Você está na página 1de 12

Intermitências entre velhice e memória

JOSIANE NAVA*
SAMUEL KLAUCK**

Resumo: O presente artigo versa sobre as questões da velhice e da memória e suas relações. Buscou-
se a compreensão do fenômeno da velhice e do papel social que os idosos ocupam na sociedade
brasileira contemporânea, assim como tratamos a questão da memória. Primeiramente delimitamos
o foco: a memória social e, posteriormente, a relacionamos com o envelhecimento. A metodologia
empregada consistiu em pesquisa bibliográfica nas áreas da saúde e da história, utilizando como
principal referencial teórico a tese pós-doutoral de Bosi (1994), que retratou, por meio de narrativas
orais de sujeitos idosos, a história da cidade de São Paulo, trazendo à tona memórias subterrâneas. O
termo ‘subterrâneas’ é utilizado por Pollak (1989) para definir aquelas memórias que diferem da
memória oficial, porque usualmente são mantidas apenas no círculo de convivência do narrador.
Diante desse cenário, percebemos a importância de discutir a inclusão dos anciãos na sociedade, a
fim de que nos tornemos ouvintes atentos e possamos refletir acerca da nossa realidade sob a ótica
de quem vivenciou momentos importantes da construção Brasil e, assim, desenvolver o senso crítico
sobre a memória oficial que nos foi contada.
Palavras-chave: memória; idosos; sociedade.
Flashes between old age and memory
Abstract: This article deals with the issues of old age and memory and their relationships. We sought
to understand the phenomenon of old age and the social role that the elderly occupy in contemporary
Brazilian society, as well as the issue of memory. First we define the focus: social memory and, later,
we relate it to aging. The methodology used consisted of bibliographical research in the areas of
health and history, using as main theoretical reference is the postdoctoral thesis of Bosi (1994), who
portrayed, through oral narratives of elderly subjects, the history of the city of São Paulo, bringing
underground memories. The term 'subterraneous' is used by Pollak (1989) to define those memories
that differ from the official memory, because they are usually kept only in the circle of coexistence
of the narrator. Given this scenario, we perceive the importance of discussing the inclusion of the
elders in society, so that we become attentive listeners and reflect on our reality from the point of
view of those who have experienced important moments in the construction of Brazil and, thus,
develop the Critical sense about the official memory that has been told to us.
Key words: memory; elderly; society.

*
JOSIANE NAVA é bolsista no Programa Interdisciplinar Sociedade, Cultura e
Fronteiras - nível de Mestrado; graduada em Letras.

**
SAMUEL KLAUCK é Doutor em História. Professor na graduação e pós-graduação
na UNIOESTE, campus de Foz do Iguaçu.
56
Introdução transformação da sociedade na qual
vivemos, são marcados pelas
O idoso, no Brasil contemporâneo,
limitações a eles impostas pela
ocupa a posição de excluído
sociedade. Além das dificuldades de
socialmente. Posição esta que, é
enquadrar-se no mercado de trabalho,
ocupada também por jovens,
também, encontram dificuldade de
deficientes, e por todos aqueles que
encontrar pessoas que os escutem e
recebem algum tipo de auxílio
atentem-se à experiência de vida que
financeiro para sobreviver, ou seja, são
carregam. Experiências capazes de
aqueles que não participam ativamente
modificar o modo de perceber a
do mercado de trabalho, por vários
sociedade por parte daqueles que não
motivos, desde falta de experiência até
vivenciaram um determinado período,
a mobilidade reduzida. Essa situação
apensas ouviram falar dele.
