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A Estruturação de Atividades

Criminosas
Um estudo de caso

Cláudio Beato
Luís Felipe Zilli

Introdução se fazendo presente apenas por meio de operações


policiais pontuais, não raramente caracterizadas
Desde o início dos anos de 1990, diversos pelo uso abusivo e desproporcional da força. Em-
estudos têm se dedicado a discutir os fenômenos bora produzindo efeitos restritos e de curtíssimo
da criminalidade e da violência ligados à atuação prazo, esse tipo de estratégia vem sendo dominan-
de gangues ou grupos armados ilegais que atuam te nas últimas décadas em quase todo país, pouco
em vilas, favelas e bairros pobres de periferia dos contribuindo para quebrar o extenso domínio que
grandes centros urbanos brasileiros (Misse, 1997, os grupos criminosos locais mantêm sobre amplas
2008; Abramovay et al., 1999; Amorim, 2006; parcelas do território das favelas.
Barcellos, 2003; Beato et al., 2001; Leeds, 1998; O confronto através de escaramuças, realiza-
Paes Manso, 2005; Sá, 2011). Talvez o caso mais do de forma pontual, descontinuada e sem a com-
emblemático deste problema possa ser observado plementaridade de outros tipos de ação, sempre
na região metropolitana do Rio de Janeiro, com se mostrou extremamente ineficaz. Produziu um
cidades que se notabilizam por ter largas faixas de número elevadíssimo de vítimas, inclusive entre a
seus territórios ocupadas por grupos criminosos população civil dessas localidades, contribuindo
armados. para a consolidação de um forte sentimento de
Nessas comunidades, o Estado enfrenta mui- hostilidade e ressentimento em relação às forças po-
tas dificuldades para se estabelecer, quase sempre liciais dentro das comunidades pobres brasileiras.
Artigo recebido em 27/10/2011 Do próprio ponto de vista da retomada do controle
Aprovado em 23/03/2012 territorial por parte do Estado, esse tipo de iniciati-
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va sempre apresentou alcance muito limitado, com damentadas na ideia de que somente intervenções
desdobramentos deletérios e corrosivos nas relações sociais profundas poderão alterar as condições para
entre grupos criminosos, comunidade e forças po- que o Estado se assente de forma permanente. O
liciais, estendendo-se, inclusive, às organizações de conflito puro e simples só atuaria de maneira palia-
representação da população e diversos outros ór- tiva, sem maiores consequências para as alterações
gãos de defesa de interesses (Beato, 2010; Dowd- das condições de segurança nesses locais.
ney, 2003; Leeds, 1998; Machado da Silva, 2010; Curiosamente, esta tese encontrou (e ainda
Misse, 1997; Zaluar, 1996). encontra) defensores entre diversos escalões da se-
Desde os anos 2000, no entanto, tem sido pos- gurança brasileira, apoiando-se no argumento de
sível observar, em algumas metrópoles brasileiras, que “a polícia deveria entrar nestes locais somen-
tentativas isoladas de mudança deste paradigma de te após os programas sociais”. Intervenções recen-
intervenção estatal/policial. Em Minas Gerais, no tes lançadas pelo governo federal por intermédio
Ceará e no Rio de Janeiro, por exemplo, a aloca- do Programa Nacional de Segurança Pública com
ção de grupamentos fixos de policiais em regiões Cidadania (Pronasci) caminham nesta direção, ao
com altos índices de criminalidade violenta1 parece alocar grande massa de recursos em projetos de re-
constituir um investimento em modos mais per- ordenação urbana, construção de unidades habita-
manentes e comunitários de intervenção (Veloso e cionais, programas de ocupação e envolvimento de
Ferreira, 2007; Souza, 2008). contingentes de jovens através de bolsas e recursos
De modo geral, as tentativas de mudar o para- aplicados nos locais de risco. Esse tipo de argumen-
digma das intervenções pontuais buscam desenvolver to, no entanto, não consegue explicitar como se
formas de ocupação mais estáveis, principalmente do restabelecem as condições de ordem minimamente
ponto de vista das relações com as comunidades as- necessárias para que ações sociais ocorram de ma-
soladas por grupos armados ilegais. Tais intervenções neira efetiva e continuada.
têm ocorrido a partir de unidades policiais alocadas Cabe observar que vários aspectos cruciais
de forma permanente e continuada em favelas vio- deste debate entre reformistas sociais e adeptos de
lentas, utilizando agentes com perfil mais comunitá- ações repressivas ainda permanecem obscuros. Tal-
rio e de melhor inserção nesses locais. vez esta seja a razão para a baixa efetividade obser-
Trata-se de um receituário bastante conheci- vada nas ações empreendidas. De um lado, ainda
do e recomendado por especialistas em segurança parece haver pouca clareza sobre quais seriam os
pública que reconhecem a necessidade de legiti- mecanismos e as práticas a serem utilizados para
mação das ações de defesa social em relação ao garantir a legitimidade das intervenções de enfren-
público alvo de sua atuação. Ao longo dos pró- tamento, assegurando a ocupação de comunidades
ximos anos, devemos assistir a uma série de ava- historicamente violentas ao longo de períodos mais
liações sobre a consistência dos resultados obtidos extensos. De outro, como garantir que ações sociais
por tais iniciativas. De antemão, o que é possível não sejam solapadas pela ação de grupos de crimi-
adiantar é que parece não se tratar de orienta- nosos locais em diversas regiões do país?
ções genéricas e descontextualizadas. Justamente Em outras palavras, trata-se de investigar quais
por isso, precisam sempre ser avaliadas de acordo seriam as condições necessárias ao desenvolvimento
com especificidades e dinâmicas locais (Carvalho, de uma base de confiança que asseguraria as con-
2011; Marinho, 2011). dições permanentes de ocupação, seja do ponto de
O que se sabe é que as muitas décadas de au- vista das ações sociais, seja das ações de restauração
sência de políticas sistemáticas e continuadas de re- da ordem. Numa perspectiva mais ampla, cabe ainda
tomada permanente dos territórios e os altíssimos a indagação acerca das implicações que esse tipo de
índices de letalidade das incursões policiais nas ambiguidade, presente em várias situações de inter-
favelas brasileiras fizeram com que diversos seg- venção, tem para a formulação de uma política de
mentos sociais condenassem as ações de confronto. segurança pública nacional, bem como para seus
De maneira geral, tais críticas encontram-se fun- desdobramentos regionais e locais.

