaça à paz
social.

Para a autora, a paixão de segurança proposta por Lacan aproxima-se “da abordagem
freudiana a respeito da segurança que a massa oferece aos que dela participam” (Kehl,
2009:289). Ideia absolutamente compatível com De Martino, leitor de Freud, quando
fala do rito como técnica de proteção individual e coletiva por meio da de-historificação
do devir.

“Ao identificar-se, dissolvido na multidão, com o ideal representado pelo líder, o


sujeito dispensa o julgamento e sua consciência e sente-se liberado das
exigências do supereu. O indivíduo que goza do “sentimento oceânico” de
pertencer à massa busca identificar-se com um líder que se apresente como
encarnação do ideal, situado como referência no eixo vertical da ordem social,
o eixo dito paterno” (Kehl, 2009:289)

O líder aqui poderia ser o xamã d’”A Eficácia Simbólica”, de Levi Strauss, ou o ritmista
que conduz o ritual do tarantismo, ou do pai-de-santo do candomblé. Lembro-me de
uma entrevista em que a filósofa suíça radicada no Brasil, Jeanne Marie Gangnebin diz
que o jovem ao conhecer o mundo das artes, da literatura, do cinema e ter contato com
os grandes clássicos percebe que não é louco já que compartilha das mesmas
inquietações dos grandes gênios, dos clássicos. Ainda mais quando esses artistas e
filósofos conseguem dar a essas angústias bonitas formas, o jovem se identifica e se
inspira. Essa sensação de pertencer a uma “tradição milenar” de pensar um mundo em
constante mudança proporciona a esse jovem o “sentimento oceânico” do qual fala
Kehl, de pertencer a algo maior e, de certo modo, mais relevante que sua
individualidade, ao mesmo tempo em que reforça o questionamento individual que leva
a um fortalecimento desta identidade. Encontramo-nos novamente com o argumento
demartiniano de que o sujeito resolve sua crise individual no coletivo.

41
Nesse sentido, a crise, assim como toda a vida individual, deve se enquadrar em um
padrão para ser socialmente aceita e que seu exorcismo seja bem sucedido. Uma crise
individual que não encontra um padrão coletivo coerente é entendida como um
transtorno, mas se essa crise se encontra em um padrão conhecido pelo grupo, seu
exorcismo é realizado para o resgate do indivíduo e do grupo. De certo modo, o que é
entendido aqui é uma necessidade de ordenar o mundo constantemente já que este está
em constantes mudanças, logo, em desordem. Construir o mundo, não o tomando como
dado, é organizar o caos recorrente em categorias conhecidas, ou ainda criando novas
categorias que deem conta do novo mundo ao redor.

Por meio da atualização do mito no rito, o grupo dá conta de abarcar os novos


problemas, a nova experiência de velocidade e resgatar a presença e a autonomia
histórica do indivíduo. A centralidade do movimento e da ação no candomblé nos dá a
chave para compreender como, de um lado, a depressão é um sintoma da crise
identificada e teorizada por De Martino e, por outro, o ritual é uma técnica protetora
contra o risco desta crise.

Apresento a seguir alguns elementos narfrativos e etnográficos para introduzir a


pesquisa na discussão que estou desenvolvendo.

1.4 O candomblé de Pai Pedro de Xangô

A família de Pedro frequentava esporadicamente um terreiro de umbanda em seu bairro.


Os pais dele com os seis filhos ainda pequenos vieram da Bahia para Santo André, na
Grande São Paulo, e ali conheceram o terreiro de Dona Lazara. Pedro e seu irmão Paulo
passaram a frequentar o terreiro assiduamente na adolescência até que se tornaram
filhos de santo e começaram seu desenvolvimento. Paulo continua no terreiro de
umbanda até hoje e conta que chegaram a matar aula em muitas ocasiões para
frequentar os trabalhos espirituais em dias de semana à noite. Pedro ficou por alguns
anos – sempre problemáticos em sua narrativa.

Antes de ir chegar ao terreiro de umbanda, Pedro teve passagens por igrejas evangélicas
e católica. Ele conta que sempre sentiu uma forte presença espiritual e precisava “se
entender” com isso. Pedro lembra que foram muitos os episódios em que passou mal
nos cultos, tendo crises de consciência e chegou a acordar diversas vezes no altar, ou
42
mesmo, do lado de fora da igreja. “Hoje eu sei que era o orixá que já me pegava naquela
época. Ele que me tirava da igreja”, afirma. Pedro relata ainda fortes crises de dor de
cabeça sem diagnóstico pela medicina tradicional.

Na narrativa de Pedro ficam evidentes elementos que antropólogos como Appadurai e


Augè colocam a respeito da relação do homem com o lugar, como será discutido mais à
frente. “Estar em seu lugar”, “ter um lugar”, “encontrar seu lugar” são elementos
centrais da narrativa dele e de muitos de seus filhos de santo. Por muitas ocasiões,
conversando sobre as mudanças de terreiros, os adeptos afirmavam que era preciso
encontrar seu lugar. Não por acaso, os terreiros são chamados informalmente de casa de
candomblé. Um filho deve encontrar sua casa, um lugar que o acolha e o faça sentir-se
parte. Na trajetória de Pedro, a busca por seu lugar começa ainda antes de frequentar o
terreiro de umbanda, como ele conta.

“Antes ainda da Dona Lazara, eu rodei em tudo quanto é lugar. Eu tinha isso.
Não sabia que era o santo me chamando, mas eu tinha que achar um lugar, que
achar alguma coisa. Fui em muita igreja evangélica e passava mal em todas,
tinha dores de cabeça todos os dias” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev.
2014)

Ao contar de sua saída do terreiro de Dona Lazara, Pedro lembra que fora avisado de
que ali não seria sua casa definitiva.

“O baiano (entidade) da mãe me disse: “Filho, aqui não é seu lugar. Você é bem-
vindo e pode voltar sempre, mas aqui não é seu lugar”. Eu fiquei perdido. Saí de
lá e fui continuar procurando. Daí, fui pro kardecismo. Fiquei num centro um
tempo. Mas não me adaptei. Um dia o Jerônimo Medonça – conhecido médium
kardecista tetraplégico e cego – foi dar uma palestra lá e na saída pegou a minha
mão e disse: “Pedro é pedra. O primeiro apóstolo do Senhor. Pedro, seu lugar
ainda não é aqui. Vai procurar o seu lugar. Não desista”. Foi então que fui parar
numa casa de candomblé, muito desconfiado. E descobri que era filho de
Xangô”. (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)

A saída da casa de umbanda não se deu nas melhores condições. Pedro diz que já não se
sentia mais tão bem lá, mas foi por conta de uma fofoca que acabou se afastando
definitivamente e continuou a procurar uma outra solução para sua crise espiritual.

43
Apesar de estar bem na casa de D. Lázara, ele não sentia que sua vida estava
completamente organizada.

A trajetória de Pedro no candomblé não finda os conflitos de sua trajetória de vida, mas
os ressignifica. A história de Pedro desde quando foi iniciado até o momento dessa
pesquisa não é uma história de resolução de crises, mas de controle, de acordo com a
ideia demartiniana de que o ritual é uma técnica para o controle da crise da presença.

Os relatos de Pedro até o momento em que encontra o candomblé são relatos de


angustia e melancolia. Ele conta como se sentia sozinho e deslocado, sem pertencer
plenamente aos grupos que frequentava. A entrada no candomblé foi em um terreiro em
Santo André, cidade do então futuro pai de santo. O pai de santo dele tinha ligações
com Mãe Cidália, uma importante ialorixá baiana, filha de Iroko, um orixá raro, e
conhecida no meio como a enciclopédia viva do candomblé. E foi depois de alguns anos
que Mãe Cidália convidou Pedro a abrir sua própria casa de candomblé.

“Quando a gente é um bom filho de santo, o pai de santo coloca confiança na


gente e os irmãos de santo crescem o olho porque gente de candomblé é igual
gente de qualquer lugar, viu. Eu fazia tudo lá na casa do meu pai de santo,
tocava o terreiro com mais liberdade que os irmãos mais velhos e Mãe Cidália,
era muito esperta e logo me disse “filho, o seu pai está te abusando, você tem
condições de abrir a sua casa”. Eu já estava mesmo tendo muitos problemas lá e
Mãe Cidália me acolheu. Eu tomei as minhas obrigações com ela e abri a minha
casa, já tem 20 anos isso” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)

A mudança de pai de santo é comum no candomblé. Quando o modo de tocar a casa de


um sacerdote desagrada o filho de santo, ou este desagrada o pai de santo, ele sai, ou é
expulso, e vai “tomar as obrigações” em outra casa. Não há regras absolutamente clara
que conduzem este processo. Há casos em que o novo sacerdote considera o tempo e as
obrigações já realizadas pelo iniciado em outra casa, em outros, o filho de santo pode
precisar começar tudo do zero, a exceção da feitura que raramente é realizada mais que
uma vez. “É grande o número de pessoas que mudam de um terreiro para outro em
busca de melhores condições, no seu entender, para cultuar suas divindades” (Vallado,
2010).

Quando Mãe Cidália convida Pedro a abrir a sua casa e, ao mesmo, tempo abandonar
seu pai de santo original, vemos claramente que o conflito não é evitado. Sequer

44
cogitam-se formas mais ou menos diplomáticas de tomar as decisões. Após a
confirmação dos búzios, as decisões são tomadas sem se preocupar com o conflito que
possam gerar. Pedro, mais de uma vez, disse que “o povo de santo não foge da luta”.

Pedro abriu então sua casa de candomblé em um espaço que ocupava cerca de um
quarto do terreno total da casa de sua família, atrás da casa de seu irmão, Sinval, que
havia construído no mesmo quintal.

No começo dos anos 2000, a Prefeitura de Santo André ordenou a demolição da casa do
irmão do babalorixá do terreiro Ilê Axé Xango Ayra, Pai Pedro de Xangô. Com a casa
seriam demolidos também os quartos de santo, já que as construções ficavam no mesmo
terreno. No terreno da casa herdada por ele e seus quatro irmãos ficava a casa dos pais,
onde hoje moram o irmão dela com a irmã, o cunhado e o sobrinho. No fundo da casa
construída pelo pai, fica a casa do sacerdote. Na outra lateral do terreno ficava a casa do
outro irmão e, atrás dela, o barracão - lugar onde se realizam as festas - e os quartos de
santo. A notícia da demolição foi uma surpresa para toda a família. A decisão foi
tomada com base no argumento de que a construção era irregular. A casa era lajeada e o
terreno ao lado pertence à empresa União Petroquímica para passagem de tubulação.

Com a demolição da casa, foram demolidos também os quartos de santo. Construir


novos cômodos era apenas uma parte do processo, já que havia uma série de rituais que
deveriam ser feitos para a “mudança” dos assentamentos. Nos quartos de santo ficam os
assentamentos de cada orixá, no candomblé isto é a porção física do orixá de cada filho
de santo que foi construído durante sua iniciação e outros santos “da casa” que não são
dos filhos de santo, mas do terreiro enquanto instituição. A demolição causou, com
todos esses processos, uma mudança radical do calendário da casa naquele ano. Pai
Pedro conta que muitas pessoas chegaram a sugerir que aquilo era um sinal de que ele
deveria fechar o terreiro. Ele relata ainda que:

“O candomblé carrega o ranço do navio negreiro, Mãe Cidália (referindo-se à


Mãe Cidália de Iroko, egbomi do Terreiro do Gantois, na Bahia, com quem
Pedro tomou suas obrigações e tornou-se seu filho-de-santo) sempre dizia isso.
No navio foram colocados negros de todo lado da África e eles eram inimigos
até, mas foram obrigados a conviver junto. Então essa história de que preto é
tudo amigo é mentira. Os escravos eram tudo unidos e tudo, isso é mentira.
Agora pensa, se eles unidos, dava pra terem feito a maior revolução se juntassem

45
todos. Mas não fizeram. A união era só na hora do candomblé porque um
precisava do outro. Era só na hora que precisava. Daí o povo falou na época que
eu não tinha dado amalá direito (comida de Xangô preparada toda quarta-feira
no terreiro), que tinha furado com alguma obrigação, que tinha feito isso e
aquilo errado. O povo fala. Por isso que eu não faço candomblé pra povo de
candomblé. Faço pro orixá, pros filhos de santo, pros amigos, pros clientes, mas
não fico agradando povo de santo. O terreiro foi pro chão e subiu de novo, mais
bonito e com mais axé” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)

Após a demolição, o barracão foi refeito com cobertura de telhas, que era permitido pela
prefeitura. Novos quartos de santo foram construídos na lateral direita do terreno e no
fundo. E o candomblé voltou a funcionar ali. Pai Pedro recorre à narrativa da guerra
para contar a história.

“Não sei o que os orixás queriam, mas queriam o melhor porque o terreiro está
aí firme e forte. O Sinval (irmão que teve a casa demolida) está na casa dele, tem
mais espaço, as coisas estão melhores do que antes. Foi uma batalha grande,
minha, da família, do axé (como às vezes se referem ao terreiro), dos filhos de
santo que ficaram comigo, de todo mundo. Mas a gente passou no teste
direitinho. Estamos de pé.” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, fev. 2014)

A narrativa de Pedro é marcada pela vontade do orixá. Quando ele afirma que o orixá o
tirava da igreja evangélica tomando seu corpo e sua consciência, ou quando diz que não
sabe qual era a intenção do orixá no episódio da demolição do terreiro. O protagonismo
do orixá nos episódios de crise são uma condição importante do relato dos adeptos.

Vagner Gonçalves da Silva destaca que muitos iniciados tiveram seu primeiro contato
com o orixá ao “bolar no santo”, um indício da necessidade da iniciação. Bolar no santo
é a manifestação do orixá quando a pessoa não foi iniciada e o orixá não foi assentado,
conforme os relatos de Pedro quando o orixá “o pegava”. Ele observa ainda que a
iniciação de fato depende do desejo da pessoa e de outros fatores:

“Todavia, a expressão do desejo do orixá não significa a sua satisfação


inconteste. A pessoa pode não querer iniciar-se ou, mesmo querendo, não reunir
as condições sociais e materiais necessárias. Por exemplo, a opção pode não ser
bem vista pela família; pode ser impossível dispor de tempo para isso,
principalmente para quem trabalha e/ou estuda. Além do mais, a iniciação tem

46
custos materiais consideráveis (roupas, assentamentos, animais para sacrifícios,
etc.) nem sempre compatíveis com a situação financeira da pessoa.
Idiossincrasias para assentar e cultuar determinados orixás podem complicar
ainda mais esse aspecto” (Silva, 1995: 123)

A decisão de iniciar-se pode levar um tempo indeterminado entre a manifestação da


vontade, da pessoa ou do orixá, e a realização dos rituais. O bolar no santo do
candomblé não é diferente do que De Martino chamou de “essere agito da”, ou seja, ser
agido por, quando a presença se fragiliza e dá lugar a uma presença outra que passa a
agir “como se” o sujeito ali não estivesse. A ação protagonizada pelo orixá, no caso do
candomblé, é uma condição para o sucesso dos rituais.

“A experiência de dominação pode chegar ao ponto de uma personalidade


aberrante, e em contraste com as normas aceitas pela comunidade, invade em
maior ou menor grau o comportamento: o sujeito não será mais agora
simplesmente um fascinado, mas um tomado, ou seja, um possuído ou um
maníaco, por exorcizar” (De Martino, 1982: 8-9)

A iniciação no candomblé e a experiência adquirida com o passar dos anos é justamente


para um melhor controle da possessão e não para sua cura, ou exorcismo. Ao contrário
das práticas descritas por De Martino, embora em “La Terra del Rimorso” ele trate do
controle da crise e não de sua solução definitiva com mais rigor, o candomblé não vê a
possessão como problema, senão como caminho resolutivo. Um ritual onde não há a
possessão não é considerado bem sucedido.

O pesquisador Paul Christopher Johnson, da Universidade de Chicago, publicou em


2002 os resultados de sua pesquisa sobre o segredo no candomblé. Para tanto, Johnson
passou por um ritual de feitura de cabeça, mas em sua iniciação, seu orixá não chegou a
“baixar”, ou seja, o ritual não foi bem sucedido. O próprio autor refere-se à sua
iniciação como “versão gringo” já que foi realizada em menos tempo que o determinado
porque ele não teria todos os dias disponíveis (Johnson, 2002).

A vulnerabilidade do sujeito para a possessão não é vista nestas práticas como fraqueza,
mas recurso indispensável para a condução do resgate da presença.

“O ser-agido-por enquanto experiência de desagregação da personalidade inclui,


como possível tentativa de defesa, a delimitação de um agente oculto, operante
num plano diferente do histórico” (De Martino, 1982:89)
47
Nas festas dos terreiros é comum observar visitantes que chegam ali pela primeira vez
para conhecer o candomblé e vivem uma crise, alguns chegando a assumir uma postura
corporal de determinado orixá. O fato é celebrado com fascínio e preocupação pelo pai
de santo. Ser possuído pelo orixá dentro do ritual é uma condição benéfica, fora dele, é
um descontrole, uma doença, como foi com o próprio pai de santo antes de sua
iniciação.

Em outros relatos, a manifestação do orixá e o cuidado com sua vontade, são igualmente
perceptíveis. Igualmente, é um traço importante dos relatos dos adeptos do candomblé o
“estar perdido” antes de encontrar a religião e o “encontra-se” após este processo.

A fim de ilustrar este processo que vai do “estar perdido” ao “encontrar-se”, separei
alguns trechos de relatos que Reginaldo Prandi reproduziu em seu livro Herdeiras do
Axé, de 1996, das entrevistas que fez com quatro mães de santo de candomblés de São
Paulo.

Mãe Manduê de Iansã conta que, apesar de nascida em um terreiro enquanto sua mãe
dava as obrigações, ela se afastou por um longo período do candomblé, em que viveu
situações de dificuldade.

“Fui presa, sofri, fiquei três meses na prisão, sofrendo. Aí que o moço, não sei
porque diabo, me deixou liberta, e eu fugi. Quando eu fugi para ir atrás da minha
família, me perdi, tudo isso, passei muita fome, não vou nem contar, passei
fome, comia coisas da lata do lixo” (Prandi, 1996:169)

O sofrimento que precede o encontro com a religião parece qualificar estes iniciados
que “já passaram por muita coisa”, “conhecem a dificuldade” – citando aqui palavras
que ouvi de muitos filhos de santo – e, por isso, sabem valorizar e compreender aqueles
que estão em uma situação de vulnerabilidade. Mãe Manduê conta que fazer o santo foi
a solução para seus descaminhos.

“Quando eu cheguei na casa da minha vó (que era mãe de santo), fui procurar
me cuidar, tratar de mim. Aí viram que eu estava precisando fazer o santo, e eu
com aquela ignorância, achando que era tudo bobagem” (Prandi, 1996:170)

Mãe Cidinha de Iansã ficou doente e mesmo depois de percorrer vários hospitais e
terreiros continuou sem um diagnóstico. Até que “virou no santo em casa”. As entidades
orientaram seu marido de que ela deveria abrir uma casa de umbanda, e assim fizeram.

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Depois de um ano o caboclo, entidade da mãe de santo, disse que ela deveria procurar
um terreiro de candomblé para iniciar-se.

Como o marido era contra matança, eles não foram para o candomblé e mãe Cidinha
começou a adoecer novamente. A mudança para o candomblé foi um assunto retomado
em inúmeras situações. Neste caso, observo o que já venho afirmando que o conflito
não é evitado quando este é considerado necessário.

“A gente estava falando agora sobre como se resolve esse conflito da mudança
da umbanda pro candomblé. Olha, o conflito eu senti logo a primeira vez nós
fomos dançar pro santo. Porque aí começou: passa mal uma pessoa, passa mal
outra. Porque você sabe, você chama um santo, os outros todos querem ver:
“Bom é minha vez, como é que fica?” Aí eu chamei elas todas, as filhas. E eu
estava muito doente na época. Eu disse assim: “Vocês querem fazer um
umbandomblé, ou vocês querem só umbanda? Eu quero que vocês decidam
agora”. Todo mundo levantou a mão e disse: “Eu prefiro uma mãe de santo do
candomblé viva, do que uma mãe de santo da umbanda morta”. Meu marido
levantou a mão e disse: “Eu quero umbanda”. Aí eu fiquei muito, bem dividida.
Eu disse assim pra ele: “Você é o esteio da minha casa, você me deu isso, você
me deu tudo o que eu tenho, você é meu braço direito. Só que eu não tenho
condições mais de viver na umbanda. Porque eu sinto que eu não tenho
condições de virar sem Iansã comandar”. (Prandi, 1996:180-181)

O caso de Mãe Cidinha demonstra como o conflito é interpretado como movimento,


fundamental na prática do candomblé. A cura das doenças pode não ser em absoluto
uma promessa de saúde plena, mas a boa condução da vida, para os adeptos, é ter os
problemas sob controle.

Mãe Sandra de Xangô, uma das entrevistadas por Prandi, também iniciou-se no
candomblé depois de um período de doença sem diagnóstico. Ela desmaiava e ficava
agressiva em qualquer lugar ou situação. Um amigo de sua irmã que indicou que ela
procurasse o terreiro onde foi iniciada. Depois de um médico ter dito a seu pai que ela
ficara louca e não tinha jeito, ela foi levada para o terreiro de sua mãe de santo e saiu de
lá raspada, ou seja, iniciada.

Paula Montero trabalha a noção de doença nos relatos dos adeptos da umbanda em seu
livro “Da doença à desordem: cura mágica na umbanda”, de modo substancialmente

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proveitoso para esta pesquisa. “Com efeito, no discurso dos adeptos, a categoria
“doença” oscila constantemente, ora designando distúrbios especificamente orgânicos,
ora remetendo a realidades mais abrangentes” (Montero, 1985:118).

Friso esta passagem porque a doença pode ser observada como um “segundo idioma”,
no sentido que Evans-Pritchard interpretou a bruxaria entre os Azande. Ou seja, os
adeptos compreendem que um distúrbio, um desajuste, que pode ser explicado como
doença, mas que significa algo mais subjetivo. As doenças que ninguém pode explicar
são razões comuns pelas quais as pessoas são levadas ao culto. Pai Pedro tinha crises de
perda de consciência, Mãe Sandra de Xangô “desmaiava”, assim como outros casos
aqui já postos e outros que estão por vir.

Há nos relatos dos adeptos do candomblé um traço fundamental: o desajuste. A busca


de Pedro por seu lugar no mundo demonstra um desconforto em adequar-se a certos
padrões que encontra seu equilíbrio na prática ritualística. Para seu estudo, Montero usa
a noção de desordem, preocupada com a cura mágica. Seguindo minha inspiração
metodológica demartiniana, usarei a crise como elemento condutor, já que me interesse
aqui a tese do controle e não a da cura definitiva. Bem como, defendo aqui que o
controle contempla fundamentalmente a performatização da crise em um ambiente
controlado/seguro.

As histórias de adesão aqui apresentadas demonstram inadequação ao entorno


caracterizadas por De Martino como “crise da presença”, trabalhada no item anterior, na
hipótese de que a depressão, como categoria, é uma das características pelas quais
podemos identificar a presença em risco.

1.5 Um mundo em movimento, um mundo em guerra

Antes de todo ritual do candomblé, honra-se Exú, o orixá mensageiro. Seja em


pequenas oferendas ofertadas pelos filhos de santo aos seus orixás pessoais, ou em
grandes festas, o primeiro comer é Exú. A centralidade de Exú no candomblé é
facilmente reconhecida em qualquer pesquisa sobre o tema. Exú é também o orixá que
mais causa controvérsia, tendo sido associado ao diabo ainda nos primeiros contatos dos
missionários cristãos com os iorubás na África (Prandi: 2011:21).

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Exú é o primeiro a ser agraciado porque ele é o orixá responsável pela comunicação e
do movimento. O movimento é parte essencial do ritual do candomblé. Nas festas, os
filhos de santo dançam para saudar os orixás e quando estes tomam o corpo de seus
filhos, dançam para saudá-los. As festas começam com o xirê, um ciclo de cantigas
tocadas e dançadas para todos os orixás, menos Exú que é saudado separadamente antes
do início da festa. Nos candomblés da nação Ketu, como é o caso dos exemplos que
trarei nesta pesquisa, são 16 orixás cultuados.

A coreografia de cada cantiga é um elemento importante e que deve ser seguida à risca.
No terreiro de Pai Pedro de Xangô é frequente que ele levante de sua cadeira, onde fica
na maior parte das festas e entre na roda de filhos de santo durante o xirê para corrigir
os passos e demonstrar o modo correto de se dançar.

Presenciei no fim de uma festa, Pai Pedro chamar uma filha de Iansã – orixá do vento –
e a equede –filhas de santo que não “viram no santo”, ou seja, não são possuídas pelos
orixás - que a acompanhava enquanto incorporada já que raramente os orixás dançam
sozinhos, para falar sobre o modo correto de Iansã dançar com as mãos mais próximas
ao corpo com gestos menos “arredondados”, como ela havia feito na hora da festa.
Durante a iniciação que dura vinte e um dias, uma das tarefas é ensinar o filho de santo
a dançar quando estiver com seu orixá.

