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Um dos paradoxos da vida moderna é o facto de estarmos tantas vezes irrequietos e ao mesmo

tempo aborrecidos – por um lado não temos energia para fazer nada, mas por outro queremos
estar permanentemente estimulados. Poderíamos falar de estudos e estatísticas, mas basta
contemplar a realidade, à nossa volta e dentro de nós: por um lado, inquietação, ansiedade,
incapacidade de concentração e atenção; por outro, indiferença, apatia, letargia, desânimo,
melancolia e depressão.

A disposição não é nova, e já veremos quão antiga ela é, mas é mais ou menos rara nos países
‘primitivos’, e por outro lado e sem surpresa, absolutamente pandémica nos países
‘desenvolvidos’, transversal a todas as faixas etárias e a todas as classes sociais – e parece ter
encontrado na última década o seu perfeito e mortífero veículo no smartphone. Acompanhando-
nos para todo o lado, o smartphone é sempre uma fuga, uma cura temporária para o
aborrecimento, e simultaneamente um “ser” que exige atenção constante, com as suas notificações
e alarmes.

Vejam se reconhecem este cenário: está-se em família ou com amigos e, a meio da conversa, ouve-
se uma notificação e, imediatamente, todos vão verificar se foi o seu aparelho que a deu, e o que
tem para dizer – como os cães a salivar quando ouvem a campainha (que muitas vezes é mesmo o
som por defeito das notificações – sem dúvida que não uma coincidência). Ainda não nos
aconteceu ser alguma vez um assunto de vida ou morte, que não podia esperar para ser visto mais
tarde. E muitas vezes, a notificação, sendo apenas uma, faz com que o visado acabe por ver mais
uma ou outra coisa na sua rede social de preferência, não vá perder um ou outro post de extrema
importância.

Outro cenário: também em família ou com amigos, acontece que a conversa chega a um ponto em
que esmorece, ou é preciso levantar a mesa e ir buscar os cafés, e fatalmente, um, dois, três ou
todos os que ficaram para trás, em vez de começar uma nova conversa, ou de simplesmente lidar
com o silencio, imediatamente sacam do seu smartphone, abrem uma rede social e lá vão mexendo
o dedinho, percorrendo a timeline de post em post. Tais cenários são puramente reactivos, quase
inconscientes. Quando voltam à vida, perguntamos se trazem alguma coisa de relevante da
experiência? Não, mas ao menos ‘passaram o tempo’.

Esta ideia de passatempo, uma actividade sem outro propósito que não ocupar a mente e as mãos
com qualquer coisa, é certamente muito moderna. Os passatempos começaram por ser um
privilégio dos reis absolutistas, que já não tendo as funções dos tempos feudais (ou tendo só em
teoria, mas na prática tendo toda uma burocracia para as cumprir), acabavam com tempo livre nas
mãos e na mente, e assim inventaram actividades que as ocupassem. Só no Século XIX, e pouco a
pouco, o ‘tempo livre’ e a ideia do passatempo começaram a penetrar a vida de todos, e na sua
grande maioria ligados a inovações tecnológicas. Primeiro, de forma indirecta: Neil Postman
demonstra, por exemplo, como o telégrafo, permitindo enviar mensagens a grandes distâncias,
apagou a informação como incorporada e local e deu origem às notícias modernas (sobre assuntos
e eventos irrelevantes para a nossa vida) e ao acumular de factos e curiosidades que não enformam
nenhuma acção na vida real – e como isso levou, por fim e por exemplo, à invenção das palavras
cruzadas e de outros jogos do género (sendo que um dos mais famosos do último século se chama,
aptamente, Trivial Pursuit – que se pode traduzir como ‘busca de trivialidades’).

