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Léo Barbosa Nepomuceno

PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE

Organizador

PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE


ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E PSICOLÓGICOS A presente obra consiste na
reunião de trabalhos de pesqui-
sadores(as) e profissionais vincu-
lados ao campo da Psicologia do
Esporte e áreas afins, que abordam
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E PSICOLÓGICOS

o surfe e muitos de seus aspectos


socioculturais e psicológicos. Con-
tando com autores e autoras
ligados(as) a diversos grupos de pes-
quisa de várias regiões do Brasil,
o livro apresenta uma compilação
de textos, que contribuem para
que o(a) leitor(a) possa ter uma
visão ampliada sobre o mundo
social e a dinâmica subje�va que
configura o surfe enquanto prá-
�ca corporal e espor�va.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Léo Barbosa Nepomuceno
(Organizador)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE:


aspectos socioculturais e psicológicos

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Foto da Capa: Raphael Pereira Tognini Batista
Revisão: Analista de Escrita e Artes da Editora CRV

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

P974

Psicologia do esporte e surfe: aspectos socioculturais e psicológicos / Léo Barbosa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nepomuceno (organizador) – Curitiba : CRV, 2021.
214 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-0000-5
ISBN Físico 978-65-251-0005-0
DOI 10.24824/978652510005.0

1. Psicologia do esporte 2. Surfe 3. Psicologia do esporte – aspectos psicológicos


I. Nepomuceno, Léo Barbosa, org. II. Título III. Série.

CDU 796:159.9 CDD 796.019


797.3
Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia no esporte 796.019
2. Surfe 797.3

ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL


EM FORMATO DIGITAL.
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2021
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de La Havana – Cuba)
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Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................. 9

CAPÍTULO 1
VIVENCIAR O MAR COM UMA PRANCHA: uma fenomenologia do
surfar em perspectiva pré-reflexiva.................................................................. 11
Thabata Castelo Branco Telles
Natali Cristofolli Wendich

CAPÍTULO 2
NARCISO SOBRE ONDAS: reflexões sobre
a autoimagem e a democratização imagética no surfe.................................... 31
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Vinícius Cardoso de Souza


Rafael Campos Veloso

CAPÍTULO 3
TÁ DANDO ONDA? UMA SUSPEITA SOBRE
O IMAGINÁRIO GOOD VIBES DO SURFE................................................. 43
Fidel Machado de Castro Silva

CAPÍTULO 4
A INFLUÊNCIA DE FATORES PSICOLÓGICOS
NO DESEMPENHO DE SURFISTAS............................................................ 57
Lino D. G. Scipião Junior
Liana Araújo Scipião

CAPÍTULO 5
SURFANDO COM AS JUVENTUDES:
significados e sentidos do surfe para os jovens............................................... 67
Liana Lima Rocha
Maria Eleni Henrique da Silva

CAPÍTULO 6
NARRATIVAS DE SURFISTAS PROFISSIONAIS:
construção da identidade e da carreira............................................................ 85
Mariana Vannuchi Tomazini
Lucy Leal Melo-Silva
CAPÍTULO 7
MULHERES AO MAR: o fenômeno dos coletivos femininos de surfe.......... 119
Júlia Frias Amato
Marina Simons Barbosa de Oliveira
Anna Beatriz Vargas Panfili

CAPÍTULO 8
EM BUSCA DE EMOÇÃO, EQUILÍBRIO E TRANQUILIDADE:
estudo qualitativo sobre a relação entre surfe e saúde.................................. 135
Léo Barbosa Nepomuceno

CAPÍTULO 9
EFEITOS TERAPÊUTICOS DO SURFE NA SAÚDE MENTAL................ 157
Erick Francisco Quintas Conde

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Raquel Nogueira da Cruz

CAPÍTULO 10
A PSICOLOGIA NO SURFE ADAPTADO................................................... 169
Maria Gabriela Carreiro
Marina Penteado Gusson

CAPÍTULO 11
SURFE, ESTILO DE VIDA E DEPRESSÃO: a opinião de Kelly Slater...... 189
Tiago Brant de Carvalho Falcão

ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................... 205

SOBRE OS AUTORES................................................................................. 209


APRESENTAÇÃO
O livro representa uma contribuição importante para o campo científico
da Psicologia (Social) do Esporte e áreas afins, tendo como objeto de reflexão
o surfe como uma prática corporal e esportiva. A proposta do livro contribuir
para ampliar conhecimentos sobre os aspectos psicológicos e socioculturais
relacionados à prática do surfe. Para tal, o livro é composto por ensaios,
revisões de literatura e relatos de pesquisa que abordam um conjunto amplo
de questões e temas, que nos permitem ampliar os olhares para essa modali-
dade de prática corporal em muitas de suas expressões no lazer e no esporte.
Encontra-se aqui o fruto de parcerias estabelecidas entre autoras e auto-
res de diversos estados brasileiros, filiados a variados grupos de pesquisa,
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com enfoques e abordagens teóricas diferentes. Tais parcerias foram forja-


das no Grupo de Trabalho de Psicologia do Esporte da Associação Nacio-
nal de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e fomentadas
nos recentes Congressos da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte
(ABRAPESP), no triênio de 2017-2020. A riqueza do conteúdo expressa
a experiência e conhecimentos acumulados pelos(as) autores(as) e no que
tange à produção cultural e científica relacionada ao tema. A obra apresen-
ta-se como uma relevante fonte de pesquisa para estudantes, profissionais e
pesquisadores(as) interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre o
surfe e suas dimensões e singularidades.
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CAPÍTULO 1
VIVENCIAR O MAR COM UMA
PRANCHA: uma fenomenologia do
surfar em perspectiva pré-reflexiva
Thabata Castelo Branco Telles
Natali Cristofolli Wendich

Introdução
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Em estudo fenomenológico sobre a experiência de surfar (CRISTÓ-


FOLLI; MORAES; TELLES, 2018), compreendeu-se, a partir das descrições
e narrativas de praticantes amadores (e que praticavam a modalidade há pelo
menos 1 ano e meio), que esta consiste em uma atividade que conta com
distintos elementos relevantes e que convergem para a peculiaridade desta
experiência de estar no mar com uma prancha.
Com ênfase no aspecto temporal, as seguintes etapas foram identificadas
e assim organizadas, englobando os elementos mais relevantes que formam
parte da experiência de surfar, de acordo com a experiência vivida de seus
praticantes: (1) o processo de preparação, antes de entrar no mar; (2) o ato
de vivenciar o mar com uma prancha; e, (3) após a prática e a saída do mar.
No conjunto destas, evidenciou-se a necessidade de preparação para realizar
esta atividade, percepções e sensações relativas a medo, coragem, prazer e
contemplação durante a experiência de surfar, bem como explicações sobre
o quanto essa vivência extrapola os limites da praia e do momento da prática
para as suas vidas pessoais.
Em comum, os entrevistados relataram que a experiência de surfar não
se restringe ao ambiente da praia, mas se relaciona ao cotidiano deles, de
modo a impactar as mais diversas tarefas do dia a dia. Isto corrobora pesqui-
sas recentes sobre os esportes de aventura, que apontam para a ideia de que
a experiência destas práticas na natureza contribui para novas formas de ver
o mundo e estar nele (ZIMMERMANN; SAURA, 2016). Esses esportes se
caracterizam por uma dinâmica de complementaridade com o meio, em que
busca se captar essencialmente o contexto e suas condições, que são habi-
tualmente distintas das situações cotidianas e envolvem forte relação com
elementos da natureza (GOMES; RIACHOS, 2012; NEPOMUCENO, 2017).
Assim, o caráter de desafio e imprevisibilidade típico do ambiente em que tais
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atividades são realizadas propicia percepções acerca de si e do próprio corpo


que em muito diferem daquelas que se dão no cotidiano, especialmente nas
grandes cidades, com forte urbanização, em que a sensação de controle de si
e de suas movimentações corporais é maior do que em ambientes naturais. Os
surfistas que colaboraram com pesquisa anterior (CRISTÓFOLLI; MORAES;
TELLES, 2018) resgataram principalmente a ideia de que a prática do surfe
os ajudava a ser mais pacientes mesmo quando não estavam em atividades
no mar, como no trabalho ou na esfera das relações interpessoais. Destaca-se
ainda a caracterização do surfe como uma prática intensa e desafiadora, mas,
ao mesmo tempo, prazerosa e relaxante.
Este ponto possivelmente se configura no cerne das discussões em torno
da profissionalização do surfe, que encontra entre seus antagonistas a ideia
do “surfe de alma” (AMATO; SOUZA; FALCÃO, 2019), que ressalta essa
conexão do praticante com o mar e o surfe como um estilo de vida que não

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poderia ser compreendido apenas a partir de uma esfera competitiva. Contudo,
Amato, Souza e Falcão (2019), ao discutir os processos de Olimpização do
Surfe, apontam que este aspecto de relação estreita com a natureza se mantém
mesmo em práticas de alta performance e em situações de competição.
Com tantas nuances, o que então se mantém na estrutura dessa atividade
para que possa ser identificada como tal a despeito das suas diversas formas de
prática? Seja profissional ou amador, iniciante ou experiente, o que se mantém
invariável? O que se apresenta até então na literatura da área converge para a
questão técnica de se deslizar na onda sobre uma prancha (MOREIRA, 2009)
e também para a ideia de que o surfe se encontra no escopo dos esportes com
a natureza, o que potencializa a experiência de surfar como algo que não
comporta apenas um caráter técnico na elucidação das suas movimentações.
Nesse sentido, este capítulo pretende revisitar as entrevistas realizadas
em estudo anterior (CRISTÓFOLLI; MORAES; TELLES, 2018), voltando-se
ao momento específico de “vivenciar o mar com uma prancha”. Trata-se de
etapa crucial, em que buscaremos nos deter ao momento em que a experiência
de surfar encontra maior consonância com elementos pré-reflexivos, ou seja,
aqueles oriundos de atos realizados corporalmente, sem muito tempo ou neces-
sidade de reflexão anterior às tomadas de decisão (TELLES, 2020). Esta noção
de atos pré-reflexivos aqui desenvolvida se ancora na perspectiva fenomenoló-
gica (BARBARAS, 2008; MERLEAU-PONTY, 1945/2000, 1953/2011), como
também em estudos contemporâneos em que se entrelaçam fenomenologia e
neurociências, com foco nos processos cognitivos, especialmente de percep-
ção e ação, e na perspectiva de embodiment, a partir da qual não se considera
processos mentais sem o papel fundamental do corpo (NOË, 2004/2009;
TELLES, 2018). Acrescenta-se ainda que, sumariamente, entendemos corpo,
mente, mundo e situação de forma entrelaçada.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 13

Ancorado em uma atitude fenomenológica frente ao fenômeno do surfe,


este estudo conta com procedimentos metodológicos distintos, que se relacio-
nam de modo a melhor compreender como se dá a experiência de surfar. Com
o objetivo de “pôr à prova” os elementos anteriormente relatados sobre este
fenômeno, os colocamos em suspenso ao trazer inicialmente as descrições de
um processo de imersão à prática por uma iniciante para, em seguida, resgatar
entrevistas realizadas com praticantes mais experientes. Articula-se, portanto,
as descrições da pesquisa anterior com as narrativas da primeira autora deste
texto, que realizou trabalho de imersão em iniciação à prática do surfe. Com
isto, busca-se um cruzamento intencional (BARREIRA, 2017), através de
diferentes procedimentos de investigação – no caso deste estudo, entrevista
e imersão – na tarefa de aceder a uma compreensão estrutural sobre o que é
surfar, a despeito de diferenças técnicas, pessoais, culturais, dentre outras.
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Procedimentos metodológicos em perspectiva


fenomenológica: entrevista e imersão

É tarefa fundamental do fazer fenomenológico a busca de aceder às


estruturas de determinado fenômeno (MERLEAU-PONTY, 1945/2000; TEL-
LES, 2018, 2019), aquelas sem as quais ele se desmorona diante da impossi-
bilidade de ser definido como tal. No caso deste estudo, nosso olhar se volta
ao surfar, na tentativa de compreender, a despeito de suas várias nuances e
possibilidades, no que consiste este fenômeno, de modo que nos permita
afirmar: eis aqui uma experiência de surfar.
Se logramos êxito nesta tarefa de aceder às estruturas de determinado
fenômeno, o reconhecemos a despeito das características pessoais de quem
o pratica ou mesmo das nuances culturais de determinado grupo. Nesse sen-
tido, as variáveis, inclusive técnicas, de uma experiência prática realizada
por iniciantes ou iniciados/experientes repousam justamente naquilo que não
varia e que sustenta que tais experiências por vezes tão diferentes aconteçam:
o fenômeno do surfar. Busca-se, portanto, as estruturas que se mantêm em
meio ao imbróglio das diferenças.
Esta breve apresentação justifica a iniciativa de entrelaçar procedimentos
metodológicos que se apoiam em nuances distintas acerca de um mesmo fenô-
meno em que, por um lado, se revisita entrevistas realizadas com 8 praticantes
iniciados (que possuem, no mínimo, 1 ano e meio de prática) e, por outro, se
realiza um procedimento de imersão por alguém que não havia experiência
com o surfe e se dispôs a se aproximar deste fenômeno através da sua própria
prática, ao longo de 3 sessões (com intervalos de uma semana entre cada uma).
Este procedimento mencionado ultimamente possui inspiração na emer-
siologia (ANDRIEU, 2016), um estudo que se pauta na impossibilidade de
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reflexão do corpo vivente, ou seja, no mesmo momento em que realiza deter-


minada atividade. A ideia de corpo vivente compreende um importante e
intenso estado de adaptação ecológica às demandas do ambiente e da situação,
em que o corpo se apresenta da forma mais condizente com suas possibilidades
mais imediatas. Seguindo com as terminologias, diferenciamos aqui corpo
vivente de corpo vivido, em que é apenas através deste último que a reflexão
se torna possível. Assim, uma vez imersos em determinada prática, é apenas
quando esta termina que nos é possível refletir sobre ela, enquanto corpo
vivido, ou seja, ao emergirmos deste processo anterior de imersão.
Ao emergir – e é deste processo que se deriva o termo emersiologia –,
lidamos com aquilo que restou da experiência que foi vivida: trata-se, portanto,
de entrar em contato com o que conseguimos lembrar, o que ainda consegui-
mos sentir e o que nos é possível acessar. Este processo pode ser caracterizado
por uma descrição livre e exaustiva para posterior análise, que pode se dar

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em comunicação verbal, recurso artístico, escrita, audiovisual etc. No caso
deste estudo, optou-se pela descrição por escrito, em formato de narrativa.
Quando nos referimos a uma descrição livre e exaustiva, assumimos um
procedimento rigoroso, embora com poucas instruções a priori. Apoia-se em
uma percepção de si, contando-se com aquilo que é possível de ser descrito
após a experiência. É nesse sentido que ela é livre, pois permite que o corpo
retome o que foi vivido da forma como lhe for possível diante da reconsti-
tuição da prática realizada. No caso deste estudo, optou-se pela descrição
por escrito, em formato de narrativa, mas poderíamos contar também com
registros de expressões faciais, gestos corporais, onomatopeias, desenhos,
dentre outros. Dizemos de uma descrição exaustiva, portanto, porque ela não
se encerra quando se responde a uma questão, mas sim quando se esgotam as
possibilidades de retomada do que foi vivido.
A passagem dos atos pré-reflexivos ao processo de reflexão para análise
é fundamental, no entanto não se trata de um movimento simples. Conside-
ra-se aqui certas etapas importantes neste processo, que se inicia com: (1) a
imersão na prática, através da experiência de um corpo vivente, que busca
solucionar os desafios apresentados pelo ambiente de forma corporal, em que
há pouco espaço para reflexão; (2) ao emergir da prática, a retomada daquilo
que foi vivido, sob forma de descrição da experiência realizada; (3) a leitura
do que foi produzido, para que se analise o material com foco em identificar
momentos que possibilitam a compreensão de determinado fenômeno como
tal, a despeito das variações (em torno de características pessoais, sociais,
culturais, físicas, técnicas etc.). É relevante mencionar que não se compreende
tais etapas como um passo-a-passo rígido a ser seguido, mas descreve-se aqui
fases importantes que têm sido identificadas neste processo. É crucial que
estes momentos sejam revistos no fazer de uma nova pesquisa.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 15

Passadas estas etapas, o cruzamento intencional (BARREIRA, 2017) se


torna fundamental. Ora, se descrevo livre e exaustivamente apenas a minha
experiência, como saber em que medida ela se aproxima da identificação e
compreensão de determinado fenômeno como tal? No caso deste estudo,
articulamos os achados do processo de imersão com as entrevistas, de modo
a pôr à prova o material produzido a partir do processo de imersão; contudo,
além de entrevistas, pode-se contar com o cruzamento com diversos materiais
relativos a esta experiência de surfar: textos científicos, registros jornalísticos,
produções artísticas, dentre outros.
Seguidamente ao trabalho de imersão, foi realizado o processo de revisi-
tar as entrevistas realizadas em estudo anterior (CRISTÓFOLLI; MORAES;
TELLES, 2018), analisando-as com foco no momento de “vivenciar o mar
com uma prancha”. Foram excluídas, portanto, as descrições que não tratavam
da experiência literal de estar no mar surfando, a exemplo das descrições em
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torno das preparações para entrar no mar, as reverberações da prática em outros


ambientes e reflexões de cunho mais social, com destaque para questões de
gênero. Os achados oriundos dos dois procedimentos metodológicos serão
apresentados a seguir, a começar pelas narrativas relativamente à imersão
e, posteriormente, à reanálise das entrevistas realizadas no estudo anterior.

“Só surfa quando fica em pé na prancha?”:


relatos de uma iniciação ao surfe

As descrições da atividade de imersão foram todas realizadas pela pri-


meira autora deste trabalho, com nenhuma experiência prática com o surfe,
exceto em uma aula realizada em 2009. Na ocasião, em Fortaleza-CE, a ativi-
dade fez parte de uma disciplina de esportes com a natureza, que contou com
uma aula de surfe na Praia do Futuro. As narrativas de imersão aqui trazidas
contam com 3 sessões práticas de surfe, que foram realizadas semanalmente
e fazem parte de uma experiência mais recente, em 2020, na praia de Ofir,
litoral norte de Portugal, na Escola Salt Flow1. Como era de se esperar, a
diferença geográfica fez parte das primeiras sensações vividas nesta prática:

Dessa vez, não tentaria surfar no Brasil, mas em Portugal. Um clima dife-
rente e o mar parecia fazer parte de outro oceano. O biquíni com camisa
por cima foi substituído pelo fato de neoprene, que cobria o corpo inteiro
e parecia não querer me deixar movimentar.
- Tem certeza que esse é o tamanho certo?