No título “Danças de matriz africana – Antropologia do movimento”, Jorge Sabino e


Raul Lody dedicam algumas páginas à centralidade da dança no candomblé. Eles
observam que as danças comunicam, mas para além disso, legitimam o adepto e o orixá
pela performance do bem dançar. “Experimenta-se na pedagogia do sagrado, que é
formalizada na iniciação do iaô – noviço -, um amplo e complexo aprendizado para
diferentes temas, destacando-se o ensino das coreografias” (Sabino & Lody, 2011:55)

Há, segundo esses autores, uma razão histórica para que o candomblé tenha se
configurado em torno da dança. “Os africanos e seus descendentes, despojados de
qualquer referência material, contavam somente com o corpo e a memória, que traziam
como referências, revivendo e reativando identidades no contexto perverso da
escravidão no Brasil” (Sabino & Lody, 2011:79-80). No candomblé, assim como no
tarantismo apuliano, é a performance corporal que protagoniza o ritual. Sem o corpo
expressivo não há trabalho.

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A noção do corpo no candomblé é um ponto importante a ser compreendido. Como
observa a socióloga Rosamaria Barbara, o corpo é um instrumento de integração.

“No candomblé o corpo é percebido como algo flutuante, não é ligado a uma
lógica polarizada, é um corpo com a possibilidade de sentir, de dançar, etc., que
transforma a própria força como sua base, dinamizando as experiências e sua
própria existência e, principalmente, vivendo no mundo e não fora dele, como
nas religiões de salvação” (Barbara, 2002:65)

Aprender as danças, praticá-las e aprimorá-las é uma tarefa constante entre os adeptos,


mesmo nos momentos de brincadeira. Visitei diversas vezes ao longo da pesquisa o
terreiro Ilê Axé Ogunjá, do Pai Cristiano de Ogum, para assistir às festas e saídas de
iaô, que são a primeira aparição pública dos iniciados quando terminam os rituais
privados da feitura. Em uma saída, dormi no terreiro para assistir ao Panã, ritual
realizado no dia seguinte à saída que prepara o iaô para voltar às suas atividades de
rotina. Como a iniciação é considerada um renascimento, no panã, os recém-nascidos
filhos de santo reaprendem de forma lúdica os afazeres cotidianos como varrer uma
casa, amarrar sapatos, comer com talheres, entre outras atividades. O panã é
considerado um momento de descontração, leve, apesar de sua seriedade. O filho de
santo é devolvido à sua vida anterior, apesar de ter adquirido um novo status.

Pai Cristiano tem o hábito de convidar pais e mães de santo do terreiro do qual é filho,
na Bahia, para os rituais de feitura. Nesta ocasião, estavam ali duas mães de santo, um
pai de santo e um ogan – cargo de quem toca atabaque, também chamado de alabê -,
todos tratados com muita reverencia. Após o panã, que consiste em um ritual simples
em que os iaôs realizam as tarefas, ganham dinheiro das pessoas presentes e levam um
surra simbólica com um galho fino, há um período de descontração. O Ilê Axé Ogunjá
foi fundado em Osasco, na grande São Paulo, mas mudou-se para um sítio, em
Juquitiba. Nesta ocasião, após a cerimônia, fomos todos, pais e filhos de santo e
convidados, que neste dia éramos somente uma amiga do mestrado e eu, para a área
externa da casa onde são realizados os rituais e nos sentamos para comer petiscos e
tomar cerveja.

Nesta tarde, os Ogãs tocavam os itãs – cantigas em iorubá com as histórias de cada
orixá – e as mães de santo ensinava, ou ensaiavam, os filhos de santo com cada
coreografia. O clima era de descontração e brincadeira. Uma das mães de santo chegou

52
a me chamar para me ensinar as danças do meu orixá, que o pai de santo havia
enxergado num jogo de búzios. Não havia nesta tarde qualquer cobrança, obrigação ou
protocolo para orientar a atividade. Era um momento de confraternização. O ogã
convidado repetiu diversas vezes: “Isso era a brincadeira dos africanos. Nossos
antepassados faziam isso, bebiam, tocavam e dançavam para chegar na hora do xirê –
conjunto de danças para todos os orixás que dá início ás festas - e fazer bonito para o
orixá”.

Sabino e Lody afirmam que por meio desse tipo de brincadeira há uma transmissão de
“sentimento patrimonial” que fortalece os laços da comunidade.

“A brincadeira assume um dos mais notáveis lugares de socialização. É espaço


de prazer, de alegria, de tornar o ideal do sagrado mais próximo, mais
humanizado e mais íntimo, como acontece nos terreiros, onde são vivenciados
temas memoriais e de criação contemporânea. Não são rituais para aplacar, para
temer a Deus ou para apaziguar um Deus que se teme, mas para viver a
brincadeira de trocar, de partilhar do sagrado em outra dimensão, relativizando,
assim, o modelo cristão” (Sabino & Lody, 2011:104-105).

No candomblé, os movimentos extrapolam a dança. Antes de iniciar a festa, os filhos de


santo se abaixam e batem palmas num ritmo estabelecido. O gesto voltará a se repetir no
fim das festas e das obrigações demarcando seu início e seu fim. Durante o xirê, os
filhos de cada orixá saúdam seu “pai de cabeça” – como é chamado o orixá ao qual
pertence cada filho – com um gesto chamado “bater cabeça”. Bater cabeça consistes em
prostrar-se no chão e, muitas vezes, bater a testa contra o piso. Há movimentos de bater
cabeça que variam de acordo com a hierarquia. Os iaôs – como são chamados os filhos
de santo iniciados até a obrigação de sete anos – e os abiãs – filhos de santo que não
passaram pela iniciação, também chamada “feitura de cabeça” – devem bater cabeça
para o meio do terreiro, onde há um assentamento no chão, para os atabaques, para a
porta do terreiro e para o pai de santo. Depois disso, pedem a benção aos irmãos de
santo mais velhos. Os mais velhos, que já passaram pela obrigação de sete anos, não
precisam prostrar-se, mas curvam-se e normalmente tocam o chão e depois a lateral da
cabeça nas mesmas posições dos outros. O meio do terreiro, os atabaques, a porta e o
pai de santo.

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Os movimentos devem ser sincronizados para que os outros filhos sigam dançando. Há
uma coreografia para dar espaço para que os filhos batam cabeça enquanto os que estão
em pé continuam dançando parados em seus lugares.

Quando os orixás tomam o corpo de seus filhos, os movimentos são igualmente


indicadores do bom andamento do ritual. As equedes tiram o pano que cobre a cabeça
das mulheres assim que o santo chega, indicado por um movimento abrupto do corpo
como quem leva um choque elétrico, e mudam a posição do pano que os homens levam
na cintura, amarrando na altura do peito. Somente então, os santos podem ser levados
para serem vestidos, quando é o caso.

A antropologia tem se ocupado do corpo enquanto construção social desde, pelo menos,
“As Técnicas do Corpo” (1935) e “A Expressão Obrigatória dos Sentimentos” (1921) ,
de Mauss. Em seu livro mais recente, “Antropologia do Corpo e Modernidade” (Vozes,
2011), David Le Breton remonta a tradição antropológica desses estudos e identifica
como a relação com o corpo nas culturas ocidentais passou em uma “polissemia
corporal”.

Le Breton, em “A Sociologia do Corpo”, atenta para a importante relação entre o corpo,


a identidade e as visões de mundo. Relações que ao longo desta pesquisa tornam-se
evidentes, sobretudo quando pontuarei algumas diferenças entre os rituais internos e
públicos do candomblé e como o corpo é representado nessas ocasiões.

“As representações do corpo são representações da pessoa. Quando mostramos o


que faz o homem, os limites, a relação com a natureza ou com os outros,
revelamos o que faz a carne. As representações da pessoa e aquelas, corolários,
do corpo estão sempre inseridos nas visões de mundo das diferentes
comunidades humanas. O corpo parece explicar-se a si mesmo, mas nada é mais
enganos. O corpo é socialmente construído, tanto nas suas ações sobre a cena
coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento, ou nas relações que
mantém com o homem que encarna. A caracterização do corpo, longe de ser
unanimidade nas sociedades humanas, revela-se surpreendentemente difícil e
suscita várias questões epistemológicas. O corpo é uma falsa evidência, não é
um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural” (Le
Breton, 2007:26)

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Observar a construção do corpo e seus movimentos é crucial para a compreensão do
candomblé sob diversos aspectos. A técnica corporal é o meio pelo qual se acessa todo o
arsenal mítico e dá sentido ao ritual. As danças dos orixás contam suas histórias,
demonstram suas qualidades e personalidade. Le Breton observa que a concepção
moderna de corpo nas sociedades ocidentais contribui para a ideia de que o homem está
separado do cosmo. No candomblé observamos o corpo como conexão, já que é nele
que se manifestam as entidades não-humanas, além de sua relação com a terra, a
comida, a água, como explorarei em detalhes mais à frente.

O corpo no candomblé está intimamente ligado ao ritual e, desse modo, ao cosmo.


Breton observa que há sociedades em que o corpo não é isolado do homem. O homem e
o corpo são uma mesma coisa inserida em uma complexa rede de correspondências e
relações com tudo o que o cerca. No candomblé é também a via de comunicação com o
orixá, não somente na possessão.

“Em sociedades que permanecem relativamente tradicionais e comunitárias, o


“corpo” é o elemento de ligação da energia coletiva e, através dele, cada homem
é incluído no seio do grupo. Ao contrário, em sociedades individualistas, o corpo
é o elemento que interrompe, o elemento que marca os limites da pessoa, isto é,
lá onde começa e acaba a presença do indivíduo” (Le Breton, 2007:30)

Ao colocar o corpo como “lugar da presença”, Le Breton aproxima-se de De Martino e


da ideia de resgate da presença que é realizada por técnicas corporais, como ainda
veremos.

Os movimentos coordenados são também importantes nas oferendas. As comidas


oferecidas aos orixás devem respeitar uma “coreografia” desde seu preparo. A ordem
dos ingredientes, os recipientes, o jeito de colocar, mexer, e arrumar os pratos são
essenciais para o bom decorrer do ritual. O momento da oferta é igualmente meticuloso.
Cada orixá gosta de receber sua comida de uma forma. Esta deve ainda ser encostada no
corpo de quem oferece, primeiro no peito, nos ombros, nas costas e na cabeça. Somente
então é colocada para o orixá, em ambientes externos, quando é o caso, ou nos quartos
dos orixás que são cômodos onde ficam guardados os assentamentos de cada filho de
santo, ou seja, um conjunto de objetos que representam o orixá e que pertencem a ele.

Os filhos de santo têm uma tarefa de rotina essencial, o ossé, que é o ato de limpar o
quarto do santo e seus objetos. Todos esses rituais aqui descritos seguem o mesmo rigor

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coreográfico, cada um a seu modo. Há uma ordem para realizar a limpeza, há cantigas
que devem ser cantadas. Tudo no candomblé se faz em movimento.

Todas as práticas do candomblé que vão desde o jogo de búzios executado pelo pai de
santo, quando se lançam as conchas em uma bandeja redonda feita de uma trança de
material semelhante ao vime, aos borís, que são os rituais para “dar de comer à cabeça”,
até as festas, que envolvem movimentos, coreografias, protocolos de deslocamentos.

Tanto nas práticas como nos discursos, o movimento é importante. Pai Pedro me disse
em muitas ocasiões que se irritava quando um filho de santo tinha o mesmo problema
por muito tempo. “É preciso se mexer. A gente precisa mudar até de problema”, ele
dizia. O pai de santo me relatou certa vez, a respeito de um jogo de búzios que tinha
feito, que o consulente não tinha dinâmica. Segundo ele a vida do filho não “ia para
frente” porque ele não tinha dinâmica e, por isso precisava ser feita uma oferenda para
Exú e Ogum, orixá da comunicação e movimento, e orixá da guerra, respectivamente.

Novamente retornam aqui as expressões da guerra, da luta. “Ir à luta” é colocar-se em


movimento. Pai Pedro, explicando a situação do filho de santo, dizia:

“Ele precisa levantar e ir à luta. As coisas não são fáceis e na vida não tem moleza.
Cada um precisa lutar pelas suas coisas porque orixá não faz nada por ninguém. O cara
precisa lutar com o orixá e não é deixar o orixá lutar por ele. A gente alimenta o orixá
pra fortalecer o axé dele e o nosso, pra ele levar a gente pra batalha”.

O mundo para os adeptos do candomblé é dinâmico e é preciso adaptar-se a ele,


acompanhá-lo, segui-lo. “Orixá é vida. Orixá é força. Orixá é movimento”, brada Pai
Pedro ao fim das festas. “Os orixás são as forças da natureza. Orixá não é um espírito de
uma pessoa que morreu, isso é egun. Orixá é o espírito da natureza. É o vento, o fogo. A
nossa religião cultua a natureza. Sem natureza não tem candomblé”, explicou-me.

Não demora para perceber que a natureza à qual Pai Pedro se refere é uma natureza em
constante movimento. O vento de Iansã, o fogo de Xangô, as matas de Oxóssi, tudo no
candomblé está em constante transformação e construção. A relação com a natureza é
mais sofisticada que uma barganha. Os filhos de santo dão de comer às forças dessa
natureza para se aliar a elas. “O candomblé não vai eliminar seus problemas. As filhas
de Iansã vão ventar. Um dia mais forte e outro dia mais fraco. Mas se você está ligado
com o orixá, você venta junto com ele. Tem dia que o orixá está mais calmo e tem dia

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que está agitado. Precisa ser assim. Na vida, a gente precisa ser assim, uma hora mais
calmo e outra mais agitado”, afirma.

A natureza que se apresenta como orixá em sua dimensão mais etérea é a mesma que se
apresenta tangível pelas ciências, como a física, a química e a biologia. O vento do
candomblé não é diferente do vento que faz os barcos à vela navegarem. Para os adeptos
é tudo uma coisa só que atua em diversos níveis.

Uma conversa que tive com a equede de Pai Pedro em uma festa de um outro terreiro
em que a encontrei ilustra o que argumento. Alice, que é também irmã de sangue do pai
de santo, me contava sobre uma cirurgia pela qual ele passou para a colocação de uma
prótese no fêmur. Ela mora no mesmo quintal do Pedro, no mesmo terreno onde fica o
ilê. A casa antiga era dos pais deles e ficou de herança para os cinco filhos. Lá moram
Alice e outro irmão na casa maior na lateral do terreno. Pedro mora nos fundos dessa
casa em uma casa um pouco menor. No outro lado do terreno que é um retângulo
comprido, fica um jardim, a garagem e, no fundo ao lado da casa de Pai Pedro, o terreno
onde se realizam os rituais com quartos de santo na parede da esquerda e na parede do
fundo.

Ela detalhou a cirurgia e os passos da recuperação que em 2013 atrasou todo o


calendário da casa já que ele não poderia caminhar normalmente e dançar por alguns
meses. Por isso, naquele ano a festa de Xangô, orixá dele, que acontece sempre no mês
de julho, foi feita apenas em outubro.

Pai Pedro é um homem negro de 53 anos, baixo e acima do peso. Ele é muito ativo e
ansioso, de fala rápida e com gestos apressados. Posto isso, comentei com a equede em
tom de brincadeira: “O Pedro deve estar dando muito trabalho sem poder se mexer”. Ela
me respondeu imediatamente:

“Olha, achei que fosse, mas ele está super bem. A recuperação dele foi
excelente e até o médico ficou impressionado. Mas também, ele teve um bom
médico, depois teve um bom cuidado em casa e ele é um homem de muita fé,
muito correto com as suas obrigações (se referindo às obrigações de alimentar os
seus orixás), então não tinha como dar errado. Ele foi bem cuidado,
materialmente, espiritualmente e pela família. Logo ele está pulando com o
Xangô dele”. (Equede Alice de Obá, Santo André, abril. 2014)

57
Continuo o assunto perguntando a Alice, que é funcionária pública da área da saúde, por
quanto tempo durará a recuperação e quais serão as limitações do pai de santo neste
período. Ela me responde:

“O pior mesmo já foi, fio. A cirurgia era a parte que a gente tinha mais medo e
correu tudo bem, com a graça de Xangô. Agora é outra luta que é a prótese
encaixar e não ficar diferença porque, às vezes, o médico disse, tem gente que
fica meio manco depois porque é normal a próteses subir um pouco. Não
acabou. Não dá pra achar que já tudo resolvido só porque o pior já passou.”
(Equede Alice de Obá, Santo André, abril. 2014)

A conversa com a equede reflete as preocupações essenciais do meu argumento. O


problema de Pedro com a perna é uma guerra composta de diversas batalhas. Essas
batalhas acontecem em vários níveis da vida, como no plano médico, no plano familiar
e no plano “espiritual”. A batalha é para apartar o risco do devir. Neste caso, o risco de
perder a perna, de perder os movimentos, de ficar manco.

O devir e suas possibilidades são um risco para o homem. Por isso a hipótese de
trabalhar a religião como técnica de dehistorificação do devir, como propõe De Martino,
pode ser uma tese válida para o candomblé. Se o adepto do candomblé está em
constante interação com as “forças da natureza” para equilibrar-se e proteger-se, está no
devir o risco. O risco de não ser mais no mundo.

A guerra é sempre a expressão porque expressa o risco iminente de tudo se perder a


qualquer momento. Na guerra, se as tropas param de lutar são dizimadas, assim como
em uma realidade em construção, se os homens param de dialogar com ela, ela engole
os homens.

1.6 O mundo mágico demartiniano

Ernesto De Martino dedica a obra Il Mondo Magico, de 1948, a debater as questões da


realidade dos poderes mágicos e considera este exercício fecundo para contribuir com a
ampliação da autoconsciência humana. Para o autor, a ciência deve livrar-se de um
pedantismo e ingenuidade que comprometem a seriedade do pensamento acadêmico.

58
“Por meio do problema da realidade dos poderes mágicos, por meio da análise
dos conceitos de natureza mágica e pessoa mágica, o pensamento é, de fato,
constantemente chamados a lutar contra esta última Thule na qual o realismo
ingênuo se refugia, que é a dualidade que opõe o indivíduo, enquanto o dado, a
um mundo dos fatos naturais, considerados também como dados” (De Martino,
2004:62).

Aproximar-se então do que ele chama de mundo mágico requer uma pré-disposição a
ampliar o método historicista – no sentido em que procura na história o sentido das
práticas- em busca de elementos que contribuam para a ampliação da compreensão
desses fenômenos.

“Não se trata, então, de renovar a recorrente impotência da etnologia, que se


limita a aplicar, em sua esfera própria, os princípios e os resultados de certas
tendências especulativas. Tampouco se trata de olhar para mundo mágico como
se já se estivesse em posse de um código metodológico pré-formado, e
imaginando que se deva apenas fornecer a execução material, em um novo lugar,
de um método de trabalho que já deu boas provas da sua adequação em outros
setores da compreensão cultural, o que, portanto, levaria a supor que seria
igualmente bom sobre o magismo. Esta abordagem denotaria mais zelo de
neófito que maturidade histórica, mais ingenuidade e pedantismo acadêmico que
seriedade de pensamento” (De Martino, 2004:63)

Para compreender os fenômenos mágicos, De Martino realiza uma profunda análise da


vasta bibliografia etnográfica disponível na época. Não percorremos aqui todo o
caminho trilhado pelo autor, mas nos ateremos apenas a algumas conclusões a que
chega para embasar as posteriores argumentações desta pesquisa.

A compreensão de que o “mundo como dado” não é uma ideia universal, enraizada
culturalmente em todos os povos, me parece a chave para compreender certas nuances
da cultura, como os problemas dos poderes mágicos, por exemplo, e a vulnerabilidade
psíquica que pode levar os indivíduos a crises nas quais a realidade é posta em cheque.
Desafiar a consistência do “real” só seria possível num mundo no qual o real fosse
passível de questionamento. Para De Martino, como demonstrarei a seguir, o mundo
não é dado, no mundo mágico a realidade é uma realidade condenda, ou seja, uma
realidade em feitura, em constante fundação.

59
“No mundo mágico, a individuação não é um dado, mas uma tarefa histórica, e
o ser-no-mundo é uma realidade condenda. Daí um complexo de experiências e
de representações, de medidas protetoras e práticas, que expressam ora o
momento de risco existencial mágico, ora o resgate cultural, e que formam, em
dramática polaridade, o mundo histórico da magia. A própria presença pessoal, o
ser-no-mundo, a alma, "foge" de sua morada, pode ser "pega", "roubada",
"engulida", etc.; é um pássaro, uma borboleta, um sopro; ou ainda deve ser
"protegida", "recuperada"; ou mesmo deve ser "mantida", "fixada", "localizada"”
(De Martino, 2004:141)

A garantia do “estar no mundo” é, portanto, um produto cultural. Na civilização


ocidental cristã temos por um lado o cristianismo que garante com a narrativa da
salvação a presença do homem, de outro, a ciência, que supostamente garante sua
presença pelo conhecimento e controle do mundo.

“Se a crença e a prática do Turik nos parecem "supersticiosas", é porque as


comparamos indevidamente (anti-históricamente) com o "estou aqui"
determinado e garantido do nosso mundo cultural: elevamos dogmaticamente a
modelo válido para todas as formas culturais o nosso modo histórico de existir
como presenças individuais, nossa experiencia occidental (relativamente
recente) de encontramo-nos solidamente idénticos mesmo na diversidade de
conteúdos. De fato, a respeito deste modo histórico de existir, a crença e a
prática d o turik não tem fundamento real e se coloca em uma superestrutura
arbitrária, decretamos que se trata de uma superstição. Na verdade, nossa
soberba cultural nos fecha aqui ao drama existencial mágico e nos impede de
compreender seus temas culturais características” (De Martino, 2004: 141-142)

De Martino coloca aqui novamente a necessidade do pesquisador reconhecer o lugar


desde onde realiza sua observação para não cair no lugar comum de universalizar
conceitos historicamente calcados localmente. Por conta de nossa formação cultural
histórica cristã, a primeira vista, não nos parece razoável questionar a realidade da
presença. Desse modo a crise da presença seria uma característica particular legada aos
doentes. A relação do homem ocidental moderno com aquilo que chamamos de
natureza, ou mundo exterior, é uma relação de inação: o homem dotado de
autoconsciência domina e usufrui do mundo objetificado. Quando o sujeito rompe a

60
distinção prevalente entre o homem e o mundo exterior, há aí uma crise da presença, um
momento de fragilidade psíquica em que a autoconsciência pode se perder
momentaneamente e deve ser resgatada.

“Derruba-se a distinção entre a presença e o mundo que está presente: o sujeito,


em vez de ver ou ouvir o sussurro de folhas, se torna árvore cujas folhas o vento
agita; em vez de ouvir a palavra , se torna a palavra que escuta, etcétera” (De
Martino, 2004:137)

Essa análise permitiu a De Martino compreender no tarantismo a relação dos


atarantados com o próprio animal, a aranha. A aranha e o homem deixam de ser seres
distintos e independentes e passam a ter uma relação. O homem em relação ao mundo é
um homem em risco, em crise. É preciso que esse homem tenha controle do mundo para
que sua presença esteja garantida.

“Para esta resistência da presença que quer ser, o colapso da presença se torna
um risco preso em uma angustia característica, e para a reconfiguração deste
risco, a presença se abre para a tarefa de seu resgate mediante a criação de
formas culturais definidas. Para uma presença em colapso sem compensação, o
mundo mágico ainda não apareceu; para uma presença resgatada e consolidada,
que já não percebe o problema de sua instabilidade, o mundo mágico já
desapareceu” (De Martino, 2004:139)

O mundo mágico é a cultura na qual há a possibilidade de resgate da presença pelo uso


de técnicas que, a partir de um estado de vulnerabilidade ao mundo, reintegram o
homem à sociedade e, ao mesmo tempo, reintegram o mundo. Em um mundo de
realidade em construção, a presença do homem e a natureza têm momentos de maior
relação e podem fundir-se. Para De Martino, desde o pensamento grego há uma
tendência a colocar a pessoa no centro do mundo, mas somente com o advento do
cristianismo essa empresa é, de fato, iniciada.

“tal consciência da autonomia da pessoa tem, no curso da história da civilização


ocidental, uma espécie de vértice ideal, que é a descoberta da unidade
transcendental da autoconsciência. Enquanto na reflexão especulativa, o assunto
foi entendido no sentido psicológico, como consciência para a qual são dados
determinados conteúdos, ficavam impedidas todas as vias para fundar a
"possibilidade" de a autonomia do indivíduo” (De Martino, 2004:226)

61
O homem detentor de autoconsciência e conhecimento do mundo estaria pois garantido?
Este sujeito seria a priori integrado ao mundo sem a necessidade de técnicas para
desabrigar sua presença e coloca-lo como protagonista de sua história social? De
Martino anuncia que o princípio supremo da unidade transcendental comporta um risco
supremo para pessoa.

“Este risco surge quando a pessoa, ao invés de conservar a própria autonomia a


respeito dos conteúdos, abdica dessa tarefa, deixando que os conteúdos se façam
valer fora da síntese, como elementos dominados, como dados no sentido
absoluto. Mas quando aparece tal ameaça, é a própria pessoa que corre o risco de
disolver-se, desaparecendo como presença, precisamente por não ser compatível
com elementos e com dados” (De Martino, 2004: 228)

A relação do homem com o mundo representa em muitos níveis um risco. O risco de


perder a presença no mundo mágico é assimilado e combatido com o uso das técnicas
de resgate.