os exclui socialmente, de modo que
não são reconhecidos ou inseridos nas Bosi (1994) em sua pesquisa2 sobre o
dinâmicas cotidianas e de cidadania, fenômeno da memória, em uma
pois na sociedade capitalista na qual perspectiva psicossocial, que pretende
vivemos, para ser cidadão é necessário compreender o funcionamento desse
participar do “jogo do capital” 1 , ou fenômeno na terceira idade, propôs-se
seja, é preciso contribuir ativamente na a escutar atentamente - por meio de
sociedade do consumo, e, portanto, entrevistas embasadas na metodologia
vender a força de trabalho no mercado da história oral, na qual o sujeito
capitalista. Para conquistar uma vaga conversa com o pesquisador mais
nesse mercado é necessário livremente, pois não há utilização de
experiência (os jovens não a possuem, perguntas pré-formuladas - oito
principalmente, quando se trata do sujeitos de idade superior a setenta
primeiro emprego), saúde – para anos, que reviveram, por meio das
conseguir desempenhar eficientemente lembranças, as experiências desde a
a função pretendida em oito horas de infância, na cidade de São Paulo. Tal
trabalho diárias, e, se necessário, por estudo contribuiu para repensar a
algumas horas extras - (os deficientes e memória oficial da cidade, devido aos
os idosos carregam as marcas da depoimentos, a pesquisadora percebeu
mobilidade reduzida: que não permite que alguns fatos não constam nas
que realizem as atividades com bibliografias oficiais acerca da cidade
desempenho similar aos dos adultos em questão, o que justifica a
saudáveis, na maior dos casos), importância de ouvir àqueles que
portanto "ser empregado" é para esses presenciaram a construção e
grupos uma tarefa árdua de consolidação da metrópole na qual São
realizar.(DAHRENDORF, 1987). Paulo transformou-se. E também,
compreender o fenômeno da memória
Os idosos, embora sejam parte
na terceira idade.
importante da construção e

1 2
Utilizei essa expressão para indicar a venda Essa pesquisa é intitulada "Memória e
da força de trabalho para o ‘mercado’ que sociedade: lembranças de velhos”, realizada
gerará lucros para o empregador e exploração em 1994. Referência completa no final desse
do trabalhador – na perspectiva de Karl Marx. texto, na seção referências.
57
Essa contribuição da população senil, memória oficial expôs os fatos de
enquanto sujeitos ativos política, social acordo com seus próprios interesses.
e culturalmente nas décadas passadas, Assim, compreender a velhice, a
é esquecida ou ignorada pelos jovens e memória e a relação entre elas é o
adultos da atualidade. Resta aos idosos escopo desse texto, a fim de reconhecer
o silêncio e o isolamento social. a população idosa como parte
O resgate das lembranças de uma importante da sociedade e
comunidade de destino3 – nesse caso o proporcionar-lhes o merecido respeito.
envelhecimento – é um instrumento
Notas sobre a velhice
importante para as discussões acerca
da memória social, que define um Ao longo da história, o tema da velhice
grupo, uma situação, um local, etc., por tem sido abordado sob diferentes
meio das narrativas de sujeitos que vieses – desde a faixa etária até os
experienciaram um tempo histórico cuidados com o corpo a fim de
específico, ou mesmo, daqueles que combater o envelhecimento.
conservam memórias através das Primeiramente, discutia-se esta fase da
narrativas transmitidas oralmente pelo vida na literatura bíblica, que apontava
seu grupo de convívio. a longevidade humana após o dilúvio
e, também, na mitologia, que induzia a
Reconhecer os anciãos enquanto crença na fonte da juventude. Um
detentores de conhecimento histórico e marco importante ocorreu no século
memórias permite confrontar a versão XVI ao iniciarem-se as discussões
oficial de vários fatos e, perceber que, sobre o assunto no âmbito científico,
geralmente, as informações representadas por Francis Bacon,
compartilhadas com o público são Renée Descartes e Benjamim Franklin.
aquelas de interesse do Estado, da Eles acreditavam que o
Política, da Empresa, em questão. Um desenvolvimento de métodos
exemplo disso é a experiência de científicos era o caminho para
Pollak (1989), ao pesquisar junto aos combater as transformações da velhice
sujeitos sobreviventes de um campo de de modo eficaz. (ARAÚJO;
concentração sobre a experiência deles CARVALHO, 2005).
naqueles anos, constatou que havia
indivíduos que negavam ter vivenciado Discussões acerca de qual termo
aquele episódio. Essa negativa foi utilizar para referenciar-se as pessoas
justificada por diversos fatores, o de idade avançada – velho, idoso,
principal deles: encontrar um modo de maduro, entre outros – eram
seguir a vida em meio aos seus recorrentes, e cada qual esboçava o
opressores e coibir o sentimento de preconceito sobre esse grupo,
culpa de ambos. Portanto, tais sujeitos considerado incapaz, dependente de
disseminaram apenas entre seus pares cuidados físicos e financeiros. Devido
a condição de vítimas dos campos de a evolução das pesquisas sobre o
concentração, enquanto que, a assunto, os pesquisadores de diversas
3
Termo utilizado por Ecléa Bosi em:
“Memória e sociedade: lembranças de velhos”,
vide referências.
