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Os feminismos através da história

Ana de Miguel Álvarez


(Versão digital publicada em Creatividad Feminista , http://www.creatividadfeminista.org)

Pode-se afirmar, em diversos sentidos, que o feminismo sempre existiu. No sentido mais
amplo do termo, sempre que as mulheres, individual ou coletivamente, queixaram-se de seu injusto
e amargo destino sob o patriarcado e reivindicaram uma situação diferente, uma vida melhor. No
entanto, neste livro abordaremos o feminismo de uma forma mais específica: trataremos dos
distintos momentos históricos em que as mulheres chegaram a articular, tanto na teoria como na
prática, um conjunto coerente de reivindicações e se organizaram para consegui-las1)
Nesta caminhada pela história do movimento feminista, dividiremos a exposição em três
grandes blocos: o feminismo pré-moderno, em que estão as primeiras manifestações de "polêmicas
feministas”, o feminismo moderno, que surge principalmente com as obras de Poulain de la Barre e
os movimentos de mulheres e feministas da Revolução Francesa, para ressurgir com firmeza nos
grandes movimentos sociais do século XIX, e, por último, o feminismo contemporâneo, em que se
analisa o neofeminismo dos anos sessenta-setenta e as últimas tendências.

I. O Feminismo pré-moderno

O processo de recuperação histórica da memória feminista apenas começou. Cada dia


que passa, as pesquisas adicionam novos nomes à genealogia do feminismo, e aparecem novos
dados em torno da grande luta pela igualdade sexual. Em geral, pode-se afirmar que foi nos
períodos de ilustração e nos momentos de transição para formas sociais mais justas e libertadoras
quando surgiu com mais força a polêmica feminista.
É possível rastrear sinais dessa polêmica nos próprios princípios de nosso passado
clássico. A Ilustração sofística produziu o pensamento da igualdade entre os sexos, ainda que, como
assinala Valcárcel, sobreviveu muito melhor a reação patriarcal que gerou: “As sátiras dúbias de
Aristófanes, A Política de Aristóteles, a recopilação de Platão” 2. Com precedentes tão ilustres, a
história ocidental foi tecendo minuciosamente – desde a religião, a lei e a ciência – o discurso e a
prática que afirmava a inferioridade da mulher com relação ao homem. Discurso este que parecia
dividir em dois a espécie humana: dois corpos, duas razões, duas morais, duas leis.
O Renascimento trouxe consigo um novo paradigma humano, o de autonomia, mas não
o estendeu às mulheres. A identificação do humano com os homens permite a aparência de
universalidade do “ideal de homem renascentista”. No entanto, o culto renascentista à graça, à
beleza, ao pensamento e à inteligência teve sim alguma consequência para as mulheres. 3 A
importância da educação gerou numerosos tratados pedagógicos e abriu um debate sobre a natureza
e deveres dos sexos. Um importante precedente e um marco na polêmica feminista havia sido a obra
de Christine de Pisan, La ciudad de las damas (1405). Pisan ataca o discurso da inferioridade das
mulheres e oferece uma alternativa a sua situação, mas, como certamente indica Alicia H. Puleo,
1
Como mostram as recentes histórias das mulheres, elas tiveram quase sempre um importante protagonismo nas
revoltas e movimentos sociais. No entanto, se a participação das mulheres não é consciente da discriminação
sexual, não pode ser considerada feminista.
2
A. Valcárcel, “É o feminismo uma teoria política?” Desde eo feminismo, núm. 1, 1986.
3
Cf. J. Kelly, “Tiveram as mulheres renascimento?”, em J.S.Amelang e M.Nasch (eds.). História e gênero: As
mulheres na Europa moderna e contemporânea, Alfons el Maganànim, Valencia 1990, pp. 93-126, y A. H. Puleo,
“O paradigma renascentista de autonomia”, em C. Amorós (coord.), Atas do Seminário Permanente Feminismo e
Ilustração, Instituto de Investigações Feministas, Universidad Complutense de Madrid, Madrid 1992, pp. 39-46.
não se deve confundir essas obras reivindicativas com um gênero apologético também cultivado no
Renascimento e destinado a agradar as damas mecenas. Esse gênero utiliza um discurso de
excelência em que elogia a superioridade das mulheres - “o vício é masculino, a virtude, feminina”
-, confecciona catálogos de mulheres excepcionais. Assim, por exemplo, o tratado que Agripa de
Neuesheim dedica à regente dos Países Baixos em 1510, De nobilitate et praecellentia foeminei
sexus4. Apesar das diferenças entre os tratados, seria necessário esperar o século XVII para a
formulação da igualdade.
A cultura e a educação eram, então, um bem muito escasso e, logicamente, foram de
outra índole as ações que envolveram mais mulheres e provocaram maior repressão: a relação das
mulheres com numerosas heresias como as milenaristas. Guillermine de Bohemia, em fins do
século XIII, afirmava que a redenção de Cristo não havia alcançado a mulher, e que Eva ainda não
havía sido salva. Criou uma igreja de mulheres à qual acudiam tanto mulheres do povo como
burguesas e aristocratas. A seita foi denunciada pela inquisição no início do século XIV. Ainda que
as posições das doutrinas hereges sobre a natureza e a posição da mulher fossem muito confusas,
lhe conferiam uma dignidade e um escape emocional e intelectual que dificilmente podia encontrar
em outro espaço público5. O movimento de renovação religiosa que foi a Reforma protestante
significou a possibilidade de uma mudança no estado da polêmica. Ao afirmar a primazia da
consciência-indivíduo e o sacerdócio universal de todos os verdadeiros crentes frente à relação
hierárquica com Deus, abria de par em par as portas ao interrogante feminino: por que nós não?
Paradoxalmente, o protestantismo acabou reforçando a autoridade patriarcal, já que era necessário
um substituto para a debilitada autoridade do sacerdote e do rei. Por mais que a Reforma supusesse
uma maior dignificação do papel da mulher-esposa-companheira, o pai se convertia no novo e
inevitável intérprete das Escrituras, deus-rei do lar. No entanto, e como já acontecera com as
heresias medievais e renascentistas, a própria lógica dessa tese levou à formação de grupos mais
radicais. Especialmente na Inglaterra, a pujança do movimento puritano, já em meados do século
XVII, deu lugar a algumas seitas que, como os quacres, desafiaram claramente a proibição do
apóstolo Paulo. Essas seitas incluíram as mulheres como pregadoras e admitiam que o espírito
podia se expressar através delas. Algumas mulheres encontraram uma interessante via para
manifestar sua individualidade: “O espírito podia induzir uma mulher ao celibato, ou a confiar no
direito de seu marido a governar a consciência dela, ou bem lhe indicar onde devia realizar um
culto. Os espíritos tinham pouca consideração pelo respeito devido ao patriarcado terrenal; só
reconheciam o poder de Deus”6. Então, acusaram-nas de compactuar com o demônio. As frequentes
acusações de bruxaria contra as mulheres individualistas ao longo desses séculos, e sua imolação na
fogueira, foi o justo contrapeso “divino” a quem desafiava o poder patriarcal.
Na França do século XVII, os salões começavam sua caminhada como espaço público
capaz de gerar novas normas e valores sociais. Nos salões, as mulheres tinham uma notável
presença e protagonizaram o movimento literário e social conhecido como preciosismo. As
preciosas, que declaram preferir a aristocracia do espírito à do sangue, revitalizaram a língua
francesa e impuseram novos estilos amorosos; estabeleceram, pois, suas normativas em um terreno
no qual as mulheres raramente haviam tido voz. Para Oliva Blanco, a especificidade da contribuição
dos salões do XVII ao feminismo radica em que “graças a eles a querelle féministe deixa de ser
terreno privado de teólogos e moralistas e passa a ser um tema de opinião pública” 7. Porém, tal e

4
Cf. A. H. Puleo, a.c., 43-44.
5
S. Rowbotham, Feminismo e revolução, Debate, Madrid 1978, pp.15-26.
6
S. Rowbotham, A mulher ignorada pela história, Debate, Madrid 1980, p.19.
7
O. Blanco, “A querelle feministe no século XVII”, em C Amorós (coord.), Atas do Seminário Permanente
como acontecia com a Ilustração sofística, seguramente hoje se conhece melhor a reação patriarcal
a esse fenômeno, reação bem simbolizada em obras tão absurdamente misóginas como As mulheres
sábias, de Molière e A culta latiniparla, de Quevedo.