1 Fomos autorizadas a divulgar o nome da escola e aproveitamos para agradecê-la pelo apoio na elaboração
deste capítulo.
16

- Quando entrar na água vai melhorar – disseram.


Como de praxe, alongamentos e aquelas instruções em terra de como ficar
na prancha e tentar subir. Eu agachava, mas a roupa parecia me puxar
de volta pra cima. Começava a ficar nervosa, com medo disso me trazer
alguma lesão. Sem que eu tivesse muito tempo pra pensar nisso (ufa!),
já era hora de entrar no mar. A água gelada e o vento forte, apesar do
sol, pareciam aumentar a tensão. Meu ombro doía só em tentar segurar a
prancha, que parecia balançar ainda na areia.

A associação entre surfar e ficar em pé deslizando sobre uma onda é


bastante forte, especialmente no campo do imaginário de quem está a iniciar
a prática. No entanto, demora-se para conseguir concretamente realizar esta
ação e mais ainda para efetuá-la de modo controlado. Nesse sentido, o relato
acima apresenta este momento de tensão, em que os processos de atenção

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parecem se voltar àquilo que se relacionaria com o objetivo a ser atingido, de
modo a atrapalhá-lo: a roupa que aperta, o vento forte, a água gelada, a dor
que pode se intensificar.
Este aspecto ilustra discussões recentes em torno das relações entre corpo
e processos de aprendizagem, especialmente na compreensão dos atos pré-re-
flexivos, que se desdobram de modo mais fluido com o desenvolvimento do
fenômeno do hábito (LEDER, 1990; TELLES, 2018; VERISSIMO, 2017).
Explica-se. É característico do processo de aprendizagem uma forte percepção
em torno de si e do próprio corpo. Por não estar habituado a se movimentar
diante de determinada situação que se apresenta, pensa-se inclusive de modo
parcial: como se levanta a perna, como se mantém o tronco, se a vestimenta
está adequada etc. Trata-se de processo cansativo, pois o corpo não se desliga
de uma atenção constante a si mesmo, lidando com o desafio de responder a
esta nova tarefa e ao manejo das demandas do ambiente e da situação. Pré-
-reflexivamente, pode-se reagir a este tipo de situação de modo a inclusive
se distanciar da ação que se pretende realizar:

Eu amo entrar no mar. Então, pra quebrar o gelo (literalmente!), fiz o que
sabia fazer de melhor: esqueci a prancha e mergulhei logo. Isso sim eu
já tava acostumada a fazer e ainda me ajudaria a não ficar reclamando do
frio. A prancha, tadinha, presa apenas pelo meu tornozelo, voltou a ser
segurada bem depois.

De acordo com a descrição acima, no descompasso de buscar esquecer


os impasses que se apresentaram, acabou-se por entrar no mar e mergulhar,
se esquecendo da prancha, elemento tão fundamental para a prática do surfe.
No auxílio para a retomada do objetivo inicial (aprender a surfar), recorre-se
às figuras significativas para este processo, no caso, o instrutor:
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 17

Eu remava pra perto do instrutor e seguia os comandos. Tentava fazer


tudo certo e seguia caindo, conforme esperado. Eu sabia que não seria
fácil. Na hora de entender o que dava errado, ouvia que precisava levantar
mais o tronco, mas as costas doíam e a minha autopercepção indicava a
falsa sensação de que eu já estava com ele demasiadamente levantado.
Daquelas coisas que a gente precisa se acostumar com o tempo mesmo.

A partir deste relato, é interessante mencionar que aprender algo exige


não somente a compreensão de instruções técnicas e a repetição exaustiva
dos gestos, mas fundamentalmente a incorporação destes, pois os processos
cognitivos envolvidos na tarefa se ancoram no corpo que busca executá-la.
Ou seja, além da explicação e da repetição, demora-se em um processo de
apropriação espaço-temporal diante da situação, que depende, dentre outros
elementos, de noções ligadas à propriocepção e ao esquema corporal. Este
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último pode ser compreendido como uma espécie de saber marginal, que se
encontra à nossa disposição, embora não precisemos atentar a ele para nos
movimentarmos (GALLAGHER, 2005; TELLES, 2018). Por exemplo, não
precisamos nos lembrar de como se anda para andar, do mesmo jeito que
um(a) surfista experiente não precisa retomar o movimento de se pôr em pé
a cada vez que pega uma onda. Ou ainda, no caso do relato acima, não se faz
necessário checar se o tronco está alto o suficiente a cada vez que se rema
para quem possui um bom esquema corporal para a prática.
A fim de conseguir realizar a movimentação adequada para determinada
atividade, recorre-se constantemente ao processo de imitação do outro, que
se apresenta como referência do movimento a ser realizado (neste caso, o
instrutor ou um colega mais experiente que estivesse próximo). Este processo
perceptivo que busca se desdobrar em gesto técnico é mediado, portanto,
pelo esquema corporal. Assim, mesmo que se compreenda o que deve ser
feito, o corpo realiza apenas aquilo que lhe é possível fazer em determinado
momento, espaço e situação.
Ainda acerca do processo de imitação, é importante considerar que este
não consiste meramente em uma tentativa de realizar um movimento exa-
tamente como o outro fez, mas sim em atingir o objetivo da ação (MER-
LEAU-PONTY, 2001/2006) – assim como o outro conseguiu, tento também
conseguir. A imitação só existe, portanto, na medida em que há um desafio
com forte caráter perceptivo identificado pelo corpo, mas que necessita de
referência externa para ser superado.
Para que o iniciante se aproxime da experiência objetivada ou mesmo
do gesto técnico a ser aprendido, além das instruções e repetição das movi-
mentações que constituem o processo a ser incorporado, pequenas adaptações
e alterações no ambiente que possam facilitar a tarefa, especialmente para
quem não está habituado a ela, são fundamentais:
18

Pelos ventos fortes, recebemos a instrução de sair de mar e entrar por outro
caminho, mais ao lado de umas pedras que pareciam formar um espigão.
[...] Havia outros grupos e mesmo com o que parecia ser pouco espaço
pra tanta gente tentando surfar deu certo. Não sentia o vento incomodar
mais tanto e finalmente conseguia ficar mais tranquila. Continuava caindo
ao tentar ficar em pé na prancha, mas estava tranquila. Apenas olhava a
paisagem e seguia tentando mais calmamente. Os medos e dores sumiram
e parecia que a aula havia começado ali.

Percebe-se aqui que a instrução de entrar no mar por outro caminho e


a sensação do vento forte diminuída, contribuíram para que a experiência se
tornasse menos estressante e mais prazerosa. Pela primeira vez nos relatos, o
corpo deixa de se preocupar constantemente consigo mesmo e consegue se voltar
para o ambiente, a exemplo de conseguir olhar para a paisagem de modo tran-

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quilo. É importante mencionar ainda que a percepção da instrução acertada pela
pessoa de referência (o instrutor) também aumenta a confiança no profissional
que está a ensinar e apura o nível de autoeficácia de quem está a aprender. Este
conceito pode ser definido como uma série de crenças pessoais que influenciam
na habilidade de superar e controlar eventos que se apresentam no ambiente.
A noção de autoeficácia se entrelaça ainda a uma série de outros fatores que se
relacionam com o entendimento de como as pessoas pensam, sentem, se moti-
vam e se comportam nas mais diversas situações (PESCA et al., 2010/2018).
Trata-se de importante conceito para o enfrentamento de desafios:

É uma forma de compreender o quão adaptada uma pessoa pode estar


diante de um novo desafio e também o quão persistente se pode ser para
não desistir de situações difíceis. Em suma, a autoeficácia está relacio-
nada a quão boas ou más as pessoas consideram que são ao lidar com
uma situação específica, e também a saber como poderiam proceder para
superar cada obstáculo2 (TELLES, 2020, p. 6).

Os pontos relatados, portanto, foram cruciais para mobilizar uma expe-


riência positiva, a despeito das dificuldades, encorajando para mais uma sessão
na semana seguinte:

De fato, o neoprene que aluguei parecia mais confortável e não havia


tanto vento. Escutamos as instruções novamente e caímos na água. Dessa
vez, não precisei de tanto mergulho e a tensão aparentava estar menor.

2 Trecho original: “It is a way to comprehend how adapted a person can be while facing a new challenge and
also how persistent one can be not to give up on difficult situations. In short, self-efficacy is related to how
good or bad people consider they are while dealing with a specific situation, and it is also about knowing
how they could proceed to surpass each obstacle” (tradução livre).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 19

No entanto, as ondas estavam maiores e mais fortes. Cada caldo parecia


render alguns segundos para nos deixar voltar à superfície, e remar para
chegar ao instrutor estava mais difícil do que tentar ficar em pé na prancha.

Não sabia o que estava acontecendo, mas parecia que tudo estava mais


pesado e eu remava sem sair do lugar. O instrutor pedia para ficarmos
próximos, para que ele pudesse nos auxiliar a pegar as ondas, mas eu não
conseguia sequer chegar lá. Finalmente, ao me aproximar, comentei da
minha dificuldade e ele pareceu apenas ser empático com o meu sofri-
mento. Continuei tentando.

De repente, sem eu ter dito nada, outro instrutor (que me deu aulas na
semana anterior) me abordou e sugeriu trocar a prancha. Ah, era isso!
Droga! Mais uma aula em que o começo foi tomado por tensões e só agora
eu parecia conseguir fazer as coisas direito. Conseguia finalmente remar e
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seguia caindo ao tentar ficar em pé. No máximo, conseguia pegar algumas


ondas de joelhos. Mas, assim como no final da aula passada, passei a ficar
tranquila com as tentativas. E de novo queria mais.

Percebe-se, com o aumento da familiaridade com a prática, que o


ambiente não se apresenta mais como tão novo e ameaçador. Mesmo com a
identificação das ondas fortes, a experiência anterior positiva propiciou uma
maior confiança de si para seguir com as tentativas. Novamente, um pequeno
ajuste a nível de instrução foi de grande auxílio para aumentar a autocon-
fiança e tornar a prática prazerosa. Este desenvolvimento propiciou inclusive
a experiência de surfar sem instrutores no mar pela primeira vez:

No outro sábado, optamos por não fazer aula e quem precisasse (meu
caso) só alugaria a prancha e o fato de neoprene. Confesso que, apesar
de estar entre amigos, estava um pouco preocupada em estar no mar pra
tentar surfar pela primeira vez sem um instrutor. Segui sem conseguir ficar
em pé na prancha, no máximo descia um tempo na onda de joelhos. Acho
que a questão é mais de medo mesmo do que técnica.

É importante mencionar que, apesar de não estar familiarizado com


determinada prática, o corpo possui memórias relativas a situações ou movi-
mentações que possam parecer semelhantes. Nesse sentido, diante do desafio
apresentado e do curto espaço de tempo para que seja possível elaborar algo
novo, os atos pré-reflexivos se tornam imperativos e move-se a partir dos
gestos já conhecidos. Ou seja, mesmo que em nenhum momento a opção de
surfar de joelhos tenha sido apresentada, foi a melhor adaptação realizada pelo
corpo naquele momento e naquele ambiente. É deste modo que o processo
de reflexão após a prática é fundamental pois, mesmo que alguém corrija ou
20

mostre que o movimento que está sendo realizado não é adequado, ele será
mais facilmente modificado se a própria pessoa que o faz se percebe fazendo-o.
Isto não significa dizer que, até que o movimento seja realizado corretamente,
não se possa desfrutar da atividade:

O neoprene dessa vez estava bem largo e a água entrou nele todo logo no
começo. Pra minha sorte, a água não estava tão gelada e não tinha muito
vento. O mar também não estava com ondas fortes e às vezes a gente ficava
um tempo sentado na prancha esperando onda sem ela vir. Mas quer saber?
Foi uma delícia! Eu conseguia curtir estar ali mesmo sabendo que ainda não
conseguia fazer muito. Estar em um mar tranquilo me deu uma paz absurda
e por vezes me perguntava se eu queria mesmo que a onda viesse. Ao invés
de ficar esperando por isso, eu olhava pro horizonte, conversava com o
pessoal e, se não viesse nada, tava tudo bem também. Tudo no seu tempo.

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Estes recortes finais das descrições nos trazem um importante questiona-
mento sobre o que é surfar. Se as explicações mais imediatas se voltam a consi-
derar este fenômeno como o ato de deslizar sobre uma onda com uma prancha, as
experiências vividas tanto de uma iniciante como de praticantes experientes – que
apresentaremos a seguir – nos remetem ao surfe como vivenciar o mar com a
prancha, sem necessariamente se ater ao ato de estar em pé sobre as ondas. Assim,
a despeito da descrição técnica, propomos que surfar implica estar ali, no mar,
com a prancha. Seja na espera, na contemplação, no caldo ou no tubo. Seguimos,
portanto, com as descrições relativas aos praticantes experientes.

Vivenciar o mar com uma prancha: tentativa


de definição e elucidações iniciais

Pretendemos aqui retomar as entrevistas realizadas em estudo anterior


(CRISTÓFOLLI; MORAES; TELLES, 2018), especialmente nos momentos
em que foi perguntado aos surfistas como era a experiência de surfar para eles.
Por se tratar de experiência intensa e, portanto, permeada de situações em que os
atos pré-reflexivos são imperativos, não se trata de descrição fácil de ser realizada:

Vixe, surfar é uma das melhores coisas que tem na face da terra. Sei lá,
é muito, muito bom. É uma paz muito grande né, acho que não sei [...]
e é muito exaustivo. Então quando você chega no fundo do mar, que
você senta na sua prancha, no momento que você tá ali olhando pro céu
e contemplando te traz uma plenitude e uma paz muito forte. Então você
fica naquele negócio ali, e você fica esperando uma onda, então, entre
uma onda, uma série boa chegar, e uma série, e com o tempo que não
tem nenhuma onde, demora o que, 3,5 minutos, você fica ali 3, 5 minutos
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 21

parado só contemplando a natureza. Então aquilo é muito, muito gostoso, e


sem falar na questão de paciência né, eu acho que você cria uma paciência
muito grande com o surfe. Então surfar é, indescritível, é muito, muito
bom, é muito prazeroso (Paulo).

Eu digo que basicamente terapêutico, assim, sabe, é a única coisa que


consegue me relaxar de verdade, que eu consigo parar e não pensar em
nada, é quase meditativa e me coloca tipo em contato com o meu corpo
assim. [...] Então, eu acho que basicamente o contato com o mar, com a
natureza, me deixa bem mais calma, e... eu sinto que eu entro num fluxo
que não é só meu, tipo, sou eu e o mar, então eu tenho que tá atenta a
outras coisas que não vem de mim então... acho que tem um efeito bem
terapêutico, bem calmante, bem meditativo (Silvana).

A dificuldade de descrição de tais experiências significativas em práticas


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com a natureza corrobora estudos sobre esportes de aventura, nos quais se


identifica sensações de êxtase e relatos (inclusive com o surfe) de que “não
há nada a dizer porque é muito diferente. Eu não sei, você precisa estar lá
para entender”3 (ZIMMERMANN; SAURA, 2016, p. 6). Alguns participan-
tes apontaram sensação de fluidez e sintonia com o mar, como “a coisa mais
natural do mundo” (Pedro]. Similar ao estado de flow (PEINADO, 2011),
entende-se que estas sensações acompanham o envolvimento intenso e que
se mantém por um tempo com a atividade.
Além da estreita relação com o mar, este ponto colabora não só para sen-
sações específicas por parte de quem o pratica, mas também define a própria
experiência de surfar, que depende destes elementos naturais, em que as habi-
lidades motoras e psicológicas só se desenvolvem ancoradas nesse contexto
de natureza como base (BANDEIRA; RUBIO, 2011; BRANDÃO, 2009). A
prática do surfe apresenta um importante desafio para quem o faz pois, com o
desenvolvimento de determinadas habilidades, habitua-se a realizar uma série
de técnicas que seguem em constante processo de (des)acomodação devido à
relação de dependência com elementos naturais (condições climáticas, maríti-
mas etc.), pois “o surfista tá completamente dependente da natureza” (Pedro):

O surfe não depende só de você sabe, na verdade ele depende que 60%,
acho que mais até, do mar mesmo, da natureza, então, tipo, é o que eu
te falei antes, é uma sincronia muito grande com o ambiente (Silvana).

Este ponto ressalta um aspecto fundamental sobre o fenômeno do


hábito, que por vezes incorre-se em má interpretação: não se trata de franco

3 Trecho original: “there is nothing to say because it is too different. I don’t know. you need to be there to
understand” (tradução livre).
22

automatismo ou mera repetição gestual. Se assim fosse, seria impossível a


prática do surfe, pois as demandas do ambiente impedem que se surfe sempre
da mesma forma, ou seja, através da pura repetição e automatização dos gestos.
Compreende-se o fenômeno do hábito como uma espécie de familiaridade do
corpo consigo mesmo e com determinados movimentos, que se adaptam mais
facilmente às demandas do ambiente e da situação (SAINT-AUBERT, 2013;
TELLES, 2018). Assim, o corpo realiza tomadas de decisão mais ágeis a partir
do que sabe que pode ser feito. No entanto, este saber não precisa passar por um
processo de reflexão e tem sua base em uma consciência – ou saber – corporal.
Paradoxalmente, a experiência de surfar comporta não apenas atos pre-
dominantemente pré-reflexivos, mas também momentos de contemplação que
podem propiciar reflexões – ainda que breves – a exemplo das situações de
espera pela onda. No entanto, trata-se momento característico da imersão na
atividade, em que a espera e a contemplação fazem parte do processo de estar ali

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no mar e que ainda não cabe a realização de muitas reflexões sobre a prática, sob
pena inclusive de não se atentar ao movimento das ondas e acabar por perdê-las.
De acordo com os entrevistados, a experiência de surfar compreende não
apenas sensações agradáveis, como de êxtase e contemplação, mas também de
frustração e medo, especialmente ao vivenciar diversas situações de risco: “o
caldo é terrível. E acidente né, eu já machuquei com prancha, já cortei pé, já
levei prancha em partes muito delicadas do corpo” (Pedro) ou ainda “às vezes
acontece uns redemoinhos assim no mar, que você meio que é engolido e fica
girando” (Silvana). Foram relatadas experiências descritas como de “quase
morte” (Pedro), principalmente ao surfar em ondas grandes:

[...] quando levei caldo assim, essa vez que eu te falei que eu voltei res-
pirando, eu achei que ia morrer. Porque eu fiquei muito tempo embaixo
da água, e eu senti que a água tava muito turbulenta, e eu tentava voltar,
tentava voltar e subia, subia, subia, remava, remava pra subir e não voltava,
não via ar nenhum (Paulo).