58
áreas, em consenso, definiram que o passado e presente sem grandes
último estágio da vida não pode ser projeções para o futuro e quando
definido apenas pelo critério da idade, desconectado da vida familiar e
visto que o fenômeno varia de acordo produtiva encontra uma inadequação
com fatores exógenos e endógenos nas em relação à sociedade na qual está
esferas que compõe a vida do sujeito – inserido”. (BEZERRA; LEBEDEFF,
desde a esfera social até a psicológica. p.2, 2013).
(ARAÚJO; CARVALHO, 2005). Dahrendorf aborda a questão da
Mediante o crescimento da população cidadania a partir do papel social que o
idosa, constatado pela Organização das sujeito ocupa no mercado. A “classe
Nações Unidas que, considerou os inferior” é composta por aqueles que
últimos quarenta anos – desde 1975, “não são cidadãos, ou deixaram de sê-
como a “Era do Envelhecimento” lo, ou deixaram de ser cidadãos plenos,
(MOTA; PEREIRA; RODRIGUES, ou ainda não são cidadãos”. (1987,
2014) surge o questionamento: “Como p.102). Os anciãos pertencem a
lidar com longevidade no Brasil?”. segunda categoria, ou seja, o lugar
Uma possível resposta é repensar o destinado a eles é mantido sob dois
modo de olhar a condição deles, pois, aspectos principais: o contrato
os fenômenos que se apresentam nessa geracional, cujo trabalho dos mais
época da vida são particulares e jovens garante a aposentadoria dos
esboçam reações diferentes: primeiros e, a importância desse
público enquanto eleitorado, mesmo
A velhice não pode ser considerada em
assim, eles não estão incluídos no meio
si como uma categoria de análise já que
social, apenas são tolerados quando é
reconhecemos que há muitas velhices,
conveniente para o grupo detentor do
a depender das condições de
poder.
autonomia do idoso, as quais permitem
assumir, integralmente ou Uma das principais razões que fez o
parcialmente, a gestão da sua vida; preconceito acerca da senilidade
sendo essas condições adversas, o emergir é a velocidade imposta pela
idoso necessita entregar-se aos sociedade para a realização das tarefas.
cuidados de outros que passam a Exige-se produção, agilidade e
governar os seus passos. (MOTA; modernidade, para sentir-se incluído
PEREIRA; RODRIGUES, 2014, p. socialmente. Porém, com o passar do
107). tempo o corpo e a mente trabalham
mais lentamente, o que não significa
Ao analisar a condição senil na
improdutividade, e sim readequação
sociedade contemporânea, lida-se com
natural do corpo, tanto física quanto
o estereótipo do idoso sem autonomia,
psicológica, na última etapa da vida
conforme excerto acima, e com a
humana, e tal fator contribui para que
preocupação excessiva em relação ao
o idoso seja considerado, não raro,
presente e ao futuro devido a
como um incômodo – por não atuar na
velocidade em que a sociedade
velocidade e de modo que agrade a
progride. Já o passado é considerado
juventude. (BEZERRA; LEBEDEFF,
uma etapa perdida, pois o idoso
2013).
“encontra-se a meio caminho entre
59
Os impasses que subjugam a vida dos saúde, dentre eles os enfermeiros,
idosos devem ser transformados em planejarem estratégias
fonte de reflexão, cuja finalidade é fundamentadas na realidade, que
repensar quais contribuições, além da permitam proporcionar a
motora, pode-se extrair da convivência manutenção da autonomia e
independência do idoso, tendo
com eles. De acordo com Costa “Mãos
como parâmetro a compreensão
calejadas – e um certo cansaço no olhar das alterações decorrentes do
– indicam um tempo vivido, e, ainda envelhecimento, refletidas na
que distante, repleto de marcas”. velhice, possibilitando a melhoria
(2008, p. 152). Essa experiência da qualidade de vida, consoante às
oportuniza compreender a sociedade e condições de saúde em que o idoso
sua história, sob a ótica daqueles que se encontra. FREITAS;
contribuíram para a formação e QUEIRÓZ; SOUZA, 2010, p.
transformação dela. 408).