II. Feminismo Moderno

a) As raízes ilustradas e a Revolução Francesa

Diferentes autoras, como Geneviène Fraisse e Celia Amorós, coincidiram em assinalar a


obra do filósofo cartesiano Poulain de la Barre e os movimentos de mulheres e feministas que
tiveram lugar durante a Revolução Francesa como dois momentos chave – um, teórico; o outro,
prático – na articulação do feminismo moderno. Assim, no texto de Poulain de la Barre intitulado
Sobre a igualdade dos sexos e publicado em 1673 – em pleno auge do movimento de preciosas –
seria a primeira obra feminista que se centra explicitamente em fundamentar a demanda de
igualdade sexual. Fraisse afirmou que com essa obra estaríamos assistindo a uma verdadeira
mudança no estatuto epistemológico da questão ou “guerra dos sexos”: “a comparação entre o
homem e a mulher abandona o centro do debate, e se faz uma possível reflexão sobre a igualdade” 1.
De sua parte, Amorós enquadra a obra de Poulain no contexto mais amplo do Iluminismo. Ainda
que reconheça o caráter pioneiro e específico da obra, ela faz parte de um contínuo feminista que se
caracteriza por radicalizar ou universalizar a lógica da razão, racionalista primeiro e iluminista
depois. Assim mesmo, mantém que o feminismo como corpo coerente de reivindicações e como
projeto político capaz de constituir um sujeito revolucionário coletivo só pode se articular
teoricamente a partir de premissas iluministas: premissas que afirmam que todos os homens nascem
livres e iguais e, portanto, com os mesmos direitos. Ainda que as mulheres fiquem inicialmente fora
do projeto igualitário – tal e como aconteceu na já citada França revolucionária e em todas as
democracias do século XIX e boa parte do XX -, a demanda de universalidade que caracteriza a
razão ilustrada pode ser utilizada para irracionalizar seus usos interessados e ilegítimos, neste caso,
patriarcais. Neste sentido, afirma que o feminismo supõe a efetiva radicalização de projeto
igualitário ilustrado. A razão iluminista, razão fundamentalmente crítica, possui a capacidade de
voltar sobre si mesma e detectar suas próprias contradições2. E foi assim que as mulheres da
Revolução Francesa a utilizaram quando observaram com estupor como o novo Estado
revolucionário não encontrava contradição alguma em pregar aos quatro ventos a igualdade
universal e deixar todas as mulheres sem direitos civis e políticos.
Na Revolução Francesa veremos aparecer não só o forte protagonismo das mulheres nos
acontecimentos revolucionários, mas também a aparição das mais contundentes demandas de
igualdade sexual. A convocatória dos Estados Gerais por parte de Luis XVI se constituiu no prólogo
da revolução. Os três estados – nobreza, claro e povo – se reuniram a redigir suas queixas para
apresentá-las ao rei. As mulheres foram excluídas, e começaram a redigir seus próprios “cahiers de
dolèance”. Com eles, as mulheres, que se autodenominaram “O terceiro Estado do terceiro Estado”,
Feminismo e Ilustração, p.77.
1
G. Fraisse, Musa da razão, Cátedra, Madrid 1991, p.194.
2
De Celia Amorós sobre poulain de la Barre: “O feminismo como exis emancipatória”, y “Cartesianismo e
feminismo. Esquecimentos da razão, razões do esquecimento”, em Atas do Seminário...,pp.85-104. Suas teses sobre
a relação entre feminismo e iluminismo estão sintetizadas em “O feminismo: fenda não transitada da Ilustração”,
Isegoría, núm.1 1990.
mostraram sua clara consciência de coletivo oprimido e o caráter “interestamental” de sua
opressão3.
Três meses depois da tomada da Bastilla, as mulheres parisienses protagonizaram a
crucial marcha até Versalles, e levaram o rei a Paris, onde seria mais difícil eludir os grandes
problemas do povo. Como comenta Paule-Marie Duhet, em sua obra As mulheres e a Revolução,
uma vez que elas haviam instaurado o precedente de iniciar um movimento popular armado, não
recuariam em sua vontade de não ser retiradas da vida política 4. Logo se formaram clubes de
mulheres, nos quais afirmaram efetivamente sua vontade de participação. Um dos mais importantes
e radicais foi o dirigido por Claire Lecombe e Pauline León: a Société Républicaine
Révolutionnaire. Impulsadas por seu autêntico protagonismo e reconhecimento público, outras
mulheres como Théroigne de Méricourd não duvidaram em defender e exercer o direito a formar
parte do exército.
No entanto, logo se comprovou que uma coisa era a República agradecer e condecorar
as mulheres por seus serviços prestados e outra era que estivesse disposta a reconhecer a elas outra
função que não mães e esposas (dos cidadãos). Em consequência, foi rejeitada a petição de
Condorcet de que a nova República educasse igualmente as mulheres e os homens, e o mesmo
aconteceu com um dos maiores discursos feministas da época, seu escrito de 1790 Sobre ao direito
das mulheres à cidadania.
Certamente um dos momentos mais lúcidos na paulatina tomada de consciência
feminista das mulheres está na Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, em 1791. Sua autora
foi Olympe de Gouges, uma mulher do povo e de tendências políticas moderadas, que dedicou a
declaração à rainha Maria Antonieta, com quem finalmente compartilharia um mesmo destino sob a
guilhotina. Esse é seu veredito sobre o homem: “Estranho, cego, inflado de ciências e degenerado,
nesse século de luzes e de sagacidade, na ignorância mais crassa, quer mandar como um déspota
sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais e pretende gozar da revolução e
reivindicar seus direitos à igualdade para dizê-lo de uma vez por todas” 5 Em 1792, a inglesa Mart
Wollstonecraft redigirá em poucas semanas a célebre Defesa dos direitos da mulher. As mulheres
haviam começado expondo suas reivindicações nos cadernos de queixas e terminaram afirmando
orgulhosamente seus direitos. A transformação em relação aos séculos anteriores, como
acertadamente sintetizou Fraisse, significa o passo do gesto individual ao movimento coletivo: a
querela é levada á praça pública e toma a forma de um debate democrático: converte-se, pela
primeira vez de forma explícita, em uma questão política.6
No entanto, a Revolução Francesa significou uma amarga e seguramente inesperada
derrota para o feminismo. Os clubes de mulheres foram fechados pelos jacobinos em 1793, e em
1794 se proibiu explicitamente a presença de mulheres em qualquer tipo de atividade política. As
que se haviam destacado por sua participação política, independente de sua ideologia,
compartilharam do mesmo destino: a guilhotina ou o exílio. As mais lúgubres predições se haviam
cumprido amplamente: as mulheres não podiam subir à tribuna, mas sim à plataforma de execução.
Qual era seu crime? A imprensa revolucionária da época explicou-o muito claramente: haviam
transgredido as leis da natureza abjurando de seu destino de mães e esposas, querendo ser “homens
de Estado”. O novo código civil napoleônico, cuja extraordinária influência chegou praticamente a
3
Alguns desses cadernos estão traduzidos na antologia A Ilustração esquecida, realizada por A. H. Puleo, Anthropos,
Barcelona 1993. Também dessa mesma autoraa, “Uma cristalização política-social dos ideais ilustrados: os Cahiers
de doléance”, de 1789”, em C. Amorós (coord), Atas do Seminário..., pp.147-153.
4
P. M Duhet, As mulheres e a Revolução (1789-1794), Península, Barcelona 1974, p.44.
5
O. De Gouges, “Os direitos da mulher”, em A. H. Puleo (ed.), A Ilustração esquecida, p.155.
6
G. Fraisse, Ob. Cit., p.191.
nossos dias, se encarregaria de fixar legalmente a dita “lei natural”.

