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Pode-se afirmar, em diversos sentidos, que o feminismo sempre existiu. No sentido mais
amplo do termo, sempre que as mulheres, individual ou coletivamente, queixaram-se de seu injusto
e amargo destino sob o patriarcado e reivindicaram uma situação diferente, uma vida melhor. No
entanto, neste livro abordaremos o feminismo de uma forma mais específica: trataremos dos
distintos momentos históricos em que as mulheres chegaram a articular, tanto na teoria como na
prática, um conjunto coerente de reivindicações e se organizaram para consegui-las1)
Nesta caminhada pela história do movimento feminista, dividiremos a exposição em três
grandes blocos: o feminismo pré-moderno, em que estão as primeiras manifestações de "polêmicas
feministas”, o feminismo moderno, que surge principalmente com as obras de Poulain de la Barre e
os movimentos de mulheres e feministas da Revolução Francesa, para ressurgir com firmeza nos
grandes movimentos sociais do século XIX, e, por último, o feminismo contemporâneo, em que se
analisa o neofeminismo dos anos sessenta-setenta e as últimas tendências.
I. O Feminismo pré-moderno
4
Cf. A. H. Puleo, a.c., 43-44.
5
S. Rowbotham, Feminismo e revolução, Debate, Madrid 1978, pp.15-26.
6
S. Rowbotham, A mulher ignorada pela história, Debate, Madrid 1980, p.19.
7
O. Blanco, “A querelle feministe no século XVII”, em C Amorós (coord.), Atas do Seminário Permanente
como acontecia com a Ilustração sofística, seguramente hoje se conhece melhor a reação patriarcal
a esse fenômeno, reação bem simbolizada em obras tão absurdamente misóginas como As mulheres
sábias, de Molière e A culta latiniparla, de Quevedo.
c) O movimento sufragista
d) O feminismo socialista
9
R.K. Evans, As feministas, século XXI, Madrid 1980, p.15.
1 0
S. Rowbotham, Ob.Cit, p.115.
1 1
C. Fourier, Teoria dos quatro movimentos, Barral, Barcelona 1974, p.165
1 2
F. Tristan, União Operária, Fontamara, Barcelona 1977, p.125.
sobre os homens. Para Tristan, as mulheres “são tudo na vida do operário”, o que não deixa de
supor uma acrítica assunção da divisão sexual do trabalho. Desde outro ponto de vista, entre os
seguidores de Saint-Simon e Owen surgiu a idéia de que o poder espiritual dos homens havia se
esgotado e a salvação da sociedade só podia acontecer a partir do “feminino”. Em alguns grupos,
inclusive, iniciou-se a busca de um novo messias feminino.13
Talvez a contribuição mais específica do socialismo utópico resida na grande
importância que davam à transformação da instituição família. Condenavam a dupla moral e
consideravam o celibato e o matrimônio indissolúvel como instituições repressoras e causa de
injustiça e infelicidade. De fato, como afirmou em seu dia John Stuart Mill, a eles cabe a honra de
haver abordado sem preconceitos temas que outros reformadores sociais da época não se atreveram
a discutir.
e) Socialismo marxista
f) Movimento anarquista
No entanto, o anarquismo como movimento social contou com numerosas mulheres que
contribuíram com a luta pela igualdade. Uma das idéias mais recorrentes entre as anarquistas – em
consonância com seu individualismo – era a de que as mulheres se liberariam graças a sua “própria
força” e esforço individual. Assim expressou, já no século XX, Emma Goldman (1869-1940), para
quem pouco vale o acesso ao trabalho assalariado se as mulheres não são capazes de vencer todo o
peso da ideologia tradicional em seu interior. Assim, a ênfase colocada em viver de acordo com as
próprias convicções propiciou autênticas revoluções na vida cotidiana das mulheres que,
orgulhosas, se autodenominavam “mulheres livres”. Consideravam que a liberdade era o principio
condutor de tudo e que as relações entre os sexos deveriam ser absolutamente livres. Sua rebelião
contra a hierarquização, a autoridade e o Estado levava-as, por um lado e frente às sufragistas, a
1
Cf. A. Kollontai, Memórias, Debate, Madrid 1979.
5
1
P. J. Proudhon, Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria, vol.2. Júcar, Madrid 1974, p.175.
6
minimizar a importância do voto e das reformas constitucionais; por outro, viam como um perigo
enorme o que, na sua opinião, propunham os comunistas: a regulação por parte do Estado da
procriação, a educação e o cuidado das crianças.