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Tomemos como exemplo o fenômeno da vio- seus contornos são centrais para o estabelecimento
lência no Rio de Janeiro, com facções, grupos ar- de estratégias eficazes de controle da criminalida-
mados ilegais e milícias ocupando largas faixas do de violenta (Beato, 2010).
território urbano. Seria o problema carioca um caso
sui generis? Ou ele estaria apenas antecipando parte
de um processo que estaria ocorrendo em outros Metodologia
centros urbanos brasileiros? A exuberância das ce-
nas de violência protagonizadas pelos grupos ar- Para discutir tais questões, exploraremos os
mados no Rio de Janeiro e a deterioração de certas resultados de um trabalho de pesquisa realizado
comunidades seriam exemplos de dinâmicas que ao longo de três anos, sobre a atuação de gangues,
potencialmente estariam ocorrendo em outras cida- facções e grupos criminosos armados nas cidades
des devido à atuação de fatores similares? Mantidas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. No Rio de
todas as condições presentes, o fenômeno ampla- Janeiro, realizou-se um trabalho de campo etnográ-
mente estudado, conhecido e observado nas favelas fico durante o ano de 2008, em duas comunidades
do Rio de Janeiro poderia se replicar em outras áre- historicamente assoladas por um conflito entre as
as metropolitanas? facções Comando Vermelho (cv) e Terceiro Co-
Este artigo defende a tese de que, a despeito mando Puro (tcp). Durante a pesquisa de campo,
de uma série de especificidades históricas, socio- foram feitas diversas entrevistas em profundidade
econômicas, culturais e criminais assumidas por com moradores locais, além de observações sobre
cada contexto, parece haver uma estrutura co- as implicações desse conflito para a vida dessas co-
mum, passível de ser identificada, nos processos munidades.2 Além disso, realizou-se uma extensa
de estruturação de atividades criminosas em curso pesquisa bibliográfica em arquivos de jornais que,
em diversas regiões do país. Além disso, explora- durante as últimas décadas, retrataram a história da
remos também as principais características desses violência nas localidades em questão.
processos e como eles se manifestam na dinâmica Em Belo Horizonte, por sua vez, foram reali-
dessas localidades. zadas quarenta entrevistas em profundidade com
Na realidade, por mais avessos que alguns de adolescentes e jovens com forte trajetória de envol-
nossos policymakers sejam a discussões abstratas e vimento com gangues e grupos criminosos armados
conceituais, temos aqui uma questão teórica de que atuam em favelas da região metropolitana. As
fundo: pensando no binarismo que historicamen- entrevistas foram realizadas dentro de unidades de
te sempre caracterizou as políticas de segurança internação administradas pela Secretaria de Estado
pública no Brasil (reformistas sociais, de um lado, de Defesa Social (seds), mediante autorizações
adeptos de ações repressivas, de outro) quais se- concedidas pelo Ministério Público e pelo Juizado
riam as bases conceituais a serem levadas em con- da Infância e da Juventude de Minas Gerais.
sideração na hora de sustentar a opção por um Por fim, também utilizamos diversos rela-
tipo ou outro de intervenção? Não se trata de um tórios de pesquisa etnográfica produzidos pelo
exercício acadêmico, mas de tornar mais claras as Centro de Estudos de Criminalidade e Seguran-
variáveis relevantes para intervenção em situações ça Pública (Crisp/ufmg) entre os anos de 2005
de ocupação territorial e de predomínio de crimes e 2009, referentes à atuação de gangues e grupos
graves em comunidades pobres. Seriam estratégias armados em onze favelas da região metropolitana
de dissuasão e enforcement, muitas vezes em con- de Belo Horizonte (rmbh). Originalmente, esse
tradição flagrante com preceitos de direitos huma- material foi produzido com o objetivo de subsi-
nos, suficientes para o restabelecimento da ordem diar a implantação de um programa de controle
nestes locais? Ou devemos relegar as questões rela- de homicídios desenvolvido pelo governo do es-
tivas a processos de restauração da ordem para um tado de Minas Gerais, denominado “Fica Vivo!”.
segundo plano, em favor de programas de desen- De todo modo, os relatórios constituem um inte-
volvimento local? Esse debate é bastante atual e ressante acervo etnográfico sobre os processos de

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estruturação de atividades criminosas e a atuação é que, já na sua origem, parecem ser comunidades
de gangues e grupos armados em territórios de com baixa capacidade de regulação e controle social
alta vulnerabilidade social da rmbh. do que ocorre em seu interior (Abramovay et al.,
Acredita-se que os dados levantados permitirão 1999; Adorno, 2002; Andrade, 2007; Maricato,
conferir uma orientação empírica mais sistemáti- 2003). Em muitos casos, o resultado posterior é o
ca ao debate, bem como sugerir alguns aspectos de surgimento de territórios potencialmente vulnerá-
ordem conceitual a serem adotados para elaboração veis à estruturação de atividades criminosas locais,
de políticas públicas. Não exploraremos outros fato- protagonizadas por gerações de jovens que crescem
res igualmente relevantes, como as características de sem supervisão e controle, envolvidos em grupos
nossa legislação ou a influência mais detalhada que delinquentes ou gangues (Sampson, 1997; Ramos,
nosso sistema prisional exerce, a não ser nos aspectos 2009; Rubio, 2007).
mais imediatamente relevantes. Iremos nos restringir Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
a esboçar um modelo dinâmico de estruturação de esse processo foi vivenciado com muita intensida-
atividades criminosas de gangues, cujos elementos de durante a segunda metade da década de 1930,
podem fornecer subsídios para uma compreensão principalmente em função da implementação do
mais abrangente do problema. novo Código de Obras do município, instrumen-
to que tentava normatizar a questão das moradias
irregulares, cortiços e favelas. A nova lei provocou
Contexto urbano e dinâmicas criminais uma grande reorganização na estrutura urbana flu-
minense, realocando áreas de moradia para popula-
No Brasil, ainda são poucos os estudos dedica- ções carentes e dando origem a muitas das favelas
dos a reconstituir a história de comunidades asso- que hoje existem na cidade:
ladas pela violência (Barcellos, 2003; Alvito, 2001;
Araújo e Sales, 2008; Zilli, 2004; Silveira, 2007). O Código de Obras da cidade, de 1937, regis-
Mais raros ainda são aqueles que se propõem a tra com precisão a situação marginal das fave-
destacar os traços comuns entre elas. Entretanto, las: por serem consideradas uma “aberração”,
existem muitos elementos recorrentes: algumas co- não podem constar no mapa oficial da cidade;
munidades surgem em virtude de reassentamentos por isso, o código propõe sua eliminação, pelo
efetivados pelo poder público, que desloca grandes que também tornava proibida a construção de
contingentes populacionais de diferentes origens novas moradias, assim como a melhoria das
para uma mesma localidade. Outras emergem em existentes. E para solucionar o problema suge-
virtude de reutilização de velhas fazendas situadas re a construção de habitações proletárias “para
nos antigos limites das grandes cidades e que, com serem vendidas a pessoas reconhecidamente
a expansão urbana, se transformam em zonas de pobres”. Da orientação do Código de Obras
moradia para populações de baixa renda. Conjun- surgirá a experiência dos parques proletá-
tos habitacionais surgem para solucionar problemas rios, efetivada no início dos anos 40 (Burgos,
de moradia e inadvertidamente acabam se tornando 2004, p. 27).
palco de graves problemas de segurança. Terrenos
públicos e particulares são invadidos e aguardam A mesma lógica de crescimento desordenado e
uma solução definitiva que nunca se concretiza pela ocupação precária e irregular dos territórios também
omissão de gerações de administradores públicos. pôde ser observada em outras regiões do país. A re-
Em todos os casos há o desenvolvimento de gião metropolitana de Belo Horizonte (rmbh),
áreas que ocupam posição difusa no espaço urbano, por exemplo, vivenciou um dos maiores e mais in-
por serem muitas vezes fruto de uma realocação que tensos processos de urbanização e adensamento po-
deveria ser temporária, ou por ser a junção de pes- pulacional da história recente do Brasil: entre 1950
soas das mais diversas origens sem muita orientação e 2010, a população da rmbh decuplicou. De cer-
normativa ou valorativa em comum. O resultado to modo, pode-se dizer que boa parte desse proces-