Essas situações de risco se apresentam não apenas pela corrente das


águas, mas também por diversos outros elementos naturais: “Já cai em fenda
de pedra, de você ter que lutar contra a fenda, mas no final sempre compensa
e tipo, não é todo momento que é de medo assim, até porque no surfe meio
que o prazer engole o medo” (Silvana).
Essa ideia de valer a pena continuar surfando mesmo diante de condi-
ções bastante adversas não somente foi relatada como parte da experiência
de surfar, como também parece se vincular ao aspecto de vulnerabilidade,
especialmente pelos elementos da natureza. A prática do surfe parece envolver
uma tentativa de controle diante do reconhecimento do incontrolável e da
pequenez diante da imensidão do mar:
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 23

Teve uma vez que eu entrei no mar, tava só eu e meu amigo, e do nada
invadiu uma super nuvem, carregada. Aquele momento foi realmente
marcante pra mim porque eu realmente me senti pequeno, sabe, realmente
eu me senti inútil, minúsculo, porque se resolvesse ter uma tempestade,
cair raio ali... era um dia bem fechado, entrou essa nuvem carregadona e
ficou bem em cima de mim. Realmente aquele dia foi marcante... me senti
um nada, um grão de areia ali (Fábio).

Nesse espectro de se sentir por vezes impotente frente às condições


impostas pelos elementos da natureza, a sensação de empoderamento foi
apontada como importante marco na prática de alguns surfistas: “você se sente
um dominador da onda. Acho que essa é a questão do poder, você sente que
você tá controlando aquela onda naquele momento” (Paulo). De outro modo,
este ponto apareceu relacionado a questões de gênero:
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É emoção assim, é emocionante, não sei descrever (risos). Mas assim de


sentir plena, de alegria, me sinto também empoderada [...] em igualdade
com todo mundo porque tipo, tem a questão da mulher no surfe né, sempre
que uma mulher vai surfar, eu falo por mim, claro, a maioria das pessoas
que estão lá surfando são homens, então tem uma questão de se sentir um
pouco intimidada ou de ter uma certa disputa pra alguma maneira ter que
estar disputando espaço com um homem né, e às vezes porque os caras não
te dão vez, então tu tem que se impor, tem que meio brigar e que se meter
pra conseguir pegar uma onda [...] Então quando eu atinjo esse êxtase, eu
consigo surfar, e fluir bem e tal, essas questões todas desaparecem, assim,
não é que elas desaparecem, mas eu me sinto tão bem, tão satisfeita ali com
o resultado que parece que todo mundo viu e todo mundo fica satisfeito
também, então nesse sentido eu sinto certa igualdade assim, porque todo
mundo fica feliz. (Andrea)

Embora a questão das mulheres no surfe seja tema bastante relevante


e pertinente, não se trata do foco deste estudo. No entanto, esta consiste em
uma importante descrição de embate corporal e que acaba por ser resolvido
pré-reflexivamente. Ou seja, o incômodo trazido pelo fato dos homens serem
maioria no mar e disputarem espaço de forma intimidadora foi solucionado –
ainda que momentaneamente – com a atitude de se impor corporalmente para
conseguir espaço e pegar uma onda. Nesse sentido, ao conseguir surfar bem,
a praticante pareceu experienciar uma sensação de igualdade de gênero por
conseguir o mesmo feito que os homens ao seu redor e ser reconhecida por
isso. Este relato é interessante especialmente por se tratar de uma vivência
que por vezes não encontra consonância com as diversas outras situações
enfrentadas por mulheres em seu cotidiano, mesmo na própria prática do surfe
(CRISTÓFOLLI, MORAES; TELLES, 2018).
24

Vivenciar o mar com uma prancha: sobre a


experiência de estar à deriva e com o outro

A sensação de estar à deriva foi relatada pelos praticantes em diversos


momentos. Em comum, eles trouxeram a ideia de que, apesar do surfe ser
uma prática individual, a experiência coletiva de surfar era bastante apreciada
por muitos: “ninguém faz nada no mundo sozinho. A gente tem que fazer em
colaboração” (Paulo). A presença de outra pessoa no mar foi descrita como
crucial especialmente em momentos de alto risco:

Tava ficando muito cansada, “meu Deus, eu vou morrer, eu vou morrer,


eu vou morrer!”. Daí só veio um surfista e disse “Ei! Vem cá” e me puxou
assim, daí aquilo foi tipo, “Mano, ele me salvou, podia ter morrido”. Isso
me marcou muito [...] é diferente quando tu vai surfar sozinho e quando

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tu vai surfar com gente, sabe? Então isso muda a sua experiência naquele
dia do teu surfe, porque eles vão te ajudar numa manobra, vão te dar
umas dicas, você vai tá mais alegre, vai tá mais feliz e isso vai mudar, vai
aumentar teu desempenho (Deborah).

Embora haja notada importância da presença do outro diante de situações


perigosas, a noção do surfe como uma prática social potente foi resgatada em
diversos momentos, seja nas sessões de uma iniciante descritas anteriormente
nesse estudo (que conseguiu surfar sem estar na presença do instrutor enco-
rajada por estar entre amigos) ou nas entrevistas revisitadas com praticantes
mais experientes:

Até pra tu continuares a surfar, tem que ter gente que vai surfar con-
tigo, ta ligado? O surfe é um encontro social ta ligado? É legal ir surfar
sozinho, mas é muito legal ir surfar com gente, ficar lá na água. Não é
competitivo, é um esporte que um fica instigando o outro, e querendo que
o outro seja bom também (Ricardo).

Como eu já fui ajudado muitas vezes e ainda me ajudam [...] nos conselhos,
ajudar na praia, ajudar no vento assim, na parte técnica, ajuda como ser
humano caso alguém se afogue você tem que ajudar também, ajuda de
um modo geral mesmo, ajuda a ser parceiro da pessoa mesmo que você
não conhece (Fábio).

É relevante considerar que este aspecto social do surfe pode se dar de


diferentes formas, desde ajudas inesperadas a situações estressantes, compor-
tamentos de apoio, encorajamento, como também a exemplo de disputas por
ondas, que podem gerar sensações negativas de estresse na água:
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 25

É estresse de gente... às vezes tem muita gente, aí é localismo, é briga, é por-


rada, o pessoal sai, e surfista é babaca ta ligado? É individual, então... O pes-
soal, ah, quando vai surfar com a tua galera ali, pô, é só brincadeira. Agora tu
rabeia alguém, tu pega onda de alguém, que é mais esquentado [...] já vai
rolar um stress, já vai rolar uma voz alta, um clima errado, uma energia ruim
já estraga toda tua experiência, tu já nem quer ficar mais no mar (Ricardo).

O localismo é um fenômeno comum no surfe, que consiste em priorizar


que surfista de determinado local pegue as ondas, em detrimento de outros
praticantes que não residam naquele lugar e/ou não tenham experiência prática
constante naquela praia. Há uma forte ideia de poder, exercido corporalmente
pelos nativos da área, que por vezes se colocam diante dos outros surfistas
com certa presunção de exclusividade ou hierarquia sobre as ondas (BAN-
DEIRA, 2014; NOGUEIRA, 2016).
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Seja gerador de estresse negativo ou catalisador de experiências posi-


tivas, é próprio do outro o caráter de (des)acomodação. Esta noção foi ante-
riormente mencionada com relação às condições impostas pela natureza e
encontra similaridades com discussões em torno do caráter de alteridade, ou
seja, de estar em relação com alguém que é diferente de mim mesma. Assim,
seguimos com a ideia de outrem, quer seja um elemento natural ou outro
indivíduo. Ambos nos remetem a entrar em contato com as tonalidades de
imprevisibilidade e vulnerabilidade pelo simples fato de serem distintos de
nós mesmos e de não termos controle deste desconhecido que se apresenta a
nós no campo perceptivo. Ou seja, mesmo estando à deriva sozinho ou com
outras pessoas, a experiência de surfar oferece ao corpo um alto nível de
vulnerabilidade e imprevisibilidade.
O surfe parece, então, abrigar uma série de desafios distintos: desde a
aprendizagem individual das movimentações, à constante adaptação às condi-
ções do ambiente, como também passa pela necessidade de lidar com as outras
pessoas que compartilham espaço-temporalmente de uma mesma situação.
Nesse último caso, ressalta-se relevantes manejos corporais realizados pelos
entrevistados, a exemplo da praticante que precisou se impor perante os homens
para conseguir pegar onda ou dos locais que se posicionam de modo a buscar
manter seu poder em relação à prática do surfe em determinada localidade.
Anteriormente, nesse texto dissemos que surfar, a despeito da descrição
técnica, implicaria estar ali, no mar, com a prancha, seja na espera, na con-
templação, no caldo ou no tubo. Após a discussão seguidamente realizada,
acrescentamos que surfar também compreende um corpo que aprende a se
movimentar estando constantemente à deriva, não no sentido de um não saber
desmedido, mas por abraçar a ideia de tentar se equilibrar em meio a um
ambiente de incertezas.
26

Considerações finais

As discussões aqui realizadas não pretendem esgotar as compreensões


em torno do fenômeno de surfar, como também se espera que elas ultra-
passem esta experiência com a prancha e que possam auxiliar nas reflexões
em torno de demais práticas corporais. Ainda, acredita-se que as escolhas
metodológicas utilizadas neste trabalho possam inspirar outras pesquisas a se
aproximarem de seus fenômenos de investigação de modos distintos daqueles
comumente realizados.
Ressalta-se, com este estudo, que compreender o movimento humano
é uma tarefa complexa que por vezes requer a necessidade de se contemplar
distintas áreas do saber – a exemplo das discussões aqui levadas a cabo, pas-
seamos entre psicologia, filosofia, educação física, neurociências, ciências
humanas, sociais e cognitivas. Por outro lado, este capítulo também relata

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o quanto podemos nos perder diante de diversas tentativas de explicações e
interpretações acerca do fenômeno do movimento, ao invés de nos atermos
mais diretamente à experiência vivida do corpo que se move.
Se a perspectiva fenomenológica merleau-pontyana nos inspira ao consi-
derar o corpo como lugar de entrelaçamento das nossas ambiguidades (natureza-
-cultura, sujeito-objeto, dentre outros), ousamos apontar o movimento humano
como um espaço de síntese, por excelência, entre mente, corpo e mundo.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 27

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CAPÍTULO 2
NARCISO SOBRE ONDAS:
reflexões sobre a autoimagem e a
democratização imagética no surfe
Vinícius Cardoso de Souza
Rafael Campos Veloso

E a ilha desconhecida?, perguntou o homem do leme. A ilha


desconhecida não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei
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foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que
se acabou há muito tempo...” “Pela hora do meio-dia, com a maré,
A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma”
(José Saramago).

Introdução
Narciso, na mitologia grega, se apaixonou pela sua própria imagem,
refletida num lago. Na narrativa mitológica, essa paixão o levou à morte. Nos
dias atuais, possivelmente, Narciso teria uma rede social repleta de fotografias
de si mesmo (selfies). As curtidas poderiam ser comparadas às ninfas que por
ele se apaixonaram e foram desprezadas, pois, Narciso estava mais dedicado
ao desejo da bela imagem de si mesmo, do que retribuí-las em forma de afeto.
No entanto, as curtidas, tais quais ninfas, parecem ecoar como solicitações para
que esse fenômeno ‘narcisista’4 do mundo contemporâneo, ocorra. Decerto,
poderíamos somar a esse cenário, o conceito de cultura da vaidade sugerido
por La Taille em “Moral e ética no mundo contemporâneo”, onde o sujeito vai-
doso depende, necessariamente, do olhar e da admiração do outro, carregando
consigo uma necessidade de permanecer conectado e, consequentemente, visí-
vel para o outro. Ao trazer a palavra vaidade para o centro do debate, o autor
observa que sua origem etimológica sustenta o significado de vão, de vazio,
de frivolidade (2016 p. 37). Antes de seguirmos com a interpretação do mito,
vale ainda ressaltar que a etimologia de “Narciso” remete sobre sua natureza.
Do grego narkissos, que significa “aquele que foi narcotizado, paralisado”.
A palavra “narcótico”, em português, emana do mito, por ser narciso um dos
mais antigos narcóticos que se conhece, tendo efeito próximo aos extratos
retirados da papoula (SALIS, 2003, p. 132).
4 Termo aqui colocado no sentido corriqueiro e sem relação, em primeira vista, à exercício formal de mitohermenêutica.
32

Estaria a sociedade contemporânea passando por uma condição de esva-


ziamento do espírito – no sentido amplo do termo – como resultado do efeito
narcótico que a autoimagem exerce sobre as pessoas? Dizer que “sim” seria, cer-
tamente, um tanto quanto precipitado. Porém, ao observar o comportamento das
pessoas nas redes sociais, podemos perceber alguns indícios quando, por exem-
plo, vemos selfies de pessoas em lugares como campos de concentração, museus
e memoriais relacionados ao holocausto, fazendo poses e aparentando um certo
contentamento não muito condizentes com que esses monumentos simbolizam
e representam (DIENER, 2014). Segundo Lasch, (apud WANDERLEY, 1999)
os narcisistas dos tempos modernos são os novos radicais, desprezam o passado
e vivem para o momento, se afastando do sentido de continuidade histórica.
Voltando ao mito, Narciso, diante das águas, tem a revelação de sua
identidade e de sua dualidade e, sobretudo, a revelação de sua realidade e idea-
lidade (BACHELARD, 2002). Embora Narciso tenha tido um fim trágico, ao

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desfalecer em função de uma forte e paralisante paixão para com sua própria
imagem, Bachelard nos alerta de que o narcisismo nem sempre é neurotizante,
mas, também, pode desempenhar um papel positivo na obra estética e literária:

A sublimação nem sempre é a negação de um desejo; nem sempre ela se


apresenta como uma sublimação contra os instintos. Pode ser uma subli-
mação por um ideal. Então Narciso já não diz: “Amo-me tal como sou”,
mas sim: “Sou tal como me amo”. Sou com efervescência porque me amo
com fervor. Quero parecer, logo devo aumentar o meu adorno. Assim, a
vida se ilustra, se cobre de imagens (BACHELARD, 2002, p. 25)

É notório o espaço que a selfie e a valoração da autoimagem ganharam em


todas as camadas da sociedade, assim como sua interação e integração com as
manifestações sociais. O esporte, entendido por Rubio (2013), como um dos
maiores fenômenos socioculturais do mundo contemporâneo, também tem sido
fortemente acometido por essa onda das selfies e já se tornou parte integrante do
dia a dia de atletas e praticantes de diversas modalidades esportivas. Dentro da
seara do esporte encontramos no Brasil, como exemplo e objeto deste texto, o
surfe. Prática corporal de movimento que tem se destacado na última década como
modalidade esportiva, em função da ascensão e conquistas de atletas brasileiros
nas principais competições internacionais. Parte da ascensão da popularização
da modalidade também pode ser atribuída ao número de horas que esses atletas
se dedicam a mostrar suas rotinas e estilos de vida nas redes sociais. Assim,
pretendemos a seguir estabelecer a aproximação entre a hermenêutica simbólica
(mitohermenêutica) do mito de Narciso – exercício de interpretação por meio da
observação da reincidência de unidades semânticas da narrativa mítica (imagens,
mitemas e mitologemas) no objeto analisado – e o surfe, enquanto prática corporal
de movimento e modalidade esportiva, tendo o surfista na condição de Narciso.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 33

Narciso sobre ondas

Permita-se viajar no tempo e voltar ao século XVIII, no ano de 1777,


data que remonta às origens do surfe, e imaginar que quase 250 anos depois
seria possível ver pessoas surfando e materializando imagens absolutamente
incríveis como as que vemos nos dias atuais. Bachelard (2002) discorre sobre a
imaginação como a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade,
que cantam a realidade. O autor vai além quando afirma que um homem é um
homem na proporção em que é um super-homem, e essa definição se dá pelo
conjunto das tendências que o impelem a ultrapassar a condição humana. O surfe
parece ser uma prática da cultura corporal de movimento que carrega um certo
misticismo em sua essência. Ao se lançar ao mar, o surfista está, entre muitas
coisas, entrando num universo misterioso de temperamento descontínuo. Mesmo
que já tenha bastante experiência, experimentará, quase sempre, uma tensão que
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alimenta e condiciona a relação entre seu imaginário e o ambiente marinho. Essa


tensão pressupõe um enfrentamento com uma energia cósmica à espera de um
ser que se mostre capaz de superar todas as incertezas, adversidades, medos e,
uma vez passados esses obstáculos, poderá, finalmente, saborear a imaginação
de ser sobrehumano. Um ser capaz de imaginar e ressignificar a própria vida.
Idealizar sua própria imagem, fazendo coisas incríveis e belas com o equilí-
brio do corpo, deslizando sobre as ondas com a prancha sob seus pés, como se
estivesse domando o que para muitos parece ser o “indomável” da natureza. É
importante ressaltar que o surfe, assim como em outras atividades, também é
submetido ao padrão do belo e do esteticamente validado. O modo pelo qual a
imagem do surfe se difunde, de maneira geral, segue o esteio do comportamento
e dos hábitos digitais dos dias atuais, constituído pela democratização da pro-
dução imagética (fotografias) sobre o padrão estético constituído e difundido
pela indústria estadunidense de filmes que focalizam a cultura do surfe.
A construção imagética do surfe, enquanto prática corporal de movi-
mento, começa a ser edificada a partir do momento em que o Capitão britânico
James Cook, a bordo de seu navio durante a terceira e última viagem pelo
transpacífico, se depara com um surfista de canoa no Tahiti, em 1777. Cook
faz uma nota no seu diário: “não pude deixar de concluir que este homem
sentiu o mais supremo prazer enquanto era conduzido tão rápido e suavemente
pelo mar” (WARSHAW, 2003 p. XI). Quase cem anos mais tarde, em 1872,
o escritor Mark Twain, considerado um dos mais respeitáveis escritores a
testemunhar o surfe em seu estado polinésio nativo, também escreveu sobre
essa experiência em seu diário de viagem chamado Roughing it:

Num local, encontramos um grande grupo de indígenas nus, de ambos


os sexos e todas as idades, divertindo-se com o passatempo nacional do
34

banho de surfe. Cada pagão remava trezentos ou quatrocentos metros,


mar adentro (levando consigo uma prancha pequena), depois ficava de
frente para a costa e esperava que uma onda particularmente prodigiosa
aparecesse; no momento certo, ele lançaria sua prancha sobre a crista
espumosa e ele mesmo sobre a prancha, e aqui ele viria zunindo, como
uma bomba! (SURFER, 2014).5

Fotografias de surfistas começaram a ser produzidas no fim do século


XIX, mas foi no começo do século XX que o estadunidense Tom Blake, impor-
tante personagem da história do surfe, construiu uma caixa de madeira que
pesava 5kg para proteger sua câmera Graflex e assim colocá-la sobre a prancha
para capturar imagens enquanto surfava. Suas imagens ganharam destaques
no The Los Angeles Times em 1931. O dentista e surfista John “Doc” Ball,
inspirado pelo trabalho de Tom Blake, realizou entre os anos de 1931 e 1941,

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aproximadamente mil fotos relacionadas ao mundo do surfe. A Surfer Maga-
zine, creditada como a primeira e mais importante revista de surfe, produzida
pelo cineasta e surfista John Severson em 1960, teve sua primeira versão publi-
cada com fotos de surfe em preto e branco, todas ‘clicadas’ pelo por ele. Desde
as citadas ações embrionárias até meados dos anos de 1960, muitas revistas
de surfe surgiram pelo mundo todo (WARSHAW, 2003). No Brasil, a revista
Fluir foi uma das principais referências de imagens de surfe no período entre
o começo dos anos de 1980 até aproximadamente início dos anos 2000, mas
com a chegada das plataformas digitais sua manutenção foi se tornando inviável
e culminou no encerramento das tiragens em 2016. Hoje, praticamente não
há mais revistas impressas direcionadas ao público que acompanha o surfe.
O fim da década 1950 e início de 1960 também foi marcado pela chegada
da indústria audiovisual do surfe. Os filmes de surfe começaram a ser produzi-
dos por surfistas e para surfistas. Basicamente obedeciam a um padrão estético
simples, composto por montagens contendo duas ou três dúzias de cenas de
surfistas em ação, interrompidas, amiúde, por esquetes de comédia e vinhetas.
Nesse período, quase todos os filmes eram realizados exclusivamente na Cali-
fórnia, Austrália, México e Havaí; todos eles terminavam com uma sequência
de imagens de ondas grandes gravadas na costa norte de Oahu6. Hollywood
colocou o surfe nas telas do mundo todo com sua versão de Gidget, lançada
em 1959. Gidget foi um romance escrito por Frederick Kohner, em 1957,
baseado na vida de sua filha adolescente Kathy Kohner e suas experiências com
o surfe e os flertes na praia de Malibu, Califórnia. O filme fez tanto sucesso
que anos mais tarde se tornou uma série de TV, atingindo um público maior

5 Disponível em: https://www.surfer.com/blogs/culture/surfe-bathing-revisited/. Acesso em: 16 set. 2020.


6 A terceira maior e a mais conhecida ilha do arquipélago do Havaí. Disponível em: https://www.gohawaii.com/
islands/oahu. Acesso em: 9 out. 2020.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 35

e mais heterogêneo. Ainda, outros filmes praianos lançados por Hollywood,


como Beach Party, Beach Blanket Bingo, acompanhados do surgimento da
surfe music com The Beach Boys, contribuíram para a construção imagética
relacionada ao universo do surfe. A introdução das fitas de videocassete, no
início da década de 1980, no mundo do surfe, serviu de ajuda instrutiva para
os surfistas que passaram a ter a possibilidade de se assistirem para estudar
a técnica e a estética do corpo sobre a prancha, assim como se valer de suas
imagens como ferramenta de marketing em feiras de surfe (WARSHAW, 2003).
As imagens, ao longo do tempo, vêm ganhando mais qualidade e pro-
ximidade conforme a evolução tecnológica dos equipamentos de captação
de imagem, tornando a experiência visual um ambiente repleto de símbolos
e significados. Segundo Warshaw (2003), ex-editor da Surfer Magazine e
ex-surfista profissional, a fotografia de surfe tem sido, desde meados dos anos
de 1960, muito mais uma versão fantasiosa do esporte do que um item docu-
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mentário. No seu livro The Encyclopedia of Surfing, Matt Warshaw menciona


o jornalista de surfe californiano, Steve Barilotti, que escreveu, em 1997: “Elas
criam desejos, estimulam jornadas, inspiram, causam deleite e nos transportam
mental e espiritualmente de nossa existência laboriosa e terrestre” (p. 587).
Tal declaração corrobora com a ideia de narcisismo idealizante, trazida por
Bachelard (2002), cuja centralidade se apoia em tornar o caminho do mundo
sensível, um caminho mais florido, aberto às construções do imaginário e suas
metáforas. O surfista, aproximado ao mito de Narciso, ao ser exposto às diver-
sas mídias de grande alcance, acrescido de uma pujante influência do culto ao
consumo, da vaidade e da espetacularização, conceitos que balizam a ideia de
mundo contemporâneo de La Taille (2016), se encontra meditando sobre seu
conteúdo estético e sobre seu devir. Deseja ver sua imagem aproximada aos
padrões estéticos dos movimentos habilidosos sobre a prancha, dos lugares
frequentados, dos gêneros musicais, das marcas de roupa e do estilo de vida. A
relação, entre surfista e imagem, transcende a realidade e chega ao universo dos
videogames em 1982, com o jogo Surferboy, produzido por japoneses, no qual
o jogador precisa manobrar seu surfista passando por tubarões, pedras e outros
surfistas (WARSHAW, 2003). Os jogos atuais trazem muito mais elementos
imagéticos de interação e reproduzem a ‘realidade’ vista nas competições, onde
o jogador encontra, por meio da personificação do avatar, a possibilidade de se
realizar, dentro do campo imagético, como um surfista profissional.
Corrobora, com a discussão acerca do conjunto estético da modalidade,
o fato de que o circuito mundial de surfe, durante muitos anos, foi chamado,
oficialmente pela WSL (World Surfe League) de “Dream Tour”. Isto é, condi-
ção ideal, onde os atletas de surfe viajam para surfar e competir, nos melho-
res lugares do mundo, para sua prática. A WSL, entidade principal do surfe
profissional, curiosamente uma empresa de mídia digital, junto com diversas
36

outras empresas do segmento, vendem com maestria a imagem do surfe. Esses


atletas surfam em lugares paradisíacos, “performando” em ondas incríveis
e produzindo conteúdos criativos, transcendendo a realidade da maioria da
população surfista, que acaba, de alguma forma, sendo fagocitada pelo sonho
de ter sua imagem atrelada a esse universo.
Se fôssemos reanimar o mito de Narciso no mundo contemporâneo,
não caberia pensá-lo como um sujeito completamente satisfeito apenas com
a inação das águas do lago para ter sua autoimagem perfeitamente refletida.
Narciso, ainda seria apaixonado por sua beleza, porém, ávido em ver sua
imagem refletida em diversos lagos, como prova de excelência e sucesso.
Bachelard (2002), ao ensaiar sobre a imaginação da matéria, nos oferece
caminhos para a tentativa de compreender como o narcisismo foi capaz, ao
longo do tempo, de ser reanimado, ganhar novas configurações, intensidade

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e se desvendar para o mundo: “Narciso, na fonte, não está entregue somente
à contemplação de si mesmo. Sua própria imagem é o centro do mundo. Com
Narciso, para Narciso, é toda a floresta que se mira, todo o céu que vem tomar
consciência de sua grandiosa imagem” (p. 26-27).
O fatal efeito paralisante que levou Narciso à morte, nessa hipótese,
seria substituído por um efeito fugaz e vicioso, diante da infinidade de possi-
bilidades de reprodução de sua autoimagem em diversas instâncias. Ou seja,
Narciso seria igualmente produto de uma sociedade individualizada, na qual,
conforme postulou Bauman (2008), o sujeito é constantemente encorajado a
olhar para si, para suas vontades, suas capacidades e seu poder. Ulrich Beck,
citado por Bauman em “A sociedade Individualizada”, afirma:

[...] o que emerge das normas sociais que desaparecem de modo gradual
é um ego desnudo” e “na busca de si mesmo e de uma sociabilidade
afetuosa, ele se perde com facilidade na selva do self. Alguém que esteja
se movendo devagar, na neblina do seu próprio self, deixa de ser capaz
de notar que esse isolamento, esse ‘confinamento solitário do ego’ é uma
sentença da massa (BAUMAN, 2008, p. 68-69).

O atual modelo de sociedade em que estamos inseridos, está submetido


aos adventos da tecnologia e dos hábitos no espaço virtual (redes sociais) que
podem funcionar como o espelho da fonte de Narciso. Nela, “Narciso, sente
que sua beleza continua, que ela não está concluída, que é preciso concluí-la”
(BACHELARD, 2002, p. 24). Uma beleza contínua, mas que precisa ser
concluída. E impõe ao sujeito a busca constante por algo que possa torná-lo
mais atraente, interessante e rejuvenescedor. O surfista profissional no mundo
contemporâneo é estimulado a se reinventar incessantemente. E muitas vezes
o faz por meio das redes sociais, buscando produzir imagens que o afirmem
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 37

enquanto ser capaz de realizar ações extraordinárias. Hoje, este surfista pode
alcançar um lugar de destaque não somente pelo nível de habilidade no surfe
apresentado nas competições, mas também pelo volume de conteúdo e enga-
jamento gerado nas mídias sociais em torno de suas vidas pessoais. Não basta
vestir o uniforme de competição e realizar manobras habilidosas. Ao surfista
profissional que queira ganhar visibilidade, cabe ainda alimentar seu canal no
Youtube, com edições de viagens de surfe, participar dos desafios do Tiktok7
e postar fotos de sua rotina, muitas vezes com o intuito de exibir o produto
do patrocinador. Enfim, participar ativamente da sociedade do espetáculo,
conceito criado por Guy Debord, em 1967, em que define o espetáculo como
o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens (COELHO, 2010).
Estampar capas de revistas impressas se tornou produção imagética de
tempos passados. O surfista, de ambos universos, que almeja ter notoriedade,
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obter fama e viver do surfe nos dias atuais, não precisa exclusivamente parti-
cipar de competições nacionais e internacionais, como era comum no início
da profissionalização do surfe, na década de 1980. Atualmente, é possível
optar por investir em consultorias de mídias sociais que o ajudem a vender sua
imagem nas plataformas digitais orientadas às redes sociais, utilizando o surfe
como pano de fundo. Ou seja, se trata de surfistas capazes de acumular segui-
dores e, portanto, capazes de influenciar muitas pessoas; o chamado digital
influencer, voltado ao universo específico desta cultura corporal de movimento.
Seguindo na esteira da potencialidade de alcance do surfista enquanto
influenciador por intervenção da sua autoimagem, nos deparamos com o sur-
fista não profissional, o surfista de fim de semana, o iniciante, ou seja, uma
grande parcela específica dessa população que pratica, consome e é, sobretudo,
influenciada pelo conteúdo do surfe. População que pode ser persuadida por
conseguir imagens que mimetizam a realidade de um surfista popular nas
redes sociais, seja esse surfista profissional ou não. Nessa trajetória, nasce
um desejo de exibir um ideal imagético de aproximação da relação entre
surfe, enquanto filosofia de vida, e indivíduo. O narcisismo generalizado,
segundo Bachelard (2002), “transforma todos os seres em flores e dá a todas
as flores a consciência de sua beleza. Todas as flores se narcisam e a água é
para elas o instrumento maravilhoso do narcisismo” (p. 27). Esta colocação
de Bachelard pode assumir uma forma mais concreta, ao observarmos o que
vem ocorrendo nas areias das praias brasileiras, quando observamos a elevada
presença do número de fotógrafos especializados na produção imagética do
surfe, dispostos a capturar imagens de surfistas, do iniciante ao profissional,
e fazer disso mais uma fonte de renda; quando não a principal.

7 Aplicativo de mídia para compartilhamento de vídeos breves em celulares. Disponível em: https://www.tiktok.
com/pt_BR/ (18/09/2020).
38

A matéria da Folha de São Paulo no caderno “Origem Surfe”, em Junho


de 2018, destinada ao público do surfe, versa sobre o sucesso da startup, Surfe-
mappers, que vem conectando fotógrafos e surfistas. Dados da época apontam
para mais de 20 mil fotos vendidas e média de 200 mil fotos atualizadas por
cerca de 500 fotógrafos ativos na plataforma. As regiões Sul e Sudeste do
Brasil estariam na liderança do uso e consumo dessa ferramenta. Diante desses
números, é possível inferir sobre o papel da valorização da autoimagem na
vida do surfista. Sendo o surfe um esporte individual, muitas vezes solitário
e constituído da brevidade de um instante, a fotografia dá ao surfista a mate-
rialização de uma ação imaginária de um momento extremamente único e
particular, pois, se trata de uma vivência temporal que não mais se repetirá, se
considerarmos que uma onda nunca é igual à outra. Ao admirar sua imagem
surfando, o surfista tem a oportunidade de rememorar tudo aquilo que viven-
ciou para chegar a tal instante; de tomar consciência do belo no movimento; se

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aproximar do imaginário concebido sobre o universo do surfe e, diante disso,
contemplar com emoção seu feito habilidoso. Soma-se a isso uma máxima
que permeia o mundo do surfe, principalmente para os praticantes por lazer,
que diz algo como: se ninguém viu a onda surfada, ela não aconteceu. Por
baixo do tom jocoso da expressão, existe a base fenomênica do corpo em
movimento que deseja a permanência do instante e a distinção em sua comu-
nidade por meio do registro do feito habilidoso. Esta parece ser a condição que
impulsiona o sucesso de plataformas de fotografias, como a citada neste texto.
Afinal, os produtos desse ‘mercado de imagens’ são, diretamente, exibidos e
compartilhados nas redes sociais de seus consumidores. Kelly Slater, 11 vezes
campeão mundial de surfe, em sua autobiografia intitulada Pelo Amor (2010),
obra que considera ser “um passeio visual alucinante por sua vida”, escreve a
respeito do significado dos registros de suas imagens: “As câmeras registram
momentos muito emocionantes, como minha animação ao surfar contra meu
herói” e segue, “acredito que o mais importante é o fato de terem registrado
momentos maravilhosos da vida de uma pessoa, justamente quando há muita
diversão e agitação; a sensação que o surfe dá a você é a de que o momento
poderia se perpetuar indefinidamente” (p. 31).
Portanto, o surfe parece ser esse lugar onde belas imagens podem ser
capturadas pelas lentes de dispositivos fotográficos dos mais diversos tipos,
permitindo ao surfista a possibilidade de construção da autoimagem. Assim,
pode admirar e encantar-se a partir de experiências de si para com o meio, que
em função da dinâmica social em que vivemos, na qual de acordo com Jurandir
Freire Costa (apud LA TAILLE, 2016) os indivíduos são levados a ver o mundo
com as lentes do espetáculo, torna a prática e a idealização do surfe atraente
ao público, principalmente ao público jovem, por este estar mais familiarizado
com as novas plataformas digitais de compartilhamento de imagens.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 39

Narciso, filho de Cefiso e da ninfa Liríope, nasce a mando da deusa do


amor e da beleza, Afrodite. Seu desejo era que Narciso percorresse todos os
lugares e despertasse o amor na humanidade por meio de sua beleza. Ao saber
da morte de Narciso, Afrodite transformou-o em flor e ordenou aos mortais
que distribuíssem e espalhassem beleza e amor para afastar a humanidade das
disputas e das guerras (SALIS, 2003). O surfe, enquanto modalidade espor-
tiva em evidência, detentor de um número significativo de jovens adeptos ao
esporte e, especialmente, aceito como campo de criação de belas imagens do
corpo em movimento, parece cumprir a ordem de Afrodite ao ser democrati-
zado para o mundo nas mais diversas formas.
Uma das evidências deste panorama traçado até aqui foi a inclusão do
surfe no programa dos Jogos Olímpicos da cidade de Tóquio, no Japão, pre-
vistos para o ano de 2021, depois de serem adiados em 2020 por conta da
pandemia de coronavírus que assolou o mundo neste ano. De acordo com
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Yoshiro Mori, membro do comitê executivo dos Jogos Olímpicos de Tóquio,


os critérios usados pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), para justificar
a inserção do surfe, no corpo de modalidades olímpicas, dizem respeito a sua
capacidade de atrair atenção e inspirar jovens, a gostarem do esporte olímpico
(COB, 2016). Segundo Veloso (2019), o Movimento Olímpico avança sobre
os chamados Esportes de Aventura – classificação onde o surfe se encontra –
objetivando, junto à adesão ao programa olímpico, promover uma renovação
de produtos que atenda aos novos anseios do imaginário social contemporâneo,
muitas vezes influenciado por modelos de espetacularização do esporte. Nesse
contexto, Narciso também pode ser reanimado no surfista olímpico diante da
chama olímpica e da oportunidade de corporificar o desejo de Afrodite, reve-
lando neste grande palco do esporte, a beleza dos movimentos espetaculares;
que em essência, passam por si mesmo.
40

REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da
matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histó-


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RUBIO, Katia. From Amateurism to professionalism: sport’s transformations by


the Brazilian Olympic Athletes’ lenses. Humanit Soc Sci., v. 1, n. 3, p. 85, 2013.

SALIS, Viktor D. Mitologia Viva: Aprendendo com os deuses a arte de viver


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SLATER, Kelly. Pelo amor. São Paulo: Gaia, 2010.

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abordagem Laschiana. Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n.
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feleague.com/pages/history. Acesso em: 15 set. 2020.


