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Bumba-meu-boi: da tradição a re-invenção1

Adailton Alves2

Introdução

A brincadeira do boi, espalhada por todo o Brasil com diversas denominações e


variações dramáticas, ocorre em dois períodos: em alguns Estados está ligado ao ciclo
natalino, já nos Estados do Maranhão, Piauí, Pará e Amazonas a festa ocorre no período
junino.
O folguedo também serve de inspiração para diversas outras manifestações
artísticas, sendo recriado constantemente, por exemplo, por alguns grupos teatrais. O
seu enredo melodramático e de suas personagens-tipos, facilitam as recriações teatrais
que se espraiam por todo o Brasil.
Se o boi carrega em si elementos de uma brincadeira rural, isso não impede sua
presença, cada vez mais marcante, nos centros urbanos, mesmo em uma grande
metrópole como São Paulo.
A brincadeira é tão rica que é possível analisarmos o boi por diversos aspectos:
mítico-ritual, como elemento cultural da colônia, por sua violência intraclasse e
extraclasse, entre outros. Essa riqueza constitutiva da brincadeira dificulta uma análise
total, isto é, fica difícil dá conta de todos os seus aspectos, por isso mesmo, boa parte
dos estudos, acabam por focar em um ou outro aspecto.
Nosso objetivo nesse trabalho é tão somente o de dar conta dos elementos mais
gerais da composição da brincadeira do boi, sobretudo aquele encontrado no Estado do
Maranhão, destacando o aspecto da luta de classes. Finalizando nossa análise,
discutimos como a brincadeira tem servido e como tem sido recriada pelo teatro,
centralizando em um grupo pernambucano que atua com teatro de rua e esteve
recentemente em São Paulo apresentando seu espetáculo.

Um boi brasileiro

1
Trabalho apresentado na pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp na
disciplina Teatralidades Brasileiras da Profa. Dra. Marianna M. F. Monteiro.
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Mestrando em Artes.
3
É possível identificar na brincadeira do Bumba-meu-boi3 elementos dos três
povos que compõem o Brasil, mas é (ou foi), sobretudo, um espetáculo de negros,
embora não signifique que seja africano e nem que brancos não o brinquem, como alerta
Hemilo Borba Filho. Borba Filho afirma ainda, tratar-se do “mais puro dos espetáculos
populares nordestinos, pois embora nele se notem algumas influências européias sua
estrutura, seus assuntos, seus tipos e a música são essencialmente brasileiros” (1982: 5).
Mas, Hemilo Borba filho, faz questão de frisar tratar-se de espetáculo de negros, porque
entende que “o negro ainda não foi suficientemente aproveitado nos espetáculos
brasileiros” (1982: 14).
O folguedo está presente em todo o Brasil, recebendo várias denominações e
variações dramáticas. Podemos afirmar que é uma tensão entre a cultura popular e a
cultura dominante, sendo uma alegoria da malandragem, como concebe o historiador
Wagner Cabral Costa (2005). Quanto a sua estrutura, pode ser considerado como uma
tragicomédia, já que carrega tanto elementos cômicos, como trágicos. Outra
característica, suas personagens são tipos, dessa forma, representam categorias de
pessoas e não indivíduos. O boi, em sua estrutura dramática, instaura um mundo
carnavalizado, em que, os pequenos, através da festa e do riso, põem o mundo oficial às
avessas, levando vantagens sobre os poderosos. Para Mikhail Bakhtin, “o carnaval é a
segunda vida do povo, baseada no princípio do riso” (1987: 7). A carnavalização ocorre
por meio de rebaixamentos, na ridicularização de autoridades como médicos, padres,
engenheiros, entre outros.
Cabe ressaltar ainda que o boi, o animal, teve importância simbólica na
Península Ibérica, bem como no Nordeste, conhecida como “a civilização do couro”, no
qual o animal significava não só o alimento, mas sim tudo que é necessário à vida.
Câmara Cascudo afirmou que “a poesia tradicional sertaneja tem seus melhores e
maiores motivos no ciclo do gado e no ciclo heróico dos cangaceiros” (s.d, p. 15),
mostrando com isso tanto sua importância material, bem como sua importância como
elemento inspirador da cultural local.