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so seguiu uma lógica semelhante àquilo que Mike A relação entre habitat e violência é dada pela
Davis (2006) define como “favelização”. Durante segregação territorial. Regiões inteiras são
os anos de 1960, 1970 e 1980, parte significativa ocupadas ilegalmente. Ilegalidade urbanísti-
do crescimento e da ocupação das periferias urba- ca convive com a ilegalidade na resolução de
nas da rmbh deu-se por meio do surgimento de conflitos: não há lei, não há julgamentos for-
favelas, conjuntos habitacionais populares e outros mais, não há Estado. À dificuldade de acesso
assentamentos irregulares, que passaram a concen- aos serviços de infraestrutura urbana (transpor-
trar partes expressivas da população, a despeito da te precário, saneamento deficiente, drenagem
área territorial relativamente pequena que ocupam.3 inexistente, difícil acesso aos serviços de saúde,
Em comum, teremos situações que deveriam educação, cultura, creches, maior exposição à
ser provisórias eternizando-se, levando a uma aco- ocorrência de enchentes e desabamentos) so-
modação informal crescente dos espaços urbanos mam-se menores oportunidades de emprego,
disponíveis. Esse tipo de conformação local leva ao maior exposição à violência (marginal ou poli-
acirramento das disputas fundiárias, domésticas e cial), difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso
interpessoais, em função da não implementação, ao lazer, discriminação racial. A exclusão é um
nessas comunidades, de regras, instâncias e institui- todo: social, econômica, ambiental, jurídica e
ções que se traduzam em meios de resolução pacífi- cultural (Maricato, 2003, p. 1).
ca de conflitos e provisão democrática dos serviços
de justiça. Muitas vezes, a ilegalidade como refe- As complexas relações entre contextos de exclu-
rência inicia-se a partir de uma iniciativa governa- são social, dinâmicas de associativismo e práticas de
mental que, posteriormente, induz à formação de violência podem ser observadas no caso específico
estratégias informais de ocupação e invasão. das duas comunidades que serviram como campo
Misse (2008), por exemplo, observa os efeitos de estudo para este trabalho. Ambas surgiram de
perversos que este processo de desenvolvimento um grande assentamento que tinha caráter provisó-
urbano excludente projetou sobre o fenômeno da rio e que, com o passar dos anos, se tornou solução
violência no Brasil. Segundo o autor, nem mesmo definitiva. Essa conformação dividiu a história das
a retomada democrática dos anos de 1980 teria se comunidades em duas fases: a primeira, que pode
mostrado capaz de preencher lacunas deixadas pelo ser chamada de “remoção”, na qual famílias mora-
processo civilizador brasileiro, cuja expressão atual doras de outras favelas da cidade foram assentadas
ainda se mostra muito atrelada a formas tradiciona- nas áreas de um aterro. Essa fase, ainda no início dos
listas e extrajudiciais de resolução de conflitos. Em anos de 1940, foi patrocinada pela prefeitura muni-
muitos territórios de ocupação irregular e precária, cipal do Rio de Janeiro, inclusive através da cessão
as mensagens emitidas parecem ser claras: parâme- de madeira para as famílias construírem suas mo-
tros normativos legais são relativos. Seja pela ausên- radias provisórias. O segundo momento, que pode
cia de mecanismos adequados de implementação e ser definido como o da “invasão”, se deu já no início
fiscalização da lei, seja pela conivência consentida da década de 1950, quando as famílias já instaladas
com uma situação social iníqua, o resultado é que perceberam a inoperância do Estado e começaram a
as regras parecem não valer. construir moradias definitivas. Além disso, também
Em alguns casos, esse contexto leva à desorga- foi nessa época que os primeiros moradores começa-
nização em termos de mobilização social e à inca- ram a trazer amigos e outros familiares para ocupar
pacidade de exercer controles sociais efetivos nas as áreas que ainda estavam vagas.
áreas afetadas. Além disso, as origens diversas dos Nessas comunidades, o vácuo de planejamento
grupos que ocupam alguns desses locais levam a terminou conferindo características bastante pecu-
que, já em suas origens, se estabeleçam conflitos e liares às dimensões de associativismo. Segundo de-
tensões latentes por questões comunitárias que, fre- poimentos de moradores mais antigos, a completa
quentemente, iniciam ciclos de violência e disputa ausência do poder público durante o processo de
entre os moradores. constituição da comunidade fez com que os recém-

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-chegados tomassem para si a responsabilidade de o seu e ir embora. Moro aqui há muitos anos
promover as primeiras benfeitorias na favela, ain- e posso falar de cadeira que a comunidade é
da em meados da década de 1950. Já no início da desunida, desmobilizada e dispersa [Moradora
década seguinte, a Associação Comunitária local local].
passou a ser uma instância de representação e inter-
locução junto à administração pública municipal, Em ambas as favelas, as associações comunitá-
fazendo com que, ao longo dos anos, a comunidade rias parecem constituir instâncias legítimas de in-
passasse a ter iluminação pública regulamentada, termediação entre moradores, poder público mu-
saneamento básico, coleta de lixo, ruas pavimenta- nicipal e iniciativa privada. Com base em registros
das e outros serviços básicos. Curiosamente, no en- confeccionados pelas associações de moradores, a
tanto, o mesmo associativismo que garantiu tantas prefeitura do Rio de Janeiro realiza o controle da
benfeitorias e melhorias na configuração urbanísti- situação fundiária e imobiliária das comunidades.
ca das comunidades não se traduziu em mecanis- No entanto, o fato de encontrarem-se instaladas em
mos de controle de conflitos e da violência local. ambientes marcados por extrema violência e en-
frentamentos entre grupos armados acarreta ambi-
guidades insolúveis para essas entidades. Exemplo
Capital social e mecanismos de controle disso pode ser observado na fala de praticamente
todos os entrevistados, que afirmaram de maneira
Isso nos conduz a uma interessante indaga- categórica que as associações se vêem obrigadas a
ção de natureza teórica: em que medida variados manter uma “política de boa vizinhança” com os
graus de “capital social” efetivamente se traduzem criminosos locais, fundamentada na ideia de que
em um processo de “eficácia coletiva” (Sampson e uma instância não interfere nos negócios da outra.
Raudenbush, 1999)?4 A literatura que trata deste Ainda assim muitos são os relatos sobre ingerências
tema tem ressaltado que nem sempre o fato de exis- dos criminosos nas atividades das associações co-
tirem formas associativas e intensa mobilização se munitárias.
traduz em formas de controle em seu interior. Du- Nesse sentido, a pesquisa de campo reforçou
rante a realização do trabalho de campo em duas os achados de Leeds (1998), segundo os quais, em
favelas do Rio de Janeiro, foi possível observar que territórios assolados pela violência de grupos crimi-
ambas são atendidas por uma série de instituições nosos, os mecanismos de representação política e
que prestam serviços comunitários. Com a ajuda de associativismo comunitário acabam sendo con-
de organizações não governamentais, os moradores taminados pelos interesses das gangues. Enquanto
têm acesso a trabalhos de inclusão produtiva, gera- as associações de moradores parecem barganhar seu
ção de renda, produção cultural, terapias ocupacio- apoio político nas esferas públicas em troca de fa-
nais, inclusão digital, entre outras atividades. vorecimentos pessoais e da realização de obras, os
Não obstante, as entrevistas realizadas permi- traficantes tomam para si o direito de autorizar ou
tem inferir que essa rede social local possui graves vetar a realização de determinadas campanhas polí-
problemas de articulação. De acordo com todos os ticas nas comunidades.
depoimentos, cada instituição realiza seu trabalho
de maneira isolada, sem estabelecimento de parce- Durante muitos anos, enquanto a favela x era
rias ou sequer a realização de trabalhos conjuntos Comando Vermelho, os políticos que queriam
em caráter eventual. Nas palavras de uma moradora: fazer campanha na comunidade tinham que
pagar uma taxa ao “dono” da favela [chefe do
O que mais me irrita é que tem um monte de tráfico local]. Na eleição passada, eles estavam
gente que faz trabalhos aqui na comunidade, cobrando R$3.000,00 para um candidato a ve-
mas cada um só é capaz de ver o seu próprio reador poder fazer campanha ali. Na favela y,
problema. Ninguém conversa com ninguém o pessoal do tcp (Terceiro Comando Puro)
aqui dentro, cada um só quer saber de fazer obrigava os candidatos a distribuir cestas básicas