“No limite, qualquer relação da presença com o mundo torna-se um risco, uma
queda de horizonte, um não-manter-se, um abidcar sem compensação; algo
semelhante à situação que força o ezquisofrênico a uma imobilidade estatuária
de estupor catatônico, ou seja, a vontade travada, espasmódicamente fechada ao
assédio do mundo. A magia retoma este declive e se opõe definitivamente ao
processo de dissolução. Operando uma série de distinções mediante as quais o
risco é identificado e combatido” (De Martino, 2004: 235)

A cultura ocidental coloca o homem em uma posição de alteridade em relação ao seu


próprio mundo. Isabelle Stengers e Ilya Prigogine colocam na introdução de “A nova
aliança” a afirmação de Jacques Monod que, em uma clara alusão bíblica, diz: “A velha
aliança rompeu-se; o homem sabe finalmente que está só na imensidão indiferente do
Universo que emergiu por acaso” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:2). Para Stengers
e Prigogine, mais que uma interpretação de certos resultados da biologia, Monod
anuncia o desenvolvimento de três séculos da “ciência clássica” que conclui “que o
homem é um estranho no mundo em que ele descreve”.

Se no mundo mágico a comunicação com a “mundo natural” se dá por meio da magia,


no mundo moderno, a ciência se encarregou de ser sua intérprete. Talvez por sua
história menos distante e melhor registrada, vemos com facilidade os meios pelos quais

62
a ciência se construiu como categoria. Stengers e Prigogine dizem que “a ciência
(clássica) podia ser descrita como uma tentativa de comunicar com a natureza,
estabelecer com ela um diálogo, donde se destaquem, pouco a pouco, perguntas e
respostas” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:2). Os autores seguem sua definição
colocando mais argumentos para que seja possível, segundo eles, diferenciar o homem
de ciência moderna de um mago ou dum feiticeiro.

A ciência busca na sua experimentação algo além da interpretação da natureza, mas sim
criar métodos de interferir em seu funcionamento, assim como a magia busca o diálogo
como o mundo para, por meio de sua compreensão, realizar o resgate da presença em
risco.

“A experimentação não supõe a única observação fiel dos fatos tais como se
apresentam, nem a única busca de conexões empíricas entre fenômenos, mas
exige uma interação da teoria e da manipulação prática, que implica uma
verdadeira estratégia.” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:3).

A ascensão do pensamento científico em oposição à religião cristã colaborou para


reduzir o pensamento religioso, posteriormente universalizado pela tradição das ciências
sociais, a um modo equivocado e menor de compreender a realidade do mundo físico. A
oposição da Igreja à produção científica, sobretudo ao questionamento científico,
considerado herético, colaborou para que Igreja e ciência se estabelecessem como rivais
e incompatíveis.

Stanley Tambiah defende que tanto ciência quanto religião são construções históricas e
que os conceitos são definidos a posteriori de uma certa prática. Ou seja, não há um
conjunto de práticas e ideias que nascem como ciência, ou religião, ou qualquer outra
categoria , mas a uma certa distância, essas ideias são chamadas ciência, religião, etc.

“Ora, não se pode dizer que os antigos gregos desenvolveram esta mentalidade
científica de uma só vez ou de forma generalizada. Os gregos não tinham a
concepção de "ciência", que pode ser considerada equivalente ao nosso próprio
conceito de ciência que se desenvolveu no século XVII (e tornou-se atual,
digamos, na Royal Society de Londres por volta de 1645)” (Tambiah, 1990:9)

Isto quer dizer que, num primeiro momento, a ciência não se opõe, e sim surge no
interior do próprio pensamento religioso (ou mágico). É somente no século XVII que há
uma separação formal entre essas categorias. Uma separação historicamente construída.
63
“A primeira vez em que um escrito grego - na verdade, alega-se, na literatura
ocidental existente - quando um conjunto de crenças foi explicitamente
declarado mágico estava em um texto médico da última parte do quinto ou o
início do quarto século A.C., o texto em questão era A doença sagrada. Ele
pertencia ao Corpus Hippocraticum e seu objeto era a epilepsia” (Tambiah,
1990:9)

A possibilidade de encontrar uma verdade universal e de uma “natureza autômata” que


funcionava independente da vontade de um Deus soberano fez da linguagem científica o
meio mais eficiente de conhecer e compreender o mundo. A ciência clássica produziu
então a imagem de uma natureza simples e passiva a um pequeno número de leis
imutáveis. “A ciência moderna começou por negar as visões antigas e a legitimidade das
questões postas pelos homens a propósito da sua relação com a natureza (...) A ciência
moderna constitui-se como produto de uma cultura, contra certas concepções
dominantes dessa cultura (o aristotelismo em particular, mas também a magia e a
alquimia)” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:4).

“Durante muito tempo, o caráter absoluto dos enunciados científicos foi


considerado como um sinal de irracionalidade universal” (PRIGOGINE e
STENGERS, 1984:14).

O desenvolvimento da ciência do século XX e XXI, principalmente com a mecânica


quântica, acaba ele mesmo por negar a ideia de uma natureza passiva sujeita a um
pequeno número de leis. “As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um
universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais”
(PRIGOGINE e STENGERS, 1984:5). Essa evolução e constante movimento da ciência
é uma ideia que não se apresenta com espanto. A hipótese de uma religião em
movimento, ao contrário, é uma ideia que causa estranheza, já que pela lógica do que
tentei demonstrar até aqui, a única evolução possível da religião seria a própria ciência.

Tento argumentar aqui que estas hierarquias que parecem funcionar para efeitos de
classificação perdem suas distinções na observação das práticas. Religião e ciência
continuam a ser práticas distintas conectadas pela tentativa de comunicação com o
mundo.

Para De Martino, o conceito de “estar no mundo” reintegra o indivíduo ao mundo físico,


ou à natureza. Este pensamento encontra correspondências interessantes na antropologia

64
contemporânea que se dedica a pensa na separação (ou, melhor, a não separação) entre
sociedade e natureza (Latour, 1979; Wagner,1981; Stengers,1984). De Martino encontra
no rito uma técnica que reintegra o homem no mundo, num mundo que compreende
sociedade e natureza já em seus escritos dos anos 1950, quando esta era uma hipótese
inovadora. O regime protegido para o autor é o que permite uma alteração da ordem
“dada” para a compreensão dessa ordem num tempo outro pelo indivíduo “como se aí
não estivesse”.

“No mundo mágico a alma pode se perder no sentido de que na realidade, na


experiência e na representação ainda não é dado, mas é frágil presença (para
expressarmos com uma imagem) pode engolir o mundo e fazer desaparecer” (De
Martino, 2004:140)

De Martino aponta em “Il Mondo Magico”, a necessidade de recorrer às ciências da


mente para que os praticamente dessas técnicas, em particular aqueles que expressam
alguma sensibilidade extra-sensorial, não sejam colocados apenas como um retrato do
bizarro, ou pior, deixados à parte das observações já que não se pode explicá-los.

Analisar a religião como técnica é, de fato, cotejar os dados de pesquisa e observação a


partir da eficácia. Como bem demonstrado por De Martino, por meio de uma exaustiva
análise bibliográfica, há uma série de observações que comprovam o “poder” de certas
práticas “mágicas”.

“De fato, o conjunto de resultados obtidos na maioria dos casos apresentaram


um caráter que não pode ser explicado pelo acaso. Além disso, em um grande
número de testes não explicáveis pela sorte, deve-se descartar completamente o
uso de vias sensoriais normais” (De Martino, 2004:105).

A busca por fontes alhures à antropologia pode ser um caminho frutífero ao antropólogo
que busca uma compreensão ampliada dos fenômenos que estuda. Esta pode ser
também uma ferramenta valiosa para escapar de certa linha de pensamento que vê no
ritual um sinal de atraso e falta de uso “correto” da razão.

65
1.7 O devir como risco

A religião, segundo De Martino, é uma técnica protetora da “crise da presença”. Como


bem alerta o antropólogo americano George Saunders este risco pode ser erroneamente
interpretado como a morte do sujeito apenas. O risco de “não estar aí”, de “não ser no
mundo” é uma crise “para significar um problema mais profundo e sutil: um colapso no
sentido de self, culminância na passividade e engajamento ineficaz com o mundo
exterior” (Saunders, 1995:324). Como já dito anteriormente, a “crise da presença”
envolve uma dificuldade em objetivar o mundo exterior.

De Martino reconhece esse risco nas sociedades que chama de Mundo Mágico. “No
mundo mágico a individuação não é um fato, mas a tarefa histórica, e o ser-no-mundo é
uma realidade condenda” (De Martino, 2004:141). Ao aplicar o termo “realidade
condenda”, De Martino retoma o tema da historicidade e coloca o problema de que o
mundo físico, a natureza, não deve ser tomado como dado, mas o antropólogo deve
refazer um percurso histórico da construção das categorias que definem a própria
realidade em cada sociedade.

De Martino atribui à história da civilização ocidental a ideia do indivíduo no centro de


todas as coisas. Ele defende que desde o pensamento grego, o sujeito ocidental vem
sendo constituído e o cristianismo coroa a ideia de trajetória individual (ver De Martino,
2004:225-227). A ideia desenvolvida pelo italiano em relação à construção histórica do
sujeito se aproxima da reflexão de Marcel Mauss em “Uma Categoria do Espírito
Humano: a noção de pessoa, a noção do “eu”” (1938) quando descreve um panorama de
como algumas culturas entendem a noção de individualidade. No Mundo Mágico, no
entanto, o grupo tem valor fundamental para o resgate e a garantia da presença.

“Vamos agora considerar o assunto a partir deoOutro aspecto. O risco e o


resgate do feiticeiro não constituem um drama estritamente individual. Através
da figura do feiticeiro, através de seu drama existencial, é a Comunidade em um
todo, ou pelo menos um ou mais membros dela, que se abre para o risco de ser-
no-mundo que se perde e reencontra-se” (De Martino, 2004:160)

A apropriação da crise individual pela cultura e a salvação do sujeito em crise ser a


salvação do coletivo não é uma ideia distante da defendida por Lévi-Strauss em seu

66
ensaio A Eficácia Simbólica, de 19495. No artigo, o autor analisa a etnografia de um
ritual Cuna em que a comunidade entoa cânticos liderados por um xamã para salvar uma
parturiente em processo complicado para dar à luz.

“A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação dada inicialmente


em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a
tolerar. O fato de a mitologia do xamã não corresponder a uma realidade
objetiva não tem importância, pois a paciente crê e é membro de uma sociedade
que crê. Espíritos protetores e espíritos maléficos, os monstros sobrenaturais e
animais mágicos fazem parte de um sistema coerente que funda a concepção
indígena do universo” (Lévi-Strauss, 2008:213)

A participação social é fundamental para dar sentido à crise individual. Mais para frente
trataremos da questão do fim do mundo, em que sem a apropriação da natureza pela
cultura, o mundo perde o sentido e passa mesmo a não existir. Objetivar a dor e
compreende-la em um horizonte meta-histórico, como diria De Martino, é a chave para
resgatar a parturiente que se perde em uma dor “incoerente e arbitrária” para o mundo,
ou para o sistema, em que tudo se encaixa.

Sem a participação do grupo, ou melhor, sem a aceitação da crise pelo grupo, a


parturiente seria apenas uma descontrolada, uma louca, ou como vieram a descrever
alguns sociólogos, uma outsider. “A paciente, tendo compreendido, faz mais que
resignar-se, ela fica curada” (Lévi-Strauss, 2008:213). Outro conceito demartiniano
pode ser percebido na análise de Lévi-Strauss, quando fala da linguagem fornecida pelo
xamã, o que cria um “regime protegido”.

“O xamã fornece à sua paciente uma linguagem na qual podem ser


imediatamente expressos estados não formulados, e de outro modo,
informuláveis” (Lévi-Strauss, 2008:213).

Lévi-Strauss inicia então uma comparação da técnica xamânica com a técnica


psicanalítica. Segundo ele, em ambos os casos, conflitos e resistências recalcadas no

5
Vale ressaltar que o texto de De Martino é de 1948, de um ano anterior à publicação do artigo de Lévi-
Strauss. Na obra de De Martino há escassas referências à escola sociológica francesa, apesar dele ter
coordenado e prefaciado a publicação de três ensaios de Durkheim, Mauss e Hubert, com o título Le
origini dei Poteri Mágici. Em outros textos demartinianos, Lévi-Strauss, embora Tristes Trópicos
seja homenageado em la terra del Rimorso, é liquidado rapidamente na análise como ‘anti-histórico.

67
inconsciente são trazidos à tona para a cura. Para o autor, o xamã é assimilável ao
psicanalista, pois suas técnicas trabalham níveis variados da consciência.

“Também em ambos os casos, os conflitos e resistências se dissolvem, não


porque a paciente deles vá tomando progressivamente conhecimento, real ou
suposto, mas porque esse conhecimento torna possível uma experiência
específica, na qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que
permitem seu livre desenrolar e conduzem ao seu alcance” (Lévi-Strauss,
2008:214).

A performatização da crise da presença é para De Martino o ponto chave para


compreender o tarantismo. Na técnica coreico-musical, o atarantado vive sua crise em
um regime controlado no qual sua dor pode se expressar livremente de uma forma que
ganhe sentido e seja aceita por seus parentes e vizinhos que acompanham o ritual, de
forma muito semelhante ao ritual Cuna de que trata Lévi-Strauss. A relação do social
com o individual é determinante para que o exorcismo seja bem sucedido.

“Em geral, o símbolo mítico-ritual do tarantismo articula-se de modo a oferecer


evocação, libertação e resolução para alguns conteúdos críticos conflitivos
determinados pela pressão exercida pela ordem social, num regime existencial
determinado, desde a primeira infância até a maturidade e a velhice ” (De
Martino, 1999:179).

Chamo a atenção aqui para o uso o termo “crise existencial” que torna a crise da
presença algo mais profundo que o simples medo da morte. No momento de crise, não é
o fim da vida que resulta da perda, mas sim o fim do próprio mundo. A falta de
capacidade de objetivar o que é o sujeito e o que é o mundo, causa neste sujeito a perda
do mundo, a perda do referencial histórico. Perder a presença no mundo é perder o
próprio mundo no sentido de que este não é dado, mas sim constantemente construído
pela história.

“Uma vez que a relação que a presença estabelece é a mesma relação que faz
com que a cultura seja possível, o risco de uma história humana não existente se
forma como o risco de perder a cultura e recuar sem atenuação na natureza.
Quando esse risco cresce em um determinado momento "crítico" da existência
histórica, a presença perde o poder para defini-lo conscientemente ou superá-lo,

68
e fica enroscada, entrando em uma profunda contradição existencial com ela
mesma” (De Martino, 2012: 435)

A presença para De Martino, assim como em Heidegger e Hegel, sugere uma autonomia
do sujeito, o que Hegel chama também de “consciência”, ou seja, uma intenção de estar
aí. Essa consciência do estar no mundo, a presença, em termos demartinianos, é a
capacidade do indivíduo de produzir a si mesmo. Quando há a incapacidade de fazê-lo,
pode-se falar em crise da presença.

“A crise de presença, além disso, implica a possibilidade de perda de um lugar


na história, uma vez que a história é o trabalho de pensar, agir, sentir, e, talvez
acima de tudo, "distinguir" os seres humanos. A capacidade de distinguir as
categorias e conteúdos da própria consciência é a base de uma interação
dinâmica com o mundo, e da dialética da "presença no mundo" e "o mundo que
se apresenta" sempre reflete (e determina) a postura do indivíduo com relação a
uma história que se desdobra” (Saunders, 1995:10)

Essa frágil presença é constantemente ameaçada pelo risco do devir. Um mundo


exterior imprevisível, que pode absorver o homem e quebrar sua distinção entre pensar e
agir, perceber e ser, é um risco.

“Utilizando as contribuições da psicanálise, De Martino mostra que qualquer


crise, até mesmo pessoal e existencial, é um fim do Mundo, até que a cultura não
a recupere dando-lhe sentido através da transformação do que acontece
historicamente, sem ou contra o homem, num momento de-historificado,
protegido sacralmente e, sobretudo, gerido pelo homem, pela comunidade, que
se reconhece e identifica naqueles atos “que todo mundo faz”. Tudo isso é
história, história cultural” (Pompa, 1995:56-57)

A relação do homem com o tempo é crucial para a tese demartiniana. Não apenas no
sentido de defesa do método de observação histórica que não deixa de sugerir uma
leitura processual das práticas, mas também pela relação do sujeito com o devir. Por um
lado, há uma percepção do tempo cíclico no mundo mágico e o ritual como uma
paralisação desse tempo para a resolução da crise a partir de uma atualização do mito de
“um tempo outro”. Nisso está a diferença entre De Martino e Mircea Eliade, que as
noções de “dehistorificação” e de “eterno retorno” poderiam aproximar. Com efeito, De

69
Martino vê na sociedade ocidental a herança judaico-cristã da irreversibilidade do
tempo. A narrativa da salvação quebra o eterno retorno do tempo mítico e,
aparentemente, elimina o risco do devir uma vez que a salvação está dada. A salvação
está dada, mas não está. Há que se realizar uma série de atos rituais, marcados pelos
momentos do ano litúrgico, para sua garantia.

Na sociedade cristã, a ideia do homem salvo dá a esse mesmo homem a autonomia de


sua salvação. De Martino usa as palavras de Jesus a respeito do sábado fariseu para
exemplificar sua hipótese. “O sábado foi feito para homem, e não o homem para o
sábado” (Marcos 2:27). Essas palavras confirmam ao homem sua certa
responsabilidade autônoma pelo agir no tempo.

“ou seja, a tarefa de lutar contra o sábado fariseu e dissipar o equívoco, sempre
renovado, segundo o qual o produto da atividade pessoal escapa ao drama de
produzir e, portanto, é considerado como isolamento do dado. Tal Consciência
da autonomia da pessoa tem, no curso da história da civilização ocidental seu
vértice ideal, que é a descoberta da unidade transcendental da autoconsciência”
(De Martino, 2004:226)

A crise da presença é, de fato, um momento de fragilidade psíquica caracterizada por


uma dificuldade de relacionamento do self com a história (Saunders, 1995). O sujeito
em crise tem problema em produzir-se no tempo e por isso “não está aí”, não está
presente. Segundo De Martino, as práticas mágicas oferecem uma solução cultural para
este problema (De Martino, 2012:434).

O risco do devir não desapareceu da história com o desenvolvimento da sociedade


ocidental. Se o cristianismo buscou eliminar esse risco com a narrativa da salvação, a
Ciência buscou em sua trajetória uma estratégia de dominação da natureza e,
consequentemente, do devir. Na conclusão do livro “A nova aliança”, Prigogine e
Stengers afirmam que a história da Ciência e da Filosofia compartilham de um tema
obsessivo: “É a questão da relação entre o ser e o devir, entre a permanência e a
mudança” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984:203).

A Ciência clássica buscava reduzir uma natureza controlada a um pequeno número de


leis imutáveis. O modelo do sistema dinâmico concebe uma natureza “estranha ao

70
homem que a descreve”... “Numerosos críticos da ciência moderna acentuaram o caráter
de passividade e submissão que a física matemática empresta à natureza que descreve”
(PRIGOGINE e STENGERS, 1984:205).

Esta natureza passiva, este mundo exterior dominado e controlado certamente não
justifica uma crise da presença no modelo demartiniano, pois não tem a capacidade de
“atacar” o sujeito com imprevistos. A natureza dominada e passiva, apesar de estranha,
não oferece o risco. A respeito disso, lembramos que De Martino concebe o mundo
mágico como composto de indivíduos sem o conhecimento científico desta natureza.
Nessa chave seria um exercício frustrante a empresa de encontrar alguma crise de
presença no mundo ocidental urbano contemporâneo.

A natureza, no entanto, se mostrou para a ciência instável e imprevisível em certa


medida. No nível microscópico, os cientistas depararam-se com uma instabilidade
intrínseca da natureza desbancando o ideal da dinâmica e com a mecânica quântica,
protagonistas da “revolução científica”.

“Abriram-se, por isso, ao diálogo com uma natureza que não pode ser dominada
mediante um golpe de vista teórico, mas somente explorada, com um mundo
aberto ao qual pertencemos e em cuja construção colaboramos” (PRIGOGINE e
STENGERS, 1984:209).

A trajetória da ciência resultou em uma compreensão de mundo qualitativamente


diverso. O tema da multiplicidade dos tempos retoma a história do desenvolvimento
científico em três séculos e foi Einstein que encarou a questão com mais destaque em
tempos recentes. Novamente encontramos uma tensão entre o cristianismo e a ciência
moderna quando esta trata de questionar a irreversibilidade do tempo. A física
contemporânea reconhece esta irreversibilidade, ou, melhor, reconhece certa pluralidade
de tempos.

“Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, ratificados


uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas. A história, seja de um ser
vivo ou de uma sociedade, não poderá nunca ser reduzida à simplicidade
monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma invariância, quer
trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação” (PRIGOGINE e
STENGERS, 1984:211)
71
É o surgimento dessa natureza em construção (talvez pudéssemos chama-la de natureza
condenda) que Prigogine e Stengers chamam de reencantamento do mundo. “A natureza
começa onde as trajetórias deixam de ser determinadas, onde se quebram os foedera fati
que regem o mundo em ordem e monótono das evoluções deterministas” (PRIGOGINE
e STENGERS, 1984:218).

A ciência aberta, como chamam esses autores à ciência contemporânea, se abre


novamente às possibilidades do devir e, dessa forma, assume novamente os riscos da
presença.

1.8 O risco no mundo contemporâneo

O sociólogo Ulrich Beck nos traz aos dias atuais ao relatar a sensação de estar em risco.
“O risco é ambivalência. Estar em risco é a maneira de ser e de governar no mundo da
modernidade; estar em um risco global é a condição humana no início do século XXI”
(Beck, 2008). Para ele, a sociedade moderna é caracterizada pelo constante debate sobre
os riscos que a própria sociedade cria, ou seja, a sociedade representa um risco para si
mesma. O risco não é a catástrofe senão sua antecipação, um permanente estado de
espera pela tragédia.

Beck faz ainda uma interessante afirmação para o problema da pesquisa aqui proposta.
“O risco aparece no cenário mundial quando Deus o deixa. Riscos pressupõem decisões
humanas. Eles são, em parte, as consequências positivas, em parte negativas, face das
consequências das decisões humanas e intervenções” (Beck, 2008). Para ele, os riscos
se tornam sólidos na condição dos homens como senhores de si. Dessa forma, ao sentir-
se agido pelo mundo, para usar a expressão de De Martino, sob um risco que sua
racionalidade não pode resolver, como o de perder a presença no mundo, o sujeito busca
no ritual a segurança desejada.

Se De Martino afirma que o exemplum mítico dá garantia de resolução da crise,


encontramos em Beck pistas de uma iminente crise no mundo contemporâneo. “Se a
destruição e os desastres são antecipados, então isso produz uma compulsão para agir”
(Beck, 2008). Beck afirma que a antecipação do desastre é uma força propulsora de

72
ação, o sujeito se vê sugerido a agir para se proteger. A ação, no entanto, não elimina o
risco por isso deve ser regular. Proteger-se é uma atividade periódica.

Penso nos vírus de computador como exemplo hipotético: a cada e-mail aberto que
contenha um anexo, o software pergunta ao usuário se ele correrá o risco de abrir aquele
arquivo. Ter o antivírus instalado não elimina o risco, apesar de deixar o usuário com a
sensação de proteção. A ameaça da perda da presença é uma constante.

Beck vê a ameaça crescente na medida em que o homem ganha autonomia no mundo.


Para De Martino, Stengers e Prigogine, o risco é pelo oposto, o homem nunca conseguiu
uma autonomia, ou uma emancipação da natureza. Pelo contrário, a ciência moderna
começa a esboçar um diálogo com a natureza que pouco tem de autônomo. E assumir os
riscos faz parte de um processo que, para Stengers e Prigogine, faz sentido. Se
retomarmos De Martino com sua visão da religião como técnica vemos uma sociedade
que se apropria do risco para resolvê-lo, não o evita.

“Como Jacques Monod nos anunciava, chegou o tempo de assumir os riscos da


aventura dos homens; mas, se podemos fazê-lo, é porque, doravante, é esse o
modo da nossa participação no devir cultural e natural, é essa a lição que a
natureza enuncia quando a escutamos. O saber científico, extraído dos sonhos de
uma revelação inspirada, quer dizer, sobrenatural, pode descobrir-se hoje
simultaneamente como “escuta poética” da natureza e processo natural nela,
processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e
inventivo. Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante
muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades, de seus
saberes, e a aventura exploradora da natureza” (PRIGOGINE e STENGERS,
1984:226).

O risco de perder-se no mundo torna-se força propulsora para o resgate da presença. Ao


assumir e viabilizar a perda da presença em um regime protegido, o ritual garante a
coexistência dos sujeitos com o risco, de modo a dar sentido a ele. O risco deixa de ser a
ameaça de desaparecimento e torna-se contraponto da presença. Um contraponto com o
qual a própria presença dialoga e, por meio desse diálogo, se reafirma.

Anthony Giddens aponta este diálogo do homem com a natureza como um fator de risco
em si mesmo. Segundo ele, em O Mundo na Era da Globalização, de 1999, não seria
73
possível afirmar se a variação de temperatura que temos experimentado nas últimas
duas décadas são fruto da interferência do homem no clima mundial, mas devemos
considerar esta possibilidade. Temos atualmente mais evidencias para acreditar que sim,
as ações humanas interferem diretamente no clima, para Giddens, no entanto, em 1999,
tal fato deveria ser tomado como possibilidade. O autor aponta essa interação como um
fator de risco.