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CAPÍTULO 3
TÁ DANDO ONDA? UMA
SUSPEITA SOBRE O IMAGINÁRIO
GOOD VIBES DO SURFE
Fidel Machado de Castro Silva

A princípio, adianto que a proposta aqui anunciada é, declaradamente,


ensaística e exploratória. O intuito é gerar a problematização e, sobretudo, a
reflexão sobre a temática e o imaginário good vibes do surfe bastante presente
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dentro e fora da água. Entendo que, por se tratar de um campo relativamente


autônomo, essa modalidade esportiva possui características estruturais e reproduz
muitos comportamentos presentes na sociedade no que diz respeito ao tratamento
e à conduta com determinados corpos. Embora tenha potencial de promover
alterações no âmbito da ética e da política, o surfe ainda se apresenta como um
campo predominantemente masculino e carregado de valores e comportamentos
reprodutores de padrões de dominação (BANDEIRA; RUBIO, 2011).
A construção desse capítulo se materializa a partir de um caldo de inquie-
tações. Por sua vez, o caldeirão de interrogações possui como ingredientes
as conversas dentro e fora da água, como os questionamentos de amigos e
amigas que não surfam; a recorrência de um padrão de corpo nos campeonatos;
as falas de presidentes de instituições oficiais que reforçam a sexualização,
a objetificação e resultam na manutenção de uma lógica e na valorização de
um modelo de corpo. Como desdobramento disso, incorremos fatalmente em
uma pressão estética que incide de forma mais intensa e vigorosa no corpo
das mulheres. Ademais, percebo uma invisibilização e o silêncio das pessoas
LGBTQIA+, dos negros e o predomínio de uma masculinidade hegemônica.
Não seria leviano em desconsiderar os avanços e as modificações já existentes
nos mares por aí afora. Todavia, não posso negar a relação conflituosa e os
embates estabelecidos por grupos que reivindicam espaços na água. Dito isso,
deixo a indagação: em um contexto em que muitas atitudes são naturalizadas,
muito vistas e pouco faladas: tá dando onda?
No interior estrutural de algumas instituições, alguns marcadores sociais
ditam os lugares que determinados corpos devem ocupar. O entrecruzamento de
raça, gênero e classe social são critérios basilares dessa dinâmica eficiente, vigente
e velada (DAVIS, 2016). Outrossim, há uma espécie de tolerância para alguns
corpos desde que eles desempenhem a performance esperada. Caso contrário,
44

as ofensas são por conta da casa. Diante desse contexto, histórias tecidas na
teia da desigualdade são facilmente utilizadas para querer enaltecer a falácia da
meritocracia. Mais um estratagema para isentar de responsabilidades e manter
o sistema com as engrenagens lubrificadas. Essa falácia é estúpida e só serve
para atenuar as tensões e normalizar as desigualdades dos órgãos, federações,
confederações e comitês. Se apropriar da representatividade de maneira conve-
niente sem modificação no alicerce soa como uma solução cosmética e utilitária.
A suspeita, conduta recorrente na filosofia e no pensamento de Nietzs-
che, caracteriza-se por colocar em suspensão interpretações vigentes, ver-
dades acabadas e hegemônicas com possíveis associações e interferências
de elementos da moral, para, posteriormente, dar-lhes outras perspectivas.
O método da suspeita configura-se como um recurso que pode nos permitir
ver algo a mais nesse cenário, ampliando assim a discussão sobre o tema. O
filósofo propõe que mantenhamos nossas crenças e nossos valores sempre

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sob dúvida, pois tais verdades são apenas fruto da criação humana a partir
de determinadas relações de forças (NIETZSCHE, 2009). Conhecido como
o pensador da suspeita, Nietzsche nos convida a questionar todas as nossas
convicções, certezas e juízos. Essa será a tônica das linhas vindouras: observar
atentamente a egrégora do good vibes e o life style presente no surfe. Será que
toda essa cultura de paz, harmonia, amor e ligação com a natureza se sustenta?
O oceano é democrático, mas será que os marcadores sociais de gênero, raça e
classe, em alguma medida, não se impõem e demarcam a linha da rebentação8?
Aos mais apressados e apressadas, respirem. O fato de realizar a sus-
peita e fazer a crítica não significa dizer que estou negando a possibilidade
da existência de todo esse cenário harmonioso. Brasil, Ramos e Goda (2013)
comentam que a comunhão com a natureza, a busca por uma alimentação
saudável, ambientes naturais, sensações de diversão, risco, lazer, aventura,
uma certa despreocupação com a performance e um certo flerte com uma
dimensão alternativa resulta em fatores estimulantes para a procura e o desejo
em realizar a prática. Todavia, a tentativa de universalização e a pretensão
totalizante dessa imagem do surfe gera uma série de questionamentos, como
para quem esse estilo de vida é possível e viável?
Ademais, não podemos desconsiderar as continuidades e descontinuida-
des que a imagem do surfe, ao longo do tempo, sofreu e sofre. Em determinado
período houve uma significativa rejeição dos valores da geração anterior,
uma presença massiva de jovens da classe média e uma associação com a
jovialidade e a Bossa Nova. Ainda na mesma esteira, havia uma refutação
e reivindicação com o intuito de alteração para superar o capitalismo. Além
disso, o surfe dialogava fortemente com um misticismo e uma integração

8 A rebentação é o local do mar onde quebram as ondas. Para que o surfista possa ter melhores condições
de onda é necessário passar da rebentação e assim chegar ao outside.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 45

com a natureza e o uso frequente de drogas. A ideia da contracultura denotava


rejeitar os valores tradicionais e vigentes em busca de uma vida andarilha e
libertária (BOOTH, 2001; MELO; FORTES, 2009).
As produções cinematográficas também protagonizaram uma competição
acirrada na disputa das representações e significados do surfe. De um lado as
produções hollywoodianas que apresentavam o surfe como um passatempo e
do outro lado os especializados que buscavam expressar, nas suas produções,
ondas grandes, modelos de pranchas e um leque de manobras. Nesses filmes
a imagem do surfista era recorrentemente associada à subversão (MELO;
FORTES, 2009). Inúmeras foram as modificações e o consenso não esteve
presente na grande maioria desses momentos.
No campo do surfe, o contraditório e o paradoxo são figurinhas carim-
badas no outside9. Percebemos nas mais diversas relações de força e interesse
uma série de aproximações e distanciamentos. Dias (2009, p. 278) comenta
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sobre o conflituoso processo de esportivização do surfe: “Esportivizá-lo, nesse


caso, significava moralizá-lo, isto é, associá-lo a imagens de saúde e bem-es-
tar físico”. Nesse bojo, a narrativa romântica não foi negligenciada e passa
a ser aliada imprescindível para as estratégias de marketing. Ou melhor, o
mesmo desejo essencialista que intenciona manter uma visão romântica sobre
o esporte acabou estimulando o advento da profissionalização.

O próprio processo de profissionalização e aumento do número de pratican-


tes expressa outro cenário e traz preocupações para os envolvidos com o
campo, algo que não poucas vezes desencadeou discursos saudosistas e o uso
da história como forma de construir uma legitimidade para que alguns pro-
ponham a manutenção de certos valores (MELO; FORTES, 2009, p. 293).

A dominação masculina e o primado da masculinidade endossa a apro-


priação da cultura pelos homens e, como construção social, é alicerçada e
produzida por esse domínio e legitimada por diversos outros discursos com
intuitos de manutenção da ordem vigente, como a divisão social do trabalho
e sua separação entre seres produtivos e reprodutivos (BOURDIEU, 2016).
A diferença anatômica entre o corpo masculino, o corpo feminino e os seus
órgãos legitimam as atribuições sociais diferenciadas. Calcada pela oposição,
o homem e a mulher possuem uma relação assimétrica. Nessa conjuntura,
como desdobramento dessa oposição, resta a mulher a adequação à estrutura
que a condiciona, de partida, a inferiorizar-se, adotar um papel coadjuvante e,
por vezes, irrelevante na dinâmica social. Já o corpo masculino ocupa-se de
prestígio, de vigor e virilidade no que tange as ações socialmente prestigiadas.
9 Tendo como referência a praia, o outside está localizado após a rebentação. É a parte mais funda em
comparação ao inside, parte mais rasa.
46

A visão que se tem das mulheres na sociedade ainda reluta em vinculá-las


aos atributos de força, habilidade, poder, perícia e eficiência. Na área esportiva, a
mulher que apresenta força ou alguma outra valência física semelhante ao que é
atribuído aos homens oferece risco à ordem social heteronormativa, pois “compro-
mete” questões de sexo e gênero. Além disso, pode prejudicar a estrutura e a noção
de padrão de força. Mulheres que porventura vierem a se destacar em práticas
viris são questionadas sobre a veracidade de ser mesmo uma mulher. Certos hábi-
tos reforçam determinadas estruturas de poder, marcam corpos, rotineiramente,
estereotipados, julgados e naturalizados como estranhos, abjetos e inferiores.
Na construção dessa identidade masculina com todos os adjetivos máscu-
los, as características tidas e construídas contingencial e historicamente como
boas são, automaticamente, coladas. Dessa forma, tudo aquilo que fugir dessa
conjuntura é tido como ruim ou errado, logo tem de ser evitado. A singularização
e sedimentação dessa ilusória identidade com pretensão universal e totalizante

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é danosa, pois descarta toda e qualquer forma de ser homem que fuja desse
padrão. Não há espaço para fraquejadas. Os demais corpos que não se adéquam
a essa fôrma são tidos como inferiores e não raramente são alvo de chacotas.
A heterossexualidade foi construída socialmente como padrão universal de
toda e qualquer forma tida como normal. Dada essa norma, as demais formas
de orientação sexual são tidas como anormais, como estranhas e passíveis de
intervenção. Bourdieu (2016) elenca algumas instituições que contribuem para
a manutenção da hierarquia desse modelo, como a família, a igreja, a escola e
o estado. Contudo, a instituição esportiva, como já comentamos, faz jus à sua
caraterística relativamente autônoma e, também, se apresenta como um lugar
profícuo para a ênfase no binarismo dado o seu sistema de divisão entre sexos.
Dessa forma, corpos que não se encaixam nessa conjuntura ou são invisibiliza-
dos ou interditados da prática. As normatividades referentes à temática, estão
instituídas do sexo ao gênero, da biologia à cultura. A ordem masculina adquire
caráter relevante, passa a se inscrever nos corpos e dita quais manifestações de
sexualidade são tidas como legítimas e socialmente aceitas. Tal prerrogativa não
possui como fundamento primordial o falo, mas está ancorada sob uma visão de
mundo, constituída e imposta por homens que se articula com a divisão binária
e atribui ao órgão sexual um símbolo de virilidade e poder.
Tenho pensado bastante sobre masculinidades e sobre esse contrato social
tácito que delibera as ações e atitudes específicas do homem, da mulher, da
criança, do idoso e afins. Tenho ficado inquieto com esse dever-ser e, para
ser mais específico, com esse tipo de Homem ideal que é almejado por uma
parcela significativa da sociedade. Tenho pensado no sacrifício de performa-
tizar esse homem e sobre os efeitos que tentar sê-lo pode causar. Ademais, se
prosseguirmos na linha argumentativa, a adequação aos quesitos e critérios
é fatalmente passível de falhas, de fracassos de impotência e incapacidade.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 47

Não objetivo com a escrita destas linhas inverter o polo e impor que para
ser homem agora é obrigatório dançar, chorar, usar flor na barba e ser sensí-
vel. Isso seria mais uma roupagem de uma outra moral que, como princípio,
seria idêntica ao modo vigente. O intuito é suspeitar e questionar a estrutura.
Compreender as engrenagens que mantém por tanto tempo e de forma tão
forte esses papéis sociais. Desnaturalizar e refutar os discursos, talvez já possa
ser um primeiro passo para questionar essas verdades absolutas. Um convite
para refletir sobre as imposições sociais que supervalorizam comportamentos
hipermasculinizados e exercem efeitos diversos no que tange a verbalização
e a relação com os afetos e os sentimentos.
A ideia de homem e masculinidade possui estruturas rígidas que perpas-
sam vários setores, mas, por ser um parâmetro de classificação, não possui
ancoragem na realidade haja vista que se baseia em uma ideia. A luta inces-
sante e inglória é para tentar atingir ou performatizar esse ideal. A batalha é
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ainda mais árdua, pois quando se supõe que o modelo foi atingido, inaugura-se
a guerra para permanecer no interior dos moldes. Nesse cenário, o homem,
muitas vezes, deixa de ser substantivo para ser adjetivo. Os homens aban-
donam o plural para perseguir o modelo de homem singular. Como um dos
rebotes dessa ânsia insegura, temos o que denominamos de masculinidade
tóxica e masculinidade frágil. Na tentativa de universalização, o que por si
já é uma grande violência, desconsideramos as divergências, os conflitos e
as problemáticas da própria diferença. Afirmo que também sou atravessado
por todos esses atributos mencionados e operacionalizados pelo machismo.
Toda escrita é, de certa forma, autobiográfica. Logo, os fatores aqui
abordados falam muito sobre a minha constituição. Cresci imerso no que
denomino corporativismo masculino que tem como lema a famigerada frase
que ainda provoca diversos efeitos sobre mim: “ao lado de um homem, outro
nunca estará errado. Independente do feito ou do fato, ele não errou”. Fora
essa, outras frases foram basilares nos meus dias, como “Macho é aquele que
já pegou muitas mulheres”; “Homem mesmo é aquele que transa por horas sem
tirar de dentro”; “Se sair, obrigatoriamente, tem que ficar com alguém”; “Não
pode chorar”; “Se apanhar fora de casa, quando chegar, apanha dobrado”;
“Isso não pode. É coisa de menina”. Essas são algumas poucas de muitas
frases que vários meninos, assim como eu, ouvem, ouviram e ainda ouvirão
na sua infância e adolescência. Por mais normalizadas que essas frases sejam
na nossa sociedade, os seus efeitos são incalculáveis. Fora todo esse combo,
impositivamente, heteronormativo, a pornografia adentra como quesito basilar
e fundante da “educação sexual” de jovens além de moldar a sensibilidade e
o prazer. É incrível como todos esses ingredientes flertam com a objetificação
das mulheres, com a naturalização dos privilégios, com o distanciamento de
características tidas como femininas, com a cultura da violência e, quiçá, com
48

a cultura do estupro. O efeito colateral de todos esses ditames é uma inca-


pacidade de lidar, sobretudo, consigo mesmo. Uma impotência de explorar
e de sentir o mundo erógeno e gigantesco do próprio corpo. Uma fixação no
falo e uma ausência gritante da fala. Uma ação no mundo que flerta com uma
linguagem mais violenta e agressiva. Uma paranoia em ser e só fazer “coisa
de homem” ainda que isso custe um alto preço psíquico.
No interior de todo esse debate, o surfe se apresenta como um profícuo
e frutífero contexto social que pode reforçar determinado padrão de masculi-
nidade e, dessa forma, perpetuar uma atmosfera excludente e sexista (NEPO-
MUCENO; MONTEIRO, 2019; BOOTH, 2001). Diante do exposto, haveria
alguma relação entre os episódios de agressões no mar, brigas entre atletas,
entre atletas e arbitragem e demais possibilidades com essa masculinidade
singularizada? A agressividade e, muitas vezes, a violência seria uma carac-
terística valorizada e, de certa forma, aceita nesse cenário másculo e viril?

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Seria esse mais um indício do que se espera da performatização desses papéis
e desse dever-ser homem? Estaria o localismo, o espírito territorialista e domi-
nador em diálogo com a performance que o homem precisa atender perante
a sociedade? (BANDEIRA, 2014). Uma vez que ao homem seja incumbido
esse papel o que se espera da mulher? No interior de uma sociedade alicerçada
em uma divisão binária e maniqueísta, cabe a mulher um papel antagônico,
subserviente, frágil, submisso e fraco que precisa da ajuda, da autorização,
do cuidado e da chancela de outro homem.
O Ceará é berço de atletas com destaque nacional e internacional, como
Silvana Lima e Tita Tavares. Todavia, de forma geral, a modalidade permanece
na margem e o surfe feminino ainda possui menos prestígio no que tange a
valorização, o respeito e os patrocínios. O tensionamento tem tido vez e voz, e
o conflito tem se instaurado em diversas esferas, como o combate a insistente
associação e valorização dos atributos corporais em detrimento da qualidade
técnica e tática para os moldes competitivos. Há mudanças. A própria WSL
(World Surfe League) já adota a política de isonomia de premiação. Tal medida
já foi aderida, inclusive, pelo próprio circuito brasileiro de surfe.
O surfe de mulheres expressa uma luta diária e uma dificuldade em
diversos âmbitos. Até chegar à água muitas conjunturas cristalizadas pre-
cisaram ser combatidas. Ao chegar à água, outras tantas iniciarão. Quando
nos referimos a Brazilian Storm, pensamos em mulheres? No interior dessa
lógica cristalizada, geralmente as mulheres são objetificadas, sexualizadas e
o desempenho e a qualidade técnica perdem relevo para atributos corporais.
Sobre os conflitos e comportamentos na água Bandeira; Rubio (2011, p. 106):

Embora a regra de prioridade pela onda pareça endereçar a segurança e


conferir ao surfista, independentemente do nível de proficiência ou talento,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 49

o direito de pegar as ondas nas quais se posiciona, quando questionava


por que alguém havia me rabeado as respostas eram “Pensei que você
não fosse conseguir entrar na onda”, “Achei que você tivesse desistido
porque estava grande” ou “A onda estava muito boa, você não ia saber
aproveitar”. É importante ressaltar que as justificativas para as rabeadas
e reclamações na maioria das vezes estavam relacionadas à inferioridade
técnica atribuída às mulheres e aos “body boarders”.

Tal estrutura tóxica e excludente precisa ser revista para ser alterada. As
características de um sistema marcado pelo patriarcado e operacionalizado
pelo machismo insistem em manter alguns ideais utilitaristas de feminilidade.
Permaneçamos assim com a célebre frase de Beauvoir (1980) quando a autora
faz a distinção entre gênero e sexo e profere que não se nasce mulher, mas, a
partir de um caldeirão de fatores, torna-se mulher.
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O crowd é chato, mas um crowd homogêneo é ainda pior. Questionar


esses elementos pode permitir que passemos a enxergar de forma diversa e
assim refutar uma pseudo aporia inquietante que serviu e serve como justi-
ficativa para a manutenção de certas relações de poder. Uma aporia clássica
e bastante ouvida quando se trata das mais variadas modalidades esportivas
de mulheres: “não tem boa premiação, pois não tem muita adesão e parti-
cipação, não me inscrevo, pois a premiação é ruim”. Vale ressaltar que o
mesmo argumento já foi utilizado como tentativa de justificar a inexistência
de competições. Esse caminho ou pensamento se apresenta de forma a não
possuir saída. Suspeito que a gênese desse tipo de argumento ancora-se em
um juízo de valor mascarado e imiscuído de interesses. A prova disso é a
supervalorização do polo masculino, tido como o padrão de performance e
qualidade que resulta em comparações prejudiciais, infrutíferas e, geralmente,
depreciativas para o polo feminino (ALBUQUERQUE, 2006).