b) Feminismo do séc. XIX

No século XIX, o século dos grandes movimentos sociais emancipatórios, o feminismo


aparece, pela primeira vez, como um movimento social de caráter internacional, com uma
identidade autônoma teórica e organizativa. Ademais, ocupará um lugar importante no seio dos
outros grandes movimentos sociais, os diferentes socialismos e o anarquismo.
Esses movimentos herdaram em boa medida as demandas igualitárias do Iluminismo,
mas surgiram para dar resposta aos problemas urgentes gerados pela revolução industrial e o
capitalismo. O desenvolvimento das democracias censitárias e o decisivo fato da industrialização
suscitaram enormes expectativas com relação ao progresso da humanidade, e chegou-se a pensar
que o fim da escassez material estava próximo. No entanto, essas esperanças se chocaram
frontalmente com a realidade. Por um lado, às mulheres eram negados os direitos civis e políticos
mais básicos, tirando de sua vida qualquer sinal de autonomia pessoal. Por outro, o proletariado – e,
logicamente, as mulheres proletárias – ficava totalmente à margem da riqueza produzida pela
indústria, e sua situação de degradação e miséria se converteu em um dos piores fatos da nova
ordem social. Essas contradições foram o caldo de cultivo das teorias emancipadoras e dos
movimentos sociais do século XIX.

c) O movimento sufragista

Como se afirma habitualmente, o capitalismo alterou as relações entre os sexos. O novo


sistema econômico incorporou massivamente as mulheres proletárias ao trabalho industrial – mão
de obra mais barata e submissa que os homens -, mas, na burguesia, a classe social ascendente, deu-
se o fenômeno contrário As mulheres ficaram enclausuradas em um lar que era, cada vez mais,
símbolo do status e êxito do trabalho do homem. As mulheres, majoritariamente as da média
burguesia, experimentavam com crescente indignação sua situação de propriedade legal de seus
maridos e sua marginalização da educação e das profissões liberais, marginalização que, em muitas
ocasiões, conduzia-as inevitavelmente, caso não contraíssem matrimônio, à pobreza.
Nesse contexto, as mulheres começaram a se organizar em torno da reivindicação do
direito ao sufrágio, o que explica sua denominação como sufragistas. Isso não se deve entender no
sentido de que essa foi sua única reivindicação. Muito pelo contrário, as sufragistas lutavam pela
igualdade em todos os terrenos, apelando à autêntica universalização dos valores democráticos e
liberais. No entanto, e desde um ponto de vista estratégico, consideravam que, uma vez conseguido
o voto e o acesso ao parlamento, poderiam começar a mudar o resto das leis e instituições. Além do
mais, o voto era um meio de unir a mulheres de opiniões políticas muito diferentes. Seu movimento
era de caráter interclassista, pois consideravam que todas as mulheres sofriam como mulheres, e
independente de sua classe social, discriminações semelhantes.
Nos Estados Unidos, o movimento sufragista esteve inicialmente muito relacionado ao
movimento abolicionista. Um grande número de mulheres uniu forças para combater na luta contra
a escravidão e, como assinala Sheyla Rowbotham, não só aprenderam a se organizar, mas a
observar as semelhanças de sua situação com a da escravidão 7. Em 1848, no Estado de Nova York,
aprovou-se a Declaração de Seneca Falls, um dos textos fundacionais do sufragismo 8. Os
7
S. Robotham, A mulher ignorada pela história, p.68
8
O texto da Declaração está na Antologia do feminismo de Amalia Martín-Gamero, Alianza Editorial, Madrid 1975.
argumentos que se utilizam para afirmar a igualdade dos sexos são de origem iluminista: apelam à
lei natural como fonte de direitos para toda a espécie humana, e à razão e ao bom sentido da
humanidade como armas contra o preconceito e os costumes. Também cabe lembrar novamente a
importância do fundo individualista da religião protestante; como assinalou Richard Evans: “A
crença protestante no direito de todos os homens e mulheres a trabalhar individualmente pela
própria salvação proporcionaria uma segurança indispensável, e aos poucos realmente uma
autêntica inspiração, a muitas, senão a quase todas as lutadoras das campanhas feministas do século
XIX”9. Elizabeth Cady Staton, a autora de A Bíblia das mulheres, e Susan B. Anthony, foram duas
das mais significativas sufragistas estadounidenses.
Na Europa, o movimento sufragista inglês foi o mais potente e radical. Desde 1866, em
que o deputado John Stuart Mill, autor de A sujeição da mulher, apresentou a primeira petição a
favor do voto feminino no Parlamento, não deixaram de ocorrer iniciativas políticas. No entanto, os
esforços dirigidos a convencer e persuadir os políticos da legitimidade dos direitos políticos das
mulheres provocavam risos e indiferença. Como resultado, o movimento sufragista dirigiu sua
estratégia a ações mais radicais. Ainda que, como bem assinalou Rowbotham: “as táticas militantes
da União haviam nascido do desespero, depois de anos de paciente constitucionalismo” 10 As
sufragistas foram presas, protagonizaram greves de fome e mais de uma encontrou a morte
defendendo sua máxima: “votos para as mulheres”. Seria necessário passar a Primeira Guerra
Mundial e chegar o ano de 1928 para que as mulheres inglesas pudessem votar em igualdade de
condições.

d) O feminismo socialista

O socialismo como corrente de pensamento sempre teve em conta a situação das


mulheres na hora de analisar a sociedade e projetar o futuro. Isso não significa que o socialismo seja
necessariamente feminista, mas que no século XIX começava a se tornar difícil levantar a bandeira
de projetos igualitários radicais sem levar em conta metade da humanidade.
Os socialistas utópicos foram os primeiros a abordar o tema da mulher. O centro de seu
pensamento, como o de todo socialismo, surge da miserável situação econômica em que vivia a
classe trabalhadora. Em geral, propunham a volta a pequenas comunidades em que pudesse existir
certa autogestão – os falanstérios de Fourier – e se desenvolvesse a a cooperação humana em um
regime de igualdade que afetasse também os sexos. No entanto, e apesar de reconhecer a
necessidade da independência econômica das mulheres, frequentemente não foram suficientemente
críticos com a divisão sexual do trabalho. Ainda assim, seu rechaço à sujeição das mulheres teve
grande impacto social, e a tese de Fourier de que a situação das mulheres era o indicador chave do
nível de prograsso e civilização de uma sociedade foi literalmente assumida pelo socialismo
posterior. 11
Flora Tristan, em sua obra União operária (1843), dedica um capítulo para expor a
situação das mulheres. Tristan afirma que “todas as desgraças do mundo provêm do esquecimento e
do desprezo que até hoje se tem com relação aos direitos naturais e imprescritíveis da mulher”12. Em
seus projetos de reforma, a educação das mulheres resulta crucial para o progresso das classes
trabalhadoras, ainda que, isso sim, devido à influência que como mães, filhas, esposas etc, têm