"Podemos compreender estas questões se considerarmos que todas elas


envolvem risco. Espero persuadi-los de que esta ideia, simples na aparência, põe
a descoberto algumas das características do mundo em que estamos a viver"
(Giddens, 2006:31)

Em uma breve análise do próprio termo “risco”, Giddens nos dá ainda algumas ideias
chave para a interpretação da crise da presença nos moldes demartinianos. Quando me
aproprio do conceito de risco para argumentar que a fragilidade da presença identificada
pelo autor italiano na análise do tarantismos pode ser um ponto de partida para a
compreensão do candomblé brasileiro preciso explicar aqui que a ideia de risco é um
conceito recente, como mostra Giddens. Tento neste trabalho juntar peças até este
momento soltas para apontar certa coerência entre o pensamento demartiniano e, por um
lado, uma recente corrente de pensamento crítico a respeito da chamada modernidade
tardia (Giddens, Beck) e, por outro, a perspectiva às vezes chamada “construtivista” de
Latour, Stengers e Prigogine, na empresa de contribuir para o pensamento antropológico
dos fenômenos que chamamos religiosos.

“Chegados a este ponto, deparamo-nos com algo verdadeiramente interessante.


Postos de lado alguns contextos marginais, na Idade Média não existia o
conceito de risco. E nunca existiu na maioria das culturas mais tradicionais,
tanto quanto me é dado saber. A noção de risco parece ter adquirido expressão
durante os séculos XVI e XVII, e começou por ser usada pelos exploradores
ocidentais quando partiam para as viagens que os levaram a todas as partes do
mundo. A palavra "risco" parece ter chegado ao inglês através do espanhol ou do
português, línguas em que era utilizada para caracterizar a navegação em mares
ainda desconhecidos, ainda não descritos nas cartas de navegação. Por outras
palavras, na origem, a palavra incluía a noção de espaço. Mais tarde, quando
usada pelo sistema bancário e em investimentos, passou a incluir a noção de

74
tempo, indispensável para o cálculo das consequências prováveis de
determinado investimento, tanto para os credores como para os devedores.
Acabou por se referir a uma enorme diversidade de situações onde existe a
incerteza" (Giddens, 2006:32)

Neste breve parágrafo encontramos uma complexa ideia também trabalhada por De
Martino, como espero ter demonstrado anteriormente. A relação que Giddens aponta
entre o risco ter sido historicamente relacionado ao espaço e ao tempo, ou melhor,
dizendo, às incertezas que conectam espaço e tempo, é bastante semelhante à ideia de
fragilidade da presença de De Martino, que coloca a técnica do simbolismo mítico-ritual
como um tempo e espaço protegidos para o resgate da presença. Se Giddens nos aponta
a incerteza como essência do risco, também De Martino coloca a incerteza das
possibilidades como fragilidade da presença sempre em risco de perder-se.

Naturalmente não tento produzir aqui uma concordância fictícia entre os autores.
Giddens aponta o risco como exclusivo das sociedades modernas, da era industrial,
orientadas para o futuro (ver Giddens, 2006:33). Ele vê as sociedades tradicionais
conectadas ao passado e argumenta que situações que na atualidade entendemos
claramente como risco eram entendidas como “destino”, ou “vontade dos deuses”.

"Na cultura tradicional se alguém sofre um acidente ou, pelo contrário, se


alguém prospera, bem, são coisas que acontecem, ou fez-se a vontade de Deus.
Houve cultura que negaram pura e simplesmente que o acaso pudesse existir. Os
Azande, membros de uma tribo africana, acreditam que qualquer desgraça é
sempre o resultado de um bruxedo. Se uma pessoa cai, por exemplo, a queda foi
provocada por alguém que lhe fez magia negra" (Giddens, 2006:33)

Como demonstrado anteriormente, não avaliamos o simbolismo mítico-ritual, ou a


religião se preferir, como um conjunto de crenças, já que este nos parece um conceito
enfraquecido, dados os argumentos dos autores que já foram aqui citados (De Martino,
Mancini, Asad, Montero e outros). Neste ponto nos distanciamos de Giddens no sentido
de focar nas práticas rituais e considerar algo fora das preocupações do autor: a
fragilidade psíquica. De Martino, ao considerar uma certa vulnerabilidade psíquica que
coloca a presença em risco, nos aponta um caminho novo de pensamento.

75
Ao considerar o risco de perder a presença no mundo como resultante de um processo
histórico da formação social associado a uma vulnerabilidade psíquica, De Martino
rompe algumas barreiras conceituais que no forçam a entender os processos técnicos de
resgate da presença em um sentido mais complexo em que não cabe reduzir a magia à
crença.. O resgate da presença, ou a salvação do risco de perder-se no mundo observado
pelo italiano em diversas sociedades tradicionais e analisado em Il Mondo Magico
(1948), nos dá argumentos para observar a ocorrência de tais fenômenos no mundo
moderno, como ele fez em La Terra del Rimorso (1956). Por isso, a compreensão do
conceito de risco no mundo moderno nos é de grande valor, ainda que Giddens
desconsidere o risco naquilo que De Martino chamou e “mundo mágico”.

O risco na compreensão de Giddens se afasta ainda mais da noção de risco em Stengers,


que vê na consciência do acaso na natureza o maior risco do homem. Para Stengers, a
natureza como possibilidade tira o homem de seu eixo de controle e o coloca em risco.
Já para Giddens, a emancipação da natureza gera risco no sentido em que o homem é
autônomo e responsável por se colocar no futuro. Os autores aqui se distanciam ao
mesmo tempo em que se aproximam. Ambos, ao lado de De Martino, reconhecem o
desejo do homem de protagonizar sua história e estar “garantido” no mundo. Stengers o
faz pelo caminho do reconhecimento da natureza em diálogo, da qual o homem faz
parte. Giddens argumenta com a autonomia do homem em relação a uma natureza
exterior, da qual o homem é observador. Giddens entende o risco, diferentemente do
perigo, como algo calculado que, para ele, é fruto do mundo moderno.

"O risco é a dinâmica estimuladora de uma sociedade empenhada na mudança,


apostada em determinar o seu próprio futuro, em vez de depender da religião, da
tradição ou dos caprichos da natureza." (Giddens, 2006:34)

A compreensão do homem exterior à natureza, embora o argumento que referencia este


estudo seja contrário me parece importante, sobretudo para compreender como a noção
de risco está associada ao diálogo do homem com o mundo físico.

"A nossa sociedade vive pra lá do fim da natureza. o fim da natureza não
significa, como é óbvio, que o mundo físico e os processos físicos tenham
deixado de existir. Refere-se ao fato de agora existirem poucos aspectos do

76
ambiente material que nos rodeia que não tenham sido afetados pela intervenção
humana" (Giddens, 2206:36)

A ideia apresentada acima por Giddens nos dá pistas de como o risco da presença é
perene na sociedade contemporânea. Se é verdade, como diz Giddens, que chegamos ao
fim da natureza e todo o mundo físico foi tocado pelo homem, uma corriqueira
enchente, comum em grandes centros urbanos é como disse Pompa “um fim de mundo”.
O transbordar de um rio que invade as casas e faz as pessoas perderem móveis, por
exemplo, representa para o mundo urbano o fim de uma ordem estabelecida pelo
homem em oposição à natureza. Comumente escutamos comentários sobre desastres
naturais como sendo uma “vingança”, ou “resposta” da natureza às ações humanas. O
diálogo com o mundo põe em risco a ordem estabelecida, a presença do homem neste
mesmo mundo. Se a ciência moderna instituiu a ideia do homem como intruso em seu
próprio mundo, como bem coloca Stengers, a insistência da natureza em não acabar
ameaça o mundo constituído pelo homem.

Se a contribuição de De Martino em Il Mondo Magico é nos apontar que há sociedades


em que o mundo não é dado, proposta deste ensaio é extrapolar este conceito
demonstrando como a realidade está em permanente construção. Aproprio-me nesta
pesquisa das ideias de Stengers para colocar a ciência em transformação como uma
fonte de relacionamento de possibilidades como o mundo exterior e não de controle e
emancipação. Até este momento, tentei articular os autores citados na tentativa de
demonstrar como o mundo não é um dado também na sociedade contemporânea
ocidental cristã e científica. O mundo exterior está em permanente transformação e
diálogo com o homem que dele faz parte e não “está aí” apenas como observador, mas
como participante de um diálogo, ainda que involuntário.

“A civilização humana e a história são sempre refundadas - hoje como em


qualquer mais remoto ou arcaico "então" - e, assim, elas vão nascer no futuro até
que a palavra "homem" faça sentido, em virtude do poder de categorização de
acordo com detemrinadas formas ou valores. Além disso, a presença cultural,
isto é, estar-na-história [l'esserci nella storia], continua a ser definido
precisamente por esta energia de categorização" (De Martino, 2012:435-436
[1956])

77
Cabe aqui dizer que também Michel Foucault se dedicou a pensar o que chamou de
“dispositivos de segurança”. Para Foucault o surgimento do mundo urbano está
diretamente relacionado à gestão dos riscos. O filósofo argumenta que os dispositivos
de segurança são as ferramentas essenciais para manter a ordem no meio urbano. Os
governos, segundo Foucault, mantém a ordem social por meio da garantia de segurança.
Essa ideia surge em um momento oportuno quando argumentamos que o risco de perder
a presença no mundo mágico demartiniano é provável no mundo urbano moderno.

"Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem


proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de
proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder
a uma realidade a que ela responde - anule, ou limite, ou freie, ou regule. Essa
regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos
dispositivos de segurança" (Foucault, 2008:61)

A regulação da presença no mundo por meio de rituais compostos de proibições e


prescrições é a função dos simbolismos mítico-rituais aqui mencionados: o tarantismo e
o candomblé. Foucault diz ser fundamental a relação que a segurança tem com a
realidade. Se tomarmos a realidade condenda de De Martino, temos aqui uma segurança
igualmente condenda, ou seja, a ser sempre regulada. Se a segurança de Foucault
trabalha no plano da realidade e entendemos a realidade como construção histórica e
não como dado, temos um importante aspecto que colabora no pensamento da técnica
como protetora da presença, isto é, a técnica como segurança da presença.

"Enfim, a segurança, ao contrário da lei que trabalha no imaginário e da


disciplina que trabalha no complementar da realidade, vai procurar trabalhar na
realidade, fazendo os elementos da realidade atuarem uns em relação aos outros,
graças e através de todo uma série de análises e de disposições específicas"
(Foucault, 2008:62)

Claramente focado em uma compreensão política, Foucault aborda neste curso de 1978
diversos exemplos para explicar os dispositivos de segurança, como a escassez de
alimento e a epidemia. Evoco-o aqui apenas para ressaltar o argumento de que a
preocupação com a segurança e com a solução das crises estão apontadas de diferentes

78
formas por pensadores da sociedade. De Martino, Prigoggine e Stengers, Beck, Giddens
e Foucault pensam o risco cada um a seu modo.

1.9 De que mundo estamos falando?

A partir dessa ideia do risco perene de diversas naturezas que assola a existência do
homem, voltemos a pensar em como a ideia de um mundo a construir, uma realidade
condenda pode ser apropriada para a atualidade. Até aqui me parece que a ideia da
presença do homem e do risco está relacionada a um “lugar”. O homem constrói a
realidade e o mundo físico é a medida e o contraponto dessa realidade. Até aqui,
procurei deixar clara a ideia de presença no mundo, mas de que mundo estamos
falando?

Uma boa pista para iniciar esta etapa da discussão são os próprios títulos que De
Martino escolhe para suas publicações: Il Mondo Magico, Sud e Magia, La Terra del
Rimorso, La fine dal Mondo. A dimensão histórica proposta pelo italiano faz sentido
quando associada a uma dimensão geográfica bem estabelecida. Na comparação que De
Martino sugere entre tarantismo e candomblé, a conexão apontada por ele é espacial, ou
seja, as origens africanas de certos aspectos do culto. As conexões históricas (temporais)
em que De Martino se apoia para traçar a trajetória do tarantismo são conexões entre
lugares. De Martino, ao descrever o mundo mágico fala dos povos, mas também dos
lugares. O tarantismo do sul está intimamente ligado à paisagem rural, à vida no campo,
de certo modo isolada. A relação do homem com a paisagem soa especialmente frutífera
para a compreensão da construção da presença no mundo, e a construção, o
entendimento, do próprio mundo.

Se retomarmos, ainda que superficialmente, alguns textos clássicos da tradição


antropológica poderemos verificar o destaque que os lugares ocupam no conhecimento
da alteridade. Alteridade que, por muito, foi entendida como quem está distante. A
relação da cultura, ou seja, do fazer humano, da construção da identidade com a
paisagem física, com o lugar ocupado está demarcado na história da antropologia como
disciplina.

79
A ideia defendida por De Martino de um mundo não-dado, mas em construção vem
sendo trabalhada com diferentes abordagens por outros autores, como já mostramos
anteriormente em Isabelle Stengers e Ilya Prigogine. A ideia do lugar como condição do
fazer antropológico é um tema amplamente explorado por Marc Augé em seu volume
Não Lugares – Uma Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade, de 1992.
Para Augé o lugar antropológico é sempre uma invenção, uma co-criação do povo
nativo e do antropólogo.

“Esse lugar comum ao etnólogo e a seus indígenas é, num certo sentido (no
sentido do latim invenire), uma invenção: ele foi descoberto por aqueles que o
reivindicam como seu. Os relatos de fundação são, raramente, relatos de
autoctonia, na maioria das vezes, ao contrário, relatos que integram os gênios do
lugar e os primeiros habitantes à aventura comum do grupo em movimento. A
marca social do solo é muito necessária porque nem sempre ela é original”
(Augé, 2013:44)

A “invenção” do mundo, ou a fundação do mundo é uma ideia clara quando tratamos


do mundo mágico demartiniano, ou o mundo indígena de Augé. Essas ideias nos
parecem distantes, no entanto, quando tratamos de um mundo moderno e urbano.
Vejamos, porém, a ideia de Augé sobre os limites do mundo.

“A fantasia dos indígenas é aquela de um mundo fechado fundado de uma vez


por todas, que não tem, a bem dizer, que ser conhecido. Dele, já se conhece tudo
o que existe para conhecer: as terras, a floresta, os mananciais, os pontos
notáveis, os locais de culto, as plantas medicinais, sem desconhecer as
dimensões temporais de um estado dos lugares cuja legitimidade os relatos de
origem e o calendário ritual postulam, e cuja estabilidade eles asseguram em
princípio. É preciso, nesse caso, reconhecer-se aí. Todo acontecimento
imprevisto, mesmo que do ponto de vista ritual, é perfeitamente previsível e
recorrente, como o são os nascimentos, as enfermidades e os falecimentos, pede
para ser interpretado não, a bem dizer, para ser conhecido, mas para ser
reconhecido, isto é, para ser passível de um discurso, um diagnóstico, nos termos
já repertoriados, cujo enunciado não seja suscetível de chocar os guardiões da
ortodoxia cultural e da sintaxe social” (Augé, 2013:45)

80
Quando trata a noção dos indígenas e um mundo fechado e fundado de uma vez por
todas como fantasia, Augé aponta o desafio mais arrojado desta pesquisa de questionar a
noção de mundo do homem ocidental urbano do século XXI. Nosso argumento até este
ponto foi de que a ciência e o cristianismo interceptaram-se ao longo de nossa história
recente na tentativa de afirmar suas ideias de mundo fechado com limites bastantes
conhecidos.

Quando Augé diz que o sujeito precisa reconhecer-se em seu mundo, nos remete
imediatamente à crise da presença, na qual De Martino elabora uma crise existencial
provocada por um risco de perder-se no mundo. Ou seja, a interação do ambiente
externo em constante risco e mutação com o homem, também em constante mudança,
provoca uma crise de auto reconhecimento. O homem que não se reconhece em seu
lugar está perdido de si mesmo.

Augé ainda coloca neste breve parágrafo uma outra ideia importante que nos ajuda a
compreender em outras formas o pensamento do autor italiano, a questão de
previsibilidade dos fatos, mesmo os imprevistos. De Martino trabalhará o conceito, pelo
qual passamos brevemente e retomaremos, de de-historificação do devir, ou seja,
suspender o devir histórico e sua periculosidade, agindo nele como se se estivesse
repetindo um ato cosmogônico, de fundação. Por meio do mito, o imprevisto é
reconfigurado e resolvido, porque em um tempo outro (illo tempore), no mito, aquela já
era uma situação prevista e foi resolvida positivamente.

A relação com o lugar é constitutiva da identidade individual, conforme propõe Augé.


Para ele, os lugares possuem três características comuns: identitários, relacionais e
históricos.

“Nascer é nascer num lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar
de nascimento é constitutivo da identidade individual e acontece, na África, de a
criança nascida por acidente fora da aldeia receber um nome particular
emprestado de um elemento da paisagem que a viu nascer” (Augé, 2013:52)

Augé faz uma observação especialmente interessante para a análise que propomos nesta
pesquisa: “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (Augé,
2013:53). Neste ponto, justifica-se exatamente a crise da presença no sentido de uma

81
crise de separação da história. O resgate do sujeito é justamente sua realocação na
história – e no mundo.

Em La Fine del Mondo, De Martino relata um episódio em que deu carona a um senhor
pelas estradas da Calábria. O autor conta que o homem fitava o campanário de
Marcellinara, sua vila, como uma referência. Ao perder de vista o campanário, o velho
ficou nitidamente agitado, olhando a todo momento em direção ao horizonte buscando
alguma outra referência que pudesse por fim á sua angustia. O autor afirma que
“certamente a presença entra em risco quando chega o limite da sua pátria existencial,
quando perde o “campanário de Marcellinara” (De Martino, 1977:480-481). O autor
argumenta que ao perder seus referenciais de localização a presença precisa localizar-se
no espaço e na história. Esta afirmação possa ser uma pista para compreender a angustia
existencial de viver em “não-lugares”.

Augé avança em sua reflexão sugerindo que a supermodernidade, como ele chama os
tempos contemporâneos, deu lugar a um novo conceito espacial, os “não lugares”.

“Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço


que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como
histórico definirá um não lugar. A hipótese aqui defendida é a de que a
supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em
si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana,
não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos
a “lugares de memória”, ocupam aí um lugar circunscrito e específico” (Augé,
2013:73)

Para o autor, um mundo onde se nasce em um hospital e se morre em uma clínica é um


mundo prometido à individualidade solitária. Estamos aqui falando de um mundo que
pode ser o nosso mundo moderno ocidental. Para ele, os não lugares podem ser lugares
de passagem: o transito, a estrada, a rua, etc.

“Ele também não concede espaço à história, eventualmente transformada em


elemento de espetáculo, isto é, na maior parte das vezes, em textos alusivos. A
atualidade e a urgência do momento presente reinam neles. Como os não lugares
se percorrem, eles se medem em unidades de tempo” (Augé, 2013:95)

82
Certas características apontadas até aqui por Augé parecem bastante propícias para a
análise da crise da presença. Os não lugares são passageiros e não estabelecem um
diálogo claro com o homem. A paisagem urbana é especialmente fértil para este
fenômeno, já que o homem rural estabelece o diálogo com a “natureza” no longo prazo
no processo que vai do preparo da terra à colheita. No mundo urbano, as relações com o
mundo são imediatas e passageiras. Se chove, usa-se um guarda-chuva para
deslocamentos necessários. O sujeito nos não lugares é um indivíduo sem relações, sem
história, com uma frágil presença em constante risco.

Em Modernity at Large, de 1996, o antropólogo indiano Arjun Appadurai chegou a


propor que todo ritual poderia ser relido como uma forma de produção de lugar. A ideia,
que a princípio, me parecia estranha, soa nesse momento como uma reflexão frutífera
quando pensamos o mundo em construção. Os rituais de passagem podem ser lidos pela
perspectiva de produção de lugares, de localidades, como sugere o autor.

“Cerimônias de nomeação e tonsura, escarificação e segregação, circuncisão e


privação são técnicas sociais complexas para a inscrição da localidade nos
corpos. Olhadas com certa diferenciação, elas são maneiras de encarnar a
localidade, bem como para localizar corpos em comunidades socialmente e
espacialmente definidas. Ao simbolismo espacial dos ritos de passagem foi,
provavelmente, dada menos atenção do que ao seu simbolismo corporal e social.
Tais ritos não são simlesmente técnicas mecânicas para agregação social, mas as
técnicas sociais para a produção de "nativos", uma categoria que eu tenho
discutido em outro lugar (Appadurai 1988)” (Appadurai, 1996:179)

Para Appadurai, a construção de casas, preparo das terras, negociações dos espaços
públicos são todas formas de construir o lugar, de “construir o mundo”, como temos
tratado. As práticas rituais são, para o autor, formas de construção de localidade, como
ele defende.

“Como alguns dos melhores trabalhos sobre a lógica social dos rituais nas
últimas décadas mostram tão amplamente (Lewis, 1986; Munn, 1986;
Schieffelin, 1985), espaço e tempo são eles próprios socializados e localizados
por meio de práticas complexas e deliberadas de performance, representação e
ação. Temos a tendência a chamar essas práticas cosmológicas ou rituais -

83
termos que, distraindo-nos do seu caráter ativo, intenciona e produtivo, criam a
impressão dúbia de reprodução mecânica” (Appadurai, 1996:180)

Essas ideias nos ajudam a pensar como a crise da presença pode ser reconfigurada em
uma sociedade da era global, como chama o indiano. Preocupado com a reflexão sobre a
questão da territorialidade e identidade, argumenta em um artigo intitulado “Soberania
sem Territorialidade - Notas para uma geografia pós-nacional” a necessidade de pensar
para além da nação.

“A produção da localidade (Appadurai, 1996), como uma dimensão da vida


social, uma estrutura de sentimentos e em sua expressão material devivência da
"co-presença" (Boden e Molotch, 1994), enfrenta dois desafios numa ordem pós-
nacional. Por um lado, desafia a ordem e a ordenação do Estado-nação. Por
outro, o movimento humano no contexto de crise do Estado-nação reforça a
emergência de translocalidades.” (APPADURAI, 1997:34)

Appadurai fala especialmente de alguns contextos urbanos em que a conexão com o


Estado-Nação é frágil e esses centros se tornam translocalidades, um conceito que
podemos aproximar dos não lugares de Augé, apenas para efeitos de compreensão, sem
pretender discutir aqui suas tensões. Na mesma linha que temos argumentado, o
antropólogo indiano trata da fragilidade identitária desses centros urbanos que
funcionam como uma conexão entre o global e o local sem pertencer completamente a
um ou a outro.

“Muitas cidades estão se tornando translocalidades, substantivamente


divorciadas de seus contextos nacionais. Estas cidades dividem-se em dois tipos:
os principais centros econômicos tão profundamente envolvidos em comércio,
finanças, diplomacia e mídia internacionais que se tornaram ilhas culturais com
referências nacionais muito frágeis: Hong-Kong, Vancouver e Bruxelas são
exemplos desse tipo de cidade. Quer por processos econômicos globais que
ligam essas cidades entre si mais do que com seu país, quer por guerras civis
implosivas de origem transnacional, outras cidades transformam-se em
translocalidades fragilmente conectadas ao interior de seu país: Sarajevo,
Beirute, Belfast e Mogadício são exemplos desse segundo tipo” (Appadurai,
1997:36)

84
Apenas para validar aqui o argumento que tenho tentado defender de que a fragilidade
da presença observada por De Martino em seu mundo mágico rural pode ser
ressignificada para o contexto urbano, quero registrar a questão das conexões locais que
De Martino observou no tarantismo Apuliano. A região parecia especialmente fértil para
o desenvolvimento de técnicas de reintegração como o tarantismo por uma certa
desconexão histórica daquele povo com o entorno. As influências sofridas pela região e
suas indefinições políticas – a região foi uma das últimas a ser incorporada à Itália,
embora nunca tenha sido autônoma – geravam as condições para uma crise, no sentido
em que o mundo era um risco mais evidente por não ser propriamente definido (De
Martino, 1999).

Voltemos ao pensamento de Appadurai que em muito pode contribuir para a


compreensão da fragilidade da presença no contexto urbano. O indiano evoca o
exemplo do problema dos imigrantes e refugiados que vem gerando crises nos Estados
nacionais:

“Uma das raízes deste problema está nas concepções modernas de cidadania
que, ligadas a várias formas de universalismo democrático, tendem a demandar
um povo homogêneo com conjuntos padronizados de direitos.” (Appadurai,
1997:36)

Para De Martino – bem como para Lèvi-Strauss na Eficácia Simbólica – a relação do


social com o mito tem um papel de reintegração social no sentido de que nele os
indivíduos reconhecem seus dramas pessoais e os resolvem.

“Vamos agora considerar a questão a partir de um outro aspecto. O risco e o


resgate do feiticeiro não constituem um drama estritamente individual. Através
da figura do feiticeiro, através de seu drama existencial, é a comunidade em seu
conjunto, ou, pelo menos, um ou mais membros dela, que se abre para as
vicissitudes do ser-no-mundo que se perde e se reencontra” (De Martino,
2005:160)

Dessa forma, o que Appadurai chama de “trabalho da imaginação” nas sociedades


globais pode, assim como o mito, ser um instrumento de integração e de
reconhecimento. Aqueles que imaginam uma vida semelhante se identificam e agem
para conquista-la.
85
Para Appadurai o trabalho da imaginação é reagir. Com a ampliação do repertório social
de um indivíduo ou grupo, ele será capaz de realizar ações concretas que poderão levá-
lo a uma mudança de vida. Ao se confrontar com realidades sociais distintas, as pessoas
passam a ter a capacidade de idealizar ações que as levem a uma mudança de status
social. “Nos sonhos, finalmente, mesmo os indivíduos nas sociedades mais simples
encontraram o espaço para reconfigurar suas vidas sociais, vivenciar estados emocionais
e sensações proibidas e ver coisas que foram introduzidas em seu senso de vida
cotidiana” (Appadurai, 1996:5).

