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PUBLICAÇÕES AVULSAS I.P.R.

Título
PATRIMÔNIO: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE

Autor
TOGNON, Marcos

Publicação Original
“Formação de Educadores: Memória, Patrimônio e Meio Ambiente”
Organização de Margareth Brandini Park
Campinas: Mercado de Letras; CMU-UNICAMP, 2003
pp. 163-183, 6 ilustrações.
Cidade de Ouro Preto vista do “Mirante” - Foto MT 2006.

Patrimônio, entre o presente e o passado

Prof. Dr. Marcos Tognon


Centro de Memória da UNICAMP
I.P.R.-INOVA-UNICAMP

Território e bens culturais


Os “bens culturais” são os mais importantes resultados históricos da cultura humana na
constituição do seu território.
Tal definição, que muitas vezes não é minimamente percebida pelos “agentes” interessados
ou mesmo pelos cultores e amadores desses bens, deve ser permanentemente reiterada,
discutida, amplificada em suas conseqüências na atual condição contemporânea. Tal tema
ganha, a cada dia, espaço nas mídias, nas políticas públicas governamentais, e mesmo na
jovem “economia da cultura” que aos poucos se estende pelo Brasil, e se associa a
programas de benefícios fiscais, de inclusão social, de educação não formal, de
restruturação urbana, dos estímulos a pólos turísticos, entre outros.
De fato, a nossa definição de bens culturais visa responder a três perguntas, “o que” são os
bens culturais, “como” são celebrados assim, e “onde” se originam, se manifestam.
Os bens culturais conformam hoje um conjunto complexo, poderíamos dizer, de objetos (da
menor escala de um crucifixo móvel para altares residenciais ao grande monumento
arquitetônico rural, como um engenho de açúcar nordestino do século XVIII, por exemplo),
de práticas (da culinária “típica” regional a danças e rituais religiosos, festivos e populares),
de paisagens (sejam os núcleos históricos citadinos, os sítios arqueológicos, os naturais, o
parque ou reserva florestal que mesmo com a sua fauna e flora originais, já preenchem
valores culturais que a sociedade urbana ou rural utiliza para se apropriar largamente do
território).
É somente com o processo histórico, pelo qual todas as sociedades civilizadas mantêm o
vínculo de valores entre passado e o presente, valores que se agregam aos objetos, às
práticas e às paisagens, que nasce o reconhecimento desse conjunto de coisas, atos e
lugares, um “patrimônio” aceito por convenções socialmente institucionalizadas, que
podem ir desde a vontade popular manifestada por consenso, na democracia representativa,
ou, pelo mais tirânico gesto centralizador. Não esqueçamos a evidência do fascismo italiano
sobre o período imperial da Antigüidade clássica.
Eis “como” nascem os bens culturais, se afirmam dentro da cultura material humana, ao
longo de percursos temporais até o presente, íntimos na relação com o território apropriado,
apresentando-se como “exemplos”; e o processo histórico, sem discutirmos aqui a chave
pela qual é interpretado, é quem celebra as condições de reconhecimento dos bens culturais;
cabe à relatividade do ponto de vista sobre o processo histórico (político, religioso,
democrático, popular, dos oprimidos ou dos poderosos, para usar um recurso retórico tão
utilizado na quebra do paradigma dos Monumentos Nacionais, há quase três décadas no
Brasil) acertar a sua luz sobre “quais” coisas, costumes, lugares que a sociedade interessada
pretende proteger e registrar em nossos livros de tombamento.
Pedras, madeira, argila, metais, mas também como cortar tal pedra calcária, como talhar a
doce madeira escura, como formatar a argila fina ou forjar os metais preciosos, tecnologias
das mais primárias e artesanais àquelas industriais, técnicas que nascem do confronto dos
homens com os recursos dos territórios a serem dominados, pelos conhecimentos e suas
dinâmicas que ali nascem, vivenciados da escala do cotidiano para aquela dos longos
períodos temporais; pedras que sustentam a vida cromática das cidades, madeiras que
participaram intimamente do dia a dia, como no mobiliário de repouso ou de serviço.
Argilas que receberam a devoção mais sincera e fiel e metais que serviram para
confeccionar valores de troca e de intermediação, as moedas, são apenas exemplos daquela
apropriação ao longo de décadas, de séculos, demarcando os limites da cultura humana,
frente à uma unívoca natureza, próxima ou distante.
Não podemos deixar de citar o óbvio, o fator que demarca a validade inequívoca dos bens
culturais em seus territórios: à variedade infinita e distinta das porções geográficas e suas
variáveis climáticas, geomórficas, a fauna e a flora, sempre associaremos sociedades
também específicas em densidade, cultura, necessidades, em práticas. Confrontados os bens
culturais de um mesmo país, de uma mesma região, de uma mesma cidade, poderemos
observar o jogo contínuo de distinção e sobreposição conviventes de valores estéticos,
simbólicos e técnicos, e do modo como esses são interpretados, são convertidos em
passado, tradição, patrimônio.
Por isso o risco da presente noção de globalização, como detectou o geógrafo Milton
Santos, portanto uma “ideologia” de base econômica, especulativa e oportuna, que abstrai
as escalas menores da vida humana em seus territórios 1 , é o de asfixiar os processos
históricos no qual as sociedades concretamente vivem, embasados no beneficiamento dos
recursos naturais, na organização dos fluxos, na elaboração e uso de tecnologias, na
valorização e o culto dos nossos mais caros valores sociais hoje, justamente aqueles mais
ancorados no território, a memória e a cidadania 2 .

