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O hamster fugiu do cativeiro e não houve ainda quem o encontrasse vivo, ou o cadáver, ou

qualquer pedaço, ou vestígio de seu pequenino corpo morto, ou ainda indícios de como se deu
o desaparecimento. Seu último rastro: um saco de pão que fora roído; e suspeita-se que fora
obra dele. Foi procurado como um mimo precioso, embaixo dos móveis, eletrodomésticos e
dentro de sapatos, sem sucesso. Embaixo da cama foi encontrada uma cueca suja; debaixo da
geladeira uma bolinha-de-gude; debaixo do sofá um carrinho-de-ferro; atrás do armário uma
meia sem par, mas não o roedor. Sua dona ficou triste, afinal, o havia adquirido a menos de
um mês, com dinheiro de suas próprias economias; mas isso não evitou que fosse
abandonada, não conseguiu sequer se despedir, ter um último contato, fazer-lhe um funeral,
enterrar o corpinho sem vida. Poderia ainda escolher soltá-lo, em amor verdadeiro. Será que
ele fugiu para o mato? Será que algum animal carnívoro, uma coruja...o matou? Formigas
devem estar comendo as vísceras expostas depois do atropelamento. Com a seca chegando,
como ele vai beber água? Onde ele vai se abrigar? Encontrará algum amigo? Formará uma
família? A única certeza é que ele sumiu do balde fedorento onde estava preso. Dizem que já
nasceu encarcerado. E daí? Injustamente. Que crime cometera esse desgraçado? Porque as
crianças gostam de ter animas de estimação? Quem inventou essa triste ideia de que o bicho-
homem pode ser o dono de mamíferos, aves e peixes? Cativeiro, ração e água! Mais de uma
vez o hamster encheu as bochechas com mantimentos, planejando fazer ninhos pelo mundo,
mas percebendo-se solto pareceu perdido em estranho horizonte. Coitado, passava a maior
parte do dia dormindo um sono aparentemente tranquilo, mas as noites eram de insônia
desesperadora, inteira a tentar cavar buracos e túneis; a morder desesperadamente as grades
que lhe arrebentaram os dentes; correndo alucinadamente naquela rodinha, sem sair do lugar;
e sempre a comer a mesma comida industrializada, na sua mais absoluta solidão. No pouco
tempo que ficam fora da jaula, dá angústia presenciar esses seres sendo transformados em
objetos, ora espremidos entre os dedos, ora espatifando no chão duro. Sempre tentam fugir. E
não adianta comprar gaiolas modernas, com vários compartimentos e pavimentos, repletas de
bugigangas e produtos made in China; isso gera emprego e renda para um mercado em
expansão, mas não lhes diminui o instinto libertário. De um casal desses roedores podem
nascer mais que 12 filhotes por ano. Para dar conta desse crescimento exponencial são criados
milhares de estabelecimentos por todo o mundo, onde estão à venda casinhas coloridas,
bebedouros de variados tipos, túneis, escorregadores, bolinhas, balanços, remédios,
comedouros, gaiolas, aquários; há também o serviço de prevenção de perdas, os veterinários,
os atendentes, os repositores, os operadores de caixa, os vigias; é preciso ter pessoas
preparadas, o prédio, o ar-condicionado, o frete, o estacionamento, a eletricidade e a água
potável; e enquadrar tudo no sistema, e fazer do homem também instrumento dessa
fantástica realização.

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