O que Appadurai nos mostra com seu conceito de “trabalho da imaginação” é que o
contato com realidades diferentes tem a capacidade de impulsionar os indivíduos a
tomar atitudes rumo a um novo status social que desejam. O antropólogo esclarece que
a imaginação não tem a força de concretizar realidades, mas o trabalho da imaginação é
reagir. A imaginação tem um sentido de projeção, de ser um prelúdio para a ação
(Appadurai, 1996:7).

O território perde a importância perante a possibilidade de realizar uma vida imaginada.


Neste ponto, faz-se necessário compreender a distinção entre imaginação e fantasia.

O trabalho da imaginação, no entanto, é abrangente, como sugere Appadurai. Mesmo


em situações de conflito, uma vez que os indivíduos de uma sociedade tenham acesso a
informações de outras sociedades, facilmente se apropriarão das mensagens dando tons
locais e passarão então a criar o que o antropólogo chamou anteriormente de fato social
coletivo. A ideia que se faz de um outro mundo é muitas vezes o ingrediente chave para
que muitas dessas pessoas resolvam fugir de uma situação de conflito, por exemplo. No
caso do ritual, o mito serve como repertório de possibilidades para imaginar as possíveis
soluções dos problemas e no tempo mítico foram solucionadas, embora possa precisar
de adaptações no mundo contemporâneo.

Appadurai coloca ainda que a ficção consumida por uma sociedade tem um forte peso
na alimentação de seu repertório imaginário. O antropólogo sugere que ao analisarmos a
literatura lida por um povo, por exemplo, poderemos compreender algumas das
aspirações desse povo, já que a ficção amplia o repertório e as possibilidades de
adequação social (Appadurai, 1996:58).

86
A ficção, por meio da literatura, filmes, telenovelas e mesmo dramatizações teatrais
influencia o imaginário na medida em que apresentam possibilidades de movimentos
sociais e releituras de situações por diferentes ângulos culturais. Dessa forma, uma
mulher asiática que lê um romance norte-americano poderá facilmente se apropriar
daquele contexto e imprimir em seu relacionamento elementos oriundos de tal literatura.
O imaginário também influencia a ficção em sua construção. Ao contar uma história
fictícia e colocá-la em um tempo localizado na história, mesmo com dados a respeito da
determinada época, o autor colocará ali elementos que imagina serem parte daquele
contexto.

Um mundo em construção é um mundo constantemente imaginado e posto à prova.


Quando falávamos do risco chegamos à beira desta ideia de um mundo possível, que
parece mais clara aqui. Os argumentos apresentados parecem deixar claro que vivemos
em uma possibilidade de mundo, uma possibilidade sempre posta á prova e sempre em
risco de não ser. O ser-no-mundo demartiniano é também uma possibilidade, uma ideia
imaginada, que deve ser garantida pelas técnicas culturais.

O risco de perder o mundo está menos relacionado ao risco do fim da paisagem, do fim
do lugar, do território, do que ao fim de autorreconhecimento no mundo. A crise da
presença como incapacidade temporária de objetivação do mundo é uma crise de fim de
mundo no sentido de que o sujeito está no lugar, mas ele o é. As fronteiras entre homem
e mundo são rompidas e não há mais distinção entre um e outro. Nesse sentido, o sujeito
em crise não se reconhece no mundo porque não há mundo.

Paula Montero, na mesma linha de pensamento sobre a globalização e a questão da


identidade, argumenta que vivemos um tempo de supressão física da distância. O
mundo é, ao mesmo tempo, um lugar muito grande e muito pequeno. Temos acesso às
informações e dados de lugares distantes que podem não nos dizer respeito, que geram
certa pressão por um posicionamento, uma opinião. Montero recorre a uma ilustração
interessante para demonstrar essa sensação em seu artigo “Globalização, identidade e
diferença”, de 1997.

"O jornalista Clóvis Rossi, em matéria sobre a desvalorização abrupta da moeda


tailandesa, o baht, em julho deste ano, expressou de maneira, a meu ver,
exemplar a natureza deste mal-estar: "Quer dizer que, além de todos os

87
problemas que já tenho", esbravejou ele, "preciso me preocupar também com o
baht?". Rossi fala do ponto de vista de uma geração para a qual o mundo parecia
imenso, inesgotável, no qual as capitais de países nunca visitados ou sequer
imaginados eram "mero verbete de aula de geografia — Afeganistão, capital
Cabul" (Folha de S. Paulo, 04/07/97, p. 1/2)" (Montero, 1997:48)

A autora questiona neste artigo como a questão das relações interculturais desse mundo
globalizado dialoga com as diferenças. Segundo ela, a antropologia como disciplina
deve se dispor a esta empresa de compreender o lugar da diferença em um mundo que,
segundo o argumento de alguns, caminharia para a homogeneização. Se pensamos nos
nossos objetos, o tarantismo e o candomblé, essa é uma preocupação já contida no
pensamento demartiniano que entendia o tarantismo, como bem coloca na introdução de
seu volume Terra del Rimorso, como um resquício de uma cultura isolada e que poderia
desaparecer na medida em que essa sociedade se integrava a uma sociedade maior e
mais organizada.

A convivência das diferenças em um mesmo espaço físico nos leva a uma nova
reflexão. Um ponto importante a ser compreendido é que a antropologia nasce com o
objetivo de diminuir as diferenças e, assim, humanizar os bárbaros (Montero, 1997:53).

Até aqui creio ter demonstrado argumentos suficientes para defender a hipótese de que a
fragilidade da presença no mundo urbano pode incitar uma crise que encontra no
simbolismo mítico-ritual do candomblé um horizonte histórico de resolução. Tal crise
seria resultado de uma fragilidade psíquica estimulada pelas inseguranças e incertezas
do conceito de mundo neste contexto. Os contrastes propostos pela globalização de um
mundo em expansão, que é ao mesmo tempo, pequeno gera a todo tempo uma
experiência de incerteza e inconsistência da presença.

Autores como Appadurai, que traz a questão da territorialidade, Augé com sua noção de
não lugares e Montero em sua defesa de uma antropologia que dê conta de um mundo
de múltiplas diferenças parecem conversar com o pensamento demartiniano de meados
do século XX, embora com alguma discrepância de termos, permeados por uma questão
comum que é o homem num mundo de movimentos mais rápidos. O propósito dessa
composição de autores é demonstrar a relevância de De Martino ao antecipar em

88
algumas décadas uma discussão que vem ganhando corpo apenas muito recentemente
por essa “antropologia da modernidade tardia”.

A realidade condenda, em construção e em perspectiva, foi se configurando ao longo


dos anos que seguiram a morte do autor italiano, em 1965, num ritmo que talvez
surpreendesse a ele próprio e ganharam novas nuances em mundo que quanto mais
globalizado, mais busca soluções locais para não perder seu referencial. Os sistemas
mítico-rituais, que para De Martino seriam soluções temporárias para sociedades em
certo grau de isolamento, estão vivos e pulsantes, como poderemos observar mais a
frente neste estudo sobre o candomblé de São Paulo, já objeto de outras pesquisas sob
outras abordagens teórico-metodológicas. A fragilidade da presença do homem parece
ser perene na história, ao menos do que podemos avistar até este momento.

89
Capítulo 2: A análise

2.1 As pessoas além das pessoas

Um relato de Pai Pedro de Xangô ilustra como a conquista de um lugar e de um status


se constrói no candomblé. O pai de santo me contou que sua filha de santo de Oiá M.
foi feita para o santo errado. “Ela era pra ter sido feita para Oxum”, contou ele.
“Quando ela chegou aqui estava tudo errado e a gente consegue dar um ‘cala boca’ pro
orixá errado. Depois que faz num santo, não tem mais jeito. Tem gente que muda de
santo a vida toda, faz a cabeça cinco, seis vezes. Aí dá tudo errado mesmo”, afirmava.

M. foi feita em outra casa de santo e foi procurar o Ilê Axé Xangô Airá depois de alguns
anos de santo completos. Ela, como muitos outros adeptos, foi procurar o candomblé
porque estava “ficando louca”. E quando chegou no terreiro onde se iniciou fez o santo
rapidamente.

O pai de santo identificou que ela era filha de Oiá – outro nome de Iansã – e foram
feitas obrigações para a orixá em uma iniciação considerada bem sucedida. Anos se
passaram e ela sentia que pouca coisa tinha mudado em sua vida. Oriunda de uma
tradição de umbandistas, ela continuou a tocar umbanda em sua casa e cuidar dos orixás
no candomblé.

“Não era problema de misturar. Uma coisa é uma coisa e a outra, outra. Mas eu
fiz cabeça e nada. As mesmas atrapalhações. A minha vida era uma coisa
empacada. Eu andava e não me mexia. Daí vim pra cá e aí aconteceu tudo isso.
Resolvi as coisas” (Agosto/2013)

De fato, M. nunca me contou que tinha sido feita para a orixá errada. Pai Pedro foi
quem me disse em uma ocasião que havia uma briga na cabeça dela, já que ela prestava
todas as obrigações para Oiá. Oxum sentia-se deixada de lado, segundo o pai de santo, e
prejudicava sua vida, sobretudo nos termos dos relacionamentos e da estabilidade.

M. tomou suas obrigações com Pai Pedro e hoje é uma de suas filhas mais velhas. A
virada em sua vida que era descrita como uma vida “parada” foi ainda mais significativa
porque Pai Pedro é de Xangô e M., sendo feita para Iansã, tornou-se uma figura

90
importante no terreiro. É a Iansã dela quem dança com o Xangô do pai de santo nas
festas, já que ela é uma filha de santo de meia idade que une duas características
importantes: o conhecimento dos preceitos do orixá e o vigor físico para realizar as
coreografias.

A filha de santo construiu não apenas um lugar para si, ao se tornar filha daquela casa e
ter seus santos assentados ali, mas também uma posição de importância. Ela deixou de
ser a pessoa com problemas e tornou-se a Oiá que dança com o Xangô que é dono da
casa. Uma posição de honra e destaque.

2.2 O atabaque comanda o ritual

Há uma figura de linguagem na língua portuguesa, a personificação, que consistem em


atribuir características humanas a objetos e animais. Assim aprendemos, com exemplos
como: “o céu está mostrando sua face mais bela”, e “o cão mostrou grande sisudez”.
Não tendo o céu uma face, e o cão, sisudez, o recurso também é chamado de
personificação. Ou seja, atribuir características e habilidades das pessoas a outros seres.
Para ser antropologicamente coerente, quero colocar aqui que entenderemos os seres
inanimados dos manuais de língua portuguesa, como “entidade não-humanas”.
Segundo o linguista Orlando Pires, a prosopopeia dá vida e sentimentos humanos a
coisas inanimadas.

Apresento este recurso linguístico porque ele é amplamente usado nos relatos de vida
dos filhos de santo do candomblé. O recurso demonstra, na linguagem, as sensações,
muitas vezes difíceis de descrever, dos adeptos do candomblé ao viverem suas crises e
ao contar as histórias que antecedem sua adesão à religião.

Em qualquer descrição dos rituais, a figura de linguagem é usada e, como veremos a


seguir, o recurso não representa um simbolismo, mas as entidades não-humanas de fato,
têm vida no candomblé. O atabaque chama as entidades, por exemplo.

Na ocasião da morte de um ogan de um terreiro amigo, uma conversa entre filhas de


santo me chamou a atenção. O diálogo seguiu mais ou menos assim:

91
- O atabaqueiro lá de cima morreu. Da Mãe Cleusinha.

- Vixe. O povo lá deve estar triste. E agora fica muito sem trabalho.

- Acho que lá eles fazem diferente. Na minha outra casa a gente chegava a ficar um ano
fechado quando era assim.

- Lógico, o tabaqueiro é o mais importante, sem ele não tem festa. Ele que levanta ou
derruba a festa.

O diálogo demonstra a centralidade do atabaque nos ritos do candomblé. O candomblé


se faz com objetos materiais. Todos os objetos têm sua importância e estão ligados a
uma lenda, a um itã. Seria um exercício possível e curioso descrever todo um ritual a
partir dos objetos. A danças do candomblé é uma coreografia de pessoas e de coisas.

A orixá Oxum tem uma dança em que coloca uma série de pulseiras nos braços, que em
muitos terreiros se faz simbolicamente, somente indicado o gesto de colocar as joias,
mas há terreiros em que Oxum coloca, de fato, as pulseiras. Depois de encher os braços
com muitas delas e mostra-las vaidosa a toda gente, Oxum as joga para longe. Já me
disseram que nesta dança Oxum quer mostrar que pode ficar bonita com ou sem as
pulseiras, transmite a mensagem de que não precisa dos adereços para estar bonita.

Xangô dança com fogo na cabeça e carrega um machado, Iansã com uma quartinha de
água, Oxumarê entra em uma bacia com água e cospe para o alto, Ogum tem suas
armas, espadas, Omulu carrega cabaças e dessa forma cada orixá tem seus objetos. O
terreiro é repleto de coisas físicas, os assentamentos são as representações, ou melhor
dizendo, as porções físicas dos orixás.

O objeto mais importante de um terreiro, porém, são os atabaques. São os atabaques,


como disse a filha de santo, que conduzem as festas. As cantigas dos orixás são
acompanhadas de toques específicos dos tambores que podem ser tocados com as mãos
ou com varas. Além dos atabaques, toca-se também o agogô e o adjá, que não tem a
função de um instrumento musical, mas é tocado pelas equedes e por pessoas mais
graduadas no candomblé para “chamar”, conduzir e acompanhar os orixás em suas
danças.

92
Os atabaques são frequentemente chamados de curimba, palavra que pode significar o
ritual em si. Geralmente há um número ímpar de atabaques, três ou cinco, sendo três o
mais tradicional. Ogan é o nome que se dá aos homens não-rodantes – que não viram no
santo – e tocam os atabaques. O ogan alabê é o mais graduado entre eles e acumula a
função de puxar as cantigas. Diz-se que os ogans são o segundo cargo na hierarquia do
candomblé.

Nas ocasiões de festas, os ogans chegam a passar o dia ensaiando para saber cada toque
que o pai de santo possa chamar. Cada orixá tem suas cantigas que, por sua vez, têm seu
jeito de ser tocadas. De Martino observa no tarantismo um status parecido dos músicos.

“A importância do simbolismo coreico-musical no tarantismo dava aos músicos


o papel de exorcistas, médicos e artistas, já que o sucesso da “exploração”
musical e a cura eficiente dependiam de sua intervenção e sua habilidade para
tocar a música “adequada”” (De Martino, 1999: 154)

Os atabaques são os condutores do ritual porque são eles que induzem ao transe,
chamam os orixás e estimulam a possessão. Gilbert Rouget dedicou um extenso volume
à relação da música com o transe. E a primeira diferença que faz notar é uma
conceitualização de êxtase, transe xamânico e o transe de possessão. Para ele, o êxtase é
um estado de silêncio, imobilidade e solidão. Já o transe é uma crise evidente marcada
pelo movimento. O transe xamânico é, segundo o autor, uma viagem ao mundo dos
espíritos. O transe de possessão é quando um espírito passa a agir no corpo do possuído.
No caso do candomblé, o transe de possessão é a crise recorrente no ritual.

“O transe si, em outras palavras, o período durante o qual o sujeito se instala, por
assim dizer, na sua outra persona e coincide totalmente com ela, tem, pelo
contrário, uma relação bastante estável com música. Em sua forma mais plena, e
refiro-me à forma que exibe durante as cerimônias públicas de possessão, o
transe consiste, na maioria das vezes, em dançar ao som da música que pertence
à divindade, ou, se existem várias pessoas, ao som da música que corresponde
coletivamente a todas as divindades presentes” (Rouget, 1985:323)

A música, para Rouget, opera três papeis fundamentais nas cerimônias. O primeiro é
criar a atmosfera adequada para que os adeptos se conectem emocionalmente com os

93
outros membros e o ritual. O segundo é conduzir os adeptos à uma “mutação” de seus
estados. E o terceiro é a condução da manifestação do transe.

A condução do transe é um ponto fundamental para De Martino, já que o simbolismo


mítico-ritual é o controle da crise, ou seja, as manifestações que parecem descontroladas
ganham uma razão de ser na prática ritual. A técnica ritualística molda as crises
espontâneas em modelos culturalmente aceitos e, por isso, passíveis de resolução por
meio da repetição do exemplum mítico.

Toda a coreografia do ritual organiza a crise de modo que ela possa ser celebrada em
segurança, em um momento de suspensão do tempo histórico que o autor chama de
“regime protegido”. O ritual é regrado em completude.

Analisando os rituais do que o autor chamou de “mundo mágico”, De Martino esclarece


que o uso das técnicas rituais são intencionais e controlados.

“A análise das técnicas mágicas para produzir as condições do transe parece,


pois, ter como finalidade o enfraquecimento ou atenuação do ser-no-mundo, a
dissolução da consciência como presença. Mas esta é apenas uma aparência, um
engano da abstração própria de nossa análise. Mais uma vez, o risco que expõe o
"estou aqui" é, mais um momento do drama existencial mágico: no outro
momento se dá o resgate do ser- no-mundo, a afirmação da presença, a
articulação de um mundo significativo no qual se está presente” (De Martino,
2004:155-156)

A perda da presença é, segundo De Martino, uma “de-historificação irrelativa”, ou seja,


a perda por si só, pura descarga emocional e psicopatológica, doença. Quando esta
ocorre em um contexto ritualístico planejado, protegido, se torna “de-historificação
institucional”: é a cura.

“A técnica de "de-historificação mítico-ritual" pode de fato ser considerada uma


aplicação orientada e instrumental da capacidade da mente humana de funcionar
em diferentes registos ou regimes de consciência. Esta técnica seria, na verdade,
uma variação entre múltiplas formas históricas e culturais possíveis, de
exploração de determinados recursos psíquicos bastante espontâneos nos homens
e podem ser chamados para a cultura para para fins de auto-construção, de auto-

94
preservação. Esses recursos incluem a capacidade de de-realização se si ou parte
do si, à qual o eu é submetido, por exemplo, para fins terapêuticos, no contexto
do médico e da hipnose” (Mancini, 2008: 58-59)

Mancini aponta a sofisticação do pensamento demartiniano neste trecho, ao relacionar a


compreensão do autor de que o uso da técnica de de-historificação é uma aplicação
particular historicamente localizada da cultura. A de-historificação institucional é eficaz
porque se apoia em um horizonte metahistórico compartilhado.

À distinção da de-hisotorificação irrelativa e institucional, Marcello Massenzio dedica


especial atenção no artigo “Il Problema Della Destorificazione” (1986).

“A de-historificação religiosa é uma instituição cultural absolutamente


fundamental que, graças à peculiar dialética que a sustenta, permite a afirmação
do plano histórico justamente por sua negação preliminar, de acordo com os
diferentes modos, que emergem nas passagens citadas. A de-historificação
irrelativa é a-dialética e de caráter natural: ela sinaliza a regressão à natureza
sem compensação, a perda, sem resgate, da dimensão histórica. A primeira
forma não deve ser entendida apenas como a antítese da segunda, mas também -
e acima de tudo - como uma expressão da tensão coletiva para recuperar-
remodelar a outra, como a resposta cultural solicitada pelo risco permanente
representado pelo surgimento da outra” (Massenzio, 1986:24)

Ao analisar o tarantismo apuliano, De Martino encontra nos gregos uma chave para a
compreensão da relação da música com a possessão. O antropólogo italiano busca na
história da civilização ocidental uma certa referência estrutural do uso ritual da catarse
musical. De Martino alerta que sua comparação faz sentido porque existiu um
“complexo arcaico protomediterrâneo” (De Martino, 1999:239) que conecta a cultura
apuliana dos anos 50 ao mundo grego antigo.

De Martino busca em Platão, em seus escritos sobre os cultos orgásticos, a chave para a
interpretação da catarse musical no tarantismo.

“Platão, além de não confundir a loucura com o rito religioso, as desordens


psíquicas com a ordem mítico-ritual dos cultos orgásticos, adverte que a ordem

95
mítico-ritual se concentra na crise, imitando-a para liberta-la, para mudar de
signo e conduzir à sua resolução” (De Martino, 1999:242)

É por meio da performance, ou seja, da coreografia musicada, que a crise é configurada,


ganha forma e sentido. Em um anexo de La Terra del Rimorso, o etnomusicólogo que
acompanhou De Martino em sua viagem etnográfica, Diego Carpitella, apresenta uma
análise intitulada “O exorcismo coreico-musical do tarantismo”.

“'Módulo coreico-musical' significa técnica protetora em um contexto mágico-


religioso; também significa proteção da crise por meio de modelos
tradicionalizados de gestos, sons, imagens, ritmos e melodias; significa, acima
de tudo, fidelidade cultural a certos modelos, que funcionan como instrumentos
de evocação e controle admitidos socialmente que se põem em prática a cada vez
que se desencadeia a crise do tarantismo. Crise, ritmo, melodia, imitação e
resolução terapêutica: no tarantismo há um vínculo orgánico entre todos eles,
conpõem um drama que desde a laceração inicial continua conquistando seu
próprio fim. Em particular, a relação entre a crise e os sons adquire um enfático
caráter de reciprocidade” (Carpitella in De Martino, 1999:345)

Como no tarantismo, o som tem uma característica de reciprocidade. A pessoa responde


ao toque do atabaque que indica quais gestos, quais coreografias e quando os orixás
devem se manifestar. Os adjás, tocados pelas equedes, produzem o som também capaz
de “ordenar” o transe, conduzindo o orixá na direção em que deve dançar, por exemplo.

Carpitella afirma que a proteção da crise se dá por meio de gestos, sons, figuras, etc. que
compõem um modelo tradicionalizado e aceito socialmente. Isto é, a crise que é tomada
inicialmente como algo fora de padrão, é modelada de modo a ganhar sentido em um
horizonte mítico compartilhada. Fora do contexto ritual, a coreografia pode significar
uma desordem, mas quando a crise é apropriada pelo grupo e significada ela se torna um
poder organizador da vida. Ao fazer o que todos fazem, o sujeito é incluído em um
tempo-espaço no qual pode dar vazão ao seu potencial catártico.

Carpitella distingue a dança profana da coreografia ritual. Segundo ele, a coreografia


ritual conta uma história, um drama que narra da crise à resolução. A dança profana não

96
necessita de um sentido narrativo coerente. Assim como no candomblé, ou nos odissis
indianos, a dança conta uma história.

A relação do som com o movimento é física, conforme explica José Miguel Wisnik, em
seu livro “O Som e o Sentido”. O som são as ondas produzidas pelas vibrações dos
corpos – corpos como porções de matéria, no sentido da física- alternando entre
impulsões e repousos.

“Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se
transmite para a atmosfera sob forma de uma propagação ondulatória, que o
nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe
configurações e sentidos" (Wisnik, 2002:17)

A partir dessa concepção fica muito mais evidente a relação que o candomblé tem com
o som. A música é o elemento central de uma prática corporal (coreica) para garantir a
presença, ou seja, a presença atuante na história. A música estimula o corpo a uma
coreografia ritmada de modo a conectar corpo e som, mundo físico e mundo psíquico
em um movimento coordenado e contínuo.

Argumentei anteriormente que a crise da presença, cujo um dos sintomas é a depressão


em suas diferentes formas, é um descompasso entre tempo e espaço. O sujeito em crise
tem uma dificuldade de objetivação do mundo exterior e perde a capacidade de
localizar-se temporal e espacialmente. O ritual coreico-musical, em seu uso terapêutico,
estimula a pessoa a encontrar uma coerência rítmica que a ajuda a replasmar sua
presença no mundo.

“A música encarna uma espécie de infraestrutura rítmica dos fenômenos (de toda
ordem). O ritmo está na base de todas as percepções, pontuadas sempre por um
atabaque, um modo de entrada e saída, um fluxo de tensão/distenção, de carga e
descarga. O feto cresce no útero ao som do coração da mãe, e as sensações
rítmicas de tensão e repouso, de contração e distenção vêm a ser, antes de
qualquer objeto, o traço de inscrições das percepções" (Wisnik, 2002:29)

Pai Pedro me disse mais de uma vez que é muito importante monitorar o filho de santo
enquanto ele está irradiado do orixá, uma das palavras que usam para falar da possessão.
“A gente fica o tempo todo medindo a pulsação do filho de santo enquanto está de

97
orixá. A irradiação é muito forte e a gente precisa controlar, pedir pro santo parar de
dançar um pouco às vezes para baixar os batimentos” (Pai Pedro de Xangô, Santo
André, ago. 2013).

F., filho de Omulu e um dos mais velhos da casa de Pai Pedro, tem um dos orixás que
realizam as danças mais vigorosas do terreiro. As danças de Omulu são rápidas e
repletas de pulos e giros. A família adotiva de F. sempre frequentou o candomblé e sua
mãe adotiva era iniciada para Iemanjá. Apesar de ter contato com sua mãe biológica e
relacionar-se bem com ela, os detalhes da história de sua adoção nunca me foram
revelados. O curioso é que F. foi feito para Omulu que, segundo a lenda, foi adotado por
Iemanjá após ser rejeitado por Nanã.