A velhice é um tema em voga tanto na O contato com os sujeitos é um modo


área da sociologia e antropologia 4 , de compreender a maneira como eles
quanto na área de saúde5, psicologia6, sentem, pensam e vivem a velhice. É
entre outras, que contribuem para o também uma oportunidade de resgatar
entendimento do papel social desse memórias de pessoas que
grupo e possibilitam à história contribuíram, cada qual do seu jeito,
compreender, explorar e retratar a para o desenvolvimento da sociedade
condição senil. Além disso, propõe em na qual deveriam sentir-se acolhidos, o
parceria com as demais áreas do que nem sempre ocorre.
conhecimento novos olhares sobre ela. Esse contato direto é enfatizado por
O trabalho desenvolvido pelas Costa (2008) – no artigo que trata
pesquisadoras Freitas, Queiróz e Souza especificamente da condição do
(2010) demonstra a importância de trabalhador idoso na sociedade
estudar a senilidade através da capitalista: suas lutas e conquistas -
percepção dos próprios integrantes para quem as lembranças deles
desse grupo: contribuirão para fortalecer o grupo de
Dessa forma, refletir acerca do trabalhadores ao invés de fragmentá-
significado do envelhecimento e lo.
velhice por meio dos relatos dos
No que tange a percepção dos sujeitos
idosos, provavelmente, seja um
caminho para entender o
acerca de suas vivências, reportadas
significado real da velhice, àqueles que se dispõe a ouvi-los, Bosi
permitindo aos profissionais de (1994) afirma:

4
O trabalho de Lucas Graeff Considerações <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/PolisePsi
sobre a velhice institucionalizada: memória q ue/article/view/20135/25598>
5
social, cotidiano e ritmos de vida, sobre o O trabalho de Freitas, Queiróz e Souza
cotidiano dos idosos no Asilo Padre Cacique (2010), intitulado O significado da velhice e da
em Porto Alegre – Rio Grande do Sul, é um experiência de envelhecer para os idosos, vide
exemplo enquanto pesquisa etnográfica. referências.
6
Disponível em: Ver Memória e sociedade: lembranças de
velhos - Bosi (1994), vide referências.
60
Um verdadeiro teste para a melhor compreender o funcionamento
hipótese psicossocial da memória de tais sociedades. Outras áreas do
encontra-se no estudo das conhecimento, principalmente na
lembranças das pessoas idosas. contemporaneidade, também
Nelas é possível verificar uma contribuíram para o desenvolvimento
história social bem desenvolvida:
do termo memória. A biologia avançou
elas já atravessaram um
determinado tipo de sociedade, no estudo do código genético enquanto
com características bem marcadas memória da hereditariedade; a
e conhecidas; elas já viveram cibernética trouxe para a discussão a
quadros de referência familiar e memória central dos computadores.
cultural igualmente reconhecíveis: (LE GOFF, 1990).
enfim, sua memória atual pode ser
desenhada sobre um pano de
Candau (2012) corrobora ao
fundo mais definido do que a mencionar o papel da escrita na
memória de uma pessoa jovem, ou socialização da memória, pois ela
mesmo adulta, que, de algum permitiu a “estocagem de
modo, ainda está absorvida nas informações”, o que não ocorria na
lutas e contradições de um tradição oral, que prescinde a escrita na
presente que a solicita muito mais socialização da memória. Nas palavras
intensamente do que a uma pessoa do autor:
de idade. (BOSI, 1994, p. 60).
Auxiliar de uma memória forte, a
Consideradas as mudanças no escrita pode, ao mesmo tempo,
entendimento sobre o envelhecimento reforçar o sentimento de
ao longo do tempo, tem-se então, que pertencimento a um grupo, a uma
os preconceitos existentes ainda na cultura, e reforçar a metamemória.