No surfe, como modalidade de esporte de aventura ou esporte com a natu-


reza, destacam-se representações sobre surfistas como pessoas corajosas,
fortes e ágeis. Como tais representações estão relacionadas frequentemente
a corpos masculinos, as surfistas do sexo feminino, em suas buscas por
aprimorar desempenhos, se deparam com a necessidade de incorporar qua-
lidades e capacidades normalmente vinculadas como signos de virilidade
masculina (NEPOMUCENO; MONTEIRO, 2019).

Em territórios em que alguns corpos são, corriqueiramente, sexualiza-


dos e, muitas vezes, invisibilizados, a ocupação dos espaços e a visibiliza-
ção dos ganhos são armas eficientes nas disputas políticas (BOOTH, 2001;
VIEIRA, 2007). As bundas têm dado lugar a remadas, rasgadas e batidas.
É inegável que o surfe pode reforçar e estimular uma certa singularização
50

de masculinidade, mas também pode ser muito potente no que se refere à


reflexão e à problematização da cristalização desse papel dominante e dessa
singularidade do ser homem.
Contudo, toda essa discussão não se restringe somente às mulheres. A
população LGBTQIA+ também tem a sua presença silenciada ou invisibilizada
no outside. As ondas e as marés podem não estabelecer crivos ou juízos de
valores, mas muitos surfistas o fazem. Nesse intuito, o mundo do surfe, em
algumas questões, ainda carrega fortes traços reacionários e retrógrados. Todo
esse imaginário construído e alicerçado sob a égide do pensamento progres-
sista se consolida nas ações de fato ou são somente maquiagens para mascarar
e esconder uma versão retrógrada do surfe? Além disso, seria esse ideário mais
uma faceta de manutenção da estrutura que beneficia e a mantém vigente?
Certamente, há surfistas gays pelos mares por aí afora. Haja vista que a
prática dessa modalidade esportiva não é em absolutamente nada comprometida

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por conta da identidade de gênero e orientação sexual. Todavia, onde estão esses
surfistas? Como esses corpos são tratados no outside? Seja por medo de represá-
lias, insultos ou por um grande desconforto, essas pessoas não se sentem bem em
ser como são e preferem, por questões diversas, continuar no interior do armário.
Percebo que quando se trata de orientação sexual no mundo do surfe
o debate, simplesmente, não é falado de forma aberta. Há uma homofobia
enraizada nas gírias e em muitos insultos. Historicamente, a baixa presença
e, principalmente, o silenciamento de corpos que fogem da régua da hetero-
normatividade em competições de elite, nas reportagens, nas revistas e nos
diversos filmes de surfe permitem a perpetuação de uma estrutura pouca afeita
e acolhedora para esses grupos. Assim, a homofobia permanece naturalizada
e, muitas vezes, adquire o tom de engraçada. Onde rema o ideário de mente
aberta e progressista? A cultura do surfe pode parecer fluída, mas ainda guarda
comportamentos rígidos, sufocantes e regressivos. Como elemento ilustrativo,
convido os leitores e as leituras para observarem os comentários nos sites de
surfe ou postagens em redes sociais.
Alguns atletas se apresentam publicamente como membros da comuni-
dade LGBTQIA+. Todavia, muitos esperam o fim da carreira profissional para
fazer o anúncio. O tal do armário ainda segue presente no surfe, porém está
entreaberto. O documentário de 2014, produzido por Thomas Castets, com
direção e roteiro de Ian Thomson, denominado “Out in the Line-Up” apresenta
brilhantemente o movimento e deu à comunidade de surfe LGBTQIA + uma
significativa visibilidade. Outras iniciativas também despontam mundo afora,
como GaySurfeers.net, Queer Surfe Club entre outras. Ainda que haja muita
correnteza, já se percebe alterações frutíferas.
Outro elemento caro para a discussão aqui exposta é com relação ao ideal
de beleza do surfe forjado em uma importação irrefletida do estilo californiano
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 51

que, por sua vez, segue os moldes do padrão de beleza branco, loiro e hete-
rossexual. Invariavelmente, esse modelo constitui o nosso imaginário e faz
com que alguns corpos sejam vistos como estranhos, não pertencentes ou até
mesmo incompatíveis com a prática do surfe. A indústria e a mídia corrobo-
ram com a manutenção dessa lógica e estimula não só a divulgação, mas a
venda de uma imagem extremamente elitista no mundo do surfe. Raras são
as exceções e excessivos são os comentários ofensivos quando se pensa em
algo que fuja desse main stream. Dessa forma, o cenário está inteiramente
construído para que corpos que divirjam sejam excluídos e marginalizados.
Talvez, se as grandes marcas de surfe decidissem comercializar para mais do
que apenas homens jovens, brancos e heterossexuais, isso levasse não ape-
nas a uma cultura mais diversificada, mas a uma indústria financeiramente
mais robusta. A insistência em manter comportamentos tradicionais e não se
sensibilizar as demandas contemporâneas não parece ser somente ignorância
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ou descontextualização com a realidade. Não podemos esgotar a discussão


com respostas rápidas e simplistas. A perpetuação dessa estrutura significa a
continuidade de regalias e privilégios para aqueles e aquelas que já detém os
postos de chefia e poder. Insistir nesse comportamento é um investimento,
uma reserva de mercado para aqueles que, historicamente, já são abastados.
Como reflexo e efeito desse modelo de beleza, a temática de raça surge
como outro lugar de violência, rejeição e insultos. A operacionalização do
racismo como racionalidade estruturante da nossa sociedade molda comporta-
mentos que estruturam as nossas formas de sentir, de pensar e de agir a ponto
de normalizarmos algumas atitudes no nosso entorno. Para Almeida (2019) o
racismo pode ser entendido como uma forma sistemática e muito bem orga-
nizada de discriminação em que a raça é o elemento central. A cor passa a
ser atributo balizador de uma série de ações conscientes e inconscientes que
privilegiam e impõem desvantagens a determinados sujeitos de acordo com
o grupo racial que pertencem.
No Brasil, não se nasce preto, se descobre a partir de uma lógica e uma
racionalidade muito bem arquitetada. Esse processo é doloroso e causa freios no
processo de subjetivação. Além disso, embarga desejos e ensina que a fala só é
autorizada em determinadas situações. Um convite constante e cruel para negar
e se afastar dos signos e elementos da cultura negra. Prova dessa atrocidade é o
colorismo e o próprio mito da democracia racial. Como diria Racionais MCs: “o
barato é louco e o processo é lento”. Todo esse alicerce calcado pela escravidão
e mantido pelo desprezo, negligência e descaso social retardam e intensificam,
muitas vezes, a dor do reconhecimento e da valorização das próprias camadas
de negritude. A repetição e a valorização incessante de um determinado tipo de
beleza corrobora de forma bastante ardil nesse processo, pois gera sentimento
de culpa, inadequação e desajuste com tais critérios e características.
52

A discussão sobre o racismo, por mais emergencial que seja, ainda gera uma
série de animosidades, pois, se levada a cabo, balança toda a pirâmide social. A
racialização, de maneira muito perversa, dita a ocupação dos cargos. Percebemos
nas instituições que regulam o surfe uma manutenção, estrategicamente, tácita
na ausência de pessoas pretas em postos de destaque nas diretorias. Parece-me
que vidas negras, para as camadas do topo da pirâmide, só importam quando
convém, quando são subservientes, quando se enquadram em entretenimento ou
prestação de serviços. Dentro de toda essa estrutura que nos constitui enquanto
sujeitos, o protagonismo e o privilégio parecem ser direitos da branquitude.
Ademais, diante de uma estrutura imponente e muito bem articulada, as exceções
não podem ser vistas como regras. Esse mecanismo é mais uma das artimanhas
do complexo racismo brasileiro para tentar camuflar as opressões. As conquistas
desses escassos atletas são amplamente divulgadas e publicizadas, todavia, as
derrotas são particularizas. É preciso uma atenção constante.

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Quantos atletas negros estamparam as capas de revistas de surfe? A
produção audiovisual, como já dito, corroborou para a construção de um
estereótipo do surfista e da surfista pela régua californiana.

Conteúdos e meios de expressão mobilizados por imagens são sempre


constituídos por processos sociais mais amplos. Estamos então diante
de manifestações produzidas historicamente, construídas socialmente e
definidas culturalmente. Isto quer dizer que são também materializações
conscientes ou inconscientes de interesses e necessidades dos atores que
os produzem. Assim, direta ou indiretamente, expressam e refletem cos-
mologias, ao mesmo tempo em que criam aspectos da realidade, na medida
em que tentam representá-los (DIAS, 2010, p. 76).

A branquitude, ao se apropriar desse estilo mais despojado e irreverente,


é vista como descolada. Já um negro pode, rapidamente, ser taxado de margi-
nal. Além de toda a questão já apresentada o corpo negro, por não representar
o ideal de beleza californiano, tem mais dificuldade de receber patrocínio,
principalmente se for uma mulher.
A parca presença de atletas negros e negras na elite dos campeonatos é
sintomática. Esportes tidos como populares são, aparentemente, democráticos.
Percebo uma reprodução clássica da lógica social no mundo do surfe. Temos
que na base da pirâmide o número de negros é razoável. Todavia, no topo,
observamos poucas exceções. Além disso, temos outra associação bastante
comum e sintomática no cenário nacional. Algumas praias mais próximas
a regiões periféricas ainda são estigmatizadas e estereotipadas. Noto uma
redução desse comportamento devido ao que aqui denominarei de espetacula-
rização e gourmetização do surfe. Uma certa alteração do perfil do praticante
produziu uma modificação substancial em algumas praias que passaram a ser
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 53

ressignificadas e ocupadas com a configuração de uma cultura de classe média.


Contudo, não podemos esquecer nem tampouco negligenciar os corpos que
frequentam há tempos esses locais. Enxergar algumas praias somente pelo viés
da utilidade e do descarte, pode culminar na desumanização ou invisibilização
daqueles corpos nativos. Para algumas populações, o surfe não se trata de
uma filosofia ou estilo de vida alternativo, mas como uma possibilidade de
sobrevivência. Uma maneira de sair da pobreza ou abrandar os seus efeitos.
Ainda sobre esse tema, temos uma naturalização recorrente. O corpo do
negro, como em uma relação causal e linear, automaticamente é associado à
pobreza, ao tráfico, à favela, à droga, ao crime e aos assassinatos. Sabemos que
essa articulação é precipitada e atende aos projetos políticos que resultam no
genocídio do jovem negro periférico. Todavia, todos esses elementos cabem
no ideário good vibes do surfe ou só interessam quando esses corpos estão a
serviço da classe média?
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O silêncio da pauta racial na elite do surfe, ao meu ver, e para os fins aqui
pretendidos não é algo a ser comemorado. Em uma sociedade alicerçada e
operacionalizada estruturalmente pelo racismo, o surfe não se apresenta como
um oásis em que o mito da democracia racial se concretiza e a questão da cor
se dissipa pela premissa da igualdade de todos perante todos. Sob a minha
ótica, tal silêncio é ensurdecedor e rapidamente refutável quando observamos
a quantidade de atletas negros no ranking. Sem muito esforço, enxergo a
predominância de meninos e meninas negras sem patrocínio. Em uma busca
rápida, sem nenhum desgaste, noto uma produção acadêmica e científica
inexpressiva, quiçá, inexistente sobre a questão racial no mundo do surfe.
Não é a mudança que torna o surfe chato como alguns surfistas enfatizam.
Talvez a chatice resida na insistência em manter os mesmos comportamentos
de outrora frente ao dinamismo das mudanças do devir com justificativas
simplistas e explicações estanques. Nessa conjuntura, a chatice impera quando
alicerçada sobre uma ótica em que determinados corpos insistem em manter
prerrogativas ilusórias de uma suposta supremacia que os colocam em patama-
res elevados para assim exercerem seus meios de dominação sobre os demais.
O imaginário good vibes não se sustenta se olharmos a partir da pers-
pectiva de outros corpos que fogem a ilusória normalidade padronizada. A
manutenção desse ideário soa como a preservação de privilégios, regalias
e conforto. Uma maquiagem atrativa, vistosa e eficiente travestida de neu-
tralidade e boas energias. Enxergar somente a partir do espectro do grupo
hegemônico pode resultar em inúmeras violências. Limitar toda a discussão
à uma só narrativa limita, simplifica e empobrece o caldeirão da reflexão e
discussão. Além disso, pode silenciar outras inúmeras possibilidades de ser.
A presença de determinados corpos assombra mais que a gritante ausência
em determinados espaços. O ideário good vibes pode contribuir para ratificar
54

uma idealização e uma certa romantização do surfe. Toda essa construção


social pode colaborar para mascarar os conflitos e abrandar as tensões? Seria
mais um artifício para manutenção da lógica?
O ideário good vibes flerta e pode servir como mais um dispositivo da
branquitude inserida no patriarcado e operacionalizada pelo machismo, para
continuar e manter as suas regalias e privilégios. Aparentemente, as questões
aqui abordadas parecem estar soltas e desconexas. Porém, possuem, como
afirmou Angela Davis, um núcleo de sustentação e manutenção no entrecru-
zamento das questões de gênero, raça e classe. É parte de um projeto amplo
em nome do bem, da moral e dos bons costumes em benefício de uma parcela
diminuta da sociedade.
Penso que a divergência, a multiplicidade de pensamento e o contraditó-
rio podem produzir reflexões e análises mais fidedignas. O conflito de ideias
gera diferentes perspectivas, inúmeras formas de enxergar o mesmo fenômeno

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sem sucumbir ao relativismo. Advogar e militar pela existência do verdadeiro
espírito do surfe soa incoerente com a própria característica impermanente
do mar e das ondas. Tentar fixar o significado e o sentido do surfe com uma
definição estanque e subserviente ao seu ponto de vista é reduzir e empobrecer
as múltiplas facetas de uma modalidade esportiva tão polissêmica.

Por tudo, é difícil pensar o surfe em termos dicotômicos, como sendo


a expressão de um impulso libertário e contestador, por um lado, ou a
manifestação de lógicas de lucro e mercantilização por outro. É pouco
produtivo tentar enquadrá-lo como sendo isto ou aquilo, quando na ver-
dade, ele parecer ser isto e aquilo ao mesmo tempo. Não é possível abstrair
o desenvolvimento do surfe do contexto social mais geral em que este se
deu. O surfe e os surfistas são produtos de uma época marcada pela indus-
trialização de várias esferas sociais [...] Seu impulso no Brasil coincide
com o surgimento de uma indústria da cultura e é neste e por este quadro
que o esporte se propagou (DIAS, 2009, p. 283).

Para aqueles e aquelas que permanecem céticos com os apontamentos


aqui abordados, convido para que passeiem pelo site da WSL (World Surfe
League), da ABRASP (Associação Brasileira de Surfistas Profissionais) ou
procurem por textos acadêmicos com essas temáticas. O surfe, em alguns
setores, me parece temer o encontro, o contato, a diferença e o conflito ima-
nente à vida e, por esses motivos, ainda permanece recluso no armário. Uma
incongruência com a própria dinâmica da natureza. A mudança, a variação
e o constante movimento das ondas muito tem a nos ensinar. Caso continue
apagando determinados corpos, penso que as narrativas alicerçadas no ideário
good vibes auxiliam no silenciamento e, por sua vez, mantém o status quo
vigente e se assim o for, só me resta a pergunta: tá dando onda?
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 55

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CAPÍTULO 4
A INFLUÊNCIA DE FATORES
PSICOLÓGICOS NO DESEMPENHO
DE SURFISTAS
Lino D. G. Scipião Junior
Liana Araújo Scipião

Introdução
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Surfe é uma modalidade esportiva que se desenvolveu rapidamente


nos últimos 10 anos, sendo considerada, dentro dos esportes aquáticos que
envolvem remada, uma das mais rápidas do mundo, em termos de veloci-
dade de deslocamento corporal. Em virtude disso, os eventos estão se tor-
nando cada vez mais competitivos e exigentes, demandando aos atletas mais
tempo de treinamento dentro e fora do mar e aos treinadores, uma maior
compreensão do perfil atlético e das exigências fisiológicas das modalidades
(RODRÍGUEZ-MATOSO et al., 2015). O surfe foi recentemente intro-
duzido nas Olimpíadas e agora faz parte do currículo de Educação Física
da Califórnia e do Havaí. Neste estado, tornou-se esporte escolar oficial
em 2013 (BRAVO et al., 2016). Além disso, também há vários programas
que incentivam a prática dessa modalidade (CLAPHAM et al., 2014). Tais
conquistas, junto à atenção da comunicação social, fizeram com que o surfe
vivenciasse um enorme salto na quantidade de participantes, principal-
mente a nível recreativo. Contudo, apesar de toda essa audiência global,
pouco tem sido escrito sobre essa modalidade (MENDEZ-VILLANUEVA;
MUJIKA; BISHOP, 2010) e a quantidade de dados relacionados ao esporte
está mais direcionada às características da competição, e menos ao perfil
dos praticantes (FERNÁNDEZ-GAMBOA et al., 2018). A coleta de dados
referente aos fatores comportamentais e psicológicos é de extrema impor-
tância, pois possibilita a elaboração de planos de treinamento eficazes, a
criação de ambientes adequados de aprendizagem e a redução da pressão
no âmbito competitivo (LAWRENCE et al., 2020).