9
R.K. Evans, As feministas, século XXI, Madrid 1980, p.15.
1 0
S. Rowbotham, Ob.Cit, p.115.
1 1
C. Fourier, Teoria dos quatro movimentos, Barral, Barcelona 1974, p.165
1 2
F. Tristan, União Operária, Fontamara, Barcelona 1977, p.125.
sobre os homens. Para Tristan, as mulheres “são tudo na vida do operário”, o que não deixa de
supor uma acrítica assunção da divisão sexual do trabalho. Desde outro ponto de vista, entre os
seguidores de Saint-Simon e Owen surgiu a idéia de que o poder espiritual dos homens havia se
esgotado e a salvação da sociedade só podia acontecer a partir do “feminino”. Em alguns grupos,
inclusive, iniciou-se a busca de um novo messias feminino.13
Talvez a contribuição mais específica do socialismo utópico resida na grande
importância que davam à transformação da instituição família. Condenavam a dupla moral e
consideravam o celibato e o matrimônio indissolúvel como instituições repressoras e causa de
injustiça e infelicidade. De fato, como afirmou em seu dia John Stuart Mill, a eles cabe a honra de
haver abordado sem preconceitos temas que outros reformadores sociais da época não se atreveram
a discutir.

e) Socialismo marxista

Em meados do século XIX começou a se impor no movimento operário o socialismo de


inspiração marxista, ou “científico”. O marxismo articulou a chamada “questão feminina” em sua
teoria geral da história e ofereceu uma nova explicação sobre a origem da opressão das mulheres e
uma nova estratégia para sua emancipação. Tal e como desenvolveu Friedrich Engels em A origem
da família, da propriedade privada e do Estado, obra publicada em 1884, a origem da sujeição das
mulheres não estaria em causas biológicas – a capacidade reprodutora ou a constituição física -, mas
sociais. Na realidade, estaria na aparição da propriedade privada e a exclusão das mulheres da
esfera da produção social. Como consequência, surge dessa análise a idéia de que a emancipação
das mulheres estaria ligada ao seu retorno à produção e à independência econômica.
Essa análise, ainda que apoiasse a incorporação das mulheres à produção, não deixou de
ter numerosos detratores no próprio âmbito socialista. Utilizavam-se diferentes argumentos para se
opor ao trabalho assalaridado das mulheres: a necessidade de proteger as operárias da exploração de
que eram objeto, o elevado índice de abortos e mortalidade infantil, o aumento do desemprego
masculino, a diminuição dos salários.... Mas como assinalou Auguste Bebel em sua célebre obra A
mulher e o socialismo, também se devia ao fato de que, apesar da teoria, nem todos os socialistas
apoiavam a igualdade dos sexos.
“Não se deve acreditar que todos os socialistas sejam emancipadores da mulher; há
aqueles para quem a mulher emancipada é tão antipática como o socialismo para os capitalistas”.14
Por outro lado, o socialismo insistia nas diferenças que separavam as mulheres das
diferentes classes sociais. Assim, ainda que as socialistas apoiassem taticamente as demandas
sufragistas, também as consideravam inimigas de classe e acusavam-nas de esquecer a situação das
proletárias, o que provocava a desunião dos movimentos. Além disso, a relativamente poderosa
infraestrutura com a qual contavam as feministas burguesas e a força de sua mensagem chegavam
às operárias, levando-as para seu lado. Logicamente, uma das tarefas das socialistas foi a de romper
essa aliança. Alexandra Kollontai, bolchevique e feminista, relata em suas Memórias algumas de
suas estratégias desde a clandestinidade. Em dezembro de 1908 ocorreu em São Petersburgo,
convocado pelas feministas “burguesas”, o Primeiro Congresso Feminino de todas as Rússias.
Kollontai não pôde assistir, porque havia uma ordem para prendê-la, mas pôde preparar a
intervenção de um grupo de operárias. Elas tomaram a palavra para afirmar especificidade da
1 3
Cf. N. Campillo. As sansimonianas: um grupo feminista paradigmático”, em C. Amorós (coord), Atas do
Seminário...,pp.313-324.
1 4
A. Bebel, A mulher e o socialismo, Júcar, Madrid 198-, p.117.
problemática das mulheres trabalhadoras, e quando se propôs a criação de um centro feminino
interclassista, abandonaram ostensivamente o congresso.15
No entanto, e apesar de seus lógicos enfrentamentos com as sufragistas, existem
numerosos testemunhos do dilema que se apresentava às mulheres socialistas. Ainda que
concordassem com a tese de que a emancipação da mulher seria impossível no capitalismo –
exploração do trabalho, desemprego crônico, dupla jornada etc – eram conscientes de que para seus
camaradas e para a direção do partido a “questão feminina” não era precisamente prioritária. Antes,
era considerada uma mera questão de superestrutura, que se solucionaria automaticamente com a
socialização dos meios de produção e, no pior dos casos, “um desvio perigoso para o feminismo”.
Isso não impediu que as mulheres socialistas se organizassem dentro de seus próprios partidos;
reuniam-se para discutir seus problemas específicos e criaram, apesar da lei que lhes proibia a
filiação partidária, organizações femininas. Os alicerces de um movimento socialista feminino
realmente foram criados pela alemã Clara Zetkin (1845-1933), que dirigiu a revista feminina Die
Gliechhteit (Igualdade) e chegou a organizar uma Conferência Internacional de Mulheres em 1907.
O socialismo marxista também prestou atenção à crítica da família e à dupla moral, e
relacionou à exploração econômica e sexual da mulher. Nesse sentido, é imprescindível remeter-se à
obra que Kollontai escreve já a princípios do século XX. Kollontai colocou em um primeiro plano
teórico a igualdade sexual e mostrou sua inter-relação com o triunfo da revolução socialista. Mas
também foi ela mesma, ministra durante apenas seis meses no primeiro governo de Lenin, quem
deu a voz de alarme sobre o rumo preocupante que ia tomando a revolução feminista na União
Soviética. A igualdade dos sexos havia sido estabelecida por decreto, mas não se tomavam medidas
específicas, tal e como ela postulava, contra o que hoje chamaríamos de ideologia patriarcal.

f) Movimento anarquista

O anarquismo não articulou com tanta precisão teórica como o socialismo a


problemática da igualdade entre os sexos, e inclusive cabe destacar que um anarquista como Pierre
J. Proudhon (1809-1865) manteve tranquilamente posturas anti-igualitárias extremas. Essas são suas
palavras:
De minha parte, posso dizer que, quanto mais penso nisso, menos me explico que o
destino da mulher fora da família e do lar. Cortesã ou ama de chaves (ama de chaves, digo, e não
criada); eu não vejo meio termo. 16

No entanto, o anarquismo como movimento social contou com numerosas mulheres que
contribuíram com a luta pela igualdade. Uma das idéias mais recorrentes entre as anarquistas – em
consonância com seu individualismo – era a de que as mulheres se liberariam graças a sua “própria
força” e esforço individual. Assim expressou, já no século XX, Emma Goldman (1869-1940), para
quem pouco vale o acesso ao trabalho assalariado se as mulheres não são capazes de vencer todo o
peso da ideologia tradicional em seu interior. Assim, a ênfase colocada em viver de acordo com as
próprias convicções propiciou autênticas revoluções na vida cotidiana das mulheres que,
orgulhosas, se autodenominavam “mulheres livres”. Consideravam que a liberdade era o principio
condutor de tudo e que as relações entre os sexos deveriam ser absolutamente livres. Sua rebelião
contra a hierarquização, a autoridade e o Estado levava-as, por um lado e frente às sufragistas, a
1
Cf. A. Kollontai, Memórias, Debate, Madrid 1979.
5

1
P. J. Proudhon, Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria, vol.2. Júcar, Madrid 1974, p.175.
6
minimizar a importância do voto e das reformas constitucionais; por outro, viam como um perigo
enorme o que, na sua opinião, propunham os comunistas: a regulação por parte do Estado da
procriação, a educação e o cuidado das crianças.