F. é gay, como muitos dos outros filhos de santo de seu terreiro, e apesar de muito bem
sucedido, um de seus assuntos preferidos em rodas de conversa é reclamar o quanto é
dura sua vida profissional. Ele ocupa um cargo de confiança em uma empresa que
presta serviços para altos executivos de grandes corporações. F. lida diariamente com
trâmites de alto valor financeiro.

O filho de santo conta que em sua iniciação ele sofreu um infarto dentro do roncó –
quarto onde ficam os iaôs durante a iniciação ou suas obrigações periódicas. F. foi
iniciado por outro pai de santo e somente depois de algum tempo tomou obrigações com
Pai Pedro. Ele conta que teve um transe mais cedo naquele dia e estavam raspando sua
cabeça e achou que teria outro, mas o pai de santo chamou uma ambulância. Ele foi
levado ao hospital com metade da cabeça raspada e “sujo de roncó”, como ele mesmo
descreve. No hospital foi identificado que ela estaria sofrendo “princípio de infarto”.
Depois de medicado e estabilizado, ele assinou um documento assumindo a
responsabilidade de sua saída do hospital. F. voltou ao terreiro, teve um transe e deram
“rum” em seu orixá – conduzir o orixá em um circuito coreográfico - e os outros dias da
iniciação correram normalmente.

Míriam Rabelo, ao propor o estudo da religião a partir do corpo, reforça a ideia de que a
estabilidade social depende de uma estabilidade entre corpo e lugar. Estar aí, ou a
presença em termos demartinianos, é estar presente, alocado, ter um lugar. Os corpos
localizam-se em um mundo em movimento por meio do movimento orientado pelo som.

98
No ritual do candomblé o som conduz os corpos a um movimento ritmado que os alinha
com todo o universo vibrante. Ao analisar um ritual de bori, ela diz:

“Mas a compreensão que se produz aqui é menos captação de significado do que


prática corporal: o estabelecimento de uma sintonia entre corpo e entorno, pelo
qual o primeiro integra a si uma situação, respondendo e ajustando-se a ela”
(Rabelo, 2011: 19)

A ideia do corpo ajustado ao entorno está de acordo com a ideia, que defendo aqui, de
que a música é central no candomblé ao promover o encontro do corpo com o som e
com “o sentido”, o significado a ser atribuído à crise e, portanrto, sua resolução. Rabelo
(2011:25) avança ainda em sua hipótese ao analisar a relação dos objetos no candomblé
e afirma que a pedra do assentamento dos orixás – otá – não é uma representação do
orixá, ou seja, ela não simboliza o orixá, ela é o orixá.

Baseado nessa ideia, retomo o que afirmei no começo deste capítulo que o atabaque é o
elemento central do terreiro. O ogan é importante porque faz produzir som do atabaque,
mas é o atabaque em si que comando o ritual. O atabaque é cuidado com a mesma
cerimônia que os outros objetos do ritual, recebendo reverência e zelo.

2.3 O homem é engolido pelo mundo

Neste item extrapolo a teoria demartiniana articulando-a com ideias de Isabelle


Stengers, Tim Ingold e Míriam Rabelo em uma proposta contemporânea de
compreender a influência de não-humanos nas culturas. Embora De Martino nunca
tenha tocado no tema de “culturalizar” os não-humanos, ouso, a partir de sua teoria,
aproxima-lo ainda mais de uma corrente de pensamento contemporânea que trilha um
caminho a partir de questões semelhantes às de De Martino.

Quando Saunders argumenta que há na ideia de “ser absorvido pelo mundo” uma
implícita dificuldade na diferenciação entre natureza e cultura, ou de objetivação do
mundo, encontramos uma chave para a interpretação do ritual como técnica de resgate
da presença ameaçada. O candomblé reintegra a presença por meio da replasmação do

99
homem e do mundo e da quebra de fronteiras culturalmente estabelecidas entre o sujeito
e o mundo “externo”.

Por meio do ritual coreico-musical, o candomblé extrapola os limites do corpo e faz-se


necessário observar os movimentos dos elementos não-humanos que fazem parte dos
rituais e determinam o andamento destes. Os movimentos observados no candomblé
vão além dos gestos, coreografias e fluxos das pessoas. Os movimentos da natureza, dos
objetos – como a queda dos búzios -, dos animais e dos orixás não podem ser analisados
como coadjuvantes em uma análise dessas práticas.

No ritual, a relação com o mundo externo, ou seja com a natureza no modo como foi
concebida pela ciência a partir do século XVI, e com tudo aquilo que está fora do
homem é em regime de diálogo. O mundo tem voz, reage e é reagido. A começar pelo
jogo dos búzios que é o oráculo determinante do candomblé. Tudo é decidido por meio
do jogo, inclusive as sucessões, quando um pai ou mãe de santo morre, são designadas
com o jogo.

Os búzios são o modo de comunicação dos homens com as forças da natureza e a


natureza em si, já que são conchas de origem marinha. A ação do homem tem um limite
no jogo. A partir do momento em que são lançados, é o movimento das conchas que
passa a protagonizar o ato. A relação do homem com a natureza é explicitada neste
exemplo. É necessário que o homem lance os búzios e interprete sua queda, mas o são
as próprias conchas, ao serem atiradas, que tem o poder de decisão sobre qualquer
questão.

Miriam Rabelo observa o papel fundamental da comida nos terreiros.

“A presença conspícua da comida no terreiro aponta para a centralidade da


transformação no candomblé. Atenção às atividades de preparo, distribuição e
consumo do alimento permite-nos entender, além do mais, como transformação
cultivada no terreiro reveste-se de dimensões estéticas e éticas. Essas atividades
mostram-nos, de fato, como ética e sensibilidade estão estreitamente imbricadas
no candomblé” (Rabelo, 2013:87)

Rabelo apresenta relatos de campo em que a comida é o foco. Em uma descrição de um


ebó – oferenda para os orixás-, a autora descreve como os participantes têm porções das
comidas dos orixás para quem se faz a oferenda derramadas sobre seu corpo.

100
“Neste percurso é a comida (e não o corpo) quem age – absorvendo as energias
negativas nele retidas. Talvez seja melhor dizer que o corpo e comida se
misturam (as fronteiras entre eles são temporariamente afrouxadas)” (Rabelo,
2013:89)

A autora ainda ressalta o papel da comida como um elo entre a pessoa e o orixá. A
comida que passou pelo corpo do sujeito é um bom modo e compreender a
performatização do ser engolido pelo mundo. A comida que age sobre o corpo do filho
de santo foi preparada por ele, ou por outros filhos de santo seguindo uma rígida
coreografia em sua preparação.

Em sua pesquisa no tradicional terreiro baiano Ilê Opô Afonjá, de Mãe Stella de Oxóssi,
a pesquisadora Rosamaria Barbara destaca o seguinte depoimento que recolheu de uma
mãe de santo:

"É assim, cortar quiabo é um negócio sério, dá força. Olha ontem comecei a
cortar lá pelas 21 horas e hoje comecei cedo. Devo tudo a ele, ao meu senhor, ele
me deu uma casa; dinheiro nunca me faltou para alimentar meus filhos. Ele
sempre me ajuda na luta, que a vida, filha, é luta. E, olhe lá, uma mulher deve
ser independente do marido. COm eles nunca se sabe, não prestam, homens não
prestam... e de dinheiro. Quando precisei, Xangô sempre me ajudou a mim e à
minha família" (Barbara, 2002:35)

A luta e as ameaças do cotidiano estão aí postas. O ritual, a coreografia de cortar os


quiabos para preparar a comida de Xangô é mais que um preparo de alimentos. É um
momento de conexão com o orixá e com o mundo.

A coreografia no candomblé não é apenas a dança que os filhos realizam para os orixás,
ou quando estão possuídos por estes, mas é também uma dança que se faz com o
mundo. No ritual do candomblé, as fronteiras entre pessoas e mundo são
constantemente afrouxadas, muitas vezes até seu completo rompimento. Os orixás são
as forças da natureza, mas seus filhos são essencialmente como seus orixás. Iansã é a
orixá do vento e é, ela mesma, o próprio vento. Quando os filhos de santo saúdam Iansã
estão saudando o vento.

Descrevo a seguir uma parte da festa de Xangô no terreiro de Pai Pedro para efeito de
ilustração deste argumento.

101
Na festa de Xangô, que é o orixá de Pai Pedro, há uma fogueira no quintal da frente da
casa onde fica o terreiro. As casas de santo e as danças são realizadas no fundo do
terreno em uma área coberta de telhas. Após o xirê, quando os filhos de santo cantam e
dançam para os 16 orixás cultuados no candomblé de nação ketu, o pai de santo se
aproxima da roda – antes ele fica mais afastado em sua cadeira – e começam então a
cantar para Xangô.

A chegada do orixá é um momento de grande comoção e euforia. Todos gritam a


saudação do orixá, no caso de Xangô, kaô cabecile, e o toque dos atabaques e as danças
ficam gradativamente mais rápidas e com gestos mais agressivos. Os gritos aumentam,
como se todos chamassem o orixá que chega em um gesto brusco como se Pedro
levasse um empurrão e um choque que fazem seu corpo tremer e cambalear por alguns
poucos segundos até que o orixá dá um pequeno pulo, assume sua postura e urra
mostrando sua presença. Assim que Xangô toma o corpo de Pedro, todos os filhos de
santo da casa e algumas pessoas que foram assistir ao ritual entram em transe, de modo
bastante parecido, uma descompensação do equilíbrio do corpo e tremores, como se
correntes elétricas passassem por seus corpos.

Nesse momento, Pedro não está mais ali, ou como descreve De Martino, está como se
não estivesse. Seu corpo, segundo as descrições dos adeptos, é controlado pela vontade
dos orixás. Embora muitos filhos de santo declarem uma consciência do que acontece,
eles explicam que se tentam realizar gestos diferentes daqueles que o orixá quer, este
assume o comando da consciência.

O pai de santo é o primeiro a ser levado pelas equedes para o quarto de santo para que
Xangô vista suas roupas rituais. Antes do transe, o pai de santo está vestido para a festa
com suas roupas. Quando o santo chegue, o vestem com as roupas dele, em suas cores e
com seus adereços, como um machado, no caso de Xangô. Os outros filhos de santo e
pessoas não iniciadas que entraram em transe são levados depois para os quartos de
santo e “desvirados”, ou seja, as equedes “orientam” o santo a despossuir a pessoa, que
volta para a roda, ou para as cadeiras onde ficam os expectadores. Em algumas festas,
alguns santos continuam virados. Nas festas de Xangô, as Iansãs e as Oxuns costumam
ficar, neste dia específico que relato aqui, as filhas de santo voltaram para a roda fora de
transe.

102
Após realizar suas danças por cerca de meia hora, Xangô dançando puxou sem muita
força a roupa das duas filhas de Iansã presentes que imediatamente foram possuídas por
seus orixás e acompanharam o Xangô de Pedro em sua dança que saiu dos limites da
roda e entrou no quarto de santo. As Iansãs foram em direção à fogueira na parte da
frente do quintal. Nesse momento, outros filhos de santo levantaram a base de madeira
onde ficam encaixados os atabaques e levaram os instrumentos enquanto estes eram
tocados pelos ogãns para próximo da fogueira. As Iansãs ficaram em torno da fogueira
enquanto alguns filhos de santo derrubaram a fogueira e espalharam as brasas.

Pai Pedro, possuído de seu Xangô, saiu do quarto de santo carregando na cabeça um
prato de barro grande e fundo em chamas e dançando se dirigiu à fogueira, agora
espalhada pelo chão em brasas, e dançou sobre ela. Xangô dançou por cerca de três
minutos entre a brasa e o chão de cimento do quintal e foi até as Iansãs e deu a colocou
na boca e cada uma um pedaço da brasa que pegou do prato que carregava na cabeça
ainda em chamas. As Iansãs saudaram Xangô com gritos e um tremer dos ombros típico
da apresentação dos orixás e comeram a brasa oferecida por Xangô.

É interessante destacar aqui que todo o processo de dança e todo o período em que o
orixá possui seus filhos, eles permanecem de olhos fechados. Das cerimonias que
acompanhei, vi apenas um Ogum abrir os olhos para dar uma bronca em um filho de
santo e ouvi relatos de Oxumaré dançar de olhos abertos, embora tenha sempre visto em
vídeos na internet Oxumaré dançar de olhos fechados.

Estar de olhos fechados durante a realização de todas essas ações enfatiza a ideia de ser
envolvido pelo mundo. Quando o sujeito é privado de seu sentido que mais representa a
conexão com a ideia de realidade, o mundo exterior, o mundo passa então a agir no ser e
misturar-se a ele.

Quando o Xangô de Pai Pedro anda sobre a brasa é uma demonstração de múltiplas
realidades sobrepostas. Xangô é o orixá do fogo, por isso, o próprio fogo. O ato é,
portanto, a integração do fogo personificado com o fogo enquanto elemento puro. A
ação prova ainda a força e a presença do orixá ao realizar algo que o filho de santo
humano, livre de sua influência, teria dificuldade para fazer. Quando Xangô dança sobre
a brasa não há separação entre espíritos, humanos e natureza. Todas essas realidades
estão fundidas em um único ato. A personalidade de Pedro é irrelevante, ao mesmo
tempo, é seu corpo que possibilita a ação do santo. Pedro está aí, como se aí não

103
estivesse. Em Il Mondo Magico, De Martino dedica algumas páginas de seu primeiro
capítulo aos rituais em que as pessoas caminham sobre brasas, ou pedras quentes (De
Martino, 2004:74-83).

Neste momento do ritual as pessoas choram, gritam as saudações de Xangô e de Iansã


(Eparrei Oiá), agitam-se, batem palmas e algumas até movem o corpo como se
integrassem aquele momento.

Depois das festas sempre há uma comida que é servida aos convidados e membros da
comunidade do terreiro. Comer depois do ritual é o momento em que a ordem cultural
das coisas retorna a um padrão estabelecido. O banquete pós-ritual é um momento
importante para o relaxamento e a reintegração das pessoas com a vida cotidiana. A
comida que nos rituais internos e durante as oferendas ganha outros status volta a ser
alimento que sustenta.

Como observa Rabelo, a comida tem uma “presença conspícua” nos rituais de
candomblé. Essa presença é, no entanto, uma presença mutável e assume diferentes
papéis em cada etapa do ritual. Durante o ritual do bori, usado por Rabelo para
ilustração de seu argumento, a comida é derramada nos filhos de santo. Noto que assim
como De Martino argumenta que a presença é replasmada ao longo do ritual, também a
comida o é. Nesse sentido, meu argumento de que o adepto do candomblé rompe as
barreiras objetivas da realidade e integra-se ao mundo, a comida é uma importante de
referência de objetivação e desobjetivação. Se há momentos em que ela engole o sujeito
ao ser derramada sobre sua cabeça, no fim dos rituais, com a presença resgatada, ela
volta a ser comida objetivada, controlada e engolida pelos participantes.

O momento do banquete final das festas públicas é quando todos os santos já foram
alimentados, receberam suas oferendas, foram cuidados, vieram dançar para seus filhos
e agora estão calmos. As festas públicas, no entanto, são o rito final das obrigações que
os filhos de candomblé têm. Pai Pedro de Xangô explica que as obrigações são feitas
em rituais internos durante alguns dias antes das festas públicas. Segundo Pai Pedro:

“As festas são um momento de festa mesmo, de celebração que o orixá aceitou
as oferendas, que a casa e os filhos estão em equilíbrio. Por isso que o orixá vem
dançar para as pessoas, porque está feliz, está satisfeito e quer mostrar seu axé
para todo mundo que vier” (Pai Pedro de Xangô, Santo André, ago. 2013)

104
Antes das festas são preparadas as comidas dos santos, as matanças quando se oferece o
sangue dos animais sacrificados para os orixás e muitas outras atividades “secretas”.
Coloco a palavra secretas entre aspas por essa se tratar de uma discussão contemporânea
entre muitos antropólogos dedicados aos temas das religiões afro. Há registros,
inclusive etnográficos, de práticas consideradas secretas e há ainda uma grande
discussão entre terreiros de quais rituais são passíveis de publicação e quais não. Fato é
que há uma grande parte da prática do candomblé em que o público não-adepto não é
bem-vindo.

Há nas práticas mais internas um espaço muito maior para o caos que nas festas
públicas. As festas públicas seguem um roteiro muito mais rígido e, por ser o fim das
obrigações, nessas aparições há pouca interação dos orixás. Os orixás vêm, dançam e
vão embora. Assistir às festas é bastante pouco para conhecer o candomblé, mesmo do
ponto de vista meramente ritual.

Ao longo das páginas que precedem argumentei como o mundo não é um dado,
conforme escreveu De Martino, e como mesmo no mundo urbano contemporâneo, a
realidade está a todo tempo em transformação e o candomblé, assim como o tarantismo,
é uma técnica para construção das pessoas e do mundo.

Marcio Goldman afirma que a construção da pessoa deve ser encarada a partir da ideia
de que o “eu” possui um caráter múltiplo (Goldman, 1985). Para o autor, o candomblé
não segue um modelo ocidental de construção de identidade individual e particular. O
candomblé se baseia em um modelo não-individualista de pessoa. Tanto na interação
com o orixá, mas não somente dele, como de seus irmãos de santo, ou seja, pessoas que
compartilham do mesmo orixá.

Goldman afirma que é necessário, para compreender o transe, investigar a “noção de


pessoa” em um terreiro de candomblé. Em sua pesquisa, o autor identifica que o espírito
de uma pessoa é composto por diversos elementos, sendo eles: sete orixás que variam
em importância, um erê (entidade infantil), egum (alguém que já morreu) e Exú.

“São exatamente esses componentes da “pessoa” os responsáveis pela possessão,


em suas várias modalidades, no candomblé. Essas modalidades, contudo, jamais
são contemporâneas, e é de acordo com seu tempo de iniciação – sua “idade no
santo” – que um filho-de-santo experimenta um ou outro tipo de transe”
(Goldman, 1985: 36)

105
O autor apresenta neste trecho elementos importantes para sustentar os argumentos que
venho defendendo. O primeiro é de que a pessoa se constrói ao longo do tempo, de
modo que o devir é contemplado no candomblé como elemento fundamental à pessoa,
ao mesmo tempo que a coloca em risco, o risco de nunca ser completa caso algum
percalço a desvie no longo do caminho. Goldman traz ainda, neste pequeno trecho, o
movimento coreografado: há no passar do tempo uma coreografia, um movimento da
vida que vai se tornando cada vez mais complexo.

“Percebe-se então que o ser humano é pensado no candomblé como uma síntese
complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes materiais e
imateriais – o corpo (ara, o Ori, os orixás, o Erê, o Egum, o Exú” (Goldman,
1985: 37)

Quero extrapolar esta hipótese para afirmar que o mundo, assim como a pessoa, é
construído constantemente no candomblé. O candomblé cria uma forte conexão entre o
sujeito e o mundo ao longo de sua convivência nas práticas rituais. O assentamento
realizado durante a iniciação é o momento mais marcante para o que afirmo. Na
iniciação, não por acaso chamada de feitura de santo, é construído um objeto material
que é o santo, o orixá.

O assentamento é basicamente composto por um grande vaso com uma pedra que
representa o orixá, adornado com seus objetos como armas, panos da costa (que
compõem as roupas do santo), pratos, entre outros que variam para cada orixá, podendo
incluir penas e outras partes de origem animal. O orixá deve ser assentado e estar aí
fisicamente representado e parte importante das obrigações do candomblé está na
limpeza e manutenção da porção física de seus orixás e dos orixás do terreiro.

As conexões materiais se dão desde o jogo dos búzios até o assentamento. A comida é
utilizada ritualisticamente dessa mesma maneira, senda ela ainda mais flexível já que é
um dos elementos que protagonizam a interação do sujeito com o mundo.

A sequência em que se dão as obrigações de um terreiro para determinados orixás desde


as cerimonias internas até as festas ilustram notadamente como a integração do sujeito
com a natureza, como foi historicamente construída, é forjada em diferentes níveis de
modo a ser completamente rompida até a presença histórica ser resgatada e replasmada
e o sujeito retomar uma posição com certos “padrões éticos”, como coloca Victor
Turner, ao analisar os ritos de passagem, em seu volume O Processo Ritual. Turner
106
observa nestes rituais um estado que chama de Liminaridade, no qual há uma quebra
completa da ordem estabelecida, momento necessário ao restabelecimento da ordem
social, a Estrutura.

No candomblé, o conjunto de rituais que compõem uma obrigação, tanto no processo de


iniciação como nas festas regulares dos santos, o caos e o imprevisto são
gradativamente exauridos de modo a estarem completamente esgotados na festa pública
quando se restabelece a ordem. Recorro a um episódio de um olubajé, festa anual que se
faz para Omulu e seus parentes: Nanã, sua mãe, e Oxumaré, seu irmão. Embora a
família de Omulu seja maior, são mais raros os filhos de Euá, irmã gêmea de Oxumaré,
normalmente pouco citada no candomblé.

Quando Goldman afirma que o “eu” é composto por diversas partes, muitas partes não-
humanas, conferimos a estas partes o poder de atuar no mundo como se fossem seres
humanos. O mundo age como se fosse gente e a ele são conferidas vontades. A vontade
do que está fora das pessoas interfere em suas vidas assim como uma outra pessoa pode
fazê-lo. Aqui me interessa dizer que o mundo do candomblé não só age sobre as
pessoas, como tem vontades, o desejo do orixá, já disse Silva (1995: 123), é uma das
mais frequentes razões que levam a pessoas a iniciarem-se. O mundo é como se fosse
gente.

Encontro aqui o conceito de De Martino de agir “como se” quando ele afirma que na
possessão, o homem está na história como se aí não estivesse. O mundo age como
gente, como se fosse gente, sem deixar de ser mundo. Podemos ver aqui que, se o risco
supremo da presença é o de “ser agido” pelo mundo e não mais agir no mundo, o ritual
institucionaliza (de forma, portanto, controlada), este agir do mundo, como necessária
mediação para a reintegração da presença.

2.4 Olubajé – no banquete do rei tem bolo

A festa do olubajé, também chamada de “O banquete do rei” é considerada uma das


mais bonitas, complexas e etnografadas do candomblé. A festa é em honra a Omulu6, ou

6
A grafia do nome dos orixás varia entre os autores. Omulu pode ser grafado Omolu, assim como é
possível encontrar grafias diferentes para Oxóssi, como Oxóce, Oxóci. Ou Yemanjá e Iemanjá, Iansã e
Inhasã, e assim por diante.

107
Obaluaiê, o orixá da terra e das doenças. Omulu é retratado na literatura brasileira como
o orixá da bexiga, como era chamada popularmente a varíola. Por ser o orixá da doença,
Omulu é também o orixá da cura. Explica-se no candomblé que não se pede saúde a ele,
pede-se que leve embora a doença.

A lenda de Omulu conta que sua mãe Nanã queria um filho de Oxalá e roubou seu
sêmen. Como castigo, Omulu nasceu repleto de chagas pelo corpo e, como era de
costume, foi rechaçado por Nanã e abandonado. Iemanjá o criou como seu filho e deu a
ele todas as conchas do mar, por isso Omulu dança com um barajá, colar feito de búzios
escamados um por cima do outro. Durante a vida, Omulu se curou, mas anda sempre
com uma roupa de palha que lhe cobre todo o corpo, roupa essa que Iemanjá fez para
ele para que pudesse andar pelo mundo sem ser apontado. Omulu dança no terreiro com
uma roupa de palha que o cobre da cabeça aos pés.

A festa de Omulu é um banquete em que todos os orixás oferecem a ele um pouco de


sua comida e ele divide com todos. Descreverei bastante resumidamente o complexo
ritual com destaques para elementos que me auxiliarão a prosseguir com o argumento
que venho desenvolvendo.

Acompanhei diversas festas na casa de Olubajé no Ilê Axé Xangô Airá, de Pai Pedro, e
houve sempre algumas pequenas variações entre uma e outra. Conto a de 2012 em que
um episódio específico me ajudará a comentar os conceitos trabalhados até aqui.

A festa começa com o Xirê como todas as outras e logo após é servido o banquete do
rei. Os filhos de santo saem do espaço onde é realizada a dança, com os atabaques e
seguem para um corredor lateral onde estão colocadas em uma mesa grandes recipientes
de louça ou barro com comidas. Cada comida é de um orixá, há, por exemplo, os
acarajés de Iansã, amalá de Xangô, bananas fritas de Obá, uma farofa de Logun Edé,
feijão preto de Ogum e a pipoca de Omulu. Com as comidas na cabeça os filhos de
santo entram entoando um canto que será repetido enquanto durar esta etapa do ritual
seguindo a equede que dá o ritmo da dança com uma grande esteira de cipó.