O surfe competitivo
Pinna Neto (2004) caracteriza o surfe como um esporte de movimentos
cíclicos (remada), seguido por movimentos acíclicos (movimentos realizados
58

na onda). Farley, Abbiss e Sheppard (2017) dividiram as ações do surfe em


remadas, posição estacionária, remar para a onda, surfar a onda e usou o termo
“Miscellaneous”, para descrever diversas ações como “furar uma onda”, res-
gatar a prancha, correr ou andar na praia.
O surfe competitivo geralmente envolve uma quantidade de 2 a 4 sur-
fistas em cada bateria da competição, que geralmente tem a duração de 20
a 30 minutos, dependendo do formato da competição e das condições do mar
(SHEPPARD et al., 2012). Os surfistas são julgados pela sua capacidade de
surfar as melhores ondas, realizando manobras complexas sob controle, por
meio de critérios subjetivos de avaliação. Isso pode gerar um nível de ansie-
dade e estresse aos atletas, variando de intensidade a depender das caracte-
rísticas individuais de cada um e das fases da competição (CARDOSO; DOS
SANTOS; MARQUES, 2013).
Loures (2019) considera que, além de um(a) surfista possuir um alto

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desempenho físico, também é necessário ter um alto nível psicológico, pois
a incapacidade de lidar com situações esportivas, principalmente de pré-com-
petição, pode gerar reações psicológicas que levarão o(a) atleta ao fracasso.
Tal fato é corroborado por Miloski et al. (2015), que apontam que a redução
do desempenho pode estar ligada a fatores psicológicos. Pesquisadores como
Jones (2003), Mellalieu, Hanton e Thomas (2009) presumem que a relação
entre esses estados psicológicos e o desempenho pode contribuir tanto em
episódios de treinamento quanto em competições.
Com base na literatura, é notória a importância de fatores psicológicos
no desempenho da performance competitiva, sendo fundamental a utilização
de ferramentas para aliviar e treinar esses aspectos.

Variáveis psicológicas importantes: Estresse e Ansiedade

Estresse é uma reação do organismo com componentes psicológicos,


físicos, mentais e hormonais que ocorre quando surge a obrigação de uma
adaptação a um evento ou situação de importância, tendo caráter positivo ou
negativo (LIPP, 2005).
Behnke e Robert S. (2014) frisam que ocorrem inúmeras alterações
em nosso organismo em resposta ao estresse. Essas podem ser psicológi-
cas, como a baixa no desempenho e a desclassificação em uma competição,
ou fisiológicas, como em decorrência de exposição prolongada ao frio ou
calor. Para compreender melhor o estresse e o que ele provoca em nosso
organismo, precisamos entender o conceito de homeostase. Weineck (2005)
se refere à homeostase como a condição de relativo equilíbrio interno do
organismo, independentemente das variações do meio externo, permitindo
que o mesmo se adapte e funcione nas diversas condições do meio em que
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 59

vivemos. Ainda segundo o autor, a homeostase pode ser alterada constante-


mente por qualquer estímulo que crie um desequilíbrio no nosso meio interno.
A quebra da homeostase do organismo, por meio de algum agente estressor,
pode passar por três fases, mais conhecidas como Síndrome da Adaptação
Geral (MCGUIGAN, 2017). A primeira fase, chamada de alerta, é consi-
derada benéfica (WEINECK, 2005) e geralmente ocorre quando nos depa-
ramos com o agente estressor, na qual há liberação hormonal, taquicardia,
sudorese e hiperventilação (ALEXANDRE; DE FARIAS; DE CARVALHO,
[s.d.]; MCGUIGAN, 2017; WEINECK, 2005). Na segunda fase, a de resis-
tência, nosso organismo tenta lidar com os agentes estressores para manter
o equilíbrio homeostático e isso pode ocasionar alguns sintomas como can-
saço, irritação e uma quebra da nossa resistência (BOMPA; PASQUALE;
CORNACCHIA, 2015; ROSS et al., 2019). A terceira fase, ou fase de quase
exaustão, geralmente não permite que consigamos nos adaptar ou resistir aos
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agentes estressores, reduzindo, assim, nossa capacidade funcional e cognitiva


(ROSS et al., 2019; WEINECK, 2005).
O atleta que compete em busca da vitória certamente passará por situa-
ções de estresse, fazendo-se necessário estar preparado não somente na parte
física, técnica ou tática, mas, também, na psicológica, pois, somente assim,
será capaz de sustentar níveis melhores de desempenho (SAMULSKI, 2002).
O esporte competitivo acaba tornando-se um agente estressor, tendo em
vista que, durante uma competição, o atleta precisa manter um ótimo nível
de performance, seja para um determinado público, um patrocinador ou, até
mesmo, para outro competidor que tentará dificultar suas ações (BOAS et
al., 2012). Weinberg e Gould (2001) ressaltam que quanto mais importante
for a competição e quanto maior o grau de incerteza do atleta em relação ao
resultado, maior será o estresse e seu estado de ansiedade.
A ansiedade no esporte foi amplamente documentada em vários estu-
dos com o foco da pesquisa sobre variáveis ​​psicológicas importantes (COR-
REIA; ROSADO, 2018; HAMIDI; BESHARAT, 2010; KOEHN, 2013) e o
desenvolvimento de teorias em psicologia do esporte (GILL; WILLIAMS;
REIFSTECK, 2017; STENLING; HASSMÉN; HOLMSTROM, 2014), além
de ser considerada uma emoção típica do estresse (BOAS et al., 2012).
De acordo com Bray e Martin (2003), a ansiedade é um estado emocional
negativo, caracterizado por nervosismo, preocupação e apreensão, além de
associado à ativação ou agitação do corpo. Em excesso, esse estado emocional
pode acarretar déficit no desempenho dos atletas, pois nele ocorre um maior
dispêndio de energia devido a maior tensão muscular, dificuldades na coorde-
nação, mudanças na concentração e estreitamento no campo de atenção. Em
outras palavras, uma incapacidade de observar o ambiente e perceber quais
ações deveriam ser tomadas naquele contexto (BOAS et al., 2012).
60

Ainda conforme o autor acima citado, tratando-se de jovens atletas que


buscam melhorar sua performance e resultados, esse estado emocional pode
ser agravado, direta ou indiretamente, por torcedores, técnicos, pais e por si
próprio. Essa pressão, possivelmente, pode causar alterações comportamentais
que comprometerão o desempenho durante algum evento competitivo, especial-
mente se estivermos lindando com jovens sem nenhuma experiência esportiva.
Para Marques (2003), a forma como o atleta encara o esporte, como ele
é visto pelas pessoas que o cercam e o reconhecimento em virtude dos resul-
tados, podem fazer a ansiedade manifestar-se de forma benéfica. Entretanto,
Machado (2006), ressalta a importância de saber lidar com esse estado emo-
cional em qualquer situação, benéfica ou maléfica, para que o atleta consiga
um desempenho ótimo. Desta forma, Jones (2003) ressalta que preparação
psicológica eficaz para o desempenho é, portanto, uma área importante para
investigação nos domínios teórico e aplicado da psicologia do esporte.

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Diferentes emoções geram diferentes ações no esporte

Para Jones (2003), existe uma ampla gama de emoções que está associada
a mudanças nos níveis de performance. Em termos gerais, o autor sugere que
o estado emocional de um indivíduo pode influenciar a motivação, bem como
o desempenho físico e cognitivo.
Para Mellalieu, Hanton e Thomas (2009), a natureza estressante do
esporte e o ambiente competitivo em torno da realização de estados men-
tais de pré-desempenho ideais, colocam altas demandas cognitivas nos atle-
tas participantes.
O surfe é praticado em um ambiente imprevisível, no qual o surfista
recebe informações constantemente, têm de processá-las e, em seguida, tomar
uma decisão apropriada. Lawrence et al. (2020) propõem que o aumento da
demanda cognitiva seja responsável pelos efeitos negativos da ansiedade sobre
o desempenho. O autor acrescenta que, sob condições ansiosas, a atenção é
normalmente desviada de sistemas direcionados a objetivos para estímulos
relacionados a ameaças como, por exemplo, preocupação. Essa mudança
pode aumentar as demandas cognitivas gerais da situação da tarefa, muitas
vezes resultando em um executor excedendo sua capacidade de atenção e,
posteriormente, reduzindo seu desempenho.
Vallerand e Blanchard (2000) consideram a emoção como uma fun-
ção adaptativa que pode mediar e energizar comportamentos subsequentes,
garantindo que os atletas canalizem recursos físicos e mentais extras para
uma tarefa. Essas consequências motivacionais, foram descritas por Deci
(1980) como tendências de ação, que podem levar o indivíduo em direção
a um objeto (por exemplo, raiva) ou para longe de um objeto (como medo).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 61

Essas emoções, dependendo do indivíduo em particular e da situação, podem


ter efeitos diferentes. Um surfista, que se sente culpado por errar uma mano-
bra em uma onda supostamente fácil, pode se sentir culpado por essa falha e
tentar evitar a mesma manobra em ondas seguintes. Sob outra perspectiva, o
surfista pode buscar a mesma manobra tanto quanto possível, na tentativa de
melhorar seu desempenho e superar seus sentimentos de culpa.
Conforme Jones (2003), algumas emoções acompanham mudanças na
excitação e, consequentemente, afetam o desempenho físico. O autor ressalta,
ainda, que é pertinente considerar como a excitação pode afetar o funciona-
mento físico. Ademais, é importante reconhecer que um indivíduo em um
estado elevado de excitação não está necessariamente experimentando uma
emoção e que é possível experimentar emoções sem, necessariamente, alterar o
nível de excitação. Jackson (1992) relatou em seu estudo, ao entrevistar atletas
em preparação pré-competição, que 70% sentiam níveis elevados de excitação
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e intensidade em seus estados mentais ideais. Altos níveis de excitação podem


aumentar a potência anaeróbica, o que melhora o desempenho em tarefas
físicas simples (HARDY; JONES; GOULD, 1996; JONES; HARDY, 1993;
PARFITT; HARDY; PATES, 1995). No entanto, pode ter um efeito negativo
nas tarefas motoras finas por meio do aumento da tensão muscular, resultando
em dificuldades de coordenação, destreza manual e controle fino.
Ainda de acordo com os autores acima citados, o funcionamento cogni-
tivo é impactado tanto por mudanças na excitação que acompanham algumas
emoções quanto por mudanças nas cognições. O autor propõe que o aumento
da excitação pode prejudicar a memória de trabalho e ter efeitos diferenciais
na memória de longo prazo, dependendo do tipo de tarefa (melhorada para
tarefas fáceis, mas, possivelmente, prejudicada para tarefas difíceis). Além
disso, o aumento da ansiedade, que acompanha a excitação, demonstrou ter
um efeito positivo na velocidade perceptuo-motora. Ademais, sob alta exci-
tação fisiológica, propõe-se que o foco de atenção de um indivíduo seja mais
estreito do que sob condições de baixa excitação (BRAY; MARTIN, 2003b).
Consoante ao autor anteriormente referenciado, esse estreitamento pode ter
um efeito positivo na performance, se bloquear distrações sem importân-
cia para o atleta, permitindo que ele mantenha o foco e perceba situações
relevantes para a execução da tarefa. Caso o foco de atenção, entretanto,
seja muito estreito, um atleta pode perder algumas dicas relevantes para a
tarefa. A focalização da atenção também pode ser governada pela importância
subjetiva das pistas, em vez de sua localização no campo visual (HARDY;
JONES; GOULD, 1996; MAULE; HOCKEY, 1993). Por exemplo, indiví-
duos com muita ansiedade atendem seletivamente a estímulos ameaçadores
(MATHEWS; MACLEOD, 1994). Isso pode ser ilustrado por um surfista que
focaliza sua atenção no adversário em vez de direcioná-la ao mar.
62

A interpretação que o indivíduo dá aos eventos determina como ele vai


sentir e se comportar. É basilar, por conseguinte, que o atleta se conheça,
com o intuito de saber lidar com suas emoções, principalmente em situações
competitivas. Poderá, assim, ser mais assertivo e aprimorar sua tomada de
decisão e resolução de problemas (LEAHY et al., 2013, apud TREVELIN;
ALVES, 2018). Essa é uma forma de manter sua autoconfiança e motiva-
ção, para repetir na competição, os resultados alcançados nos treinamen-
tos (SONOO et al., 2010, apud TREVELIN; ALVES, 2018). Existe uma
bidirecionalidade entre desempenho e emoções, ou seja, um afeta o outro e
vice versa (SÈVE et al., 2007; CAMPO et al., no prelo, apud TREVELIN;
ALVES, 2018).
Para Martens et al. (1990, apud FORTES, 2019), há uma relação linear
e positiva entre autoconfiança e desempenho esportivo. Outros estudos tam-
bém apontaram que atletas com um elevado nível de autoconfiança obtiveram

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resultados esportivos melhores (PATEL et al., 2010, apud FORTES, 2019).
Existe uma tendência em atletas descritos assim de se sentirem mais à vontade
em situações competitivas, manterem a concentração em seus pontos fortes
e nas tarefas que os possibilitam alcançar desempenhos eficientes (KARA-
GEORGHIS; TERRY, 2011; MARTIN, 2001, apud FRISCHKNECHT, 2018).
Há outros fatores que influenciam as emoções vivenciadas pelos atletas,
tais como a percepção acerca das habilidades do adversário, as característi-
cas de competições prévias contra o mesmo oponente, o comportamento e
o temperamento do outro competidor, além da forma como o próprio atleta
percebe seu desempenho (SÈVE et al., 2007; LEWIS et al., 2016, apud TRE-
VELIN; ALVES, 2018). Por conseguinte, trabalhar os aspectos psicológicos
para auxiliar os atletas em seus treinamentos e competições pode contribuir
sensivelmente na busca de bons resultados (RUBIO, 2007; MACHADO et
al., 2016, apud TREVELIN; ALVES, 2018).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 63

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CAPÍTULO 5
SURFANDO COM AS JUVENTUDES:
significados e sentidos do surfe para os jovens
Liana Lima Rocha
Maria Eleni Henrique da Silva

Introdução
Este capítulo tem como finalidade apresentar um dos achados obtidos
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através de uma pesquisa de mestrado intitulada de “Surfando para a vida:


um estudo sobre o surfe como prática pedagógica libertadora”, dissertação
desenvolvida no programa de pós-graduação em Educação Brasileira, da
Universidade Federal do Ceará, na linha de Movimentos Sociais e Educa-
ção Popular, trabalhando com o eixo: juventude, arte, espiritualidade e meio
ambiente. Tal pesquisa teve como um dos objetivos perceber os significados
e os sentidos que os jovens atribuem ao surfe, fazendo uma relação desses
achados com os aspectos socioculturais e psicológicos da juventude, sendo
justamente esse o ponto central desse capítulo.
Orientada pela abordagem etnográfica a pesquisa, de natureza qualitativa,
usou como instrumentos de investigação: a observação, a análise documen-
tal e entrevistas. No entanto, para o alcance específico desses significados e
sentidos o instrumento usado foram as entrevistas abertas que possibilitaram
o encontro com as falas dos jovens colaboradores dessa pesquisa. As suas
vozes foram o aporte orientador para compreender, interpretar e refletir sobre
esses significados e sentidos.
Os colaboradores da pesquisa foram quatro jovens três garotos e uma
garota, com idade entre 13 e 15 anos, tendo sido escolhidos por participarem
do projeto social de surfe – Instituto Povo do Mar (IPOM), lócus dessa pes-
quisa etnográfica, que trata-se de uma organização não governamental mantida
pela sociedade civil sem fins lucrativos, localizado na praia do Titanzinho,
no bairro Serviluz, em Fortaleza (Ceará), apresentando como propósito edu-
cacional usar o surfe como princípio de ações educativas para a formação de
crianças e adolescentes, que moram na presente comunidade.
O esforço realizado para ouvir esses jovens se deu no intuito revelador de
suas falas, por compreendermos que elas carregam sentidos que nos remetem
a compressão da relação dos jovens com o surfe no que tange os aspectos
socioculturais e psicológicos, visando, além de compreensões, à construção
de caminhos de aproximação com os reais interesses da juventude.
68

Juventudes nas ondas

No estudo correspondente à dissertação de mestrado citada, três catego-


rias foram elementares: juventude, surfe e educação. A partir de tais categorias,
foi estabelecida uma espécie de triangulação de temáticas de forma dialógica.
Para o presente capítulo, nos concentraremos na partilha de um diálogo cen-
trado nas temáticas de juventude e surfe. No entanto, isso não significar dizer
que a categoria educação não será discutida, porém ela não será enfatizada
como elemento central na presente discussão.
Nesse sentido, esse tópico de fundamentação teórica tem como objetivo
discorrer, primeiro sobre a categoria de juventude, depois sobre o surfe e após
esse aprofundamento mais específico de cada temática essa fundamentação
tem seu fechamento no encontro dessas duas categorias – juventude e o surfe.
Iniciamos apresentando, no primeiro tópico referente a juventude, suas

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principais questões: o que precisamos saber ao trabalhar com essa categoria,
quais conceitos, ideias e esclarecimentos necessários para se evitar compreen-
sões do senso comum que não colaboram com o incremento de propostas
efetivas para os jovens. Portanto, essa parte inicial, além de conceituar, visa
também o esclarecimento, superando visões preconceituosas e posturas incoe-
rentes que não favorecem os estudos sobre os jovens.
No tópico seguinte, mergulhamos nos conceitos e na história do surfe até
a atualidade, refletindo sobre os seus significados e destacando seus principais
elementos históricos, sociais e culturais.

Não é juventude, são juventudes

Nas últimas décadas, a temática juventude vem ganhando destaque em


meio às principais inquietações mundiais, apresentando-se como uma questão
prioritária no século XXI. São preocupações que pretendem colocar o jovem
como sujeito ativo na sua formação, ao apontar para a necessidade de mudança
na relação do Estado e da sociedade para com a juventude, tanto no que diz res-
peito aos aspectos mais gerais quanto em relação a âmbitos específicos, tendo
como finalidade a criação de mecanismos para que o jovem possa ter melhores
condições de viver na sociedade (CARRANO, 2011; SILVA; SILVA, 2011).
Aqui no Brasil, com o aumento da população jovem, as discussões sobre
a temática juventude ganharam fortes projeções a partir da década de 1990.
São estudos preocupados em traçar reflexões sobre as políticas públicas dire-
cionadas a este público, considerando sua realidade coletiva e suas diversida-
des, resultantes de contextos sociais diversos (ANDRADE; BÓGUS, 2010).
Não se pode falar em juventude no singular, porque não existe um tipo
único, na verdade observamos muitas diversidades nessa compreensão, assim
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 69

como nas suas relações e nos modos de viver e ser juventude(s), por isso
falamos no plural. Conceituar o termo juventude não é uma tarefa fácil, pois
esta palavra tem assumido variados significados de acordo com o contexto
histórico, social, econômico e cultural presente, destacando-se, assim, algumas
simbologias distintas. Por essa razão, a literatura atual tem usado a palavra
juventude no plural: “juventudes”.
Sobre essa questão do conceito identificamos na literatura que trata dessa
temática, duas perspectivas: uma que a reconhece como uma faixa etária,
caracterizada por sujeitos pertencentes a um mesmo momento de transição,
refletindo uma percepção homogênea, e outra perspectiva, que compreende a
juventude de forma heterogênea, não pensando em uma única juventude, mas
em juventudes múltiplas, entrelaçando o seu conceito a ideias configuradas
pela diversidade social, cultural, regional e educacional, reconhecendo que
essa juventude sofre influências e influencia os diversos contextos sociais,
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econômicos, políticos e culturais em que se inserem (PAIS, 2003).