III. Neofeminismo: os anos 60 e 70.

A conquista do voto e todas as reformas que ele trouxe consigo haviam deixado as
mulheres relativamente tranquilas; suas demandas haviam sido satisfeitas, viviam em uma
sociedade legalmente quase-igualitária e a calma parecia reinar na maioria dos lares. No entanto,
devia ser uma calma um tanto superficial, pois se aproximava um novo despertar desse movimento
social. A obra de Simone de Beauvoir é a referência fundamental da mudança que se aproximava.
Tanto sua vida como sua obra são paradigmáticas das razões de um novo resurgir do movimento.
Tal e como contou a própria Simone, até que empreendeu a redação de O segundo sexo, não havia
sido consciente de sofrer discriminação alguma pelo fato de ser uma mulher. A jovem filósofa,
assim como seu companheiro Jean Paul Sartre, havia tido uma brilhante carreira acadêmica e
imediatamente depois ingressou – também como ele – na carreira docente. Onde estava, então, a
desigualdade, a opressão? Iniciar a contundente resposta do feminismo contemporâneo a essa
pergunta é o impressionante trabalho levado a cabo nos dois volumes de O Segundo Sexo. Ao
mesmo tempo que pioneira, Simone de Beauvoir constitui um brilhante exemplo de como a teoria
feminista supõe uma transformação revolucionária de nossa compreensão da realidade. Não há que
desvalorizar as dificuldades que experimentaram as mulheres para descobrir e expressar os termos
de sua opressão na época da “igualdade legal”. Essa dificuldade foi retratada com grande precisão
pela estadounidense Betty Friedan: o problema das mulheres era o “problema que não tem nome”, e
o objeto da teoria e prática feminista foi, justamente, o de nomeá-lo. Friedan, em sua também
volumosa obra, A mística da feminilidade (1963), analisou a profunda insatisfação das mulheres
estadounidenses consigo mesmas e sua vida, sua tradução em problemas pessoais e diversas
patologias autodestrutivas: ansiedade, depressão, alcoolismo.1 No entanto, o problema é para ela
uma questão política: “a mística da feminilidade” - reação patriarcal contra o sufragismo e a
incorporação das mulheres à esfera pública durante a Segunda guerra Mundial – que identifica
mulher com mãe e esposa, com o que cerceia toda possibilidade de realização pessoal e culpabiliza
todas aquelas que não são felizes vivendo só para os outros.

b) Feminismo liberal

Betty Friedan contribuiu para fundar em 1966 a que chegou a ser uma das organizações
feministas mais poderosas dos Estados Unidos, e sem dúvida a maior representante do feminismo
liberal, a Organização Nacional para as Mulheres (NOW. O feminismo liberal se caracteriza por
definir a situação das mulheres como de desigualdade – e não de opressão e exploração – e por
postular a reforma do sistema até conseguir a igualdade entre os sexos. As liberais começaram
definindo a exclusão da esfera pública como o principal problema das mulheres, e defendiam
reformas relacionadas à inclusão feminina no mercado de trabalho. Também, desde o início tiveram
1
Cf. A. J. Perona, “O feminismo americano do pós-guerra”: B. Friedan”, em C. Amorós (coord), Atas do seminário
História da teoria feminista, Instituto de Investigações Feministas, Universidade Complutense de Madrid, Madrid
1994.
uma seção destinada a formar ou promover as mulheres para ocupar postos públicos. Mas logo a
influência do feminismo radical empurrou as mais jovens para a esquerda. Ante o mal estar e o
medo dos setores mais conservadores, Betty Friedan declara que: “No futuro, as pessoas que
pensam que NOW é demasiado ativista terá menos peso que a juventude” 2. Assim, terminaram
abraçando a tese de que o pessoal é político – quando Friedan havia chegado a se queixar de que as
radicias convertiam a luta política em uma “guerra de dormitório” - e a organização de grupos de
autoconsciência, duas questões básicas do feminismo radical e que inicialmente rechaçavam. Mais
tarde, com o declive do feminismo radical nos Estados Unidos, o reciclado “feminismo liberal”
cobrou um importante protagonismo até chegar a se converter, na opinião de Echols, “na voz do
feminismo como movimento político”.3
No entanto, foi do feminismo radical, caracterizado por sua aversão ao liberalismo, o
verdadeiro protagonismo nas décadas dos sessenta e setenta.

c) Surgimento do feminismo radical: “feministas políticas” e “feministas”.

Os anos sessenta foram anos de intensa agitação política. As contradições de um sistema


que tem sua legitimação na universalidade de seus princípios, mas que na verdade é sexista, racista,
classista e imperialista, motivaram a formação da chamada Nova Esquerda e diversos movimentos
sociais radicais como o movimento antirracista, o estudantil, o pacifista e, claro, o feminista. A
característica distintiva de todos eles foi seu marcado caráter contracultural: não estavam
interessados na política reformista dos grandes partidos, mas em forjar novas formas de vida – que
prefigurassem a utopia comunitária de um futuro próximo – e, como não, o novo homem. E tal
como observamos até agora ao longo da história, muitas mulheres fizeram parte desse movimento
de emancipação.
Em grande medida, é preciso buscar a gênesis do Movimento de Libertação da Mulher
no crescente descontentamento com o papel que tinham nos outros movimentos. Assim escreve
Robin Morgan o que foi uma experiência generalizada de mulheres:

“Apesar de acreditarmos estar metidas na luta para construir uma nova sociedade, isso
foi para nós um lento despertar e uma deprimente constatação descobrir que realizávamos o
mesmo trabalho no movimento que fora dele: datilografando os discursos dos homens, fazendo
café, mas não política, sendo auxiliares dos homens, cuja política, supostamente, mudaria a velha
ordem”.4

Novamente foi através do ativismo político junto aos homens, como as sufragistas em
sua época na luta abolicionista, que as mulheres tomaram consciência da peculiaridade de sua
opressão.Já que o homem novo se fazia esperar, a mulher nova – de quem tanto falou Kollontai no
começo do século – decidiu começar a se reunir por conta própria. A primeira decisão política do
feminismo foi a de se organizar de forma autônima, separar-se dos homens, decisão com a qual se
constituiu o Movimento de Libertação da Mulher. Tal e como afirma Echols, se todas estavam de
acordo sobre a necessidade de separar-se dos homens, discordavam com respeito à natureza e fim
dessa separação. Assim, produziu-se a primeira grande divisão dentro do feminismo radical: a que

2
A. Echols, Daring do Be Bad, Radical Feminismo in America (1967-1975), University of Minnesota Press,
Minneapolis 1989, p.4.
3
A. Echols, O.C., p.11.
4
O.C., p.23 (a tradução é nossa).
dividiu as feministas entre “políticas” e “feministas”. Todas elas formam inicialmente parte do
feminismo radical por sua posição antissistema e por seu afã de se distanciar do feminismo liberal,
mas suas diferenças são uma referência fundamental para entender o feminismo da época.
No começo, as “políticas” foram maioria, mas a partir de 68 muitas foram tornando-se
mais "feministas", vindo, finalmente, a tornar-se minoria. Para as “políticas”, a opressão das
mulheres derivaria do capitalismo ou do Sistema (com maiúscula), por isso os grupos de libertação
deveriam permanecer conectados e comprometidos com o Movimento; na realidade, consideravam
o feminismo mais uma ala da esquerda. Costuma afirmar-se que se deveu muito a elas, sua
experiência e suas conexões, muitos dos êxitos organizativos do feminismo, mas logicamente
também traziam sua servidão ideológica (à esquerda?).
As “feministas” se manifestavam contra a subordinação na esquerda, já que
identificavam os homens como os beneficiários de sua dominação. Não eram anti-esquerda, mas
sim muito críticas de seu recalcitrante sexismo e da tópica interpretação do feminismo em um leque
de possibilidades que ia da sua mera consideração como questão periférica à mais perigosa
qualificação de contrarrevolucionário.
As intermináveis e acaloradas discussões sobre qual era a contradição ou o inimigo
principal caracterizaram o desenvolvimento do neofeminismo não só nos Estados Unidos, mas
também na Europa e Espanha. A lógica dos debates sepre foi similar: enquanto as mais feministas
tentavam convencer as políticas de que a opressão das mulheres não é somente uma simples
consequência do Sistema, mas um sistema específico de dominação em que a mulher é definida em
relação ao homem, as políticas não podiam deixar de vê-los, aos homens, como vítimas do sistema
e de enfatizar o não enfrentamento com eles. Além do mais, voltando ao caso concreto dos Estados
Unidos, as políticas escondiam um medo que sempre pesou sobre as mulheres da esquerda: o de que
os companheiros homens, depositários do poder simbólico, para dar ou tirar denominações de
origem “progressista”, interpretassem um movimento só de mulheres como reacionário ou liberal.
De fato, é muito elucidador que, na hora de buscar uma “denominação”, o termo “feminista” foi
inicialmente repudiado por algumas radicais. O problema estava em que o associavam com o que
consideravam a primeira onda do feminismo, o movimento sufragista, que depreciavam como
burguês e reformista. Sulamith Firestone, indiscutível teórica e discutida líder de vários grupos
radicais, foi a primeira a se atraver a reivindicar o sufragismo, afirmando que era um movimento
radical e que “sua história havia sido enterrada por razões políticas”. 5
Finalmente, chegou a separação, e o nome de feminismo radical passou a designar
unicamente os grupos e as posições teóricas das “feministas”.