3
Mesmo que nossa abordagem seja em relação ao boi do Maranhão, esse é o termo
que, de certa forma, se popularizou. Hemilo Borba Filho apresenta diversos nomes:
Bumba-meu-Boi (PE), Boi-Bumbá (AM), Boi Surubi (CE), Boi Calemba (RN), Cavalo
Marinho (PB), Bumba-de-Reis (ES), Reis de Boi (RJ, Boi de Mamão (SC), Boizinho (RS)
e Boi-de-Reis (MA). O autor entende ainda que não há provas de que um seja mais
antigo que o outro (Cf. 1982). Já André Bueno, ao escrever sobre o boi do Maranhão,
adota o termo Bumba-boi.
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Mais se pode vê no auto também a repetição de gestos de antigos sacrifícios
rituais, em que a morte de alguém significava a perpetuação da espécie em que a pessoa
do sacrifício foi substituída pelo boi. Quanto ao riso presente na encenação, seria o
exorcismo, a expulsão dos maus espíritos. Não podemos esquecer também que o riso é
uma forma também de criticar os costumes: ridendo castigat mores, diziam os romanos.
Ou, como se questiona Georges Minois: “O riso não é o único meio de nos fazer
suportar a existência, a partir do momento em que nenhuma explicação parece
convincente?” (2003: 19).

O boi do Maranhão

No Maranhão, o boi está ligado ao ciclo junino, diferentemente de outros


Estados que fazem parte do ciclo natalino. Muitos dos bois têm, na sua organização, a
finalidade da paga de promessas. Embora venha ocorrendo mudanças, principalmente
porque o boi vem se tornando a dança-mãe, largamente utilizado pelo turismo, segundo
Francisca Ester de Sá Marques (1999). Por isso mesmo, seu aspecto dramático vem se
perdendo em detrimento das outras partes que o compõe.
Se as manifestações folclóricas nunca foram estáticas, a chegada da indústria
cultural de massa e a apropriação do boi por parte da indústria do turismo radicalizam
essas mudanças, fazendo com que o bumba-meu-boi deixe “de ser uma prática
folclórica comunitária para virar produto de espetáculo” (MARQUES, 1999: 158).
Mesmo assim, sabemos e confiamos nas táticas populares, que sempre souberam
aproveitar o mínimo que lhes é oferecido para tripudiar sobre o poder que lhes oprime.
O mestre Hermilo Borba Filho nos ensina:
“Os saudosistas lamentam que o Bumba-meu-Boi tenha sido
adulterado com o passar do tempo. Isto é uma bobagem. Todo
espetáculo popular vai recebendo, dia a dia, influências da hora e ele é
feito pelos artistas populares e não pelos eruditos. Os atores populares
é que são donos do seu próprio espetáculo” (1982: 18).

A brincadeira do boi é muito complexa. Podemos analisar o boi como um


conflito econômico (disputa entre duas classes), como um rito messiânico (recriação de
um ritual pagão), como uma brincadeira (festa) ou mesmo dentro de um contexto
religioso (a utilização do boi para pagar promessas). Mas qualquer leitura que o

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enquadre é perigosa, o melhor é fazermos o que afirma Flávio Kothe: “uma leitura
alegórica da própria alegoria” (apud COSTA, 2005, p. 69), isto porque o auto do boi é
polissêmico, carrega muitos significados.
Devido a extensão desse trabalho, optamos por sua parte dramática, e, para uma
melhor compreensão desse estudo, colocamos um resumo do enredo da história sobre a
qual focaremos:
“Pai Francisco (ou Nego Chico), vaqueiro honesto e pacato, cuidava
de um boi de propriedade de um certo senhor. Chico era casado com
Catirina. Um dia, ela, grávida, sente o desejo de comer a língua do
boi. Diante de tal situação, Chico, embora assustado, não hesitava:
atirava no boi, cortava-lhe a língua, satisfazia o desejo de Catirina e,
com a mulher, fugia da fazenda. Dando pela falta do boi e pela
ausência de Chico, o amo chamava seus vaqueiros e lhes ordenava que
procurassem por Chico, pelo boi, e os trouxessem de volta à fazenda.
Diante do fracasso dos vaqueiros, o amo chamava os índios, que
saíam e depois de muita luta, encontravam o fugitivo. Trazido à
presença do amo, juntamente com Catirina e o cadáver do boi, Chico
era violentamente punido, mas, após as súplicas de Catirina, o amo se
resolvia por perdoá-lo, contanto que restituísse o boi à vida. Para
tanto, era feito um apelo ao ‘pajé’ (ou ‘curador’) que cantava e
dançava até que seus trabalhos surtiam efeito e o boi ressuscitava
dando um grande urro como sinal. Então, era o perdão a Chico, era a
cantoria, era a festa.” (Américo Azevedo Neto apud COSTA, 2005, p.
61)