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para os moradores. Agora que a favela x tam- dições de provimento de justiça são precárias. Nem
bém é tcp, quando tem candidato querendo sempre locais deteriorados são violentos, mas locais
fazer campanha, eles mandam fazer o acerto violentos sempre são deteriorados.
com a associação [Morador de uma das favelas]. A estruturação rápida e desordenada de espaços
urbanos e a falta de planejamento para provimento
Apesar de essa descrição se referir especifica- de bens de serviços básicos vêm somar-se à preca-
mente às duas comunidades estudadas por nós no riedade de naturezas diversas no âmbito da mobi-
Rio de Janeiro, ela também poderia ser utilizada lização da população, criando ambientes potencial-
para, em maior ou menor grau, falar sobre o co- mente propícios para a estruturação de atividades
tidiano de inúmeras localidades brasileiras domi- criminosas (Reiss, 1986; Sampson e Raudenbush,
nadas por grupos armados ilegais ou gangues. O 2001; Savenije et al., 2007).
problema adquire contornos ainda mais comple- A par das condições sociais deterioradas, estão
xos se adicionarmos o elemento comum de uma também a presença rarefeita da justiça e das organi-
atuação policial historicamente predatória, com zações encarregadas de implementá-la localmente.
episódios recorrentes de achaques, extorsões, bruta- Mediação de conflitos ou simples presença das po-
lidade, violência e extermínio praticados por agen- lícias são eventos raros e geralmente ocorrem quase
tes públicos. E este é um ponto importante a ser que exclusivamente para atender casos consumados
destacado, porque tais ações terminaram minando de homicídio. Esta é uma das dimensões da desi-
quaisquer possibilidades de se estabelecer uma co- gualdade muitas vezes negligenciadas pelas análises
laboração positiva entre as organizações policiais e sobre a provisão de serviços públicos: a desigual-
a comunidade. dade na provisão do bem público da justiça e da
segurança pública.
Aspectos sociais também contribuem para esta-
Genética dos ciclos de violência belecer as condições de eclosão da violência. Famí-
lias desestruturadas, gravidez precoce, pouco tempo
Um dos aspectos mais notáveis em episódios em escolas, além do alcoolismo e da drogadicção
de guerras entre gangues e grupos criminosos é que criam igualmente o contexto para o surgimento de
motivos banais podem ensejar uma infindável his- gerações de jovens com baixo grau de supervisão,
tória de vinganças, retaliações, vendetas, conflitos e cujos familiares têm limitado controle sobre seus
chacinas de toda a sorte. Ao longo de todo trabalho comportamentos (Strocka, 2006; Zaluar, 2004).
de pesquisa, foram colhidos diversos relatos sobre Nesse sentido, o envolvimento com gangues termi-
como alguns dos grandes conflitos entre grupos ar- na por fornecer a alguns jovens muito do amparo e
mados tiveram início a partir de episódios isolados referência de que necessitam, bem como a proteção
de rivalidade entre indivíduos (alguns sem histó- contra a violência de gangues de outras localidades.
rico de envolvimento com atividades criminosas). Em territórios historicamente violentos, mar-
A emergência de conflitos comunitários não é cados por baixa consolidação normativa e quase
exclusividade de comunidades ou vizinhanças ca- nenhuma provisão democrática dos serviços de jus-
racterizadas por alta concentração de desvantagens. tiça, episódios de agressões, desavenças e toda sorte
No entanto, é inegável que tais questões tendem a de conflitos adquirem características de problema
adquirir contornos mais violentos em localidades privado, devendo ser resolvido sem a interveniên-
onde os bens de justiça e outras formas legítimas de cia de autoridades públicas e, em muitos casos, por
resolução pacífica de conflitos não se encontram de- meios violentos (Paes Manso, 2005). Respeitabi-
mocraticamente disponíveis (Beato et al., 2003; Bea- lidade e proeminência também podem ser arrola-
to, 2010; Silva, 2004; Zilli, 2004; Hagedorn, 2008). dos como mecanismos de atração que esse tipo de
Portanto, isso não significa que a exclusão social seja grupo exerce sobre jovens de comunidades tradi-
responsável pelo início de ciclos de violências, mas cionalmente violentas (Warr, 1987; Decker e Van
que estes ocorrem preferencialmente quando as con- Winkle, 1996; Zilli, 2004).

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Esses aspectos indicam a importância de se envolvidos na transição entre os diferentes estágios


compreender os processos de estruturação de ativi- de estruturação identificados.
dades criminosas em favelas brasileiras não apenas
a partir das formas de organização e das estruturas
impostas às gangues locais pela sua lida no tráfico Primeira fase: conflitos e crime desorganizado
de drogas, mas também a partir de aspectos sub-
jetivos e simbólicos inerentes ao próprio processo Parece haver um padrão recorrente de emer-
de pertencimento aos grupos criminosos. Levar gência e estruturação de atividades criminosas em
essas questões em consideração pode ajudar a es- determinados territórios caracterizados por fortes
clarecer alguns dos motivos pelos quais determina- indicadores de exclusão e segregação socioespacial:
das comunidades passaram de uma situação inicial alguns anos após a sua conformação, localidades até
marcada por rivalidades restritas entre pequenas então invisíveis para a imprensa e para a opinião
gangues locais para configurações criminais mais pública (ou então conhecidas apenas por seus mui-
complexas, com altíssimos níveis de letalidade. tos indicadores de vulnerabilidade social) passam a
Um modelo dinâmico de estruturação de ati- se notabilizar midiaticamente por episódios espar-
vidades de gangues e de organizações criminosas sos de violência e pelas prisões de alguns supostos
pode ser utilizado como estrutura analítica básica traficantes com pequenas quantidades de drogas.
para a compreensão das dinâmicas de violência e Gradativamente, no entanto, o perfil da violên-
de criminalidade vigentes em comunidades carac- cia começa a mudar, bem como o enfoque que este
terizadas por forte concentração de desvantagens tipo de território recebe da mídia: episódios mais
(degradação urbanística/ambiental, presença pre- sistemáticos de criminalidade começam a eclodir e
cária do Estado e seus serviços, violência policial, a ganhar destaque, principalmente aqueles ligados
segregação e exclusão socioespacial, pouca ou ne- à prática de assaltos e à venda de drogas. Nas duas
nhuma provisão democrática dos serviços de jus- favelas pesquisadas, por exemplo, esse princípio de
tiça). Trata-se, portanto, de tentar compreender o recrudescimento do perfil da violência parece ter
fenômeno da estruturação de atividades criminosas acontecido em meados dos anos de 1980. Uma in-
desenvolvidas por gangues a partir de uma perspec- dicação dessa mudança pode ser vista em jornais da
tiva que procura identificar diferentes estágios de época que, além das condições de precariedade ha-
organização, seguindo sempre uma escala crescente bitacional, também passaram a noticiar o aumento
de complexidade. do número de assaltos na região, principalmente no
Obviamente, não se trata aqui de propor um entorno das comunidades.
modelo fundamentado em uma perspectiva evo- Outro componente aparentemente recor-
lutiva clássica, segundo a qual estágios se sucedem rente a esta fase diz respeito à presença cada vez
sempre de maneira linear (Morin, 2005). Dentro mais sistemática de policiais violentos e corrup-
da perspectiva dos sistemas complexos, o processo tos exercendo atividades predatórias tanto em
de estruturação de atividades criminosas vinculado relação a, quanto em conjunto com grupos cri-
às gangues desenvolve-se de maneira não linear, minosos. Ao longo de nossa pesquisa, moradores
com graus variados de complexidade, que oscilam mais antigos relacionaram o aumento dos abusos
em função de diferentes contextos internos e ex- e das práticas de corrupção policial ao recrudes-
ternos. Trata-se, portanto, de tentar compreender cimento e à complexificação das atividades cri-
o caráter de auto-organização assumido por estes minosas nas localidades.
elementos, identificando em que medida a estrutu- Este contexto criminal observado nas favelas
ração das gangues impacta os processos de estrutu- Rio de Janeiro do início dos anos de 1980 (baixa
ração de atividades criminosas e, ao mesmo tempo, complexidade das atividades ilícitas, pouca articula-
tem sua própria estrutura modificada ou impactada ção entre agentes e grupos delinquentes, bem como
pela complexificação dessas atividades. Além disso, os primeiros indícios da existência de esquemas
torna-se fundamental compreender os elementos mais sistemáticos e estruturados de corrupção e vio-