Políticas públicas e patrimônio


É o Estado e o Poder Público em suas esferas, do nacional ao municipal, que devem
garantir a vontade coletiva e institucionalizada na preservação e na fruição dos bens
culturais no Brasil. Dever público estabelecido pela vigente Constituição nacional,
particularmente pelo texto do artigo 23°, o qual explicita que a União, Estados e
Municípios devem proteger, impedir a evasão, proporcionar os meios de acesso e, por fim,
preservar. Historicamente, desde a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1937, a preservação era aplicada aos bens materiais, garantia constitucional
dada pelo Decreto-lei número 24 de 30 de novembro de 1937 e os quatro livros de tombo
criados 3 , sendo que a nossa atual carta maior legislativa de 1988 acrescentou os bens
“imateriais” 4 .
Hoje, passados quase sete décadas da origem do SPHAN, poderíamos traçar diversas linhas
históricas sobre a gestão e mesmo sobre a concepção de “patrimônio” que o poder público
organizou, sempre em uma contínua ampliação de interesses, os diversos bens culturais 5 .
Mas sem dúvida, uma dos mais interessantes fios de Ariadne neste tecido histórico seria

1
Cf. desde a última antologia publicada postumamente de Milton Santos, O país distorcido (São Paulo: Publifolha, 2002) até os ensaios e
conferências sobre a globalização como “Os espaços da globalização” (in Anais do 3° Simpósio Nacional de Geografia Urbana,
UFRJ/AGB, setembro 1993, pp. 33-37), e “Razão global, razão local” (in 1° Encontro Nacional Território Brasileiro e Globalização ,
Resumos, Comunicações e Mesas Redondas, Aracaju, 1995, pp. 211-2) e, finalmente, “Globalização, cidadania e Meio técnico-científico-
informacional” (in Milton Santos. Cidadania e Globalização. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 15-20).
2
Entre várias referências destacamos os encontros de debate e estudo O Direito a Memória. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura,
1992; e, Produzindo o passado. São Paulo: Editora Brasiliense / Secretaria de Estado da Cultura, 1994.
3
Decreto-Lei número 25, Artigo 4°:
“O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se
refere o art. 1º desta lei, a saber:
1º) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica,
ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º;
2º) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica;
3º) no Livro do Tombo das Belas-Artes, as coisas de arte erudita nacional ou estrangeira;
4º) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras”.
4
V. o Artigo 216° da Constituição promulgada em 1988:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Com o Decreto-Lei n. 3.551 de 4 de agosto de 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso regulamentou aquelas aspirações da Carta
Constitucional de 1988, criando os Livros de Tombo.
5
Para uma história institucional do SPHAN, hoje IPHAN, cf. Maria Cecília Lourdes Fonseca. O Patrimônio em Processo. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ / Minc / Iphan, 1997.
aquele no qual seguíssemos a biografia dos “heróis” do patrimônio, as personalidades que
dirigiram as políticas federais de preservação como Rodrigo Mello Franco de Andrade 6 ,
entre a fundação do SPHAN em 1937 até 1967, Aloísio Magalhães desde 1979 até sua
morte prematura em 1982 7 , ou tiveram participação intelectual e técnica nas ações dos
órgãos governamentais, como o modernista Mário de Andrade e os arquitetos Lúcio Costa
8
, Luís Saia 9 , Sylvio de Vasconcellos 10 e Antônio Luís Dias de Andrade 11 .
Do esboço do Decreto-Lei número 25, no qual o “tombamento” era previsto tanto para
“coisas” como “fatos”, sejam manifestações da cultura “erudita” ou “popular” (Mário de
Andrade) abrangência de vanguarda que não resultou no texto final assinado por Gustavo
Capanema e Getúlio Vargas em 1937, à sagrada concepção de “monumento” – os bens
mais relevantes em fatura artística, em significado histórico para o país, em relevância para
a nossa identidade nacional – que orientou os registros nos quatro Livros de Tombo
(Rodrigo Andrade) 12 , até aos “objetos artísticos” se somaram os “atos”, os costumes
festivos, as manufaturas tradicionais nascidas de vocações expressivas de antigas tradições
populares (Aloíso Magalhães), quando o Brasil se alinhou a um forte movimento
promovido pela Unesco, a partir dos anos de 1970 13 .
Passarmos do “Patrimônio Monumental” aos “Bens Culturais” não foi apenas uma
extensão, uma ampliação do interesse sobre a cultural material humana nestes últimos trinta