Na brincadeira do boi existe uma violência em dois níveis: intra-classe


(rivalidade e desafios entre os bois) e extra-classe (conflitos dos brincantes com as
forças dominantes). E as personagens-tipos (que representam toda uma categoria de
pessoas), demonstram as relações de subordinação ou de oposição entre essas forças e
que se processam no cotidiano das mesmas. Por isso, “nessa disputa, regulada pelos
padrões oriundos do lado dominante, a expressão das verdades percebidas pelo lado não
mandante só encontra uma forma dissimulada de se manifestar: a cômica” (COSTA,
2005: 66).
Temos na estrutura uma forma triangular, formada pela comarca dos mandantes
– que representa a ordem constituída, o mando, o poder econômico, o direito punitivo
etc.; a comarca dos palhaços – representante dos despossuídos, dos submetidos as leis e
que tem como arma a artimanha e a astúcia; e na terceira ponta está o boi como
mediador das duas comarcas, já que interessa a ambos.
Para demonstrar quão complexa é a estrutura do boi podemos citar um exemplo
do primeiro ato. Pai Francisco é o vaqueiro de confiança do amo, mesmo assim ele
satisfaz o desejo material e simbólico de Catirina, e o faz por amor à família, ou seja, ele
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rompe com a ordem estabelecida, já que ele não deveria matar o boi do amo, mas a
esposa está grávida, além disso, há várias superstições em torno da não satisfação de
uma grávida, na dúvida, é melhor realizar o desejo do que pagar para ver.
E se o auto pode ser interpretado como uma alegoria da malandragem, há aí
também ambigüidades. Pois se Pai Francisco é uma figura grotesca com o aspecto de
palhaço e que convida o público à reflexão através de seus atos, essa malandragem
carrega “dilemas morais, em que a ambivalência de sentimentos, de desejo e de culpa,
de vício e de virtude, acentua a já citada tendência moralista do modo alegórico”
(COSTA, 2005: 73). Afinal, Pai Francisco trai o patrão por força maior: atender o
desejo da esposa grávida. Daí o dilema moral, a quem ser fiel? A família ou ao patrão?
Afinal Pai Francisco no terceiro ato não é perdoado e volta a ser fiel ao patrão?
Findo o primeiro ato, vem o segundo, que é a reconstituição da ordem, afinal,
não é tão fácil destruir o edifício dominante. Pai Francisco é capturado pelos índios e é
violentamente punido. A ordem é estabelecida através da violência.
Os índios aqui representam outra ambigüidade do auto, pois ele é um índio
domesticado, obediente e crente, é, portanto mão-de-obra barata ou alma a ser salva, o
que “evidencia que seus protagonistas compartilhem das mesmas representações
construídas pela elite dominante” (CABRAL, 2005: 74). Ou seja, o autoritarismo dos
poderosos é reproduzido pelos dominados, já que “as idéias dominantes de uma época
são as idéias da classe dominante dessa época” (CAHUÍ, 2003: 40).
No terceiro ato entra o Pajé e seres da mata, pondo a prova os valores da religião
oficial, isto é, da Igreja Católica. É mais um conflito que aflora: a religião dos
oprimidos frente à religião dominante, imposta.
O terceiro ato é o mundo do realismo fantástico, em que, por meio de músicas,
danças e das figuras fantásticas, os sentidos dos espectadores são estimulados. O Pajé é
a figura que representa o poder extraterreno, capaz até de vencer a morte, por isso é um
mediador das duas comarcas. E se por um lado ele é o representante dos populares, já
que não é a religião oficial, vai pôr a prova o poder do amo, pois o Pajé representa o
poder ‘superior’, ele representa um mundo sobre o qual o amo não tem poderes. Mas
uma ironia e uma grande malandragem dos populares, pois o amo será
“levado a negar sua própria ordem [Igreja], que é pela segunda vez
relativizada em seu poder, ao passo que o universo caboclo é
novamente afirmado em sua legitimidade e positividade, retornando-
se ao espírito travesso de rebeldia (agora dissimulada) de Pai
Francisco e Catirina” (COSTA, 2005: 79).
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O boi maranhense representa, dessa forma, no primeiro ato, o universo caboclo,
com o desejo e a malandragem desafiando a ordem dominante. O segundo ato é o
universo senhorial que volta a estabelecer a ordem através da violência, ainda que o
objeto de disputa esteja perdido. No terceiro ato, o Pajé, mediador dos dois mundos e
representante das forças sobrenaturais, ressuscita o boi e faz com que não saibamos se
houve vencedores, já que os dois opostos comemoram juntos.