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A Estruturação de Atividades Criminosas  79

lência policial) aparece de maneira muito clara, ain- autônoma nas favelas e se envolvendo em conflitos
da hoje, nas falas de alguns jovens membros de gru- pontuais e localizados, decorrentes de questões não
pos criminosos armados entrevistados na rmbh. exclusivamente vinculadas às atividades criminosas.
Segundo os informantes, a maioria das gangues que E este parece ser o ambiente vivenciado ainda hoje
atuam nas favelas da região metropolitana de Belo em muitas favelas da região metropolitana de Belo
Horizonte ainda possui caráter estritamente territo- Horizonte.
rializado, desenvolvendo suas atividades criminosas
em pequenas frações dos aglomerados e sem neces-
sariamente qualquer articulação mais sistemática Segunda fase: competição e extinção
com grupos de outras localidades.
Se na primeira fase os contextos socioeconô-
Não é todo lugar que tem patrão não. Tem mico e ambiental parecem oferecer as condições
lugar que é mais ou menos avulso. Lá mesmo ótimas para o surgimento de grupos de jovens de-
não tem muito dono não. Eu cheguei para linquentes e para que a germinação da violência en-
um cara lá que tem as parada dele e pedi. Aí tre eles se inicie, a segunda parece ser marcada por
eu comecei a vender pra ele. [...] Vendia pó, um processo seletivo de depuração desses grupos.
pedra, tudo... Ele colocava as carga na minha Ao que tudo indica, a estruturação das atividades
mão e eu vendia. Até o dia que eu passei a criminosas em níveis mais intensos e complexos irá
ganhar meu dinheiro, aí eu passei a comprar a levar alguns grupos a tentarem se impor pela força
minha droga mesmo. [...] É porque as primei- sobre os outros, instaurando ciclos de enfrentamen-
ras vez você pega a droga deles. Aí divide o to marcados por um sem número de ações e retalia-
lucro. Depois que tem dinheiro você compra ções violentas.
a sua droga e fica lá vendendo. Cada hora um Nas favelas pesquisadas no Rio de Janeiro,
[Informante 20]. esse processo parece ter começado a tomar corpo
no final dos anos de 1980, quando teve início um
Este contexto retratado pela pesquisa de cam- período marcado por intensos conflitos e extrema
po no Rio de Janeiro e pela fala dos informantes violência entre grupos rivais. Em 1988, por exem-
ouvidos na rmbh oferece indícios de que, em plo, reportagens feitas por jornais locais noticiam
seus estágios iniciais, a estruturação de atividades o aumento da violência entre as gangues da região,
criminosas parece se pautar por uma lógica mais so- trazendo diversos depoimentos de moradores de
cietária do que propriamente econômica. O caráter ambas as comunidades. Os textos trouxeram tam-
fragmentado das atividades criminosas (desenvolvi- bém os primeiros detalhes a respeito da filiação dos
das na primeira metade da década de 1980 nas duas grupos locais às facções criminosas Comando Ver-
regiões cariocas pesquisadas e atualmente em diver- melho e Terceiro Comando, informando que esta
sas favelas da rmbh), sem controle ou articula- adesão teria recrudescido a violência nas favelas,
ção mais sistematicamente estabelecida, leva a crer com episódios mais frequentes de enfrentamentos
que muitos dos episódios de violência entre atores e armados (O Dia, 1988).
grupos locais se davam e se dão por motivos banais, O aumento dos níveis de violência entre os
movidos por infindáveis sequências de vingança e grupos segue em 1990. Neste ano, uma reportagem
conflitos localizados. fala sobre a execução de treze homens em uma das
Isso denota um processo que, em termos ana- favelas estudadas.5 Isto vem corroborar os dados le-
líticos, pode ser definido como uma espécie de pri- vantados por diversos estudos que apontam o início
meira fase de estruturação de atividades criminosas. da década de 1990 como um período de forte es-
Nas favelas pesquisadas no Rio de Janeiro, a pró- truturação dos grupos criminosos do Rio de Janeiro
pria questão do tráfico de drogas se mostrava ainda e de grande recrudescimento da violência em todas
muito dispersa até meados da década de 1980, com as maiores favelas da cidade (Misse, 2008; Zaluar,
pequenos grupos de traficantes atuando de maneira 1996; Ramos, 2009).

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Na região metropolitana de Belo Horizonte, cara da outra área e falou que a partir de agora
por outro lado, este processo de maior estruturação todo mundo só ia vender a droga dele e que
dos grupos criminosos parece ter se iniciado ape- ninguém mais ia zuar o plantão de ninguém.
nas em meados dos anos 2000. Ainda assim apenas Dava pra todo mundo ganhar muito dinhei-
em algumas poucas vilas e favelas com um histórico ro, mas os cara de lá era olho grande demais
mais antigo de violência. Na fala dos jovens entre- e não fortaleceram com ele não. E era porque
vistados, poucos são os relatos sobre conflitos arma- o patrão ia repassar o bagulho por R$17,00 o
dos e mortes motivadas exclusivamente por ques- grama e eles falava que conseguia por R$15,00.
tões relacionadas com a lida dos grupos dentro de [...] Aí o patrão mandou passar o rato [matar]
mercados ilícitos e com os processos de maior es- em todo mundo. [...] Foi por isso que ficou
truturação de suas atividades criminosas. Os casos aquela guerra lá [Informante 05].
trazidos à tona pelos informantes dizem respeito à
atuação de alguns grupos mais antigos, envolvidos Tanto no Rio de Janeiro como na rmbh, o
com dinâmicas criminais mais complexas, porém que se observa é que processos de maior estrutu-
estritamente territorializadas. ração de atividades criminosas provocam o desar-
Raros são os relatos de gangues que se associa- ranjo das antigas ordens estabelecidas, fazendo-
ram ou rivalizaram sistematicamente com grupos -se acompanhar pela utilização em larga escala de
de outras localidades para manutenção e/ou expan- armas de fogo e por mudanças na própria lógica
são de seus mercados ilícitos. Mas mesmo operan- dos conflitos. Tais aspectos, por sua vez, irão alte-
do em âmbito territorial mais restrito, é possível rar drasticamente as condições e a intensidade dos
observar que alguns grupos na rmbh orientam enfrentamentos entre os grupos. Não é exagero
sua atuação e seus conflitos pela lógica da “com- atribuir às armas de fogo a condição de principal
petição de mercado”, decorrente de processos de vetor da violência letal no Brasil nos últimos trinta
maior estruturação de suas atividades criminosas, anos (Phebo, 2005). Segundo registros do Datasus,
como se o envolvimento de um grupo com dinâmi- no período de 1980 a 2009, foram mais de 630
cas criminais mais complexas instaurasse, pelo me- mil homicídios cometidos com armas de fogo no
nos em um primeiro momento, um desarranjo das país.6 O próprio perfil das vítimas (jovens do sexo
antigas estruturas de poder local. As falas de dois masculino, pretos ou pardos, baixa escolaridade,
informantes ilustram esse processo: mortos com armas de fogo, em via pública, dentro
de vilas e favelas) indica sua forte correlação com o
Nós arrumou guerra lá com os caras lá do São problema das gangues e grupos de jovens armados.
Tomás. [...] Era troca de tiro por causa de boca Hoje é cada vez mais barato e fácil ter acesso a ar-
de fumo. [...] Os cara ia lá na nossa quebrada e mas no mercado ilegal. Com R$175,00 é possível
falava: “não quero ver vocês traficando aí não”. obter um revólver, conforme demonstra estudo de
[...] Porque senão pegava freguês deles né? [...] Rivero (2005).
Aí eles ia pra lá e falava: “vocês tão roubando A fala de um dos informantes entrevistados
nossos freguês. Se nós ver vocês vendendo aí, na rmbh ilustra bem a importância das armas de
nós vai dar tiro em vocês”. Aí teve uma vez que fogo como instrumento que viabiliza a consolida-
eles foi lá e deu tiro em nós. Aí nós foi lá e deu ção do domínio territorial e garante a segurança
tiro neles também. [...] Isso durou dois anos e dos empreendimentos criminosos e de membros
cinco mês. Morreu três que era colega meu e dos grupos.
quatro que era colega deles lá [Informante 13].
O dinheiro acaba indo pra comprar mais dro-
ga e arma, droga e arma. [...] Porque a gente
O patrão saiu da cadeia e dois dias depois a nunca sabe o dia de amanhã, né Zé? Vai que
favela já era outra. Ele e o irmão dele coloca- os cara junta lá e resolve pegar nós na “croca”
ram ordem naquela zona. Ele sentou com os [crocodilagem]. Tem que ficar trepado [arma-