A conquista do voto e todas as reformas que ele trouxe consigo haviam deixado as
mulheres relativamente tranquilas; suas demandas haviam sido satisfeitas, viviam em uma
sociedade legalmente quase-igualitária e a calma parecia reinar na maioria dos lares. No entanto,
devia ser uma calma um tanto superficial, pois se aproximava um novo despertar desse movimento
social. A obra de Simone de Beauvoir é a referência fundamental da mudança que se aproximava.
Tanto sua vida como sua obra são paradigmáticas das razões de um novo resurgir do movimento.
Tal e como contou a própria Simone, até que empreendeu a redação de O segundo sexo, não havia
sido consciente de sofrer discriminação alguma pelo fato de ser uma mulher. A jovem filósofa,
assim como seu companheiro Jean Paul Sartre, havia tido uma brilhante carreira acadêmica e
imediatamente depois ingressou – também como ele – na carreira docente. Onde estava, então, a
desigualdade, a opressão? Iniciar a contundente resposta do feminismo contemporâneo a essa
pergunta é o impressionante trabalho levado a cabo nos dois volumes de O Segundo Sexo. Ao
mesmo tempo que pioneira, Simone de Beauvoir constitui um brilhante exemplo de como a teoria
feminista supõe uma transformação revolucionária de nossa compreensão da realidade. Não há que
desvalorizar as dificuldades que experimentaram as mulheres para descobrir e expressar os termos
de sua opressão na época da “igualdade legal”. Essa dificuldade foi retratada com grande precisão
pela estadounidense Betty Friedan: o problema das mulheres era o “problema que não tem nome”, e
o objeto da teoria e prática feminista foi, justamente, o de nomeá-lo. Friedan, em sua também
volumosa obra, A mística da feminilidade (1963), analisou a profunda insatisfação das mulheres
estadounidenses consigo mesmas e sua vida, sua tradução em problemas pessoais e diversas
patologias autodestrutivas: ansiedade, depressão, alcoolismo.1 No entanto, o problema é para ela
uma questão política: “a mística da feminilidade” - reação patriarcal contra o sufragismo e a
incorporação das mulheres à esfera pública durante a Segunda guerra Mundial – que identifica
mulher com mãe e esposa, com o que cerceia toda possibilidade de realização pessoal e culpabiliza
todas aquelas que não são felizes vivendo só para os outros.
b) Feminismo liberal
Betty Friedan contribuiu para fundar em 1966 a que chegou a ser uma das organizações
feministas mais poderosas dos Estados Unidos, e sem dúvida a maior representante do feminismo
liberal, a Organização Nacional para as Mulheres (NOW. O feminismo liberal se caracteriza por
definir a situação das mulheres como de desigualdade – e não de opressão e exploração – e por
postular a reforma do sistema até conseguir a igualdade entre os sexos. As liberais começaram
definindo a exclusão da esfera pública como o principal problema das mulheres, e defendiam
reformas relacionadas à inclusão feminina no mercado de trabalho. Também, desde o início tiveram
1
Cf. A. J. Perona, “O feminismo americano do pós-guerra”: B. Friedan”, em C. Amorós (coord), Atas do seminário
História da teoria feminista, Instituto de Investigações Feministas, Universidade Complutense de Madrid, Madrid
1994.
uma seção destinada a formar ou promover as mulheres para ocupar postos públicos. Mas logo a
influência do feminismo radical empurrou as mais jovens para a esquerda. Ante o mal estar e o
medo dos setores mais conservadores, Betty Friedan declara que: “No futuro, as pessoas que
pensam que NOW é demasiado ativista terá menos peso que a juventude” 2. Assim, terminaram
abraçando a tese de que o pessoal é político – quando Friedan havia chegado a se queixar de que as
radicias convertiam a luta política em uma “guerra de dormitório” - e a organização de grupos de
autoconsciência, duas questões básicas do feminismo radical e que inicialmente rechaçavam. Mais
tarde, com o declive do feminismo radical nos Estados Unidos, o reciclado “feminismo liberal”
cobrou um importante protagonismo até chegar a se converter, na opinião de Echols, “na voz do
feminismo como movimento político”.3
No entanto, foi do feminismo radical, caracterizado por sua aversão ao liberalismo, o
verdadeiro protagonismo nas décadas dos sessenta e setenta.