A equede estende a esteira no centro do terreiro, e ali os filhos de santo dispõem todos
os recipientes em torno da esteira, como em uma mesa, e os filhos de santo, exceto o
filho de Omulu e as filhas de Iansã, sentam em bancos baixos em torno da esteira. O pai
de santo coloca então alguns pratos na frente do filho de Omulu que se ajoelha e bate o
prato em seu peito, sua cabeça, seus ombros, sua testa e sua nuca. O canto segue

108
ininterruptamente, mas ganha agora um vigor extra acompanhado pelos atabaques. O
filho de Omulu é tomado por um tremor, assim como as filhas de Iansã e uma filha de
Oxum, novata, sentada em dos bancos. Logo ouve-se o grito de Omulu, alto e forte.
Omulu está em terra, como costumam dizer. As Iansãs também gritam e todos do
terreiro gritam saudações tomados por uma emoção coletiva. Atotô é como se saúda “o
velho”, como também é chamado o orixá. O filho é levado para o quarto de santo onde
irá vestir sua roupa de palha, bem como as Iansãs.

Enquanto Omulu está recolhido para vestir-se, ouvem-se seus gritos. Provavelmente
porque “sobe”, ou seja, deixa de possuir o corpo de seu filho de santo, que será tomado
pelo erê, entidade infantil ligada ao orixá que será vestido para que o orixá volte e
apareça em público. Normalmente, o orixá não fica presente para a realização desta
atividade que é feita pelo erê.

Do lado de fora, os filhos colocam uma pequena porção de cada alimento em uma folha
de mamona e servem primeiramente aos convidados externos e depois a cada filho de
santo, inclusive os ogans. Nenhum destes alimentos é temperado com sal. Cada pessoa
recebe a folha com as comidas, come – muitas comem “simbolicamente” por não gostar
do sabor das comidas e só pegam um pouco – depois cada pessoa se dirige ao canto do
terreiro onde há uma bacia em frente à porta da casa de Omulu, passa a folha pelo corpo
terminando na cabeça e coloca na bacia. Os filhos de santo servem ainda uma bebida do
orixá que lembra uma garapa. Depois que todos comem o olubajé, há um intervalo de
10 minutos, quando as comidas são colocadas todas dentro do quarto do santo, assim
como as folhas limpas que sobraram e as usadas pelas pessoas.

O orixá vem então dançar. Saem do quarto de santo, Iansã e Omulu, ambos vestidos.
Iansã com uma roupa em tom que varia entre o vinho e o cobre. Omulu com uma
vestimenta que impressiona, uma grande cobertura de palha com uma coroa de material
na mesma cor da palha adornada com cabaças, que pertencem ao orixá, e búzios. Iansã e
Omulu dançam em roda uma cantiga e então Iansã é coloca na lateral do terreiro onde
fica enquanto Omulu dança.

Omulu dança primeiro o Opanijé, um ritmo sem letra em que dança primeiro uma
coreografia completa para os atabaques, e depois de frente para as pessoas que assistem
ao ritual. O Opanijé é dançado com ritmo bem marcado. Omulu aponta para a boca três
vezes, andando com o corpo para a direita, depois, três, para a esquerda. Com o mesmo

109
gesto aponta para os olhos, para o ouvido, para a cabeça, para os braços e para o
coração. Em uma batida mais acelerada, Omulu “varre o chão” do terreiro com sua
palha abaixando e balançando com a ajuda das mãos a palha freneticamente enquanto o
público grita sua saudação vigorosamente “Atotô!”.

Depois do Opanijé, Omulu dança ainda por mais ou menos meia hora variando entre
ritmos mais tranquilos e mais agitados quando corre o terreiro girando e pulando.
Omulu grita um urro forte e longo, mais longo que os de Xangô ou Ogum.

O momento mais frenético da festa, já quase no fim é quando Omulu se dirige para os
atabaques e começa a abaixar-se em direção ao chão. Conforme Omulu abaixa, filhos de
santo e pessoas da comunidade ali presentes gritam sua saudação, batem palmas no
ritmo do atabaque, choram. Muitas colocam as mãos sobre os lugares onde têm
doenças, fecham os olhos e rezam. Neste momento, Omulu vai representar sua febre,
quando Iansã o cura e, por isso, ela está ali incorporada. Já vi, em outras festas, Iansã
chegar apenas neste momento. Não é sempre que ela fica incorporada o ritual inteiro.
Omulu então se atira ao chão na frente dos atabaques e treme energicamente. Muitos
filhos de santo incorporam em meio aos gritos cada vez mais intensos de “Atotô” e as
Iansãs dão seus gritos, mais curtos. Omulu rola de um lado para o outro na frente dos
atabaques. Nesse momento, a equede e outro filho de santo cobrem o orixá com um
lençol branco e o pai de santo corre o terreiro jogando pipoca em Omulu e nas pessoas
todas. É um momento de grande entusiasmo. Quando Omulu não realiza este ato é sinal
de algo o desagradou ou de que o ano vindouro não será bom. Omulu levanta, dança
uma coreografia rápida e tira o capacete com as palhas que cobrem o resto de seu corpo
ficando apenas com a saia de palha. Omulu volta para o quarto de santo com o rosto à
mostra. Este também é um sinal de que a festa o agradou. No candomblé, os orixás
nunca desincorporam na frente das pessoas. O processo é sempre feito nos quartos de
santo e cobertos com um pano.

Depois de dançar, Omulu é levado para o quarto de santo e Iansã é puxada para a roda
para algumas danças, a mais importante das quais leva uma quartinha com água na
cabeça até a porta da rua do terreiro e despeja a água na rua. Os orixás dançam sempre
acompanhados de uma equede ou de um filho de santo mais velho. Apenas os orixás
mais velhos, isto é, com mais tempo de santo, é que podem dançar sozinhos. Iansã
dança por cerca de dez minutos e é levada embora.

110
O pai de santo puxa uma cantiga para Oxalá e todos dançam. Oxalá é sempre o último a
ser saudado, enquanto Exú o primeiro e Oxalá o último. Depois que dançam para Oxalá,
o pai de santo abaixa dobrando os joelhos, gesto acompanhado por todos os presentes, e
batem palmas em um ritmo pré-estabelecido marcando o fim do ritual. A festa, no
entanto, não acabou. Neste momento, todos os presentes, inclusive a família de santo, é
convidada para o jantar. No jantar não há um protocolo do que é servido, o pai de santo
pode preparar a carne de algum dos animais que foi oferecido aos orixás, ou, qualquer
outro prato de seu agrado. Esta refeição final é um momento de confraternização, de
realocamento. Uma filha de santo de Pai Pedro uma vez me disse algo importante a
respeito desse momento.

“Agora é que a gente vai ver as pessoas, descansar, se encaixar, né?”

Talvez ela mesma não saiba do quanto sua frase carrega de significados antropológicos.
Neste momento, a comida serve como agente reestabelecedor da ordem social.

No ritual que descrevi, não parece haver qualquer espaço para caos, desordem, ou
imprevistos. Tudo parece muito bem preparado para o que vai acontecer. Os santos
tinham suas roupas separadas, o lençol branco estava a postos para cobrir Omulu e a
pipoca estourada em quantidade o suficiente para que fosse atirada a Omulu e aos
demais participantes. O regime protegido de que fala De Martino, em que a crise da
presença pode ser vivida de forma controlada em um contexto em que seu resgate já
está garantido, está aqui representado. Os adeptos podem entregar-se ao transe porque
tudo o que precisam está aí preparado, à mão. As oferendas já foram feitas e há, depois
da dança e do êxtase, o jantar, o momento de confraternizar e “voltar” para o mundo.

Os atos que precedem o ritual, no entanto, são mais caóticos. Nesta festa que relatei, há
uma particularidade: no fim da festa cantaram parabéns para um jovem que fazia
aniversário, cuja família é uma grande contribuinte do terreiro. Embora não seja
oficialmente membro da família de santo, oferece ajuda financeira para a realização das
festas. O curioso é que dias antes, enquanto realizavam-se as obrigações internas,
Omulu pediu um bolo.

O pedido foi recebido com estranheza e, por isso, confirmado nos búzios, mesmo tendo
o próprio orixá incorporado ter feito o pedido. Bolo não é comida de qualquer santo e,
por isso, não faz parte do Olubajé. Tampouco é costume servir bolo de sobremesa, mas
para aquele ano, Omulu pediu um bolo. Explicou que queria um doce grande como o

111
que fazem para o panã e cantam para as crianças novas. Um bolo? Perguntaram. Sim,
um bolo. Omulu então disse que queria um bolo pelos dezesseis odus –as combinações
formadas na queda dos búzios e podem representar um ano - de uma pessoa que viria à
festa.

No dia da festa após o jantar, Pai Pedro chamou a atenção de todos e disse: “Vamos
cantar parabéns para um grande amigo do terreiro, filho de grandes amigos nossos e que
hoje completa 16 anos, 16 voltas no destino”.

Pai Pedro e outros filhos de santo comentaram que até a tarde do dia da festa houve uma
grande tensão em relação ao bolo. Até que alguém da comunidade comentou sobre o
aniversário do garoto que, por gostar tanto de Omulu e do olubajé, viria ao candomblé
ao invés de ir comemorar seu aniversário com os amigos. Todos então sentiram um
alívio ao descobrir a informação. Algo tão fora do esperado no ritual, sobretudo na
festa, poderia não ser um bom presságio.

A festa é o momento de organização, de celebração e de o santo mostrar sua majestade.


A riqueza teatral da festa pública onde certa pompa e extrema organização são exibidas
contrastam enfaticamente com a característica lambuzada dos rituais internos.

Nos atos que precedem as festas públicas, reservados aos filhos de santo, a impressão
de desordem é mais nítida. Nestes momentos, os orixás podem aceitar ou não suas
oferendas, dar corretivos em seus filhos – um costume menos frequente, descrito por
alguns membros mais antigos, era o orixá dançar enquanto dava chibatadas em seu filho
de santo para corrigir alguma má conduta - e até mesmo recusar oferendas. Ou, como
aconteceu no olubajé que descrevi, o orixá pode fazer um pedido absolutamente
inusitado.

Ainda que haja um protocolo do que se espera dessas obrigações, é comum os orixás,
principalmente dos filhos mais novos, virem a qualquer momento. E quando digo que
esses rituais são lambuzados, é literal. Em muitas ocasiões durante os borís ou
obrigações sazonais os filhos recebem comida em suas cabeças, são derramados certos
líquidos e, nos dias em que há matança, alguns orixás dançam lambuzados com um
pouco de sangue derramado em sua cabeça.

As roupas que se usam para esses atos são mais simples. Durante a iniciação, por
exemplo, o filho de santo recebe alguns cortes nos braços, nas costas e na cabeça.
Derrama-se sangue e colocam-se certos elementos orgânicos em seu corpo, como ervas,
112
penas e comida. Há rituais em que o filho de santo tem sangue e penas grudadas em seu
corpo. Nesse momento de completa liminaridade, como coloca Turner, ou seja,
suspensão da ordem social estabelecida, as fronteiras entre homens e mundo externo são
completamente rompidas. Ao realizar esta observação em relação à comida, Rabelo me
inspira a pensar nessas obrigações internas em que as pessoas banhadas em sangue, por
exemplo, são absorvidas pelo mundo.

Durante as iniciações dos candomblés de queto há certos atos realizados para cada orixá
que rompem definitivamente com as categorias humanas com as quais estamos
habituados. Na iniciação dos filhos de Oxumaré, o orixá que é parte do tempo cobra e
outra parte arco-íris, eles são levados à beira de um rio, ou de um poço, e o orixá é
chamado. Incorporado, ele deve se atirar na água e nadar como uma cobra. Oxóssi, o
caçador, é chamado para que busca um animal que é solto no meio do mato –
normalmente um pequeno porco. Naturalmente, esses atos podem sofrer severas
adaptações no candomblé urbano, mas a animalização, por assim dizer, do homem é
uma etapa fundamental dos rituais

A perda da presença em um regime protegido, sobretudo durante a iniciação, é


completa. O filho de santo se propõe a renascer durante este processo, o que significa
renunciar simbolicamente à sua vida cotidiana e assumir uma nova identidade, uma
nova vida, garantida, dessa vez. Ao renascer como filho de Ogum, o filho de santo tem a
garantia de que sua luta é a luta de Ogum, sua vida é a vida de Ogum e Ogum está lá,
sempre esteve. Ao animalizar-se, ou nadar como cobra, ou banhar-se de lama, como faz
Nanã, o homem integra-se à natureza, como a entendemos em nosso contexto ocidental,
para poder emancipar-se dela, mas nunca definitivamente. Ao integrar-se a ela
momentaneamente e separar-se, o sujeito assume sua dependência e relação com
aqueles elementos que são constitutivos da vida e de sua identidade. E que sua
identidade, ou seja, sua construção como pessoa é um processo em longo prazo.

O movimento de integrar-se ao mundo, perder-se para ele, replasmar a presença e


recuperar a vida cotidiana é um ciclo vivido praticamente no candomblé. Me parece
superficial dizer que a perda da presença é simbólica ao observar tais atos. Simples
banhos de cachoeira para as filhas de Oxum são uma integração completa com o
elemento e, consequentemente, com o orixá. Quando uma filha de Oxum está debaixo
da queda de uma cachoeira, ela é a cachoeira, a água que corre por seu corpo é, naquele

113
momento, parte de seu corpo. E, se for rodante, essa pessoa poderá ser possuída por sua
orixá ao entrar em uma cachoeira. Por isso, os filhos de santo têm restrições para ir a
certos lugares nos primeiros meses ou anos após sua feitura, até que aprendam a ter
controle da possessão e não sejam tomados pelo orixá em qualquer momento. A
possessão do orixá, ou, a perda da presença se torna mais controlável a medida em que o
filho de santo tem mais experiência no candomblé. Essas possessões fora de um
contexto ritual são menos frequentes até que o filho de santo consiga um controle mais
consistente (Goldman, 1985).

Rabelo, ainda em suas observações acerca da comida, nota que a duração desses
elementos são informações relevantes. Os atos que envolvem a produção dos alimentos,
como cortar, descansar, moer, descascar, cozinhar, assar, são essenciais para o sucesso
das oferendas.

Ao entregar as oferendas, é feita uma consulta com o lançar dos obis –sementes de cola
- que ao caírem demonstram pelo modo como repousam se o orixá ficou ou não
satisfeito com as entregas. É comum que quando os obis caiam de modo favorável, o
orixá tome o corpo de seu filho.

“Nesse sentido, pode-se dizer que o candomblé não apenas ressalta e cultiva a
transformação – fato bastante visível na centralidade que assumem, nesta
religião, atividades relacionadas à comida – mas que no terreiro cultiva-se a
atenção e a sensibilidade às várias e diferentes (às vezes bastante pequenas)
durações em que os materiais (e as pessoas) se transformam” (Rabelo, 2013:97)

A transformação, como tenho demonstrado, é o elemento central do candomblé e se dá


pelo conflito. Não há mudança sem conflito. O filho de santo deve entrar em conflito
com tudo o que o separa da natureza, entregar-se a ela e, novamente, entrar em conflito
com ela para separar-se. Rabelo observa em um outro artigo que as obrigações
representam “uma ruptura restauradora nas suas rotinas de trabalho pesado, durante a
qual podiam –e, de fato, deviam – simplesmente deitar, dormir e comer” (Rabelo,
2011:16).

A autora evoca estas experiências para propor a centralidade do corpo na prática do


candomblé. Rabelo retoma ainda uma relação que construí anteriormente quando
evoquei Augé(a relação do corpo com o lugar) e . Appadurai ( rituais como a construção
de lugares).

114
“Há uma sintonia ou reforço mútuo entre corpo e lugar da qual depende a
estabilidade da vida social bem como nosso senso de pertença e o relativo
ajustamento a ela. A configuração dos lugares que habitamos demanda certos
modos de engajamento corporal, reforçando e naturalizando padrões de ação e
interação (com base em diferenças de classe, gênero, geração,etc.); assim como
as disposições e técnicas corporais socialmente constituídas revelam os lugares
como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e às
classificações ou ideias estereotipadas que elas corporificam” (Rabelo, 2011:19)

O encontrar-se com o mundo no candomblé se dá em dois sentidos, o lugar e o corpo. Ir


para o mato, para a cachoeira e mesmo para o terreiro dar suas obrigações é um
encontro do sujeito com o lugar que não é o cotidiano do trabalho, da vida familiar,
social (no caso do candomblé urbano que venho analisando). E o corpo que encontra o
sangue animal, a comida, a terra, as folhas e todos os elementos ali. A coreografia é a
técnica corporal que permite este encontro. Como já disse antes, há uma coreografia
para tudo no candomblé, desde o cumprimento aos atos rituais mais sofisticados. Essa
coreografia pode ser alterada nos ritos internos, o que causa sempre grande
preocupação, como foi ilustrado quando Omulu pediu um bolo para o Olubajé. As
mudanças inesperadas nesta coreografia podem acontecer, mas são sempre sinal de algo
fora do normal, ou seja, um certo descontrole.

Quando dança sobre o fogo Xangô realiza este duplo encontro do corpo com o elemento
e da criação de um lugar. Um lugar que é do orixá, mas também do filho de santo.

Deste mesmo modo, ao encontrar-se com o mundo, fundir-se com ele e animalizar-se, o
homem toma para si lugares que antes não lhe pertenciam (ou aos quais não peertencia).
O mundo que o ameaça, incluídas nessa ideia as criaturas que o ameaçam, são agora
parte dele mesmo. A comida, o barro, os búzios, o sangue e os próprios animais
constituem a presença do homem. Neste sentido, minha proposta extrapola a de
Goldman de que a identidade é constituída de sete elementos espirituais e sugiro que a
pessoa se construa no candomblé a partir de uma intensa relação com o mundo e seres
não-humanos.

No entender a religião como um caminho que leva o homem do mal ao bem, da


desordem à ordem, está implícito um entendimento de homem distante da natureza, no
sentido de que é um homem mais próximo da vida espiritual etérea, benéfica e sublime,

115
e longe da vida terrena e da animalidade. O homem religioso, no entender ocidental, é o
sujeito que busca distanciar-se do que entendemos por instintivo e selvagem.

Tim Ingold retoma o questionamento da separação entre humanidade e animalidade de


modo a compreender quais as implicações desta separação e de que modo o homem,
reconhecido como parte da espécie animal, busca diferenciar-se destes.

“Para nós, que fomos criados no contexto da tradição do pensamento ocidental,


os conceitos de "humano" e "animal" parecem cheios de associações, repletos de
ambigüidades e sobrecarregados de preconceitos intelectuais e emocionais. Dos
clássicos até os dias de hoje, os animais têm ocupado uma posição central na
construção ocidental do conceito de "homem" - e, diríamos também, da imagem
que o homem ocidental faz da mulher. Cada geração reconstrói sua concepção
própria de animalidade como uma deficiência de tudo o que apenas nós, os
humanos, supostamente temos, inclusive a linguagem, a razão, o intelecto e a
consciência moral. E a cada geração somos lembrados, como se fosse uma
grande descoberta, de que os seres humanos também são animais e que a
comparação com os outros animais nos proporciona uma compreensão melhor
de nós mesmos” (Ingold, 1995:1)

A compreensão que Ingold evoca de a lembrança de que somos animais nos


proporciona auto compreensão me parece de acordo com as práticas do candomblé que
venho descrevendo. Há uma dança de Iansã, a orixá do vento e das tempestades, em que
ela voa como uma borboleta porque é também uma borboleta. A orixá realiza
movimentos circulares, para o alto e centrífugos em relação ao corpo para representar o
bater das asas. Este elemento deixa a questão da identidade ainda mais complexa. Se as
filhas de Iansã são parte Iansã, parte Exú, e todas as outras partes, elas também são parte
borboleta, parte vento e parte tempestade. A identidade de Iansã não é única, assim
como a de nenhum orixá que pode ter episódios de tremenda rivalidade e outros de
amor com outros orixás. Segundo as lendas, Iansã e Oxum competem pelo amor de
Xangô, mas há o episódio em que Oxum quis Iansã para ama-la e a seduziu.

Iansã é borboleta. Oxumarê é cobra. Espera-se desses orixás e de seus filhos que se
comportem como tal. Inclusive os descrevem com características destes animais. Os
filhos de Oxumarê tendem a ser magros com corpos flexíveis. As Iansãs são rápidas e se
movem com fluência. Para os adeptos do candomblé a separação entre os homens e os

116
animais não passa de uma condição temporária e passível de transformação, como tudo.
O homem pode e deve aproximar-se dos animais afim de garantir sua condição humana.
O sujeito se completa na medida em que está mais conectado às suas várias partes.
Inclusive às animalescas.

Ao afirmar que o corpo é uma realidade mutante, Le Breton abre caminhos para
imaginarmos outras formas de corpo e compreender que algumas sociedades já o fazem.
O corpo de cobra, ou o corpo de pedra dos filhos de Xangô são uma realidade, não são
simbólicos, no sentido de representar algo que ali não está presente.

Ao valorizar a diferença, o candomblé encontra na natureza, nos animais e em todo seu


panteão de entidades não-humanas modelos de organização que inspiram novos
sentidos para a vida cotidiana, sobretudo, urbana.

Rosamaria Barbara analisa os rituais do candomblé com especial atenção para o aspecto
coreográfico do rito. A respeito de De Martino, a autora faz algumas observações que
me distanciam de sua interpretação, mais sociológica, quando afirma que:

“A própria “presença” pessoal (o ser-no-mundo, a alma) foge do seu lugar, pode


ser “raptada”, “comida”; torna-se um pássaro, uma borboleta, ou seja, deve ser
“recuperada” ou “fixada, “localizada”. (Barbara, 2002:63)

A presença no candomblé não é recuperada no sentido de ser fixada, assim como no


tarantismo, posto que a reincidência da mordida em um mesmo atarantado dá o sentido
cíclico ao rito, mas sim há uma ideia de diálogo com o mundo. Neste diálogo, o perder-
se em um regime controlado é possível e louvável. A presença que se torna pássaro
pode voltar a ser presença “humana”, mas jamais torna-se emancipada do pássaro.

Barbara reconhece que o drama do mundo mágico demartiniano consiste em:

“em alcançar uma relação com a divindade que, posteriormente, se torna nosso
guia, mas que antes poderia ser uma angustiosa fragilidade; consiste também m
aprender o poder de dialogar com esse e de torna-lo um ponto de força e não de
fraqueza, ou seja, conquistar o poder de conter e dominar a própria fragilidade e,
depois, a dos outros” (Barbara, 2002:63)

A relação que venho defendendo neste texto é uma relação que extrapola a categoria de
divindade e perpassa o mundo material, físico e o psíquico. Tornar a fragilidade força
está, ao meu ver, de acordo com o pensamento demartiniano, embora esse não seja um

117
processo de “alcançar o divino”, como a leitura sociológica pode sugerir. Ao contrário,
tenho demonstrado que o candomblé busca alcançar o mundano, o animalesco, o natural
e, também, o divino. O candomblé, pela perspectiva que venho defendendo, não é uma
prática ritual que objetiva a elevação e a diferenciação, mas sim, a integração, ainda que
nunca de forma completa, posto que o resgate da presença é ao retomada da capacidade
de objetivar o mundo. Integrar o homem ao mundo que coexiste em diversos níveis
dimensionais seria mais acertado que pretender uma relação com o divino. Essa seria
uma interpretação simplista.

Desse modo, os adeptos que chegam ao candomblé e descrevem suas experiências como
experiências de deslocamento, encontra aí uma técnica de integração. Por meio da
compreensão ritual de que fazem parte do mundo e este mesmo mundo é constituído
pela diferença e pelo conflito, os adeptos encontram aí os sentidos de suas crises.

Ao tratar a religião como uma técnica, como coloca Mancini, ou um dispositivo


terapêutico, como diz Barbara, De Martino encontra no forjar a presença, ou no
desabrigar da presença, para usar um termo heideggeriano, a solução para uma crise que
é cíclica. O poder da técnica é que esta também pode ser uma prática cíclica.

2.5 A religião como técnica – uma proposta demartiniana

Para abordar a religião por uma “terceira via”, recorrerei aqui a Ernesto De Martino, que
primeiro apresentou esta hipótese, antecipando em algumas décadas a discussão
antropológica contemporânea chamada por alguns de pós-moderna. Em um texto da
coletânea Furore, Simbolo, Valore, intitulado “Mito, scienze religiose e civiltà
moderna", o autor afirma:

"O símbolo mítico-ritual coloca-se como um dispositivo técnico que, em dadas


condições culturais, funciona como dispositivo para apontar o risco, para dar um
horizonte figurativo às alienações recorrentes e transformar o retorno irrelativo
do passado em uma repetição ativa e resolutiva, aberta às regras humanas e aos
valores e culturais" (De Martino, 1962:112)

118
Segundo De Martino os rituais, sobretudo aquele que envolvem uma alteração da
consciência, são técnicas de dehistorificação do devir. O ritual atua como uma
paralisação do tempo social para reorganização e concessão de sentido à vida.

“Assim como a posição do historicismo neo-hegeliano levanta uma


correspondência entre as épocas do mundo e as estruturas da consciência, De
Martino considera a consciência mítico-ritual como uma construção histórica,
uma resposta adaptada às condições histórico-culturais e existenciais específicas.
Justifica esta posição com base na constatação de que a consciência mítico-ritual
é definida menos pelo seu conteúdo que pelo seu modo de funcionamento”
(Mancini, 2008:25, grifo meu).

A noção de técnica em De Martino vem de Heidegger, que define a essência da técnica.


Para Heidegger, a questão da técnica não é meramente instrumental, mas é “em alto
grau ambígua” (Heidegger, 2007:394) no sentido em que a técnica salva o homem a
medida em que o expõe ao risco.