6
Cf. as publicações: Rodrigo e o seu tempo. Rio de Janeiro: Iphan, 1986; e, Rodrigo e o Sphan. Rio de Janeiro: Iphan, 1987.
7
Entre os escritos de Aloíso Magalhães, a sua crítica à definição restrita de bens culturais, mesmo que intuída pela noção de
“nacionalidade”, cf. E Triunfo? A questão dos bens Culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985, pp. 52-
53: “Ocorre, entretanto, que o conceito de bem cultural no Brasil continua restrito aos bens móveis e imóveis, contendo ou não valor
criativo próprio, impregnados de valor histórico (essencialmente voltados para o passado), ou aos bens da criação individual expontânea,
obras que constituem o nosso acervo artístico (música, literatura, cinema, artes plásticas, arquitetura, teatro), quase sempre de apreciação
elitista. Aos primeiros deve-se garantir a proteção que merecem e a possibilidade de difusão que os torne amplamente conhecidos. Deles
podem provir as referências para a compreensão de nossa trajetória como cultura e os indicadores para uma projeção no futuro. Quanto
aos segundos, basta assegurar-lhes a liberdade de expressão e os recursos necessários à sua melhor concretização. Permeando essas duas
categorias, existe vasta gama de bens – procedentes sobretudo do fazer popular – que por estarem inseridos na dinâmica vida do cotidiano
não são considerados como bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômica e tecnológica. No entanto, é a partir
deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e de descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade. Além disso, é
deles e de sua reiterada presença que surgem expressões de síntese de valor criativo que constitui o objeto de arte”.
8
Autor do plano urbanístico de Brasília, Lúcio Costa (1902-1998) é um dos primeiros assessores do SPHAN para os assuntos da
Arquitetura monumental, participando desde o número 1 da “Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, publicada
em 1937, com o artigo “Documentação necessária” (pp. 31-39), texto que introduz uma visão do progresso que conflui no modernismo
arquitetônico; entre as várias antologias publicadas com ensaios interessantes sobre a sua percepção do nosso patrimônio, especialmente
o barroco, destacamos especialmente o pequeno volume de artigos comemorativos do centenário de nascimento Arquitetura. Rio de
Janeiro: José Olimpo, 2002.
9
A “morada paulista”, a casa do bandeirante no interior da província de São Paulo colonial foi um dos temas mais estudados por Luís
Saia (destacamos a antologia Morada paulista. São Paulo: Perspectiva, 1976); restaurador e urbanista, é sem dúvida autor de uma das
mais profundas reflexões da organização e da história social na formação do patrimônio colonial.
10
Sylvio de Vasconcellos foi professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas, e o grande mérito dos
seus estudos foi uma atenção particular às técnicas construtivas da arquitetura tradicional brasileira, resultados que podemos verificar
parcialmente no breve volume Arquitetura no Brasil – sistemas construtivos. Belo Horizonte: Seplan- R/UFMG/IPHAN/Fundep, 1979.
11
Exímio desenhista, Antônio Luís Dias de Andrade, o Janjão, morto prematuramente, nos deixou estudos muito lúcidos das teorias do
restauro arquitetônico na Europa do século XIX e seus influxos nas ações do SPHAN (cf. o seu doutorado na Fau-Usp, Um estado
completo que pode jamais ter existido. São Paulo: s.n., 1993) bem como um monumental inventário de técnicas construtivas e de
arqueologia urbana e rural no Vale do Paraíba, região que o interessou desde jovem.
12