Recriações folclóricas

O folclore e a cultura popular de maneira geral, sempre dialogaram com outras


formas culturais, daí sua dinamicidade. Sempre existiu um diálogo entre o erudito e o
popular, se influenciando mutuamente. Portanto, o folclore nunca foi estático e sempre
se transformou. Como nos lembra Mariana F. M. Monteiro: “A cultura erudita alimenta
a popular e vice-versa; as influências são recíprocas, vêm de cima para baixo e também
de baixo para cima. Na verdade, há intenso tráfego nas duas direções” (2002: 30).
No entanto, hoje, uma das formas culturais que mais utilizam as manifestações
populares é o turismo e a cultural de massa, principalmente na área da música. Assim,
ouvimos os maracatus recriados por Chico Science & Nação Zumbi, bem como o cordel
recriado pelo grupo Cordel do Fogo Encantado e a rabeca, instrumento extremamente
popular no Cavalo Marinho, é utilizada com destaque pelo grupo Mestre Ambrósio (ou
em carreira solo, por Siba) e a todo o momento despontam novas bandas que recriam ou
utilizam elementos das culturas populares. Vivemos hoje sob o sigo do império da
cultura de massa, como entende José Jorge de Carvalho:
para ela tudo converge, é ela o formato predominante, principalmente
na sua dimensão mais perversa: a indústria cultural, que visa
transformar todo o patrimônio cultural da humanidade em objetos de
consumo”(1991: 13)4.

Outro setor que recria elementos das culturas populares, constantemente, é o


teatro. Basta lê qualquer roteiro cultural para identificarmos na programação teatral,
sobretudo montagens infantis, a recriação de histórias folclóricas ou, ao assistirmos,

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CARVALHO, José Jorge. As duas faces da tradição. O clássico e o popular na
modernidade Latinoamericana. Brasília, 1991. Disponível em:
http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie109empdf.pdf. Consultado em: 14/01/2011.
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percebermos a utilização das cantigas de rodas nas diversas montagens, seja com
desejos mercantis, seja como reconhecimento da força da cultura popular.
A cultura erudita também se vale da criatividade da cultura popular. O maior
problema nisso tudo é que, via de regra, os populares não tem a mesma facilidade para
acessar as demais culturas, que lhes é negado. Ou seja, não é todo dia que os populares
podem adentrar, por exemplo, o teatro municipal de São Paulo e apreciar uma opera.
Mesmo assim, está claro, que por diversas vias, os populares vão também
bebendo em outras fontes e entre eles isso é ainda mais constante, isto é, entre os
próprios populares eles tomam de empréstimos elementos de uma manifestação artística
e recriam em outra. É o que veremos a seguir.