d) Feminismo radical

O feminismo radical norte-americano se desenvolveu entre os anos 1967 e 1975, e


apesar da rica heterogeneidade teórica e prática dos grupos em que se organizou, parte de alguns
alicerces comuns. Com respeito aos fundamentos teóricos, é preciso citar duas obras fundamentais:
Política sexual, de Kate Millet, e A dialética da sexualidade, de Sulamit Firestone, publicadas nos
anos 1970. Armadas das ferramentas teóricas do marxismo, da psicanálise e do anticolonialismo,
essas obras formaram conceitos fundamentais para a análise feminista como a de patriarcado,
gênero e casta sexual. O patriarcado se define como um sistema de dominação sexual que se
concebe, além do mais, como o sistema básico de dominação sobre o qual se levanta o resto das

5
O.C., p.54.
dominações, como a de classe e raça. O gênero expressa a construção social da feminilidade e a
casta sexual alude à comum experiência de opressão vivida por todas as mulheres. 6 As radicais
identificaram como centros da dominação patriarcal esferas da vida que até então eram
consideradas “privadas”. A elas corresponde o mérito de haver revolucionado a teoria política ao
analisar as relações de poder que estruturam a família e a sexualidade; sintetizaram tudo em um
slogan: o pessoal é político. Consideravam que os homens, todos, e não só uma elite, recebem
benefícios econômicos, sexuais e psicológicos do sistema patriarcal, mas, em geral, destacavam a
dimensão psicológica da opressão. Assim afirma o manifesto fundacional das New York Radical
Feminist (1969), Polítics of the Ego, que diz:

Pensamos que o objetivo da dominação masculina é obter satisfação psicológica para


seu ego, e que só secundariamente isso se manifesta nas relações econômicas. 7

Uma das contribuições mais significativas do movimento feminista radical foi a


organização em grupos de autoconsciência. Essa prática começou no New York Radical Women
(1967), e foi Sarachild quem lhe deu o nome de “consciousness-raising”. Consistia em cada mulher
do grupo explicar as formas em que experimentava e sentia sua opressão. O propósito desses grupos
era “despertar a consciência latente que... todas as mulheres temos sobre nossa opressão”, para
propiciar “a reinterpretação política da própria vida” e firmar as bases para sua transformação. Com
a autoconsciência também se pretendia que as mulheres dos grupos se convertessem em autênticas
especialistas sobre sua opressão: estavam construindo a teoria desde a experiência pessoal, e não
desde o filtro de ideologias prévias. Outra função importante desses grupos foi a de contribuir com
a revalorização da palavra e das experiências de um coletivo sistematicamente inferiorizado e
humilhado ao longo da história. Assim afirmou Válcarcel, comentando algumas das obras classicas
do feminismo: o movimento feminista deve tanto a essas obras escritas como a uma singular
organização: os grupos de encontro, em que só mulheres abriam-se, aos poucos e
parcimoniosamente, semana a semana, sobre a série de humilhações, que tentam compreender como
parte de uma estrutura teorizável”.8 No entanto, os diferentes grupos de radicais variavam na sua
avaliação dessa estratégia. Segundo a avaliação de Mehrhof, membro das Redstockins (1069): “a
autoconsciência tem a habilidade de organizar um grande número de mulheres, mas de organizá-las
para nada”.9 Houve acalorados debates internos, e finalmente autoconsciência-ativismo se
configuraram como opções opostas.
O ativismo dos grupos radicais foi, em mais de um sentido, espetacular. Espetaculares
foram as manifestações e marchas de mulheres, por agregar multidões, mas mais ainda eram os
lúcidos atos de protesto e sabotagem que colocavam em evidência o caráter de objeto e mercadoria
da mulher no patriarcado. Com atos como a queima pública de sutiãs e espartilhos, a sabotagem de
comissões de especialistas sobre o aborto formada por catorze homens e uma mulher (freira)!, ou a
simbólica negativa da carismática Ti-Grace Atkinson em deixar-se fotografar em público ao lado de
um homem, as radicias conseguiram fazer com que a voz do feminismo entrasse em todos e cada
um dos lares estadunidenses. Outras atividades não tão espetaculares, mas de consequências muito
positivas para as mulheres, foram a criação de centros alternativos de ajuda e auto-ajuda. As
feministas não só criaram espaços próprios para estudar e se organizar, mas também desenvolveram

6
É a mesma obra Gênero e Patriarcado.
7
A. Echols, O.C., p. 140
8
A. Valcárcel, Sexo e filosofia, Anthropos, Barcelona 1991, p.45.
9
A. Echols, O.C, p.140.
uma saúde e uma ginecologia não patriarcais, animando as mulheres a conhecer seu próprio corpo.
Também fundaram creches, centros para mulheres maltratadas, centros de defesa pessoal e um
grande etcétera.
Tal e como se vê a partir dos grupos de autoconsciência, outra característica comum dos
grupos radicais foi o exigente impulso igualitarista e anti-hierárquico: nenhuma mulher está acima
de outra. Na verdade, as líderes eram mal vistas, e uma das constantes organizativas era colocar
regras que evitassem o predomínio das mais dotadas ou preparadas. Assim, é frequente escutar as
líderes do movimento, que sem dúvida existiam, ou a quem atuava como portavoz, “pedir perdão a
nossas irmãs por falar por elas”. Essa forma de entender a igualdade trouxe muitos problemas aos
grupos: um dos mais importantes foi o problema de admissão de novas militantes. As novas tinham
que aceitar a linha ideológica e estratégica do grupo, mas uma vez dentro já podiam, e de fato assim
faziam frequentemente, começar a questionar o manifesto fundacional. O resultado era um estado
de permanente debate interno, enriquecedor para as novas, mas tremendamente cansativo para as
veteranas. O igualitarismo se traduzia em que mulheres sem a mínima experiência política e recém-
chegadas ao feminismo se encontravam na situação de poder criticar duramente por “elitista” uma
líder com a experiência militante e potência teórica de Sulamith Firestone. Inclusive se chegou a
desconfiar das teóricas, suspeitando que instrumentalizavam o movimento para tornarem-se
famosas. O que aconteceu foi que a maior parte das líderes foram expulsas dos grupos que haviam
fundado. Jo Freeman soube colocar essa experiência pessoal em sua obra A tirania da falta de
estruturas.10
Echols assinalou essa negação da diversidade das mulheres como uma das causas do
declive do feminismo radical. As teses de irmandade ou sororidade de todas as mulheres unidas por
uma experiência comum também se viu ameaçada pela polêmica aparição da questão de classe e de
lesbianismo dentro dos grupos. Mas, em última instância, foram as agônicas discordâncias internas,
mais o lógico desgaste de um movimento com essas características, o que trouxe, a meados dos
anos 70, o fim do ativismo do feminismo radical.

e) Feminismo e socialismo: a nova aliança.