atualidade possam ser superados Assim, o escritor local, aquele que
perante a compreensão dos próprios tem o poder de registrar os traços
sujeitos senis acerca de sua condição, do passado, oferece ao grupo a
possibilidade de reapropriar-se
através dos relatos de experiência de
desse passado através dos traços
vida trazidos pela memória. transcritos. Entretanto, com
Debates sobre memória social frequência a escrita, como
modalidade de expansão da
O estudo da memória, sobretudo a memória, deixa a busca identitária
social, transformou-se ao longo do incompleta. (CANDAU, 2012,
tempo e com a influência das ciências p.109)
sociais. A sociologia apresentou-se
Psicanalistas e psicólogos debateram a
como um estímulo para explorar o
propósito do desejo humano de
conceito de memória coletiva e o
controlar as lembranças e os
próprio conceito de tempo. A
esquecimentos, de modo que tornem-
psicologia social observou a ligação
se senhores da memória:
entre memória, comportamentos e
mentalidades. E a antropologia, por Do mesmo modo, a memória
sua vez, acolheu o termo memória no colectiva foi posta em jogo de
estudo das sociedades selvagens e forma importante na luta das
interligou ao termo história para forças sociais pelo poder. Tornar-
se senhores da memória e do
61
esquecimento é uma das grandes Pollak (1992) e Portelli (2005), devido
preocupações das classes, dos a irrelevância com que trata a memória
grupos, dos indivíduos que individual, embora os autores citados
dominaram e dominam as reconheçam a importância da memória
sociedades históricas. Os de um grupo. (WEBER; PEREIRA,
esquecimentos e os silêncios da
2010). As referidas pesquisadoras
história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da traduzem o pensamento de Portelli
memória coletiva. (LE GOFF, (2005), no qual ele refere-se ao valor
1990, p. 13). da memória individual:
Extrair lembranças de um grupo é uma [...] a memória é um fenômeno
tarefa que exige atenção redobrada, social que pode ser compartilhado,
pois ele – o grupo – organiza-se de porém ela só se materializa nos
discursos individuais, e só pode
maneira que possa manipular as
ser coletiva quando separada do
fronteiras entre aquilo que será individual, no mito, no folclore, na
revelado amplamente e as memórias delegação e nas instituições tais
subterrâneas que se escondem apenas como escola, Igreja, Estado,
no seu interior. Um exemplo disso é partido. (WEBER; PEREIRA,
exposto por Pollak (1989) sobre as 2010, p. 114).
designações de guardiões da memória Diante de tais divergências, Pollak
– pessoas que detêm a confiança dos (1992) levanta uma questão
dirigentes do grupo – e são imprescindível: “quais são os
responsáveis por preservar a imagem e elementos constitutivos da memória,
a autenticidade dele: individual ou coletiva?”. Ele mesmo
Toda organização política, por propõe a réplica ao afirmar que,
exemplo – sindicato, partido, etc. –, primeiramente, são os acontecimentos
veicula seu próprio passado e a vividos pessoalmente e em seguida
imagem que ela forjou para si mesma. aqueles vividos “por tabela” ou seja,
Ela não pode mudar de direção e de pela coletividade, pelo grupo de
imagem brutalmente a não ser sob pertencimento do sujeito. Além disso,
risco de tensões difíceis de dominar, de a memória abarca pessoas e
cisões e mesmo de seu personagens, esses últimos são
desaparecimento, se os aderentes não classificados em: personagens
puderem mais se reconhecer na nova encontradas ao longo da vida;
imagem, nas novas interpretações de personagens reconhecidas “por tabela”
seu passado individual e no de sua e, personagens que não
organização. O que está em jogo na necessariamente pertenceram ao
memória é também o sentido da espaçotempo do indivíduo. Por fim, os
identidade individual e do grupo. lugares têm papel de destaque: lugares
(POLLAK, 1989, p. 10). ligados a uma lembrança; lugares de
comemoração ou de apoio da memória
O conceito de memória coletiva
e lugares longínquos que são
cunhado por Halbwachs – na década
importantes para a memória do grupo e
entre 1920 e 1930 – foi criticado por
que não pertenceram ao espaço tempo
vários estudiosos, como por exemplo:
da pessoa. Ele ainda frisa que os
62
acontecimentos, personagens e lugares cultural transmitida por meio de
podem pertencer a fatos reais ou objetos que cristalizam significados
podem ser projetados de outras para o grupo; necessidade de
ocasiões. organização para que a transmissão
ocorra e compromisso, para que a
Destaca-se ainda que a memória não é
manutenção da coesão da comunidade
estática, imutável ou deve ser
seja mantida. (WEBER; PEREIRA,
compreendida sob a ótica da
2010).
essencialização, mas sim um
fenômeno construído. Pollak (1992) Diante disso, Pollak (1989) reforça que
esclarece isso, ao abordar a memória o enquadramento de memória de um
política, pois, o enquadramento da grupo tem limites, portanto não pode
memória pode ser consciente ou ser concebido de forma arbitrária, visto
inconsciente, “o que a memória que deverá satisfazer as exigências de
individual grava, recalca, exclui, justificação.
relembra, é evidentemente o resultado A síntese da função da memória
de um verdadeiro trabalho de cultural, que prescinde do conceito de
organização”. (POLLAK, 1992, p. 5). memória coletiva disseminado por
Esse trabalho de enquadramento é feito Halbwachs, apregoa que por meio
em grande parte pelos historiadores, dessa memória os grupos constroem
mas o trabalho da memória em si sua identidade e preservam tradições,
também contribui no processo de costumes e ritos. Além disso, reforçam
enquadramento “cada vez que uma o sentimento de pertencimento àquela
memória está relativamente comunidade e elaboram
constituída, ela efetua um trabalho de representações de si e dos outros.