Depois veio a rádio, e depois ainda a televisão: cansado do dia de trabalho, um trabalho que em
geral não aprecia, nem o edifica, onde é apenas um autómato e para o qual não nasceu, o
trabalhador deixa-se cair no sofá e liga o rádio ou a televisão, e deixa-se levar pelos sons e imagens.
Passando de canal em canal, prestando atenção particular a nenhum, passam-se umas horas até ir
dormir. E finalmente, chegámos a um ponto de tal ubiquidade e distração tecnológica, que o
smartphone, essa pequena ‘televisão’, nos acompanha para todos os lados, permitindo que
ocupemos cada pequeno momento intermédio, cada silêncio – e hoje não é incomum uma pessoa
ter a televisão ligada e ao mesmo tempo mexer no telemóvel, e se lhe perguntarem o que viu em
qualquer um dos dois provavelmente não sabe dizer; estava só a passar o tempo.

Esta condição de aborrecimento e distração, como dissemos, não é nova – mas pelo contrário é um
dos pecados mortais. Antes da era moderna tinha um nome específico, entretanto esquecido, tal
como o próprio pecado: Acédia. Eventualmente este pecado foi reunido com o pecado da Preguiça,
e com isso infelizmente esquecemos a palavra e o conceito que melhor descreve a situação do
homem moderno, o pecado que todos nós cometemos e nem damos por isso, até porque essa
dimensão de não nos apercebermos, faz parte do pecado em si. E embora tenha um elemento de
preguiça, vai além desta, sendo então esse estado paradoxal de inquietação e aborrecimento, de
ansiedade e letargia, de distração e necessidade de estímulo constante – podendo assim dizer-se
que a preguiça é uma manifestação da Acédia, em vez do contrário.

O Pai do Deserto São João Cassiano, fundador do monasticismo Ocidental, escreveu um livro (Da
instituição do Monasticismo) de instrução para o estabelecimento de mosteiros baseado nas suas
experiências das comunidades monásticas do Oriente. A parte final do seu livro lida com ‘as oito
falhas principais’ – que mais tarde na tradição Ocidental seria codificada nos Sete Pecados Mortais
(com a incorporação da Acédia e da Melancolia no singular Preguiça).

Embora o livro seja escrito para a vida monástica e as suas particularidades, os exemplos e
descrições são bastante aptos e certeiros, e neles podemos ver precisamente as características desta
disposição perene da modernidade, e como este pecado é, por um lado, completamente transversal
à nossa experiência no mundo hipertecnológico e, por outro, que passa completamente
despercebido.

São João diz-nos que a Acédia «produz antipatia pelo lugar, nojo com a cela, e desdém e desprezo dos
irmãos que moram com ele ou perto dele (…) torna o homem preguiçoso e lento para todo tipo de trabalho que
deve ser feito dentro do recinto de seu dormitório» e que o monge afectado «imagina que nunca estará bem
enquanto permanecer naquele lugar, a menos que ele saia dali o mais rápido possível (…) olha em volta
ansiosamente para um lado e para o outro, e suspira porque nenhum dos irmãos vem vê-lo, e muitas vezes
entra e sai de sua cela, e frequentemente olha para o sol, como se ele demorasse muito para se pôr, e então uma
espécie de confusão irracional da mente toma posse dele como uma escuridão imunda e o torna ocioso e inútil
para todo o trabalho espiritual, de modo que ele imagina que nenhuma cura para um ataque tão terrível pode
ser encontrada em nada, exceto visitar algum dos irmãos, ou o consolo do sono.»

Não vemos aqui uma perfeita descrição da inquietação moderna, da sua necessidade de estímulo
constante, do olhar uma e outra vez para o ecrã à espera que caia uma mensagem, uma notificação
ou ‘like’, e também da sua obsessão com turismo e viagens, com ‘sair de casa’ e ‘fazer alguma
coisa’, de ‘aproveitar’ todos os minutos de quietude e silêncio e enchê-los de uma falsa actividade e
ocupação da mente?