Cf. um importante balanço crítico de Rodrigo Melo Franco de Andrade sobre a o Decreto-Lei de 1937, no capítulo 2 – “Legislação
vigente. Crítica às suas disposições” – do livro Brasil: Monumentos Históricos e Arqueológicos. México D.F.: Instituto Pannamericano
de Geografia e História, 1952, pp. 61-77.
13
Cf. balanço dos 50 anos do SPHAN na antologia publicada na “Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, no. 22, SPHAN,
Pró-memória, 1987.
anos. Em paralelo, passamos a entender, desde aqueles últimos anos de 1960, o próprio
conceito de “arte”, das manifestações tradicionais de cavalete, de suporte, de plástica, até a
arte conceitual, a Land e a Body Art, as performances, as instalações.
Se a “arte” não estava mais na matéria e na impostação de técnicas e habilidades da
representação figurativa ou mesmo da expressão geométrica e abstrata, e sim na motivação,
no incômodo da consciência coletiva para a ecologia, dos espaços urbanos, para a densa e
caótica cultura material de nossas sociedades, a noção de “bens culturais” tinha a tarefa de
recuperar as etnicidades, os regionalismos, proteger as paisagens, sejam essas construídas
pelos homens ou observadas, admiradas, cultuadas como “espaço natural”. Resultado desse
novo título para os nossos livros do tombo do patrimônio, os “Bens Culturais”, passaram a
ter plena legitimidade duas iniciativas em sentidos praticamente contrários: se os “bens”
não precisam mais daquele valor intrínseco e hierárquico que era a “qualidade artística”,
são “bens” que merecem o reconhecimento pelos seus nítidos limites no espaço e no tempo,
então será possível introduzir um pacto global, um livro do tombo mundial, no qual a
Unesco instituiu a classificação de Patrimônio da Humanidade nos bens dos diversos
países, e o Brasil participa com mais de uma dezena entre sítios urbanos e arqueológicos,
além de parques e reservas naturais 14 . Mas, dessa compreensão do patrimônio em escala
globalizada se contrastou uma outra política pública de preservação, aquela da micro
delimitação dos bens específicos das localidades, dos grupos étnicos e religiosos, das
tradições culturais em variáveis escalas de manifestação.
Assim, do internacional Unesco, e do IPHAN, órgão federal e herdeiro do Serviço de
Patrimônio de 1937, nasceram também nestes trinta anos os conselhos ou institutos,
estaduais e municipais, de defesa e proteção do patrimônio. Novos serviços públicos que
motivaram também reações muito benéficas e pouco privilegiadas pela salvaguarda federal,
como, por exemplo, a valorização e requalificação de núcleos urbanos sedimentados desde
o século XIX até as primeiras décadas do XX, principalmente composto por aquela
arquitetura tão obliterada pelos mais engajados modernistas, a “arquitetura do ecletismo”
15
.
Vivemos hoje a expectativa da criação de um Ministério das Cidades, que possa não só
restituir a força de programas de financiamento de habitação e aquecer o mercado
imobiliário que os seus afoitos protagonistas tanto pregam, mas uma nova instância
nacional que refletirá a precisa escala inicial no qual o território deve ser pensado,
planejado, governado. Qualidade de vida, requalificação, revitalização, transformação dos
centros históricos tem sido metas de planos de governo constantes em nossas últimas
eleições, e certamente os bens culturais figuram entre os mais importantes mecanismos de
impulso.
O historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan considerava a vestimenta dos transeuntes,
da fechadura às casas que continham as suas portas, a diagramação dos letreiros, o arranjo
do verde, toda essa materialidade organizada pelo homem como uma obra de arte cultural