manutenção, e coerência, de unidade, (WEBER; PEREIRA, 2010).
de continuidade da organização”
(POLLAK, 1992, p. 7). A memória em consonância com o
envelhecimento
Acerca do enquadramento da
memória, Weber e Pereira (2010) A discussão sobre a memória na
citam o trabalho de Assmann (1995) velhice repercutiu no trabalho de Bosi
que dividiu a memória em dois grupos: (1994), no qual analisa, sob a ótica da
a comunicativa, utilizada no cotidiano, psicologia social, o fenômeno da
e a cultural que distancia-se dele. O memória. Para a pesquisadora, o papel
segundo conceito é tido como da memória na velhice distingue-se
atualização da ideia de memória daquele nas outras etapas da vida:
coletiva de Halbwachs. Para o autor, a Quando a sociedade esvazia seu
memória cultural possui seis tempo de experiências
características principais: a produção significativas, empurrando-a para
da identidade através do a margem, a lembrança de tempos
relacionamento com o grupo; a melhores se converte num
capacidade de reconstrução – uma vez sucedâneo da vida. E a vida atual
que não é possível preservar o passado só parece significar se ela recolher
e sim reconstruí-lo em referência ao de outra época o alento. O vínculo
com a outra época, a consciência
sistema contemporâneo; herança
de ter suportado, compreendido
63
muita coisa, traz para o ancião de vida individual e encontra-se com o
alegria e uma ocasião de mostrar tempo da História, visto que se nutre de
sua competência. Sua vida ganha lembranças de família, e músicas e
uma finalidade se encontrar filmes do passado, de tradições, de
ouvidos atentos, ressonância. histórias escutadas e registradas”.
(BOSI, 1994, p.82).
(2006, p. 17). O papel da memória
Embora, o idoso sinta-se alegre para ativa, portanto, é fundamental para a
compartilhar sua experiência de vida, é transmissão de experiências que
raro “encontrar ouvidos atentos” para ultrapassam diferentes temporalidades.
fazê-lo. As pesquisadoras Mota,
Incluir a população idosa socialmente
Pereira e Rodrigues (2014)
é oportunizar aos demais membros da
acrescentam que a expressão “se”
comunidade o aprendizado de aspectos
retrata o lugar da exclusão social, que
por nós desconhecidos e valorizar
grande parte da comunidade senil
aqueles que um dia trabalharam para
ocupa na sociedade brasileira, do não
ajudar a construir as cidades,
pertencimento e do isolamento, e
tecnologias, pesquisas, etc. das quais
afirmam que, diante desse quadro,
dispomos hoje. Para Bosi (1994):
torna-se urgente que os idosos acima
de sessenta anos programem-se para Um mundo social que possui uma
novos projetos e experiências de vida. riqueza e uma diversidade que não
conhecemos pode chegar-nos pela
A escuta atenta é um momento de memória dos velhos. Momentos
aprendizagem, por isso, desse mundo perdido podem ser
independentemente da titulação compreendidos por quem não os
acadêmica do pesquisador, o narrador viveu e até humanizar o presente.
é quem possui o conhecimento que A conversa evocativa de um velho
buscamos durante a entrevista em é sempre uma experiência
história oral, afinal “Temos tudo a profunda: repassada de nostalgia,
ganhar com os ouvidos abertos”. revolta, resignação pelo
desfiguramento das paisagens
(PORTELLI, 2010, p. 213). Para
caras, pela desaparição de entes
Pollak (1989) há um limite naquilo que amados, é semelhante a uma obra
pode ou não ser dito: de arte. Para quem sabe ouvila, é
A fronteira entre o dizível e o desalienadora, pois contrasta a
indizível, o confessável e o riqueza e a potencialidade do
inconfessável, separa, em nossos homem criador de cultura com a
exemplos, uma memória coletiva mísera figura do consumidor
subterrânea da sociedade civil atual. (BOSI, 1994, p. 82-83).
dominada de grupos específicos, A atenção à conversa de um idoso, no
de uma memória coletiva âmbito da pesquisa científica, conta
organizada que resume a imagem
com a metodologia da história oral
que uma sociedade majoritária ou
o Estado desejam passar e impor. enquanto aliada na análise e
(POLLAK, 1989, p. 8). compreensão do que é dito pelo
entrevistado. Para Delgado (2006) a
Para Delgado, a história, a memória e história oral é o caminho para produzir
o tempo constituem uma tríade que: “o conhecimento histórico, que vincula –
tempo da memória ultrapassa o tempo
64
através do depoimento de um sujeito - doméstico, ritual, floral... (BOSI,
o passado e o presente, cuja 1994, p. 414).