Êta vida! – o boi volta à rua recriado

O grupo Teatro Mustadinha & Companhia – Teamu, da cidade de Recife-PE,


esteve em novembro de 2010 participando da 5ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas,
com o espetáculo Êta Vida!, Aproveitaram a estada em São Paulo e, com o mesmo
espetáculo, ocuparam o VI Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa em Artes
Cênicas – ABRACE, que ocorreu na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho) também naquele período.
Os integrantes do Teamu, que atualmente são Anderson Guedes, Sérgio Diniz e
Josafá Manoel, conviveram e convivem com as tradições populares, chegaram,
inclusive a morar na casa onde viveu o Mestre Antônio Pereira, o Capitão Boca-Mole
do Boi Misterioso, o mesmo recolhido por Hermilo Borba Filho. A brincadeira desse
mestre e de tantos outros vem sendo assistido desde a infância pelos integrantes do
Teamu.
Um ponto forte no grupo é a sua musicalidade. Toda a música é executada ao
vivo e sua criatividade é tamanha que extrapolou o grupo teatral, a ponto de surgir a
banda regional Vôte! O quê é isso? A banda, que toca diversos ritmos nordestinos, criou
o projeto Forró de um real, na região central do Recife antigo, próximo ao Marco Zero.
Se no Bumba-meu-boi as loas intermedeiam partes do auto, aqui a música está presente
entre uma cena e outra ao longo do espetáculo.
Cabe ressaltar também que o grupo foi um dos responsáveis pela organização do
Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP-PE), um dos movimentos teatrais

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mais antigos do Brasil, sendo responsável, por meio de seus diversos grupos, de levar
programação teatral aos bairros periféricos de Recife e Olinda.
Nosso foco aqui, no entanto, é seu espetáculo Êta Vida!, uma recriação da
brincadeira do Buma-meu-boi, utilizando basicamente as personagens e o inicio do seu
enredo. Narra as desventuras de Catirina, que após comer a língua do boi se vê sem seu
marido Mateus – que fugiu para a cidade –, sendo pressionada pelo Capitão, resolve ir
em busca de seu esposo. Nesse novo enredo as agruras dos mais simples são
transferidos para a cidade.
O espetáculo foi criado em 1991, a partir da discussão sobre os quarenta anos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, tomando o bumba-meu-boi como
estrutura, apresenta o descumprimento dos direitos básicos na prática. Pois ao chegar na
cidade, Catirina se vê obrigada a trabalhar e morar em condições precárias. Seu
senhorio é também o Capitão, dessa forma, o enredo nos mostra que não importa aonde
o pobre vá, vê-se condenado ao sofrimento.
Pelo que foi apresentado até aqui, ainda que de forma rápida, fica claro que a
proposta é levar à cena a luta de classes, mostrando como os direitos básicos são
desrespeitados quando se trata das camadas menos abastadas. Assim, Catirina, que pega
ônibus cheio ainda de madrugada para ganhar um mísero salário, com o qual se quer é
possível pagar o aluguel, se vê obrigada a ocupar um espaço, mas logo vem a repressão.
E aqui vem um ponto importante no enredo que é – mesmo sendo feito apenas por
homens – o destaque dado à mulher, revelando sua força e sua luta na cidade grande.
Na encenação as personagens são ‘criadas’ e desfeitas na presença do público,
numa clara desmistificação do fazer teatral, como pedia Bertolt Brecht. A identificação
do público é imediata, pois vê nessa simplicidade e desmistificação, que se trata de
pessoas de sua classe, isto é, estão entre iguais. Anderson Guedes, um dos fundadores
do grupo em entrevista a Leidson Ferraz (2009: 79), afirma que o grupo faz um teatro
“do povo para o povo, com o povo”. Porque seus integrantes são “povão”, por isso
fazem “um teatro essencialmente popular”. No seu entender, “alguns vão para rua e não
são nada ‘popular’”. Essa consciência da arte que fazem, como fazem e para quem
fazem é fundamental, pois como bem afirma Marilena Chauí, não é porque algo está no
povo que é do povo (Cf. 2003). O Teamu sabe a que veio e sabe com quem quer
dialogar, para tanto, utiliza os elementos da cultura popular, do qual o Bumba-meu-boi
é uma das fontes.

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Hermilo Borba Filho, citando a brincadeira do boi e do mamulengo, mas que
nessa instância vale para o espetáculo do Teamu, afirma: “todos representam, até
mesmo o público, derrubando de vez a clássica quarta parede dos espetáculos de cena à
italiana” (1982: 8). Ora, tanto a desmistificação, que revela tratar-se de teatro, como
colocar o público em cena, é feito pelos atores do Teamu de forma magistral. Quando
há erro, por exemplo, explicam que houve erro, apontam o errado para que todos riam e
seguem a cena. Esse exemplo ilustra a afirmação de Mikhail Bakhtin, de que o riso
popular é universal, atinge a todos, sendo também ambivalente, é um riso que
“escarnece os próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução.
Também ele se sente incompleto” (1987: 10-1).