14
Cf. Percival Tirapeli. Patrimônios da Humanidade no Brasil. São Paulo: Metalivros, 2001.
15
Cf. por exemplo o caso do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico, Arqueológico e Turístico – CONDEPHAAT do
Estado de São Paulo, com os estudos de Marly Rodrigues (Imagens do passado: a instituição do patrimônio em São Paulo 1969-1987.
São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado/Condephaat/FAPESP, 2000) e do conjunto de bens tombados (Patrimônio
Cultural Paulista : CONDEPHAAT, bens tombados 1968-1998. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1998).
singular e, nos seus grandes momentos do passado, o ambiente na qual se vivia a qualidade
de ser um cidadão 16 .
Nossas cidades, nossas vestimentas, nossos letreiros, a nossa sofrida vegetação cultivada
inadequadamente em ruas e praças não conseguem mais restituir tal qualidade que
improvisações, imediatismos, especulações contemporâneas submeteram todos os arranjos
históricos materiais, apagando até mesmo espaços, locais de sociabilidade, para não falar da
expulsão de segmentos populacionais seculares rumo às modernas e áridas periferias
urbanas.
A fórmula passa a ser simples e direta para os dirigentes públicos: a recuperação dos bens
culturais pode beneficiar novamente a qualidade citadina, pode aglutinar valores sociais
positivos, como já dissemos aqui – a cidadania e a memória – e os programas de ação
efetiva passam pelo restauro de edifícios históricos, pela requalificação de áreas centrais de
convívio e comércio, pela implantação de serviços culturais, de educação formal e não
formal, na prática de esportes e de atividades de lazer. Tal fórmula é correta, permite a
inclusão social de inúmeras faixas da população que não têm acesso a mínimas
oportunidades, e entre os valores em jogo, é possível nascer “convivências” entre as classes
e segmentos sociais que tendem, pela lógica majoritária do consumo nestes dias, se
distanciarem cada vez mais, sempre tuteladas por linguagens e valores massificados.
Restaurar os bens culturais é a fórmula que exige dos responsáveis pelas instâncias públicas
uma seriedade irrestrita: não só como cumprimento de deveres legislativos da Constituição
(o texto do Estatuto da Cidade aguarda a devida atenção dos Municípios para a gestão
urbana e o patrimônio edificado), mas ao providenciar uma nova vida dos bens culturais
por corretas intervenções na materialidade, na documentação, na difusão dos valores em
jogo.