Tal e como temos observado, o feminismo ia se firmando como a luta contra o


patriarcado, um sistema de dominação sexual, e o socialismo como a luta contra o sistema
capitalista ou de classes. No entanto, numerosas obras da década de setenta declaram ser tentativas
de conciliar teoricamente feminismo e socialismo, e defendem a complementaridade de suas
análises. Assim o fizeram, entre muitas outras, Sheyla Rowbotham, Roberta Hamilton, Zillah
Eisenstein e Juliet Michell. As feministas socialistas chegaram a reconhecer que as categorias
analíticas do marxismo são “cegas para o sexo” e que a “questão feminina” nunca foi a “questão
feminista”11, mas também consideravam que o feminismo era cego para a história e para as
experiências das mulheres trabalhadoras, migrantes ou “não brancas” (o original dizia “de cor”).
Mas nessa renovada aliança, o gênero e o patriarcado são as categorias que estruturam suas análises
da totalidade social.

1
J. Freeman, A tirania da falta de estruturas, Fórum de Política Feminista, Madrid.
0

1
H. Hartmann, “Um matrimônio mal sucedido: rumo a uma união mais progressista entre marxismo e feminismo”,
1

Zona Aberta, 1980, pp. 85-113.


IV. Feminismo da diferença e últimas tendências

g) Feminismo da diferença

Segundo a exaustiva e influente análise de Echols, o feminismo radical estadunidense


havia evoluído para um novo tipo de feminismo, denominado de feminismo cultural. A evolução
radica na passagem de uma concepção construtivista do gênero a uma concepção essencialista. Mas
a diferença fundamental está em que, enquanto o feminismo radical – e também o socialista e o
liberal – luta pela superação dos gêneros, o feminismo cultural parece basear-se na diferença. Na
Europa, especialmente na França e na Itália, também surgiram a partir de diferentes cisões e
divergências dentro do movimento feminista dos anos 70, feminismos que se autoproclamavam
defensores da diferença sexual. Daí sua designação como feminismos da diferença frente aos
igualitários.

→ Feminismo cultural

O feminismo cultural estadunidense engloba, segundo a tipologia de Echols, as distintas


correntes que igualam a liberação das mulheres com o desenvolvimento e a preservação de uma
contracultura feminina: viver em um mundo de mulheres para mulheres. 1 Essa contracultura exalta
o “princípio feminino” e seus valores, e desvaloriza o “masculino”. Raquel Osborne sintetizou
alguma das características que se atribuem a um princípio e outro. Os homens representam a
cultura; as mulheres, a natureza. Ser natureza e possuir a capacidade de ser mães comporta a posse
das qualidades positivas, que colocam as mulheres como únicas salvadoras do planeta, já que
seriam moralmente superiores aos homens. A sexualidade masculina é agressiva e potencialmente
letal; a feminina, difusa, terna e orientada para as relações interpessoais. Por último, a opressão da
mulher seria resultado da supressão da essência feminina. Disso se conclui que na política de
acentuar as diferenças entre os sexos condena-se a heterossexualidade por sua conivência com o
mundo masculino e se acude ao lesbianismo como única alternativa de não contaminação. 2 Essa
visão francamente dicotômica das naturezas humanas ganhou força em outros movimentos, como o
ecofeminismo de Mary Daly e o surgimento de uma polêmica frente antipornografia e
antiprostituição.
→ Feminismo francês da diferença

O feminismo francês da diferença parte da constatação da mulher como o absolutamente


outro. Instalado nessa dita alteridade, mas tomando emprestada a ferramenta da psicanálise, utiliza a
exploração do inconsciente como meio privilegiado de reconstrução de uma identidade própria,
exclusivamente feminina. Entre suas representantes se destacam Annie Leclerc, Hélène Cixous e,
sobretudo, Luce Irigaray. Seu estilo, realmente críptico caso não se tenha uma determinada
formação filosófica – ou inclusive determinadas chaves culturais especificamente francesas – não
nos deve fazer pensar em um movimento sem incidência nenhuma na prática. O grupo
“Psychanalyse et Politique” surgiu nos anos setenta e é um referencial indiscutível do feminismo
francês. Criticava o feminismo igualitário por considerá-lo reformista, que assimilava as mulheres e
os homens e, em última instância, não conseguia sair do paradigma de dominação masculina. Suas
partidárias protagonizaram duros enfrentamentos com o “feminismo”, alguns tão chamativos como
assistir a manifestações com cartazes de “Fora o feminismo”, e inclusive acudiram aos Tribunais
reivindicando seu caráter de legítimas representantes do movimento de libertação da mulher. Tal e
como relata Rosa María Magdá:

As batalhas pessoais, a defesa radical ou não da homossexualidade e as diversas


posturas com os partidos políticos foram também pontos de litígio para um movimento
excessivamente fechado em si mesmo, que enche seus textos de referências ocultas e que, longe da
acolhedora solidariedade, parece muitas vezes se converter em um campo minado. 3

→ Feminismo italiano da diferença

Suas primeiras manifestações surgem em 1965, ligadas ao grupo DEMAU. Outro marco
importante será a publicação, em 1970, do manifesto de Rivolta femminile e o escrito de Carla
Lonzi, Escupamos sobre Hegel.4 As italianas, muito influenciadas pela tese das francesas sobre a
necessidade de criar uma identidade própria e pela experiência dos grupos de autoconsciência das
estadunidenses, sempre mostraram sua divergência com relação às posições majoritárias do
feminismo italiano. Assim fizeram no debate em torno da lei do aborto, em que defendia a
despenalização frente a legalização, finalmente aprovada em 1977, e posteriormente, na proposta de
lei sobre a violência sexual. Essa proposta, iniciada pelo MLD, a UDI e outros grupos do
movimento de libertação, reivindicava, entre outras coisas, que a violação pudesse ser um delito a
ser obrigatoriamente investigado pela polícia, ainda que contra a vontade da vítima, para evitar as
frequentes situações em que as pressões sobre ela terminavam com a retirada da queixa. Neste caso,
como no do aborto, se considera “extremamente inaceitável” que as mulheres “oferecessem esse
sofrimento concreto à intervenção e à tutela do Estado, dizendo atuar em nome de todas as
mulheres”.5 Afirmavam que a lei do homem nunca é neutra, e a idéia de resolver através de leis e
reformas gerais a situação das mulheres era descabida. Criticam o feminismo reivindicativo por ser
vitimista e por não respeitar a diversidade da experiência das mulheres. Além do mais, afirmam que
de nada serve que as leis dêem valor às mulheres se elas não o têm na realidade. Em contraposição,
parecem propor um translado ao plano simbólico, e que seja nesse plano onde se produza a efetiva
libertação da mulher, do “desejo feminino”. Ligada a essa libertação, muito voltada para a
autoestima feminina, estão diversas práticas entre mulheres, como o affidamento, conceito de difícil
tradução, em que o reconhecimento da autoridade feminina joga um papel determinante. O que se
afirma com clareza é que para a mulher não há liberdade nem pensamento sem a idéia
(pensamiento) da diferença sexual. Essa é a determinação ontológica fundamental.