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A Estruturação de Atividades Criminosas  81

Tabela 1
Estimativa de Preços de Armas de Fogo no Rio de Janeiro

Os preços das armas de fogo no mercado criminal


Preço médio mercado
Maior Preço (R$) Menor Preço (R$)
criminal (R$)
Revólver 383 667 175
Pistola 1593 2750 433
Fuzil 8559 12000 4786
Submetralhadoras e
5352 13000 3000
Metralhadoras
Fonte: Rivero (2005).

do]. Tem que ficar na atividade mesmo. Nin- decisiva no processo de maior complexificação e es-
guém fica na mão na favela não, sô. Quem fica truturação das dinâmicas criminais. Esta participa-
é porque dá mole [Informante 30]. ção tem a ver com a lucratividade do negócio das
drogas e demais empreendimentos ilícitos, e com a
Neste ponto, cabe observar um aspecto bas- atratividade que tais mercados exercem sobre este
tante interessante que caracteriza esta fase dos pro- tipo de predador.
cessos de estruturação de atividades criminosas: a Duas reações características podem ocorrer:
partir do momento em que grupos armados ou o enfrentamento ou o aliciamento de policiais.
gangues passam a se envolver em modalidades cri- Em uma das favelas pesquisadas, por exemplo, os
minosas mais complexas, tal envolvimento passa traficantes notabilizaram-se por reagir de manei-
não apenas a orientar suas formas de atuação e mo- ra muito violenta às operações e às tentativas de
dos de organização, como também provoca inevi- extorsão praticadas por grupos de policiais. Essa
táveis rearranjos nas estruturas e nas redes de poder postura combativa direcionou para a comunida-
local. Geralmente, os períodos de reorganização são de uma resposta muito mais violenta por parte da
marcados por muitos conflitos entre os grupos e polícia ao longo dos anos. No outro aglomerado,
elevação do número de mortes. por sua vez, os criminosos sempre optaram pelo
Nas favelas pesquisadas no Rio de Janeiro, o up- aliciamento de policiais corruptos como forma de
grade criminal dos grupos delinquentes locais carac- reduzir os prejuízos causados pelas investidas das
terizou-se pelo acirramento dos confrontos, sempre forças de segurança.
caracterizados pela exuberância das manifestações de Esta ambiguidade com relação à atuação cor-
força. Assassinatos em massa e enfrentamentos com rupta da polícia (mais o papel importantíssimo que
a polícia deram a tônica do período, levando para as esta dinâmica adquire dentro dos processos de es-
comunidades uma forma de domínio exercida quase truturação de atividades criminosas) também pode
que exclusivamente por meio do terror. ser observada nas favelas da rmbh. A fala de al-
Mas muito além do forte aporte de armas de guns jovens chega a sugerir uma espécie de relação
fogo, outro componente mostra-se crucial para a simbiótica entre processos de maior estruturação
compreensão desta etapa dos processos de estru- dos grupos criminosos e aumento da incidência
turação de atividades criminosas: a entrada siste- de ações corruptas e violentas por parte da polícia
mática e definitiva em cena de policiais violentos e (ainda que não seja possível identificar com muita
corruptos, personagens que terão uma contribuição clareza qual processo teria se iniciado primeiro).

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Eles até pedem. Eles falam: “R$10.000,00 pra muitos dos conflitos e dinâmicas criminais ocorri-
soltar ele”. Mas nós não pagava. Porque você dos nos anos seguintes.
paga polícia uma vez, eles acostuma e quer di- O elo que se formou entre as gangues que
reto. Aí nós preferia que levava e, na hora que atuavam nas favelas e os criminosos mantidos no
chegava na delegacia, nós conversava com a sistema prisional desempenhou, sobretudo no Rio
Civil. Porque a Civil já não tem muito disso. de Janeiro, um papel decisivo no desenvolvimento
Aí já mandava o advogado ir e o advogado já mais intenso daquilo que definimos aqui como sen-
conversava com o delegado. Já oferecia um di- do a segunda fase de um modelo de estruturação
nheiro para o delegado da Civil e nós pagava. das atividades e dos grupos criminosos. Muito do
Mesmo assim o advogado é que levava. A gente que ocorre hoje em termos de negociação para a
não botava a cara não. Aí pegava e soltava. Mas restauração da ordem e de processos de pacificação
militar, não negocio não. Porque acostuma, precisa necessariamente passar pelo interior das pri-
né? Você dá uma vez e eles quer todo dia [In- sões. Prova disso são os casos em que governos se
formante 01]. viram obrigados a negociar, no interior dos presí-
dios, o restabelecimento das condições de seguran-
Tem muita polícia corrupta, né? Tá aí pra ça nas comunidades em conflito e da cidade como
quem quiser ver. Tem polícia que pega dinhei- um todo.7
ro, tem polícia que bate... Por isso que tem Muitas das gangues de Los Angeles, ou até
quebrada que dá tiro em polícia, que joga pra mesmo as Maras salvadorenhas, apresentam carac-
cima dos polícia mesmo. Que nem eu sei que terísticas semelhantes, principalmente no que se
polícia se me pegar não vai me prender, vai me refere ao upgrade estrutural e organizacional viven-
matar. Eu vou ficar quieto esperando polícia ciado dentro do sistema prisional (Savenije et al.,
chegar? Eu não, vou sentar é o dedo mesmo. 2007; Rubio, 2007; Bing, 1991). No Brasil, grupos
[...] Tem o polícia que entra na sua casa, pega como o Comando Vermelho, o Terceiro Coman-
20 quilo de pedra e leva embora pra vender. 20 do Puro ou o pcc são os exemplos mais notórios.
quilo de pedra é dinheiro demais... Um quilo Trata-se de um período de intensos conflitos e
de pedra é R$16 mil, R$17 mil. 20 quilo faz as grande número de mortes, mas que parece tender a
conta aí. Ah, e é R$16 mil em barra, no quilo. uma acomodação natural a partir do momento em
Vendido em papelote dá muito mais. Depen- que determinado grupo se impõe sobre os demais.
dendo do lugar o cara pica direitinho, faz os Atual­mente, boa parte das comunidades em confli-
papel e faz é R$35 mil num quilo. Imagina isso to no Rio de Janeiro parece se encontrar neste nível
na mão do polícia. Ele pega na sua casa e passa de estruturação, lançando as bases que fundamen-
pra outra quebrada, na favela mesmo. Isso tem tarão aquilo que, a nosso ver, pode ser caracterizado
demais [Informante 29]. como uma terceira fase dos processos de estrutura-
ção de atividades criminosas.
Especialmente no Rio de Janeiro, toda esta
exuberância de manifestações gerou reações por
parte da sociedade. Não por acaso, a passagem da Terceira fase: mutualismo e controle de
década de 1980 para a seguinte marcou o início do mercados
encarceramento maciço de membros desses grupos,
levando ao fortalecimento e à difusão das facções A partir do momento em que há o enfraque-
no interior das prisões. Uma das funções da orga- cimento das gangues ligadas a uma determinada
nização da massa carcerária é justamente articular facção e inicia-se o predomínio dos grupos vin-
os presos em torno de interesses comuns que vi- culados à outra, consolida-se uma espécie de pro-
sam preservar a integridade física em meio violento cesso seletivo que naturalmente tende ao controle
e hostil como é o sistema prisional brasileiro. Este dos mercados ilícitos. O que caracteriza esta fase é
processo acabou tornando-se a origem e o palco de uma tentativa de minimizar conflitos entre grupos