Mas como também mencionado pelo santo monge a Acédia manifesta-se de forma dupla, no
paradoxo já mencionado no início: por um lado na inquietação que não aceita a simples
contemplação, nem o silêncio que permite a meditação e a oração; mas por outro uma indolência,
apatia e desânimo que impedem o cumprimento dos mais simples deveres e obrigações, que levam
a arrastar-se pela vida e pelas tarefas, que levam à procrastinação permanente, ao mandar vir
comida através de uma aplicação em vez da preparação simples de uma refeição, ao zapping de
canal para canal e ao scrolling constante da timeline (o santo monge inclusivamente menciona que
este pecado leva a querer «acompanhar notícias e mexericos, buscar oportunidades de tagarelice e
histórias» – e não é isso que se faz nas redes sociais?), de forma que os dias passam sem realmente
fazer nada de edificante e útil.
Segundo São João «o verdadeiro atleta Cristão que deseja lutar fielmente nas listas da perfeição deve se
apressar em expulsar esta doença dos recessos de sua alma; e deve lutar contra esse espírito maligno de
Acédia em ambas as direções, para que não caia atingido pela tentação do sono, nem seja expulso do claustro
monástico, mesmo que sob alguma desculpa ou pretexto piedoso, e saia como que a fugir» mas, em vez disso
que «se esforce para ficar quieto; (…) não seja perturbado por rumores e notícias, que geralmente surgem dos
desejos e mexericos de pessoas ociosas, e assim perturbam os outros. E, para fazer seu próprio labor, não deve
querer ter curiosidade da ação do mundo, ou examinar a vida dos outros, nem gastar as suas forças, não em
melhorar a si mesmo e almejar a virtude, mas em depreciar seus irmãos. E trabalhe com suas próprias mãos,
como lhe encarregamos; para assegurar aquilo acima do qual ele os advertiu para não fazer; ou seja, que não
devem ficar inquietos e ansiosos com os assuntos de outras pessoas».

São João enfatiza várias vezes no seu tratamento da Acédia a necessidade não só do trabalho, mas
do trabalho físico, ‘com as mãos’ e usa várias passagens Bíblicas para fazer o seu caso neste
sentido. É por isso curioso, e certamente não uma coincidência, que a Acédia seja tão penetrante e
transversal à experiência moderna, e que tal disposição se insinue cada vez mais à medida que a
modernidade automatiza inúmeras tarefas e destrói os trabalhos físicos.

E ainda mais curioso e também não mera coincidência, na demonologia tradicional a Acédia está
ligada ao demónio Belfegor, e não surpreendentemente esse demónio tenta os humanos
especificamente pelo meio de invenções, com descobertas científicas e realizações tecnológicas. E
assim talvez possamos olhar para todas as invenções do mundo moderno, e em especial aquelas
que ‘poupam tempo’, de outra forma que não a convencional. Porque de invenção em invenção, de
facilidade em facilidade, com cada vez mais tempo ‘poupado’, para que é ele usado? Para edificar,
para produzir, para contemplar, para rezar? Ou é apenas ‘passado’, nas redes sociais, a ver
televisão ou noutra fútil ocupação sem fruto? Da liberdade que estas invenções (que agora
podemos apropriadamente dizer demoníacas) nos ofereceram, quais são os produtos e maravilhas
que nos permitiram alcançar? Que grandes obras de arte, que grandes actos de santidade, que
grandes avanços em consciência e sabedoria, saíram de todo este tempo ‘poupado’ através das
máquinas? Ou será que, pelo contrário, poupando-nos esse tempo Belfegor estava simplesmente a
entregar-nos à Acédia, à inquietação e aborrecimento, à distração e inactividade? Por outras
palavras, que ao poupar-nos ao trabalho físico estava a dificultar-nos o trabalho espiritual?

Por fim é interessante mencionar que Belfegor é também associado ao excremento, sendo esta a sua
oferenda sacrificial, e por isso aparece em algumas representações sentado numa sanita. Com este
dado, e juntando as peças do puzzle, podemos talvez dizer então que há uma razão demoníaca
para levar o smartphone para a casa de banho. Mas seja neste ou noutro contexto, e sabendo que
este demónio nos tenta através das invenções para nos levar a um estado de indiferença e
inquietação, sejamos conscientes de todos os momentos em que somos tentados a cair na sua
armadilha e façamos um esforço para resistir a esta que é a disposição mais característica da
modernidade.

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