“Apesar de acreditarmos estar metidas na luta para construir uma nova sociedade, isso
foi para nós um lento despertar e uma deprimente constatação descobrir que realizávamos o
mesmo trabalho no movimento que fora dele: datilografando os discursos dos homens, fazendo
café, mas não política, sendo auxiliares dos homens, cuja política, supostamente, mudaria a velha
ordem”.4
Novamente foi através do ativismo político junto aos homens, como as sufragistas em
sua época na luta abolicionista, que as mulheres tomaram consciência da peculiaridade de sua
opressão.Já que o homem novo se fazia esperar, a mulher nova – de quem tanto falou Kollontai no
começo do século – decidiu começar a se reunir por conta própria. A primeira decisão política do
feminismo foi a de se organizar de forma autônima, separar-se dos homens, decisão com a qual se
constituiu o Movimento de Libertação da Mulher. Tal e como afirma Echols, se todas estavam de
acordo sobre a necessidade de separar-se dos homens, discordavam com respeito à natureza e fim
dessa separação. Assim, produziu-se a primeira grande divisão dentro do feminismo radical: a que
2
A. Echols, Daring do Be Bad, Radical Feminismo in America (1967-1975), University of Minnesota Press,
Minneapolis 1989, p.4.
3
A. Echols, O.C., p.11.
4
O.C., p.23 (a tradução é nossa).
dividiu as feministas entre “políticas” e “feministas”. Todas elas formam inicialmente parte do
feminismo radical por sua posição antissistema e por seu afã de se distanciar do feminismo liberal,
mas suas diferenças são uma referência fundamental para entender o feminismo da época.
No começo, as “políticas” foram maioria, mas a partir de 68 muitas foram tornando-se
mais "feministas", vindo, finalmente, a tornar-se minoria. Para as “políticas”, a opressão das
mulheres derivaria do capitalismo ou do Sistema (com maiúscula), por isso os grupos de libertação
deveriam permanecer conectados e comprometidos com o Movimento; na realidade, consideravam
o feminismo mais uma ala da esquerda. Costuma afirmar-se que se deveu muito a elas, sua
experiência e suas conexões, muitos dos êxitos organizativos do feminismo, mas logicamente
também traziam sua servidão ideológica (à esquerda?).
As “feministas” se manifestavam contra a subordinação na esquerda, já que
identificavam os homens como os beneficiários de sua dominação. Não eram anti-esquerda, mas
sim muito críticas de seu recalcitrante sexismo e da tópica interpretação do feminismo em um leque
de possibilidades que ia da sua mera consideração como questão periférica à mais perigosa
qualificação de contrarrevolucionário.
As intermináveis e acaloradas discussões sobre qual era a contradição ou o inimigo
principal caracterizaram o desenvolvimento do neofeminismo não só nos Estados Unidos, mas
também na Europa e Espanha. A lógica dos debates sepre foi similar: enquanto as mais feministas
tentavam convencer as políticas de que a opressão das mulheres não é somente uma simples
consequência do Sistema, mas um sistema específico de dominação em que a mulher é definida em
relação ao homem, as políticas não podiam deixar de vê-los, aos homens, como vítimas do sistema
e de enfatizar o não enfrentamento com eles. Além do mais, voltando ao caso concreto dos Estados
Unidos, as políticas escondiam um medo que sempre pesou sobre as mulheres da esquerda: o de que
os companheiros homens, depositários do poder simbólico, para dar ou tirar denominações de
origem “progressista”, interpretassem um movimento só de mulheres como reacionário ou liberal.
De fato, é muito elucidador que, na hora de buscar uma “denominação”, o termo “feminista” foi
inicialmente repudiado por algumas radicais. O problema estava em que o associavam com o que
consideravam a primeira onda do feminismo, o movimento sufragista, que depreciavam como
burguês e reformista. Sulamith Firestone, indiscutível teórica e discutida líder de vários grupos
radicais, foi a primeira a se atraver a reivindicar o sufragismo, afirmando que era um movimento
radical e que “sua história havia sido enterrada por razões políticas”. 5
Finalmente, chegou a separação, e o nome de feminismo radical passou a designar
unicamente os grupos e as posições teóricas das “feministas”.
d) Feminismo radical
5
O.C., p.54.
dominações, como a de classe e raça. O gênero expressa a construção social da feminilidade e a
casta sexual alude à comum experiência de opressão vivida por todas as mulheres. 6 As radicais
identificaram como centros da dominação patriarcal esferas da vida que até então eram
consideradas “privadas”. A elas corresponde o mérito de haver revolucionado a teoria política ao
analisar as relações de poder que estruturam a família e a sexualidade; sintetizaram tudo em um
slogan: o pessoal é político. Consideravam que os homens, todos, e não só uma elite, recebem
benefícios econômicos, sexuais e psicológicos do sistema patriarcal, mas, em geral, destacavam a
dimensão psicológica da opressão. Assim afirma o manifesto fundacional das New York Radical
Feminist (1969), Polítics of the Ego, que diz:
6
É a mesma obra Gênero e Patriarcado.
7
A. Echols, O.C., p. 140
8
A. Valcárcel, Sexo e filosofia, Anthropos, Barcelona 1991, p.45.
9
A. Echols, O.C, p.140.
uma saúde e uma ginecologia não patriarcais, animando as mulheres a conhecer seu próprio corpo.