b) Últimas tendências

Depois das manifestações de força e vitalidade do feminismo e outros movimentos


sociais e políticos nos anos setenta, a década de oitenta parece que passará à história como uma
década especialmente conservadora. De fato, o triunfo de carismáticos líderes ultraconservadores
em países como Inglaterra e Estados Unidos, certo esgotamento das ideologias que surgiram no
século XIX, mais a surpreendente queda dos Estados socialistas deram passagem aos eternos
profetas do fim dos conflitos sociais e da história. Nesse contexto, nossa pergunta é a seguinte:
Pode-se, então, falar de um declive do feminismo contemporâneo? E a resposta é um rotundo não.
Só uma análise insuficiente das diferentes frentes e níveis sociais em que se desenvolve a luta
feminista pode questionar sua vigência e vitalidade. Yasmine Ergas sintetizou bem a realidade dos
anos oitenta:
Se bem a era dos gestos grandiloquentes e das manifestações massivas que tanto haviam
chamado a atenção dos meios de comunicação parecia chegar ao seu fim, aos poucos deixou como
legado novas formas de organização política feminina, uma maior visibilidade das mulheres e de
seus problemas na esfera pública, e animados debates entre as próprias feministas, assim como entre
elas e interlocutores externos. Em outras palavras, a morte, ao menos aparente, do feminismo como
movimento social organizado não implicava nem o desaparecimento das feministas como agentes
políticos, nem o desaparecimento do feminismo como um conjunto de práticas discursivas
contestadas, mas sempre em desenvolvimento”.6
De fato, o feminismo não desapareceu, mas conheceu profundas transformações. Nessas
transformações influenciaram tanto os enormes êxitos conseguido – se consideramos o que foi o
passado e o que é o presente das mulheres – como a profunda consciência do que ainda é preciso
fazer, se comparamos a situação de homens e mulheres na atualidade. Os êxitos obtidos provocaram
um aparente, talvez real, encolhimento na capacidade de mobilização das mulheres em torno das
reivindicações feministas, por mais que, paradoxalmente, elas tenham mais apoio que nunca na
população feminina. Por exemplo, o consenso entre as mulheres sobre as demandas de igual salário,
medidas frente à violência ou uma política de creches públicas é praticamente total. Mas torna-se
difícil, para não dizer impossível, congregar com essas pautas manifestações similares às que
produziam em torno da defesa do aborto nos anos setenta (de fato, só a possibilidade de colocar em
questão o direito ao próprio corpo nos EUA de Bush foi capaz de provocar novamente marchas de
centenas de milhares de pessoas). No entanto, como dizíamos, isso não implica uma retirada na
constante luta por conseguir as reivindicações feministas. Além do imprescindível trabalho dos
grupos feministas de base, que seguem sua contínua tarefa de conscientização, reflexão e ativismo,
o denominado feminismo institucional tem progressivamente tomado força. Esse feminismo tem
diferentes formas nos distintos países ocidentais: desde os pactos interclassistas de mulheres dos
países nórdicos7 - onde se pôde chegar a falar de feminismo de Estado – à formação de lobbies ou
grupos de pressão, até a criação de ministérios ou instituições interministeriais da mulher, como é o
caso em nosso país, onde em 1983 se criou como organismo autônimo o Instituto da Mulher. Apesar
dessas diferenças, os feminismos institucionais têm algo em comum: o decidido abandono da aposta
por situar-se fora do sistema e por não aceitar nada que não mudanças radicais. Um notável
resultado dessas políticas foi o fato, realmente impensável há duas décadas, de que mulheres
declaradamente feministas chegaram a ocupar importantes postos nos partidos políticos e no
Estado. Agora, não se pode pensar que esse abandono da “demonização” do poder não receba duras
críticas desde outros setores do feminismo, e que não tenha suposto inclusive uma mudança lenta e
difícil para todo um coletivo que, à parte sua vocação radical, foi “socializado no poder”. Nesse
contexto institucional, também cabe destacar a proliferação de centros de investigações feministas
nas universidades. Na década de oitenta, a teoria feminista não só demonstrou uma vitalidade
impressionante, como conseguiu dar à sua interpretação da realidade um status acadêmico.
Definitivamente, os grupos de base, o feminismo institucional e a pujança da teoria
feminista, mais a paulatina incorporação das mulheres em postos de poder não estritamente
políticos – administração, jurídicos, cátedras... - e a tarefas emblematicamente masculinas –
exército e polícia – foram criando um acúmulo feminista que simbolicamente encerraríamos com a
Declaração de Atenas de 1992. Nessa Declaração, as mulheres mostraram seu claro desejo de firmar
um novo contrato social e estabelecer de uma vez por todas uma democracia paritária. No entanto,
essa firme vontade de avançar e a recapitulação de tudo que foi conseguido não significa que a
igualdade sexual esteja ao alcance das mãos. Tal como refletiu Susan Faludi em sua obra Backlash*
- o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres, o patriarcado, como todo sistema
de dominação firmemente assentado, conta com numerosos recursos para se perpetuar. A mensagem
reativa de “a igualdade já foi conquistada” e “o feminismo é um anacronismo que empobrece a vida
da mulher” parece haver se infiltrado nas novas gerações. Como consequência, as mulheres jovens,
incapazes de traduzir de forma política a opressão, parecem voltar a reproduzir em patologias
pessoais antes desconhecidas – anorexia, bulimia – o problema que insiste “em não ter nome”.
Terminaremos essa exposição com uma referência ao problema do sujeito da luta
feminista. Em alguns textos se afirmou já o termo “feminismo de terceira onda” para se referir ao
feminismo dos anos oitenta, que se centra no tema da diversidade das mulheres. 8 Esse feminismo se
caracteriza por criticar o uso monolítico da palavra mulher e centra-se nas implicações práticas e
teóricas da diversidade de situações das mulheres. Essa diversidade afeta as variáveis que interagem
com a de gênero, como são o país, a raça, a etnia e a orientação sexual e, de forma concreta, foi
especialmente notável a contribuição feita pelas mulheres negras. No entanto, ainda reconhecendo a
simultaneidade de opressões e que esses desenvolvimentos enriquecem enormemente o feminismo,
cabe fazer a seguinte pergunta: “Onde devemos nos deter, conforme a boa lógica? Como podemos
justificar generalizações sobre as mulheres afroamericanas, sobre as mulheres do Terceiro Mundo,
ou as mulheres lésbicas?”9 De fato, levando essa lógica ao seu extremo, teríamos que concluir que é
impossível generalizar a experiência de cada mulher real. Talvez seja pertinente concluir com
algumas palavras de Celia Amorós a propósito de outro debate. A autora afirma que, tão importante
como a desmistificação e dissolução analítica de totalidades ontológicas, é não perder – ao menos
como idéia reguladora – a coerência totalizadora que deve ter todo projeto emancipatório com
capacidade de mobilização. E, na prática, postula:
A capacidade de cada sujeito individual de se constituir em núcleo de sínteses de suas
diversas “posições de sujeito”, orientando-as à mudança do sistema.10
1
No entanto, é preciso lembrar que algumas das feministas consideradas culturais, como é o caso de Kathleen Barru,
não se sentem em absoluto identificadas com a etiqueta de feminismo cultural e se consideram feministas radicais.
2
R. Osborne. A construção sexual da realidade, Cátedra, Madrid 1993, p.41.
3
Cf. R. M. Rodríguez, “O feminismo francês da diferença”, em C. Amorós (coord), Atas do seminário História da
teoria feminista, Instituto de Investigações Feministas, Universidade Complutense de Madri, 1994.
4
A história desse feminismo está detalhadamente contata no livro Não acredite que tem direitos, do coletivo Librería
de Mujeres de Milán, Horas e Horas, Madri, 1991.
5
O.C., p.81.
6
Y. Ergas, “O sujeito mulher: o feminismo dos anos setenta-oitenta”, em Duby e Perrot (dirs.), História das mulheres,
Taurus, Madri 1993, vol 5, p.560.
7
Cf. Nesse mesmo livro Pactos entre mulheres.
8
Essa designação provém do feminismo estadunidense e não fala de diversidade, mas de diferenças entre as mulheres.
Adotamos a palavra diversidade para evitar equívocos com o feminismo da diferença, que nos Estados Unidos se
denomina feminismo cultural.
9
P. Madoo e J. Niebrugge-Brantley, “Teoria feminista contemporânea”, em G. Ritzer, Teoria sociológica
contemporânea, Mac Graw Hill, Madri 1992, p.392.
1
0 C. Amorós, Crítica da razão patriarcal, Anthropos, Barcelona 1985, p.322.
* Backlash significa reação, resposta.

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