interferência do entrevistador Reviver o passado, a fim de
proporcionará o cruzamento de compreendê-lo de modo eficiente não
intersubjetividades na produção do é tarefa simples. Exige atenção, foco e
documento resultante da pesquisa.7 estudo para desvendá-lo. Considerar,
Portelli (2010) afirma que “a história portanto as diferenças entre a memória
oral é, principalmente, um modo de do jovem, do adulto e a do idoso,
deixar a política e as condições sociais permite compreender a função da
vivas e tangíveis, evidenciando seu memória desse último na sociedade,
impacto sobre a vida de determinadas porque enquanto os dois primeiros
pessoas”. Bosi (1994) corrobora, pois, ocupam-se das lembranças enquanto
não basta estar em contato com um fuga da realidade cotidiana, o idoso
determinado grupo – nesse caso “ele está se ocupando consciente e
específico, o de idosos – para extrair atentamente do próprio passado, da
suas memórias, ou seja, ouvi-los não é substância mesma da sua vida”.
o suficiente. É necessário, além de (BOSI, 1994, p. 60).
escutar com atenção, questionar-se No intuito de incluir a população idosa
sobre a importância, relevância socialmente e aprender com elas
daquela informação compartilhada histórias acerca de um tempo não
tanto no tempo presente, quanto no vivenciado por nós – crianças, jovens e
passado, no qual aquela situação foi adultos – o projeto “circunleiturando”8
vivenciada, exemplifica ao imaginar têm oportunizado às idosas
um arqueólogo na reconstituição de participantes, através da experiência da
um vaso antigo: leitura literária – que inclui
Imagine-se um arqueólogo principalmente livros com
querendo reconstituir, a partir de personagens idosos – a disseminação
fragmentos pequenos, um vaso de suas memórias, o aprendizado de
antigo. É preciso mais que novos saberes e a ressignificação de
cuidado e atenção com esses sentido em suas vidas:
cacos; é preciso compreender o
sentido que o vaso tinha para o As histórias de vida das
povo a quem pertenceu. A que participantes emergiam por meio
função servia na vida daquelas de fotos selecionadas e
pessoas? Temos que penetrar apresentadas ao grupo, assim
noções que as orientavam, fazer como lembranças de músicas que
um reconhecimento de suas povoaram a adolescência e
necessidades, ouvir o que já não é juventude, objetos pessoais
audível. Então recomporemos o acompanhados das suas histórias,
vaso e conheceremos se foi códigos familiares construídos em
suas próprias famílias, com

7 8
Para maiores informações consultar “História Projeto desenvolvido pelas professoras:
oral: memória, tempo e identidades” de Lucília Mota, Pereira e Rodrigues (2014) “Leituras,
Neves Delgado – vide referências. compartilhadas, memória e envelhecimento. –
vide referências.
65
comentários de que muitos deles sociedade, pois ocupam o papel de
são ainda hoje utilizados. Foram excluídos.
muitos os objetos e textos que
povoaram aqueles momentos de Essa exclusão é decorrente da não
leituras múltiplas, dando valorização das contribuições desses
oportunidade às participantes de sujeitos para o desenvolvimento social,
se exercitarem na construção de já que a modernidade e o sistema
narrativas das memórias remotas, capitalista implementaram a rapidez e
fazendo pontes com o tempo a agilidade como condições de
presente em conexão com as redes cidadania e inclusão, conforme
familiares atuais, trazendo o exposto por Dahrendorf (1987).
convívio com suas famílias
constituídas, seus filhos, netos e A desatenção quanto à memória senil,
bisnetos. Sentimentos diversos ou seja, a indisponibilidade para ouvi-
afloravam, permeando o los, impede que se conheça a história
reconhecimento das trajetórias de uma sociedade, comunidade,
vividas. (MOTA; PEREIRA; cidade, entre outras instituições sob a
RODRIGUES, 2014, p. 114) ótica daqueles que viveram o cotidiano
O projeto acima mencionado tangencia e enfrentaram os desafios das últimas
a discussão sobre a importância do décadas do século XX.