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A Estruturação de Atividades Criminosas  83

Modelo Dinâmico de Estruturação de Atividades Criminosas

Lógica societária Lógica econômica


Contexto de Exclusão Processo Seletivo
Socioespacial Mercados e Operações Variadas
Pouca provisão de serviços Controle Difuso
de Justiça Minimização dos Conflitos
Resolução privada e
violenta de conflitos Etapas Cruciais Crime
Surgimento de Gangues e Organizado
Grupos Armados Ilegais
Globalizado
Crimes Organizando-se
em Bases Políticas
Uso mais retrito de armas
Crime Desorganizado
de fogo
em Estruturação Amplo domínio
Lideranças Comunitárias
Territorial
vs Jovens Violentos
Oferta Sistemática de
Uso Massivo de Armas
Serviços
Gangues Territoriais e de Fogo
Início de Lógica
Grupos Armados Ilegais Oferta de Serviços
mais Empresarial e
Violência Expontânea Básicos e Proteção
Mercadológica
Ausência do Poder Público Formação no Interior do
Violência Policial Sistema Prisional
Conflitos de Grupos Corrupção Policial
Sistemática

mediante formas radicais de controle de mercado, Uma indicação deste processo é o fortaleci-
incluindo aí a eliminação ou a prisão de compe- mento das milícias no cenário da violência carioca.
tidores. Além disso, parece haver uma expansão Embora a existência de grupos armados ilegais for-
das atividades comerciais, que agora não se limi- mados por membros das polícias e das forças arma-
tam apenas ao tráfico de drogas, mas estendem-se das já seja bastante antiga em algumas favelas do
a outros tipos de atividades ilegais como a venda Rio de Janeiro, observa-se que, nos últimos anos,
informal de serviços e bens públicos – gás, trans- tais grupos têm se fortalecido e buscado a reorgani-
porte e segurança, tv por assinatura e até mesmo a zação de suas atividades em outro patamar. Diante
exploração de prostituição. da histórica incapacidade do Estado de retomar o
O processo mais importante desta fase parece controle territorial e restaurar a ordem nas comuni-
ser a divisão de produtos e territórios, de modo a dades pobres, essa atividade passa a ser efetivada de
minimizar conflitos (Felson, 2006). Assim, a co- maneira informal e ilegal por grupos de milicianos.
operação entre grupos e a cooptação de policiais Outro aspecto crucial para caracterizar a fase é
pode ser uma alternativa melhor do que a guerra a organização política dos grupos. A vinculação po-
entre facções. Violência em excesso não é uma boa lítica acentua-se cada vez mais, com representantes
opção para grupos que passam a se pautar crescen- de milicianos se elegendo na Assembleia Legislativa
temente pela lógica econômica e pela expansão de e nas Câmaras Municipais. Porém, não podemos
mecanismos de controle e monopólio de mercados. dizer ainda que estamos diante de crimes organi-

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zados em escala global, tais como o narcotráfico distintas de controle e enfrentamento. A lógica
colombiano ou as máfias napolitanas. Uma das ca- societária que prevalece nos primeiros momentos
racterísticas contemporâneas desse tipo de organi- exige ações distintas daquelas exigidas para o en-
zação é o abandono de estruturas verticalizadas e frentamento de uma lógica de guerra envolvendo
personalistas, em favor de redes difusas e descentra- altos graus de corrupção e cooptação policial. Da
lizadas (Werner, 2009). Esse tema, contudo, precisa mesma maneira, quando se inicia de fato uma ati-
ser discutido mais amplamente. No quadro a se- vidade de crime organizado, seu controle exigirá o
guir, esboçamos uma proposta de modelo analítico envolvimento de estratégias e atores distintos.
para a compreensão de processos de estruturação de O equívoco está em acreditar que somente
atividades criminosas. ações de cunho social ou uma política de “mano
dura” seria suficiente para o enfrentamento de
quaisquer grupos em diferentes estágios de estru-
Considerações Finais turação. Da mesma maneira, acreditar que ações de
cunho social trarão resultados benéficos em contex-
Uma das grandes dificuldades em se lidar com tos dominados pelo conflito entre grupos armados
problemas decorrentes de atividades criminosas no ou gangues bem estruturadas sem que antes se re-
Brasil tem a ver com a pouca clareza com que se estabeleça o mínimo de ordem legal é igualmente
identificam as diferentes fases de organização das inócuo. Na medida em que a lógica econômica e
próprias atividades criminosas e dos grupos liga- de mercado passa a prevalecer, provavelmente as
dos a elas. A não identificação dessas fases, assim demonstrações de força e tirania da segunda fase
como o pouco reconhecimento de suas especifici- tendem a arrefecer, dando espaço para formas mais
dades, prejudica sensivelmente o desenvolvimento difusas e menos ostensivas de dominação.
e a aplicação de estratégias mais adequadas para se Se observarmos com mais atenção os indicado-
lidar com elas em cada momento. res de criminalidade da cidade do Rio de janeiro,
No Brasil, cometemos o equívoco frequente isto já pode estar ocorrendo: há uma diminuição
de definir como “crime organizado” (seja lá o que de homicídios concomitantemente ao aumento de
esta denominação signifique) qualquer atividade de desaparecidos (Misse, 2011). O custo de formas es-
gangues ou de grupos armados ilegais em favelas, petaculares de violência termina sendo alto para os
principalmente quando relacionadas com o comér- grupos, além de ameaçar sua própria sobrevivência.
cio de drogas. No entanto, a criação da figura (até Por outro lado, a atividade criminal, se mantidas as
certo ponto mitológica) do grande crime organi- mesmas condições, tenderá a se estabelecer em um
zado não permite distinguir as diversas formas de patamar mais incontrolável ainda, pois contamina-
sociabilidade inerentes à formação de grupos e ati- rá de forma irremediável a representação política e
vidades criminosas e de como a própria ilegalidade envolverá de forma irreversível as forças policiais.
faz parte da estruturação dessas atividades grupais. A sugestão deste tipo análise sobre a estrutura-
Daí a existência de certa controvérsia sobre o fe- ção das atividades criminosas para as políticas públi-
nômeno sobre o qual se está discutindo, inclusive cas é de que cada estágio exige intervenções de natu-
no que se refere à adequabilidade de utilizarmos os rezas distintas. Nos estágios iniciais, as intervenções
termos “facção”, “comando” etc. Seriam estes no- sociais seriam suficientes a um custo relativamente
mes conceitos adequados à análise, ou rótulos com baixo. Quando se perde esta oportunidade, já no se-
grande apelo midiático? gundo estágio, teremos que agregar um custo a mais,
Os dados analisados aqui ilustram muito bem relativo ao reestabelecimento de condições que, na
que, a despeito das formas de manifestação assu- verdade, nunca foram dadas (a provisão de seguran-
midas por esses grupos ao redor do país, é possível ça e justiça) em comunidades deterioradas social e
identificar tipos e etapas bastante claras de estru- economicamente. Sem condições básicas é difícil
turação de atividades criminosas comuns a todos pensarmos em um grau mínimo de autocontrole e
eles. As diferenças provavelmente impõem formas eficácia coletiva nessas comunidades.