Também fundaram creches, centros para mulheres maltratadas, centros de defesa pessoal e um
grande etcétera.
Tal e como se vê a partir dos grupos de autoconsciência, outra característica comum dos
grupos radicais foi o exigente impulso igualitarista e anti-hierárquico: nenhuma mulher está acima
de outra. Na verdade, as líderes eram mal vistas, e uma das constantes organizativas era colocar
regras que evitassem o predomínio das mais dotadas ou preparadas. Assim, é frequente escutar as
líderes do movimento, que sem dúvida existiam, ou a quem atuava como portavoz, “pedir perdão a
nossas irmãs por falar por elas”. Essa forma de entender a igualdade trouxe muitos problemas aos
grupos: um dos mais importantes foi o problema de admissão de novas militantes. As novas tinham
que aceitar a linha ideológica e estratégica do grupo, mas uma vez dentro já podiam, e de fato assim
faziam frequentemente, começar a questionar o manifesto fundacional. O resultado era um estado
de permanente debate interno, enriquecedor para as novas, mas tremendamente cansativo para as
veteranas. O igualitarismo se traduzia em que mulheres sem a mínima experiência política e recém-
chegadas ao feminismo se encontravam na situação de poder criticar duramente por “elitista” uma
líder com a experiência militante e potência teórica de Sulamith Firestone. Inclusive se chegou a
desconfiar das teóricas, suspeitando que instrumentalizavam o movimento para tornarem-se
famosas. O que aconteceu foi que a maior parte das líderes foram expulsas dos grupos que haviam
fundado. Jo Freeman soube colocar essa experiência pessoal em sua obra A tirania da falta de
estruturas.10
Echols assinalou essa negação da diversidade das mulheres como uma das causas do
declive do feminismo radical. As teses de irmandade ou sororidade de todas as mulheres unidas por
uma experiência comum também se viu ameaçada pela polêmica aparição da questão de classe e de
lesbianismo dentro dos grupos. Mas, em última instância, foram as agônicas discordâncias internas,
mais o lógico desgaste de um movimento com essas características, o que trouxe, a meados dos
anos 70, o fim do ativismo do feminismo radical.
1
J. Freeman, A tirania da falta de estruturas, Fórum de Política Feminista, Madrid.
0
1
H. Hartmann, “Um matrimônio mal sucedido: rumo a uma união mais progressista entre marxismo e feminismo”,
1
g) Feminismo da diferença
→ Feminismo cultural
Suas primeiras manifestações surgem em 1965, ligadas ao grupo DEMAU. Outro marco
importante será a publicação, em 1970, do manifesto de Rivolta femminile e o escrito de Carla
Lonzi, Escupamos sobre Hegel.4 As italianas, muito influenciadas pela tese das francesas sobre a
necessidade de criar uma identidade própria e pela experiência dos grupos de autoconsciência das
estadunidenses, sempre mostraram sua divergência com relação às posições majoritárias do
feminismo italiano. Assim fizeram no debate em torno da lei do aborto, em que defendia a
despenalização frente a legalização, finalmente aprovada em 1977, e posteriormente, na proposta de
lei sobre a violência sexual. Essa proposta, iniciada pelo MLD, a UDI e outros grupos do
movimento de libertação, reivindicava, entre outras coisas, que a violação pudesse ser um delito a
ser obrigatoriamente investigado pela polícia, ainda que contra a vontade da vítima, para evitar as
frequentes situações em que as pressões sobre ela terminavam com a retirada da queixa. Neste caso,
como no do aborto, se considera “extremamente inaceitável” que as mulheres “oferecessem esse
sofrimento concreto à intervenção e à tutela do Estado, dizendo atuar em nome de todas as
mulheres”.5 Afirmavam que a lei do homem nunca é neutra, e a idéia de resolver através de leis e
reformas gerais a situação das mulheres era descabida. Criticam o feminismo reivindicativo por ser
vitimista e por não respeitar a diversidade da experiência das mulheres. Além do mais, afirmam que
de nada serve que as leis dêem valor às mulheres se elas não o têm na realidade. Em contraposição,
parecem propor um translado ao plano simbólico, e que seja nesse plano onde se produza a efetiva
libertação da mulher, do “desejo feminino”. Ligada a essa libertação, muito voltada para a
autoestima feminina, estão diversas práticas entre mulheres, como o affidamento, conceito de difícil
tradução, em que o reconhecimento da autoridade feminina joga um papel determinante. O que se
afirma com clareza é que para a mulher não há liberdade nem pensamento sem a idéia
(pensamiento) da diferença sexual. Essa é a determinação ontológica fundamental.
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