Para o filósofo alemão, a técnica não deve ser vista meramente como um meio para fins,
ou um fazer do homem. A técnica é dotada de uma determinação instrumental e
antropológica por levar o homem a um fim, mas também mudar o próprio neste
processo. Por meio da técnica, o homem pode “ocasionar” algo novo que terá impacto
no próprio homem após seu surgimento e durante seu processo de feitura. A questão da
técnica reside, para Heidegger, em “desabrigar”, trazer à presença, desocultar.

“Em vista disso, o que é produzido manual e artisticamente, por exemplo, a taça
de prata, tem a irrupção do produzir não em si mesmo, mas num outro, no
artesão e no artista.” (Heidegger, 2007:379)

O fazer técnico tem a capacidade de deslocar o resultado deste processo do


desconhecimento à presença, isto é, o produto da técnica passa a existir. Antes da
aplicação técnica, por exemplo, uma escultura é apenas um amontoado de argila ou uma
maciça pedra de mármore, o trabalho técnico do escultor faz a escultura emergir à
realidade, à presença. A escultura torna-se presença, ela está no mundo a partir de então.
Antes oculta em meio à argila, ou presa à pedra, a escultura é descoberta.

O filósofo argumenta que “o produzir leva do ocultamento ao descobrimento”


(Heidegger, 2007:389). O fazer técnico é a aplicação da capacidade humana em prol da
prática instrumental que revela ao homem e o homem. O próprio homem, com o uso da
119
técnica, se descobre, se emerge à presença. A técnica é, para Heidegger, “um modo de
desabrigar”.

“O que a essência da técnica tem a ver com o desabrigar? Resposta: tudo. Pois
no desabrigar se fundamenta todo o produzir. Este, porém, reúne em si os quatro
modos de ocasionar – a causalidade – e os perpassa dominando. A seu âmbito
pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este vale como traço
fundamental da técnica. Questionemos passo a passo o que a técnica
representada como meio é em sua autenticidade e então chegaremos ao
desabrigar. Nele repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo.”
(Heidegger, 2007: 380)

Desabrigar é o modus operandi da técnica. Uma técnica artística tira a obra do abrigo
nebuloso das ideias do artista e a torna presença, a torna realidade. Seja a dança
executada pelo dançarino, seja a tela do pintor, ambas retiram a obra do mundo
nebuloso das ideias e as colocam expostas ao mundo, desabrigadas para serem então
presença.

A essência da técnica reside ainda em outro termo, “armação”. Ao desabrigar, a


presença no mundo pode ser disforme e sem sentido. A técnica instrumental trata pois
de lapida-la, dando ordem e sentido a esta presença.

“Armação significa a reunião daquele por que o homem põe, isto é, desafia para
desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação
significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não
é propriamente nada técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o
que conhecemos como sendo estruturas, camadas e suportes, e que são peças do
que se domina como sendo uma montagem.” (Heidegger, 2007: 285)

Para compreender de modo mais eficaz a conjugação dos termos “desabrigar” e


“armação” em um contexto preciso, sugiro pensar no exemplo de uma orquestra. No
palco, os músicos, cada um com seu instrumento, usam de suas qualidades técnicas para
tocar os instrumentos de modo a desabrigar as notas musicais, ocultas até o momento
em que começam a tocar, embora as notas sejam apenas ruídos afinados que sem uma
combinação lógica podem ser interpretadas apenas como barulho, sons soltos. A mera
revelação das notas, no entanto, não é suficiente para que haja música. A presença
desorganizada das notas requer outro procedimento técnico: a armação, ou seja,

120
estruturação e ordenamento dessas notas musicais para que a melodia seja plenamente
revelada e se torne presença.

A música torna-se presente a partir do momento em que os músicos tocam seus


instrumentos de maneira ordenada. A técnica é, portanto, um meio e um fim em si
própria. O tocar dos instrumentos é o desocultamento da música e também a própria
música. Ao termino da aplicação técnica, ou seja, no fim do concerto quando os
músicos pararem de vibrar seus instrumentos (meio), a música (fim), também acaba.

Grosso modo, a técnica garante a presença: o desabrigar da presença, conceito também


elaborado a partir de Heidegger. O esserci nel mondo demartiniano (traduzido por
Pompa com: “estar-aí”) vem da ideia do Dasein, Heideggeriano, ou seja, uma presença
atuante na história, não imanente. A presença só pode ser histórica, como propõe De
Martino, a partir de Heidegger.

De Martino define a cultura como o exorcismo solene do risco de “não ser no mundo”
.Para ele, em muitas sociedades o “ser no mundo”, ou seja, a própria ideia da presença
do homem no mundo das coisas físicas não é um dado. A presença depende da
participação dos homens da história.

“Naquilo que ele chama “o mundo mágico” [De Martino, 1948], isto é, as
sociedades tradicionais, a presença atuante do homem no mundo não pertence à
ordem do dado, mas é uma realidade condenda (do latim condere = fundar), uma
realidade a construir. A simbologia mítico-ritual constitui uma série de
mecanismos, de técnicas protetoras contra a ameaça suprema de “não ser mais
no mundo” e, ao mesmo tempo, fundam a presença do homem no mundo, sua
realidade”. (POMPA, 1998)

De Martino chama de “mundo mágico” as sociedades que realizam de forma organizada


e periódica os rituais de possessão, por exemplo. Para o autor, performatizar a crise da
presença, ou seja, perder o mundo simbolicamente de forma controlada ajuda a garantir
seu resgate.

“A presença tende a ficar polarizada em um determinado conteúdo, não se


arrisca a ir além disso, e, portanto, desaparece e abdica como presença. Se
derruba a distinção entre presença e mundo que se faz presente: o sujeito, ao
invés de ouvir ou ver o sussurro folhas, se torna árvore cujas folhas agitam pelo

121
vento, em vez de ouvir as palavras, se torna a palavra que ouve , etc.”. (De
Martino, 2004:137)

De Martino desenvolve aqui o cerne de sua teoria que interpreta os rituais mágicos,
sobretudo os que envolvem a “perda temporária da consciência ou dos controles” como
uma forma simbólica de compartilhar o temor da perda, a perda propriamente dita e o
resgate da presença. Ao compartilhar um horizonte meta-histórico comum, o grupo
enxerga um sentido e uma resolução para sua crise. Nesse sentido, ao criar uma
narrativa para seus anseios compartilhados, o grupo encontra sentido e ordem no
mundo.

“Nas civilizações primitivas ou no mundo antigo, uma parte considerável da


coerência técnica do homem não é utilizada no domínio técnico da natureza
(onde ela encontra aplicações ainda limitadas), mas na criação de formas
institucionais aptas a proteger a presença do risco de não ser no mundo. Ora, a
exigência desta proteção técnica constitui a origem da vida religiosa como
ordem mítico-ritual” (De Martino, 2004:137)

O autor defende que a aquilo que podemos chamar de performatização de um


exemplum mítico durante o ritual abrem para o homem a possibilidade de agir na
história sem estar na história. De Martino chama o momento ritual em que a crise é
performatizada de de-historificação, ou seja, a garantia da presença no mundo é que no
tempo mítico a crise já foi resolvida. A repetição e atualização do mito confere ao
homem a segurança de recuperar seu tempo e dar sentido a uma história que não é um
dado, mas uma construção.

A história como devir torna-se um fim e um meio em si mesma, assim como Heidegger
tratou da questão técnica. Se perfomatizar a história mítica, como diz De Martino,
coloca o sujeito na história corrente, o simbolismo mítico ritual, ou seja, o que é
geralmente definido religião, pode ser lido como técnica. Uma técnica que protege o
homem do risco do devir ao desabriga-lo do mundo nebuloso do risco e armar sua
presença no mundo histórico.

A mais, a apropriação de regimes psíquicos alterados de forma controlada e


institucionalizada é também um uso técnico desse regimes psíquicos de forma a “arma-
los”, usando o termo heideggeriano. Mancini observa este aspecto:

122
“Apoiando-me em uma tese proposta na década de 40 pelo historiador italiano
das religiões Ernesto De Martino, gostaria, antes de salientar o seguinte.
Considerado do ponto de vista do seu modo de funcionamento e da eficácia, o
dispositivo mítico-ritual - enquanto instituição cultural - paira precisamente
sobre uma busca pela contribuição dos estados psíquicos dissociados, que esse
dispositivo submete a uma economia específica. Se percebermos esta hipótese,
então, na vida mágica religiosa, estaríamos enfrentando o que poderia ser
qualificado como o uso "estratégico" dos diferentes regimes psíquicos que não é
improvisado ou deixado ao acaso: ele é feito de acordo com protocolos sociais
rigorosamente estruturados, e está enquadrado por uma tradição coletiva e requer
procedimentos técnicos precisos" (MANCINI, 2008:23)

O que De Martino chama de “estar aí como se não estivesse” é um recurso técnico para
atuar na história sem estar na história. Para o autor este recurso é fundamental para o
resgate da presença em crise. O risco de perder a presença no mundo é salvo pelo ato de
perder-se simbolicamente.

“No mito, é atribuída a entidades não-humanas e meta-históricas a


responsabilidade de toda a criação humana; no rito, são os seres humanos que
atuam. No entanto, agem como "se não "agissem" porque para que esse ato seja
eficaz é necessário tirar do alcance todas as implicações históricas. Mas,
paradoxalmente, é precisamente por conta dessa recusa institucional da atividade
histórica que acabam por não só dar sentido à sua vida, mas também para lidar
pragmaticamente as contingências críticas. E é por isso que eles estão equipados
com uma capacidade amplia de ação e instalados, graças a esse rodeio
estratégico, em um regime de existência protegido. Nesse reside o caráter efetivo
do dispositivo mítico-ritual, eficácia muito real, ainda que bastante particular na
verdade, que não responde aos critérios usuais da eficácia” (MANCINI,
2008:27)

O autor, por outro lado, reconhece na ampla variedade de estados psíquicos uma força
da cultura em resolver as crises pelo estímulo para que esses momentos de descontrole
aconteçam em um regime protegido. Quando o sujeito está em crise, o grupo encontra
no ritual, uma maneira de “evocação, configuração, liberação e resolução dos conflitos
psíquicos (De Matino, 2000: 64). A religião como técnica pode ser compreendida como

123
um método gradual de resolução de crises psíquicas individuais e coletivas que buscam
reintegrar o indivíduo em grupo e a ordem do mundo.

“Podemos afirmar que o tarantismo como rito está representado pela resolução
gradual coreico-musical de um estado de crise dominada pela queda da presença
individual, de modo que, se o discurso musical é interrompido ou não se observa
rigorosamente sua coerência melódica, o processo de resolução passa por uma
detenção automática e crise se reprouz. Tudo acontece como se certa ordem
rítmica de sons desbloqueasse ese elementaríssimo da vida que é o
movimiento, ao mesmo tempo, a disciplina do ritmo impedisse que o
movimiento se liquide em uma mera descarga desarticulada: a ordem coreico-
musical se configura assim como um amplíssimo horizonte simbólico de
recuperação, o mais amplo do que aquele que o tarantismo dispõe, quase como
uma ponte entre Escila e Caridbis, ou seja, entre a suspensão angustiante de
esturpor inerte e a explosão frenética de uma vitalidade delusória direcionada
sem destino humano para consumo rápido e aniquilamento total” (De Martino,
2000:139)

A sofisticação do candomblé está no fato de que ao realizar uma manutenção do conflito


e da diferença, replasma a presença do risco como ferramenta e não mais como ameaça.
O risco de não ser no mundo torna-se a força propulsora para ser. A possibilidade de ser
animal, ser cachoeira, fogo ou terra é garantidora da possibilidade de estar no mundo
com autonomia.

Os filhos de cada orixá são essencialmente diferentes uns dos outros, embora
absolutamente complementares. O candomblé estimula seus adeptos a observar que está
na diferença a força complementar de cada um. As filhas de Oxum e Iansã terão
episódios de conflitos e desentendimentos, mas dividem o amor de Xangô e precisam da
força vital uma da outra para sobreviver. O homem integrado à natureza, como a
concebemos em nossa cultura ocidental, é o ser da presença garantida, embora
constantemente sob ameaça.

No tarantismo, como no candomblé, o problema, a desordem, ou a doença, não está no


fato de animalizar-se, mas sim na incapacidade de transitar entre humano e não-
humano. A possessão por entidades não-humanas de toda sorte é uma capacidade a ser
exercitada, não evitada. O contexto em que essas manifestações acontecem é que

124
determina se o fenômeno será considerado doença ou ritual. Uma possessão que
acontece em um supermercado é uma doença, mas uma festa de candomblé em que não
há possessão, em que o orixá não vem toma o corpo de seus filhos para saudar a
comunidade é um infortúnio.

A presença, no entanto, é algo que se fortalece com o tempo. Quanto mais tempo de
santo, menos frequentes são as manifestações dos orixás e menos lambuzadas são as
obrigações. Na medida em que a pessoa gradua-se no candomblé, sua presença é
fortalecida e menos ela a perde. Os filhos de santo mais velhos chegam a passar um ano
sem a manifestação de seu orixá pessoal (Barbara, 2002).

O candomblé exercita a aproximação e desligamento contínuo com o mundo exterior,


tratado aí por natureza, de modo a incorporar os riscos à vida cotidiana. Na narrativa da
guerra, de que a vida é uma batalha, os adeptos encontram uma prática ritual que
confirma tal discurso promovendo uma harmoniosa relação com os conflitos diários e
com o risco perene de perder e perder-se. Ao tratar o conflito como agente de mudanças
e a mudança ela mesma como como geradora de vida, os adeptos do candomblé dão
sentido às “lutas diárias” como sendo parte de uma grande guerra que devem combater.

125
Conclusão: Quando a pessoa vira mundo e o mundo vira gente

O romancista baiano, Jorge Amado, relatou em “Capitães da Areia”, de 1937, a vida de


um bando de moleques pobres que vivem em um trapiche abandonado de Salvador. Os
meninos são corajosos e temidos pela sociedade soteropolitana de classe média por
tirarem seu sustento das atividades ilegais como roubo e pequenas trapaças. À margem
da sociedade, os capitães da areia têm alguns amigos, como um padre e uma mãe de
santo que a certa altura pede ao líder dos meninos, Pedro Bala, que a ajude a recupera a
imagem de Ogum de um terreiro amigo que havia sido levada pela polícia e causado a
irritação do orixá. Todos os terreiros da cidade tocavam incessantemente para acalmar o
santo enquanto Mãe Aninha foi pedir ajuda ao bando. Caia uma tempestade. Xangô
trovejava em solidariedade a Ogum e Omulu podia estar em algum dos terreiros já
anunciando a vingança dos pobres. Pedro Bala, que não é adepto do candomblé, mas é
um amigo da ialorixá, compromete-se em recuperar a imagem de Ogum. No caminho de
volta para casa, a mãe de santo diz aos meninos com uma voz amarga, conforme
escreve Amado.

“Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz.
Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma graça
a seu deus. – Sua voz era amarga, uma voz que não parecia de mãe de santo
Don’Aninha. – Não se contentam de matar os pobres à fome. Agora tiram o
santo dos pobres... – e alçava os punhos” (Amado, 1973:107)

Amado escreve que Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si e sabia que, como dizia o
padre, os pobres iriam para o céu, mas sentia que a justiça na terra sempre pesava contra
os menos abastados. Pedro Bala avisou aos outros que iria encarar a missão mais
complexa que já enfrentara e poderia ir parar no reformatório. Amado escreve que:

“Mas Don’Aninha bem que merecia que se corresse esse risco por ela. Quando
tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas, tratava dele, muitas vezes
o curava. E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava
como a um ogã, dava-lhe do melhor para comer, do melhor para beber” (Amado,
1973:113)

Ele foi então até a delegacia e depois de uma noite e uma longa história inventada, o
garoto recuperou a imagem do santo.

126
A passagem do romance de Jorge Amado ajuda a ilustrar como o candomblé se
relacionada historicamente na sociedade brasileira. Elaborado entre os negros, a história
do candomblé é uma história de perseguições e resistência. O candomblé sempre foi a
casa dos excluídos. Aqueles que não eram mais aceitos em qualquer outra esfera social
encontravam nos terreiros acolhimento e proteção.

Se o candomblé foi o refúgio dos negros e pobres no passado, ainda hoje é a casa
daqueles que se sentem à parte em outras esferas da vida social. A narrativa da guerra
não é apenas um recurso linguístico, mas histórias reais de pessoas que buscam estar
inseridas em um sistema que pouca ou nada as acolhe. Aquelas pessoas que foram
diagnosticadas como loucas, ou, ainda pior, não tiveram seus males identificados, os
gays, os negros, aqueles que se sentem perdidos e toda sorte de excluídos compõem as
rodas de santo a cantar para os orixás. O candomblé reconstrói o mundo daqueles que
não se sentem parte dele.

Ao defender a prática ritual como uma técnica para o resgate da presença no mundo, De
Martino nos fornece a chave para entender o sofisticado mecanismo do candomblé de
manutenção da presença e da dignidade de seus adeptos. Ao promover práticas que
integram seus membros ao mundo, no sentido mais literal, ao mergulha-los em um rio,
derramarem porções de comida em suas cabeças e faze-los dançar rastejando como
cobra ou voando como borboleta, os pais e mães de santo ajustam a presença de seus
filhos, e as suas próprias, demonstrando como podem fluir entre o estado mais
desconectado e o mais coeso daquilo que chamamos civilização.

Ingold nos mostra como, ao procurarmos nos diferenciar dos animais, ao mesmo tempo
em que reconhecemos no fato de sermos animais, temos uma compreensão melhor de
nós mesmos. Ser animal, ser pedra, ser vento ou ser cachoeira é uma condição dialógica.
Quando descrevo que Iansã dança como uma borboleta, não afirmo apenas que a pessoa
animaliza-se, mas o animal humaniza-se. Na prática ritual, a borboleta toma emprestado
os movimentos das articulações dos braços para alçar seu voo bípede. O relacionamento
da pessoa com o mundo no candomblé é uma via de mão dupla, um diálogo no qual
ambos têm voz e as mesmas condições de expressão.

De Martino, quando fala das tarântulas, observa que a elas são atribuídas caraterísticas
humanas e personalidade. Cada tarântula tem sua música e sua dança de acordo com

127
seus gostos e temperamento. O autor não se aproxima de minha afirmação sobre os
animais que se humanizam, mas dá pistas para que eu tenha chegado a esta ideia.

“Tem (a tarântula) tonalidade afetiva especial, que se reflete em quem foi


picado: há tarântulas "dançarinas" e "cantoras", sensíveis à música, ao canto e à
dança, e também "tristes e mudas" que exigem cantigas fúnebres e outras
canções melancólicas; também há tarântulas "violentas" que estimulam a
imitare comportamentos lascivos. Finalmente, há tarântulas "adormecidas"” (De
Martino, 1999:63)

Há uma quebra na hierarquia culturalmente estabelecida em um momento de regime


protegido, como coloca De Martino. Os pobres podem ser reis e os ricos, lama. Mas
também são cobras, borboletas, folhas, mar e cachoeira. Quando a pessoa vira mundo, o
mundo vira gente. Quebram-se as fronteiras, como disse Rabelo. Há uma integração
completa que será desfeita ao fim do ritual, mas que pode ser retomada porque é
essencial.

Em sua última entrevista ao jornalista Luís Pellegrini para a revista Planeta, Pierre
Verger respondeu que sua dedicação ao candomblé não significava nada
espiritualmente. Questionado se ele não acreditava em nada do que tinha visto e vivido,
Verger responde:

“Pela manhã, antes de vir me visitar, você não disse que foi ao Pelourinho e
comeu um acarajé feito por aquela baiana que monta seu tabuleiro ao lado da
Fundação Jorge Amado? Pois bem, aquela mesma baiana, igual a tantas outras,
vestida de baiana e coberta de balangandãs, que passa o dia fritando acarajé para
ganhar a vida, você sabe o que acontece à noite, quando ela vai para o seu
terreiro, quando ela dança e entra em transe ao som dos atabaques e incorpora a
Oxum que carrega? Preste atenção: ela deixa de ser uma simples baiana, igual a
milhares de outras, para se transformar naquilo que realmente é - uma rainha.
Uma rainha, sim, na profundidade do seu ser. Respeitada, tida e havida como tal
por toda a comunidade do seu terreiro. E aquele estivador que passa o dia
carregando sacos no cais do porto, sabe o que acontece quando ele incorpora no
terreiro o Xangô que carrega? Acontece o mesmo: ele se transforma num rei,
porque a sua verdadeira natureza é a de um rei. Você me perguntou, eu
respondo: foi para isso, sim, que dediquei a maior parte da minha vida. Para

128
contemplar e tentar entender esse espetáculo único, o maior espetáculo da Terra,
que é a manifestação plena da verdade que habita o ser humano. A verdade
profunda que é representada pelo orixá. E, se mais dez vidas eu tivesse, de bom
grado dedicaria todas elas a esse mesmo objetivo.” (Verger, 2010)

Ao longo desta pesquisa procurei percorrer um caminho inspirado naquele que De


Martino inaugurou em sua empreitada para compreender o “mundo mágico”, e o
tarantismo em particular, de forma mais ampla. Atualizo as ideias do autor quando trago
autores como Stengers e Prigogine com a proposta de que nossa civilização ocidental
moderna está tão embebida de ideias mágicas quanto o mundo mágico demartiniano. O
mundo continua a nos ameaçar, conforme procuro demonstrar com autores como Beck,
Giddens e Foucault. Distancio-me de De Martino ao trazer as ideias de Ingold com a
proposta da inversão da relação humano e não-humano, assim como em Rabelo.

De Martino conclui La Terra del Rimorso afirmando que:

“Hoje sabemos que o "espinho" não é um ataque por um demônio ou um deus,


mas o passado ruim que retorna e se submete a uma reparação mundana.
Sabemos também que, no tarantismo, a "picada" ou "mordida" é um momento
alienado de um remorso interior que se busca em si mesmo, "certo peso ou
aperto interior", como dizia Serao, "o horizonte de uma angústia que é o sintoma
oculto de decisões não tomadas e conflitos que operam no inconsciente", como
diríamos hoje. Mas, precisamente porque sabemos essas coisas - e o mundo
contemporâneo nos tem dado uma excessiva porção desta dura ciência - o
tarantismo estimula nosso interesse novamente e volta a ser um argumento vivo
de uma polêmica que nos interessa de perto” (De Martino, 1999:298)

Ao assumir o termo não-humanos, amplio a possibilidade de o transe de possessão ser


operado por deuses, demônios ou quaisquer agentes que a literatura contemporânea
(Latour, Ingold) vem chamando de não-humanos. Focado nas práticas rituais e seu
impacto social, busquei aproveitar as reflexões demartinianas para compreender no
candomblé a possibilidade do resgate da presença que se perde para o mundo.

Talvez o próprio De Martino se surpreendesse ao encontrar o candomblé tão vivo em


uma grande metrópole do século XXI. A ideia do homem emancipado da natureza ainda
é uma utopia, como nos tempos em que ele fez sua incursão na terra do remorso. O céu
trovejante pela voz de Xangô que Amado descreve no episódio do roubo de Ogum é o

129
mesmo céu que sorri ao ver o santo recuperado. O mundo ainda nos ataca e as pessoas
seguem em guerra contra ele e também a seu favor.

Minha conclusão não poderia ser outra senão a de que o candomblé, assim como o
tarantismo, é uma prática requintada de resgate da presença dos excluídos. O candomblé
celebra o caos como gerador de ordem, reconhece que é somente a partir da total
desconstrução do ser que ele pode ser compreendido e completado em um processo de
vida.

Tudo no candomblé é tempo, é cíclico e sazonal. Há os dias certos para louvar a cada
orixá. Há o tempo certo para aprender e para completar-se. Há também o tempo certo
para perder-se para o mundo e reintegra-se neste. O candomblé encontra seu espaço em
um tempo e espaço onde vivemos a experiência da velocidade (Kehl, 2009) ao
promover uma nova compreensão do tempo, mas sobretudo, ao estimular a
compreensão do movimento e da fluidez. É possível, saudável e necessário transitar
entre o veloz e o lento. Todos os filhos de todos os santos dançam lentamente para Nanã
e Oxalá. Os mesmos filhos dançam velozes para Iansã e Ogum. No xirê as experiências
de velocidade e o relacionamento do sujeito com o tempo é compreendido como
instável, embora organizado. Toda a história do mundo, da criação e dos orixás é
revivida a cada xirê dançado.

Os adeptos do candomblé compreendem de uma maneira bastante visceral a vida como


o trânsito frequente entre o sublime e o abjeto, o humano e o animal, o natural e o
civilizado. No movimento encontram-se as conexões perdidas e liberam-se os vínculos
atadores.

O Pedro Bala, de Jorge Amado, era um menor infrator, líder de uma gangue temida e
rechaçada em Salvador. No candomblé, eram tratados como ogans. Quando precisou-se
de alguém astuto o suficiente para retomar Ogum de uma delegacia, Pedro Bala foi
chamado. Cada orixá tem suas habilidades. A vida só é completa com a presença de
todos. No candomblé, no contexto da prática ritual, não há excluídos, todos descendem
da realeza criadora do mundo. Todos são família real.

E é no movimento de ir e vir, de aproximar-se e distanciar-se do mundo que a presença


se tangibiliza e o sujeito retoma recorrentemente sua autonomia na história. Autonomia
de guerreiro que luta pela sobrevivência ao constante risco de não-ser-no-mundo.

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