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A Estruturação de Atividades Criminosas  85

No terceiro estágio, se nada tiver sido feito 2 Visando preservar a identidade e a segurança de seus
anteriormente, as condições serão ainda mais ad- informantes, este estudo optou por não revelar o
versas, pois teremos em curso um processo com nome das duas favelas nas quais realizou seu campo
capacidade de corrosão institucional mais elevada, de pesquisa.
embora com grau de violência menor. No atual es- 3 Segundo dados da Companhia Urbanizadora de Belo
tado de coisas de nosso estudo de caso, com pre- Horizonte (Urbel), a capital mineira tem hoje 208
vilas, favelas e assentamentos irregulares que ocupam
domínio de elementos do segundo estágio, é inevi-
uma área total de 16,75 km2 (apenas 5,06% do ter-
tável estratégias que visem ao restabelecimento da ritório total da cidade, que possui 331 km2). Esses
ordem, retomada de territórios e erradicação das aglomerados abrigam uma população de 471.344
armas de fogo nestes locais. Sem isso, ações sociais habitantes, ou 19,53% da população total da cidade
serão inócuas. (cerca de 2,4 milhões de habitantes). Já na cidade do
Em que medida elas serão contempladas numa Rio de Janeiro, dados produzidos pelo Instituto Pe-
visão estratégica e de maior amplitude, permitin- reira Passos dão conta da existência de 1.044 favelas
do que as escaramuças sejam substituídas por uma que ocupam uma área de 46 km2 (aproximadamen-
ocupação permanente e estável, que torne possível te 4% do território total da cidade, que possui 1.200
a implantação de ações de desenvolvimento social? km2). Essas favelas abrigam uma população de pouco
mais de um milhão de habitantes, ou quase 16% da
Um sem o outro terá alcance limitado e precário.
população total da cidade (cerca de 6,3 milhões de
Nas comunidades que já vivenciam o terceiro está- habitantes).
gio, como tem sido fartamente documentado pela
4 O impacto da violência sobre as comunidades já foi
imprensa no caso das favelas dominadas por grupos
descrito em outros contextos brasileiros, refletindo
milicianos no Rio de Janeiro, terão que ser utiliza- uma verdadeira inversão de causalidade: talvez não
das medidas de cunho fiscal e regulatório, em vez sejam condições socioeconômicas precárias que levem
de ações meramente policiais. Cada fase, portanto, à criminalidade, mas sim o crime que acarrete uma
merece um tipo particular de intervenção. piora dessas condições, levando ao abandono dos lo-
cais de moradia (Beato, 2010; Caldeira, 2000; Rolnik,
1999).
Notas 5 Todos teriam sido mortos a mando de um traficante
local, após ele suspeitar que o grupo havia roubado
1 Em Minas Gerais, as unidades fixas de policiamento uma quantidade expressiva de cocaína pertencente à
comunitário receberam o nome de Grupo Especiali- facção criminosa da qual todos faziam parte (Jornal do
zado em Policiamento em Áreas de Risco (Gepar). Já Brasil, Caderno Cidade, 25/1/1990).
no Ceará, tais unidades atendem pelo nome de Ronda 6 Em 1980, pouco mais de 40% dos homicídios eram
do Quarteirão. Em ambos os estados, elas parecem re- praticados por arma de fogo; hoje são mais de 70%.
presentar uma tentativa institucional de modificação 7 Como notadamente foi o caso dos ataques promovi-
do paradigma de policiamento ostensivo em comuni- dos em São Paulo pela facção criminosa Primeiro Co-
dades conflagradas por conflitos entre grupos crimi- mando da Capital (pcc), em maio de 2006 (ihrc,
nosos. Já no Rio de Janeiro, a implementação de uni- 2010).
dades fixas de policiamento em favelas violentas (as
chamadas Unidades de Polícia Pacificadora) tem sido
destacada como uma tentativa de retomada de terri-
tórios dominados por grupos criminosos armados. De Bibliografia
maneira geral, pode-se dizer que, tanto o Gepar como
o Ronda do Quarteirão ou as upp adotam metodo- ABRAMOVAY, Míriam; WAISELFISZ, Júlio Ja-
logias bastante parecidas: grupos fixos de policiais, cobo; ANDRADE, Carla Coelho & RUA,
treinados em metodologias de policiamento comuni- Maria das Graças. (1999), Gangues, galeras,
tário e solução de problemas, fazendo patrulhamento
chegados e rappers: juventude, violência e cida-
preventivo e atuando como mediadores de conflitos
dania nas cidades da periferia de Brasília. Bra-
em áreas com altos índices de criminalidade violenta.
sília, Garamond.

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86  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 27 N° 80

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  253

A Estruturação de CRIMINAL ACTIVITIES LA STRUCTURATION


Atividades Criminosas: um STRUCTURATION: A CASE STUDY D’ACTIVITÉS CRIMINELLES: UNE
Estudo de Caso ÉTUDE DE CAS

Cláudio Beato e Luís Felipe Zilli Cláudio Beato and Luís Felipe Zilli Cláudio Beato et Luís Felipe Zilli

Palavras-chave: Gangues; Violência; Cri- Keywords: Gangs; Violence; Criminality; Mos-clés: Gangs; Violence; Criminalité;
minalidade; Grupos armados ilegais. illegal armed groups. Groupes armés illégaux.

Tendo como pano de fundo o problema Dealing with the problem of the actions Ayant pour toile de fond le problème
da atuação de grupos armados ilegais carried out by illegal armed groups in de l’activité de groupes armés illégaux
em favelas e bairros pobres das perife- shantytowns and poor neighborhoods of dans des favelas et des quartiers pauvres
rias urbanas brasileiras, o presente artigo Brazilian urban peripheries, this article des périphéries urbaines brésiliennes,
tem como objetivo esboçar um modelo aims at outlining a dynamic model of cet article a pour objectif d’ébaucher un
dinâmico de estruturação de atividades criminal activities structuration, expect- modèle dynamique de structuration d’ac-
criminosas, na expectativa de fornecer ing to provide subsidies for a more com- tivités criminelles dans le but de fournir
subsídios para uma compreensão mais prehensive and systemic understanding des subsides pour une compréhension
abrangente e sistêmica de como o fenô- of the development of such phenomenon plus vaste et systémique de la façon par
meno vem se desenvolvendo no país ao in the country along the last decades. laquelle ce phénomène s’est développé au
longo das últimas décadas. Trabalhando Working on the perspective of a com- Brésil tout au long des dernières décen-
sob a perspectiva de um modelo evo- plex evolutionary model, we propose nies. Travaillant sous la perspective d’un
lutivo complexo, propomos a ideia de the idea that, despite their many forms modèle évolutif complexe, nous propo-
que, a despeito de suas muitas formas de of manifestation, it is possible to iden- sons l’idée qu’en dépit de ses plusieurs
manifestação, é possível identificar, no tify common stages of criminal activi- formes de manifestation, il est possible
fenômeno das gangues e dos grupos ar- ties structuration in the phenomenon of d’identifier, dans le phénomène des
mados ilegais que atuam em favelas bra- gangs and illegal armed groups active in gangs et des groupes armés illégaux qui
sileiras, estágios comuns de estruturação Brazilian shantytowns. We argue that, in agissent dans les favelas brésiliennes, des
de atividades criminosas. Argumentamos their initial stages, the criminal dynam- stages communs de structuration d’acti-
que, em seus estágios iniciais, as dinâmi- ics of gangs are characterized mainly by a vités criminelles. Nous soutenons que,
cas criminais de gangues se pautam por societarian/communitarian logic, which dans ses stages initiaux, les dynamiques
uma lógica majoritariamente societária/ gradually turns to be oriented towards criminelles des gangs se guident par une
comunitária, passando gradativamente a more economic/rational ends as they ad- logique majoritairement sociétaire / com-
se orientar para fins mais econômicos/ra- here to more complex criminal activities. munautaire, et passent graduellement
cionais na medida em que aderem a ativi- à s’orienter vers des objectifs davantage
dades criminosas mais complexas. économiques et rationnels dans la me-
sure où elles adhèrent à des activités cri-
minelles plus complexes.

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