Figura 1: Teamu & Cia – apresentação na Praça do Patriarca (São Paulo/SP), 5ª Mostra de
Teatro de Rua Lino Rojas – 09/11/2010.

Atores: Sérgio Diniz (Capitão e sua burrinha), Anderson Guedes (Catirina) e Josafá Manoel
(Mateus).
Fonte: Arquivo do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. Foto: Augusto Paiva

Um exemplo de como colocam o público em cena, é quando, ainda na música


inicial, da qual, os significativos versos relatam que “eles fizeram teatro pra dominar/ a
gente faz teatro pra libertar”, há um breque e afirmam: “vocês que estão roda/ acham

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que estão assistindo/ se enganam, estão é atuando”. Aqui há uma clara alusão a cena
propriamente dita, mas, sobretudo a vida cotidiana, nosso palco diário. Os versos
mostram a beleza e o poder de síntese da poesia popular, ao fundir cena e vida.
Êta Vida! é um grito reivindicativo, em que atores e público, iguais entre si,
reivindicam, mudanças na vida dura que levam. Francisca Ester de Sá Marques, escreve
o seguinte sobre os populares e sua arte:
Misturando no auto popular comédia, sátira, drama, teatro e música,
através da brincadeira, do rito profano-religioso, da pilhéria, da
malandragem e da construção de personagens caricaturais, os grupos
podem narrar seus dramas, denunciar as condições em que vivem,
exigir uma participação política na construção do país e reivindicar
direitos negados” (1999: 59).

Excetuando a questão religiosa, penso que é isso o que faz na rua o Teamu & Cia, seja
com seu espetáculo Êta Vida!, seja com os demais que presenciei em outros momentos,
afinal, como diz outro verso em outra de suas músicas, que é também uma recriação,
“Teamu é povo, é alegria, é carnaval!” E fazem isso na rua, lugar democrático por
definição, pois o que prende o espectador na roda é apenas o seu interesse no
espetáculo. Fazem uma arte reivindicativa, com plena consciência de que são atores na
cena e na vida, como afirmou um de seus ex-integrantes, João Lin:
Hoje compreendo que a organicidade do tipo de teatro que fazíamos (a
mistura da festa, da luta, da amizade, da indignação com o
“estabelecido”, da crença numa mudança) era [e aqui eu afirmo: é] a
expressão de uma arte que não se separa da vida – conceito muito em
voga hoje na arte contemporânea. Essa foi a nossa prática no teatro
popular, desde sempre” (apud FERAZ, 2009: 61).

Conclusão

Para finalizar, é importante um apontamento sobre a brincadeira do Bumba-meu-


boi aqui estudado, no que diz respeito a sua absorção pela indústria do turismo. É
preciso relativizar essa transformação, ainda que a parte dramática venha perdendo
campo e a brincadeira tornando-se, aparentemente, um produto destituído de
significado. Cabe ressaltar que a festa, a dança, a música e o rito permanecem, como
uma insistência obstinada, como força viva que teima em resistir, utilizando-se da

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malandragem para arrecadar fundos no campo inimigo e permanecer vivo, soltando seu
grito, seu urro contra o opressor.
Os bois são prova de como as transformações culturais são ao mesmo tempo
lentas e dinâmicas, pois se hoje podem ser também um produto na mão da indústria do
turismo, resultado do capitalismo selvagem, ao mesmo tempo, traz em seu bojo
reminiscência dos antigos ritos pagãos, provando que as tradições populares são
complexas e ricas em conhecimento, são, enfim, repositórios do saber de toda
humanidade.
Diversos grupos teatrais têm aproveitado esses repositórios de saber, recriando, a
seu modo, espetáculos que discutem sua realidade, seu cotidiano, é o caso do
pernambucano Teamu & Companhia, que ao se valer da brincadeira que presenciaram
na infância, transformaram em um instrumento de denúncia da opressão sofrida na
cidade grande, sobretudo aquela enfrentada pela mulher pobre.

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