As disciplinas do patrimônio.
Quando enfatizamos os riscos para o mau “tratamento” dos bens culturais materiais não é
simplesmente um tom retórico alarmista que se pretende mas, explicitar as condições que
quase sempre o nosso patrimônio foi submetido pelas esferas do poder público, pela
carência de verdadeiros profissionais da área, e especialmente, dada a raridade de
normativas e publicações técnicas, de entidades dedicadas à formação e à pesquisa.
Sabemos todos o que custou ao Brasil colonial, antes da vinda da família real portuguesa
exilada no início do século XIX, a proibição completa na publicação de livros, na
instituição de universidades, na formação de instituições como bibliotecas, museus,
arquivos. Tal preço é pago ainda hoje pelo trauma, quando sabemos que
disciplinas como a História da Arte e da Cultura ainda estão fora de qualquer currículo
escolar, a manutenção de nossos Museus nacionais é abaixo de qualquer comentário, e, a
ênfase tecnológica na renovação e na produção das universidades públicas sufoca qualquer
iniciativa que não traga tanto essa tendência, como cursos de conservação e restauração dos
bens culturais.

16
Cf. entre os escritos de Argan, A história da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Pois são a História da Arte, os Museus e a Conservação as disciplinas do patrimônio
histórico-artístico. Disciplinas cujo fundo comum epistemológico é evidentemente
humanista: tratar de registros materiais que agregaram valores estéticos e históricos, juízos,
crenças, os modelos de fruição e de “consumo”, enfim, uma base de conhecimentos,
analíticos e críticos, que antecedem qualquer bagagem técnica.
São disciplinas na medida em que constituem saberes específicos, o que não impede as
interações, os tangenciamentos entre essas e outras áreas; disciplinas que requerem
profissionais também de franca e específica formação, que devem ser difundidas em
publicações, cursos, mostras, aos mais diversos interesses que vão da difusão do
conhecimento à atuação pontual, direta, sobre os bens culturais materiais.
A História da Arte não tem outra tarefa senão zelar pelos estudos que atribuem aos objetos,
aos conjuntos monumentais, às paisagens, os valores que os distinguem na cultura material
das sociedades. Valores que nascem da fortuna que lhes reservou o tempo, as
sensibilidades, as oportunidades para serem não apenas “coisas” arranjadas na sala, na
cidade, nos museus, mas “sujeitos” – como sempre destacou o professor Jorge Coli – de
uma projeção cultural que cada geração se sentiu à vontade, ambicionou em suas
ideologias, ideais estéticos, em seu imaginário. A História da Arte deve produzir catálogos
completos dos artistas, dossiês integrais das obras, compreender o intricado mundo dos
comissionamentos e do mercado, constituir uma linha segura da cronologia de sucessos e
fracassos que tais valores, tais bens trouxeram até o nosso presente.
A História da Arte é responsável pela preservação cultural da obra; a disciplina que
preserva fisicamente os nossos bens é a Conservação.
Processos de manutenção, atividades periódicas de limpeza, e mesmo as intervenções
diretas na obra, o restauro, fazem parte das atribuições essenciais da Conservação, esta sim,
disciplina que ainda vive a sua fase heróica de implementação no Brasil 17 .
Poucas instituições de formação regular e profissional, raros centros de referência, ausência
de debates mais largos com a sociedade, geram, de fato, um mercado de oportunistas que se
aventuram na responsabilidade de programas de restauro, de monumentos edificados, de
grandes ciclos artísticos, de pequenas mas raras obras de artesanato. Se não temos cursos
estáveis de graduação, e conseqüente regulamentação profissional, seria tolo questionar a
Associação Brasileira de Normas Técnicas para uma normalização de procedimentos
projetuais, porém, esses se fazem mais do que necessários e urgentes.
Já tivemos com os futuristas, na primeira década do século XX, a conclamação para
destruir os museus, as obras de arte, as velhas figuras dos conservadores, uma proposta
poética que visava eliminar a inércia daquela Itália monarquista – bradavam os artistas sob
a direção de Filippo Tommaso Marinetti – e, justo aqui no Brasil da primeira República,
herdeiro das instituições culturais imperiais, seríamos talvez os únicos a considerar o que
tais vanguardistas italianos pretendiam. A nossa Escola Nacional de Belas Artes, o Museu
Nacional, o Museu Histórico, todos no Rio de Janeiro, só viveram períodos de agonia com

17
Citamos sobretudo o importantíssimo Centro de Conservação e Restauração dos bens Móveis - CECOR, da Escola de Belas Artes da
UFMG e fundado pela Professora Beatriz Coelho, a Escola Paulista do Restauro do restaurador Domingo L. Tellechea, hoje inativa, e os
poucos cursos específicos para o restauro arquitetônico, como aquele de pós-graduação da UFBA, da PUC-Campinas, e iniciativas de
aprimoramento profissional como aqueles promovidos na UFRJ e no IAB-Núcleo Regional de Campinas.
o século XX. As mais relevantes iniciativas ficariam a cargo de protagonistas e famílias em
São Paulo, como Chateaubriand e o Masp, Ciccilo Matarazzo e o MAM, os Penteados e o
Museu de Arte Brasileira da FAAP.
Os museus devem conservar os bens materiais nas melhores condições possíveis, e isso não
quer dizer pouco: do controle climático ao monitoramento das estruturas e das superfícies
intrínsecas a cada obra; da difusão dos conhecimentos à orientação correta da fruição das
suas peças expostas, desde as informações históricas (datas, autorias, obras semelhantes e
interessantes para comparação, descrição técnica, entre outras) até oferecer a melhor
ambiência para tal contato com os visitantes. Simular espaços arquitetônicos originais nos
quais as obras foram colhidas, associar estruturas museográficas figurativas que estimulem
a imaginação durante o percurso de visita, expor conjuntos de peças para sugerir contrastes,
familiaridades, podem ser idéias criativas ou desastrosas, se não houver o respeito ao
principal interessado, precisamente a “obra”. Está se tornando um hábito em nosso país
termos exposições que se atreveram a exibir uma maior musculatura museográfica no qual
as obras expostas ficaram atrofiadas no seu conteúdo: da experiência do grande vão do
Masp de Lina Bo Bardi às mostras dos 500 anos no Ibirapuera em 2000, particularmente
aquela dedicada ao barroco, até a incompreensível iniciativa do castelo pseudo-mauriciano
da mostra em curso de Eckout no Recife. O risco é de termos a chave discursiva do “parque
temático” como única a criar diálogo com o grande público.
São exemplos fortes de ocasiões importantes, cercam quase quarenta anos de nossa vida
cultural, e da qual se flagra a carência que as nossas disciplinas dos bens culturais ainda
vivem.
[...]

Antiga Estação Ferroviária de Bananal (SP) – Foto MT 2006.

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