idoso enquanto grupo social detentor Conforme exposto por Le Goff (1990)
de memórias, muitas vezes mantidas todas as sociedades – sejam
no subterrâneo e que se compartilhadas desenvolvidas ou não - dependem da
poderiam modificar o rumo do memória para resolver suas questões,
pensamento contemporâneo acerca da por ser ela aquela que resgata o
política, religião, família, enfim passado e reconfigura-o no presente,
poderia romper paradigmas. Para tal, o assim, o nosso trabalho deve consistir
reconhecimento do grupo é em que a memória coletiva sirva para
fundamental. Honenneth (2003, apud libertar os homens e não para torná-los
Oliveira, 2006, p. 30) distingue servos.
conhecimento de reconhecimento de
um grupo: o primeiro trata da Reforçamos, portanto, a importância
identificação da pessoa enquanto de resgatar as lembranças dos idosos e
indivíduo – ato cognitivo, não público documenta-las, a fim de repensar
– enquanto que, o segundo é um ato acerca da memória oficial de nosso
expressivo pelo qual o conhecimento é país, que nos foi contada pelas
confirmado positivamente por uma instituições que controlam o poder e
afirmação, portanto depende dos meios disseminam apenas o que lhes é
de comunicação que demonstram o conveniente; a velhice precisa ser
fato de que a outra pessoa tem valor (re)incluída socialmente para que, os
social. cidadãos brasileiros possam conhecer a
outra face da memória nacional e os
Considerações finais idosos sejam reconhecidos pela
O panorama da velhice no Brasil expõe contribuição deles no progresso do
a debilidade dessa comunidade frente a Brasil.

66
Referências 2014. Disponível em:
<http://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeb
ARAÚJO, L. F. de; CARVALHO, V. A. M. de
a/ article/view/827/585>. Acesso em: 23 nov.
L. Aspectos Sócio-históricos e Psicológicos da
2016.
Velhice. Menme, Caiacó: RN, V. 06, N. 13,
dez. 2004. Disponível em: OLIVEIRA, R. C. de. Caminhos da
<https://periodicos.ufrn.br/mneme/article/vie identidade: Ensaios sobre etnicidade e
w/ 278/254>. Acesso em: 12 dez. 2016. multiculturalismo. São Paulo: Unicamp;
Brasília: Paralelo 15, 2006.
BEZERRA, D. B.; LEBEDEFF, T. B. Velhice,
Identidade e Memória: Diálogos entre saúde e POLLAK, M. Memória, Esquecimento,
cultura a favor da manutenção de identidades. Silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v.
2, n. 3, 1989.
Cadernos do tempo presente, São Cristóvão:
SE, n. 13, jul. 2013. Disponível ______. Memória e Identidade Social. Estudos
em:<http://www.seer.ufs.br/index.php/tempo/ históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.
art icle/view/2671/2304>. Acesso em: 07 jan.
PORTELLI, A. Ensaios de história oral. São
2017.
Paulo: Letra & Voz, 2010.
BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças
WEBER, R; PEREIRA, E. M. Halbwachs e a
de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Memória: contribuições à história cultural.
Letras, 1994.
Revista Territórios e Fronteiras. Mato Grosso,
CANDAU, J. O Jogo social da memória e da v. 3, n. 1, 2010.
identidade: transmitir, receber. In: ______.
Memória e identidade. São Paulo: Contexto,
2012. Recebido em 2017-05-11
Publicado em 2018-02-05
COSTA, H. M. R. B. Desafio da vida: trabalho,
velhice e memória. Revista Em Pauta. Rio de
Janeiro, v. 7, n. 25, jul. 2010. Disponível em:
<http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/r
ev istaempauta/article/view/2890>. Acesso
em: 12 fev. 2017.
DAHRENDORF, R. A lei e Ordem. São
Paulo: Itn, 1987.
DELGADO, L. A. N. História oral memória,
tempo e identidades. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.
FREITAS, M. C. de.; QUEIRÓZ, T. A.;
SOUSA, J. A. V. de. O significado da velhice
e da experiência de envelhecer para os idosos.
Revista da Escola de Enfermagem da USP,
São Paulo, v. 44, n. 2, 2010. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/reeusp/article/vie
w/ 40555/43680>. Acesso em: 18 jan. 2017.
LE GOFF, J. Memória. In: ______. História e
Memória. Campinas, SP: Editora Unicamp,
1990.
MOTA, K. M. S.; PEREIRA, A. S.;
RODRIGUES. E. O. S. Leituras
Compartilhadas, Memória e Envelhecimento.
Revista da FAEEBA: educação e
contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, jan.

67

Você também pode gostar