Segundo Silva e Silva (2011), dentro dessas concepções, a ideia usada
com mais frequência é aquela que compreende a juventude como uma fase de
transição entre a adolescência e a vida adulta, concebendo apenas com uma con-
dição de transitoriedade onde o jovem é um “vir a ser”, negando o seu presente.
A juventude é uma categoria social com qualidades específicas, que se
manifesta de diferentes maneiras segundo as características históricas e sociais
de cada indivíduo. Um jovem do interior não tem a mesma vida do jovem
da cidade por estarem com a mesma idade, assim como o jovem da camada
popular não vai ter a mesma condição de vida do jovem pertencente a classes
economicamente altas, pois cada fase será vivida de formas diferentes, devido
aos contextos específicos de cada um, não podendo, assim, ser estabelecidos
padrões fixos usando como termômetro a idade.
Este olhar permite reconhecer a heterogeneidade dos jovens com base
nos seus diferentes contextos que impetram as múltiplas juventudes. Diante
dessa reflexão, é importante deixar claro que a delimitação etária da categoria
não é suficiente para se analisar a juventude, mas é importante existir essa
marcação básica para uma compreensão inicial e uma aproximação com o que
se está dialogando, mostrando-se, assim, como um marco inicial adequado,
mas não como um eixo único para seu aprofundamento, servindo apenas como
uma referência demográfica.

Surfe: uma prática de corpos deslizantes

Conhecido a partir de múltiplos significados, o surfe se apresenta como


uma prática corporal, como um esporte e como um estilo de vida. Concei-
tuando de forma mais objetiva, visto na concretude de sua essência, o surfe
70

pode ser descrito como o movimento de deslizar o corpo sobre as águas do


mar, sendo essa a sua explicação mais legível. O surfe apresenta-se, de princí-
pio, como atividade corporal praticada em meio aquático, mais precisamente
na praia, mas também pode ser vivenciado em lagos, rios ou piscinas, necessi-
tando das ondas – sejam elas naturais ou artificiais – para que os praticantes,
conhecidos como surfistas, possam deslizar na parede da onda em direção à
praia, usando uma prancha ou apenas o próprio corpo (nessa condição a prática
recebe uma nomenclatura específica, sendo conhecida como surfe de peito aqui
no Brasil). Em seu sentido literal, o surfe é a arte de deslizar sobre as ondas.

Assim, o surfe é correntemente considerado como arte e destreza de deslizar


sobre a arrebentação das ondas no mar. Em suas diferentes formas de prática,
a International Surfing Association – ISA, entidade que administra o esporte
no mundo, reconhece as modalidades de surfboard, longboard, skimboard,

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bodyboard, kneeboard e bodysurf, de acordo com a posição prevalente do
corpo e do equipamento usado (BITERCOURT et al., 2004, p. 411).

A prática de deslizar sobre as ondas, apesar de ser uma novidade para mui-
tas pessoas, é, na verdade, bastante antiga, podendo ser considerada, inclusive,
como uma atividade secular, pois apresenta indícios de ter raízes em práticas de
navegação há cerca de 3.500 mil anos. Contudo, esse desvendar histórico do surfe
não é uma tarefa fácil, pois ainda é uma produção incipiente no meio científico,
portanto historicamente, o surfe é marcado por certa imprecisão, ninguém sabe
ao certo quando ou onde surgiu. Algumas teorias levam à África Ocidental,
outras indicam o seu surgimento na costa norte do Peru, e outros relatos histó-
ricos apontam que os primeiros surfistas surgiram na Polinésia. “A imprecisão
histórica é ainda grande. Há quem acredite que os primeiros surfistas viveram
há cerca de mil anos. Eles teriam vivido na Oceania e, em constante emigrações,
espalharam o hábito de pegar onda pelo Pacífico Sul” (SOUZA, 2004, p. 16).
A história comumente relatada nos livros, revistas e nas conversas informais
com alguns surfistas é que a expansão inicial desta prática, de todo modo, parece
ter começado mesmo nas águas transparentes nas Ilhas Polinésias, como o Tahiti
ou Bora Bora, constituindo uma antiga expressão cultural desse povo. A expansão
inicial desta prática aconteceu a partir do uso de canoas chamadas Hokule’as,
pelos povos polinésios, que, ao buscar sua sobrevivência no mar, através do
transporte de canoa de uma ilha para outra nessa região, acabaram as usando
também para sua diversão, marcando o que parece ter sido o início do surfe.
Apesar do surfe ter se desenvolvido inicialmente na Polinésia, foi no Havaí
que ele atingiu seu auge, sendo a habilidade de manter-se ereto sobre as enor-
mes pranchas a sua mais relevante expressão. Lá, o surfe não foi simplesmente
um passatempo, mas o centro da vida social e das atividades ritualísticas desse
povo, associado ao misticismo, ao sagrado e à liberação de energias.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 71

Para os havaianos, nessa época, o surfe era conhecido como he’enalu,


ao contrário do que essa expressão referencia no atual dialeto havaiano, que
significa “fazer surfe, ou cavalgar na onda”, no Havaí antigo essa expressão
tinha um significado bem mais abrangente, sendo compreendida como a forma
dos havaianos expressarem suas relações uns com os outros e com o “mundo
dos espíritos”, o surfe nesse período, transcendia a relação ser humano-mar,
englobando aspectos religiosos, políticos e sociais. O surfe estava, para esses
povos, no centro de sua vida social, marcando suas raízes históricas e culturais.
Atualmente, o surfe é um dos esportes mais praticados no mundo, sendo o
nosso país a terceira nação com maior número de praticantes, ficando somente
atrás dos EUA e da Austrália. Isto é influenciado tanto pelas nossas característi-
cas geográficas quanto climáticas. Nossa imensa costa marítima, acompanhada
de um clima favorável, acaba contribuindo para que uma parcela de nossa
população viva a menos de 100 km do mar, característica essa que colabora
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tanto para o grande número de praticantes quanto para que o Brasil tenha atletas
de destaque, que fazem parte da elite mundial do surfe (BRITO; LIMA, 2009).
Com esse conceito inicial, podemos classificar o surfe como um esporte
náutico ou uma atividade física para o lazer, desenvolvendo as habilidades
físicas de base específicas das suas movimentações corporais, proporcionando
diversão e descontração aos seus praticantes, através dos movimentos radicais
contra as ondas. Assim, o surfe é considerado um esporte maravilhoso e uma
grande terapia, por estar ligado à natureza.
Nesse sentindo, o surfe é uma prática corporal que traz significados diver-
sos, o movimento de deslizar o corpo sobre as águas do mar não carrega apenas
o significado de ser um deslocamento corporal contínuo sobre uma superfície,
pois essa ação impetra variados significados, que não só estão em um campo
físico, mas se expandem para outras dimensões da vida. São concepções amplia-
das sobre o corpo em movimento, que ultrapassam a mera lógica das ativida-
des físicas, podendo, assim como a arte, a literatura, a política, o cinema etc.,
contribuir para um pensar e um vivenciar das várias formas sociais e culturais.

Surfando com os jovens

Essa sessão corresponde ao enfoque principal desse capítulo que apre-


senta como objetivo: partilhar os significados e os sentidos que os jovens
atribuem ao surfe, fazendo uma relação desses achados com os aspectos socio-
culturais e psicológicos da juventude. O encontro com esses significados e
sentidos se deu pelo diálogo com quatro jovens surfistas participantes do
projeto social que foi o lócus dessa pesquisa.
Uma garota e três garotos com idade entre 13 e 15 anos, autores sociais
dessa pesquisa, que de forma colaborativa aceitaram dialogar com conosco,
72

gentilmente disponibilizando um pouco de suas histórias, suas experiências, seus


sentidos e significados com o surfe. Foi uma honra ter a oportunidade desses
diálogos realizados ali mesmo nas mediações do projeto localizado em frente
a praia do Titanzinho “o paraíso do surfe cearense”. Essa parte do diálogo cor-
respondeu a última etapa da pesquisa, após um ano observando e construindo
o diário de campo pelo menos três vezes na semana pesquisando o contexto do
projeto, mais especificamente as aulas de surfe e, também, a própria comunidade.
O convite foi feito para os jovens que atendiam os critérios da pesquisa que
eram: serem surfistas, participarem do projeto de forma regular tendo no mínimo
três anos de frequência e ter idade entre os 12 aos 18 anos. Deste modo, os autores
sociais deste estudo foram os jovens, três garotos e uma garota, moradores da
comunidade do Serviluz, que vivem em uma favela à beira-mar conhecida como
uma das mais perigosas e violentas pela ordem simbólica da cidade (SÁ, 2010).
São jovens nativos de uma praia que apresenta as melhores ondas para

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surfar da cidade, lugar esse fortemente caracterizado pela pesca e o surfe como
elementos pertencentes diretamente à história e à cultura do povo dessa região
e que também são fontes de sobrevivência e sustento. Além dessa relação com
o mar, esses jovens convivem com uma realidade intensa de pobreza, crescem
em uma favela com problemas de saneamento básico, de moradia precária,
marcada pela falta de boas oportunidades e convivem profundamente com os
perigos do mundo do crime, como destacou Sá (2010, p. 14) “Há os jovens
que vivem literalmente nas favelas à beira-mar, como é o caso do Serviluz e
das comunidades da beira de praia do Grande Pirambu”.
Então são esses jovens que gentilmente nos conferiram oportunidades com
suas vozes, de compreender os seus significados e os seus sentidos com relação
ao surfe. Para compartilhar essas percepções, esta parte está organizada em dois
tópicos: 1) primeiras ondas e 2) sentidos e significados do surfe. O primeiro
tópico não está diretamente ligado ao objetivo específico aqui trabalhado, mas
busca situar como se dá a relação dos jovens com o surfe, como e quando
aprenderam. O último tópico é estabelecido para pontuar as perspectivas que
os jovens têm do surfe, a partir de uma relação com sua própria vida.

Primeiras ondas

A ideia desse tópico é compreender como ocorre o primeiro contato desses


meninos e meninas com o surfe, como eles aprenderam a surfar, em que época,
idade, para entendermos como se inicia essa relação, pois podemos traçar paralelos
no que se refere aos sentidos que eles atribuem ao surfe. Prezando pela integridade
desses jovens, assegurando suas identidades, eles foram identificados conforme os
seguintes nomes: Titanzinho, Vizinho, Havaizinho e Portão. Esses nomes fazem
referência aos picos de surfe que existem próximos à praia do Titanzinho.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 73

Nesse sentido, perguntados como ocorreu o primeiro contato deles com


o surfe eles partilharam as seguintes respostas:

Tô surfando há dois anos, aprendi com 10 anos, com o professor do pro-


jeto, na praia do Vizinho. Quando era pequeno, via a galera surfando, eu
nem sabia o que era surfe, aí comecei a surfar quando entrei no IPOM
(Titanzinho, 13 anos).

Eu surfava com meus amigos que tinha prancha, eu tinha uns 6, 7 anos, mas
era só brincadeira, aí aqui aprendi mais coisas. Antes daqui, do IPOM, fui de
outra escolinha, mas aqui no IPOM eu aprendi muito mais e aqui também a
gente aprende mais que manobra, tem as atividades de inglês, informática e
na outra não tinha nada disso, eu me desenvolvo mais aqui (Vizinho, 13 anos).

Foi há dois anos, aqui no IPOM, eu tinha 13 anos, antes, eu só ficava na beira
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brincando de taubinha com os amigos quando era criança (Portão, 15 anos).

Eu aprendi a surfar através do IPOM, com o professor, tinha mais ou


menos uns 13 anos por aí. O professor foi passando vídeo ensinando as
técnicas até que eu aprendi (Havaizinho, 15 anos).

Dos quatro jovens entrevistados, três disseram ter aprendido a surfar no


IPOM, o que aponta para uma diferença com relação à geração passada dos jovens
do Titanzinho, como descreve Nogueira (2014), que, por volta dos anos 80 e 90,
período de entrada do surfe na região, essa era uma prática bastante marginalizada,
onde se tinha muita dificuldade para conseguir pranchas, assim como também
era difícil ter acesso aos conhecimentos. Situação essa diferente do período atual,
já que o surfe hoje é aceito por boa parte da comunidade, tendo, inclusive, na
região, um número interessante de escolinhas e projetos sociais de surfe, sendo
estes os espaços responsáveis pelas “primeiras remadas” de parte dos jovens do
Titanzinho, configurando-se, portanto, como um espaço importante para o incen-
tivo das “primeiras ondas” desses jovens, como destacou Nogueira (2016, p. 43):

As iniciativas de socialização do conhecimento foram fundamentais para


a evolução do surfe na localidade. Assim, a abertura de pequenas escolas
de surfe, muitas vezes improvisadas, surgiu como estratégia para demo-
cratizar as chances de acesso ao esporte e surtiu um efeito multiplicador.

Nesse sentido, enquanto antigamente os jovens apreendiam praticamente


sozinhos, sem uma orientação “especializada”, a juventude atual tem acesso
a um processo de aprendizagem mais “orientado”. É interessante percebemos
que essa nova condição reflete mudanças significativas na relação dos jovens
com o surfe, principalmente no que se refere à sua dimensão esportiva, como
74

destaca Nogueira (2014, p. 56): “Essa tendência tende a impregnar as expres-


sões corporais, antes associadas ao ideal de liberdade, de normas e padrões
compatíveis com as regras e o espírito das competições contemporâneas”.
Com base nesses dois grupos, os que aprendem o surfe em um espaço
destinado para o ensino dessa prática, e outro em que a aprendizagem acontece
fora desses locais, partilhamos a reflexão de que a forma como ocorre esse
primeiro contato pode gerar diferentes influências na relação e nas percepções
desses jovens com o surfe.
A aprendizagem, nesses espaços ditos “oficiais” dedicados ao ensino do
surfe, pode trazer o desenvolvimento de uma relação de esportivização da
prática, com influências do meio competitivo do esporte rendimento, promo-
vendo um contato com uma ideia de surfe mais sistematizada, padronizada e
disciplinada, como afirma Nogueira (2016, p. 36): “A lógica da cultura espor-

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tiva gradativamente se impõe como espetáculo, exigindo diversos cuidados,
sugerindo condutas e preconizando a manutenção do treinamento severo do
corpo”. Enquanto que os jovens que aprendem sem ser por esses espaços
direcionados ao ensino do surfe, podem por isso apresentar uma relação mais
aberta com a prática, mais espontânea, livre e, talvez, mais lúdica.

Sentidos e significados do surfe

Na perspectiva desta categoria, o que é proposto aqui é a descrição e


interpretação dos sentidos manifestados pelos jovens e suas múltiplas signifi-
cações. Assim, essa análise tem como fundamentação o exercício de elaborar
sentidos, partindo da possibilidade de exprimir sentidos simbólicos, tendo
como pretensão a construção de compreensões com base nas vozes dos jovens
colaboradores desta pesquisa, analisando as expressões, os sentidos e signi-
ficados que possibilitam ler, tendo a consciência da existência de diferentes
tipos de interpretações, por saber que as leituras são múltiplas e dinâmicas
e cada uma é construída com bases na convivência individual de cada ser.
Sobre os significados e os sentidos do surfe para os jovens, qual conceito
eles atribuem a essa prática, as falas dos jovens, foram as seguintes:

Surfe pra mim é um esporte maravilhoso, que tira o pessoal do mundo,


né?, que tem gente que não tem nada para fazer, aí, se pegar uma prancha
e ir pro mar, alivia a cabeça e se tiver um estresse dentro de casa quando
tu for pro mar se esquece de tudo, fica ali só nas ondas relaxa acalma
(Titanzinho, 13 anos).

Significa uma coisa legal que a pessoa pode praticar, faz bem à saúde e
pode se divertir ao mesmo tempo (Vizinho, 13 anos).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 75

Momento que a pessoa se distrai e se diverte, só isso mesmo. No surfe,


encontra muitos amigos (Portão, 15 anos).

Surfe significa várias coisas, na hora que a pessoa tá estressada, vai pro
mar, esquece tudo que passou, pega altas ondas, esquece tudo que tava lá
fora, volta com a mente mais fria (Havaizinho, 15 anos).

De acordo com as suas falas, identificamos as seguintes concepções


sobre o surfe: uma que remente à ideia de lazer e bem-estar; outra como um
processo de socialização; e uma última como opção para ocupar o tempo
livre dos jovens. Com base nesse entendimento, este tópico traz, portanto,
uma reflexão do surfe sob o enfoque de três perspectivas. A primeira aponta
o surfe associado ao lazer e ao bem-estar, a segunda aborda-o como agente
socializador e a terceira o associa como uma opção para ocupar o tempo livre
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dos jovens, correspondendo às seguintes categorias: 1) O surfe como prática


de lazer e bem-estar. 2) O surfe como agente de socialização. 3) O surfe como
opção para o tempo livre dos jovens.
Sobre o surfe como prática de lazer e bem-estar essa ideia foi identificada
quando, nas falas desses jovens, encontramos afirmativas de que o surfe é uma
prática bastante divertida, que faz bem à saúde, capaz de aliviar as tensões
do dia a dia, ocasionando um estado de relaxamento. As falas desses jovens
expressam o reconhecimento deles sobre o surfe ser compreendido como uma
prática de grande divertimento, sendo, por isso, um momento de lazer para
os mesmos, possibilitando os benefícios que esse estado pode vir a oferecer.
Como aponta Dumazedier (1999), sobre o lazer ser um momento posi-
tivo às necessidades das pessoas, sendo um estado de busca do bem-estar e
também da satisfação, especialmente o público jovem vivencia o lazer pela
promoção de diversão, descanso e desenvolvimento. Nessa mesma linha,
Schwartz (2002) afirma que a liberdade, o lúdico e o prazer propiciados nos
momentos de lazer são elementos importantes para se viver bem. Diante dessa
constatação, enfatizamos a importância do surfe para a vida desses jovens
como uma prática que pode proporcionar essas sensações.
Configurando-se, por isso, como um elemento de promoção da quali-
dade de vida desses meninos e meninas, ainda mais se pensarmos em toda a
problemática destes jovens em específico, analisando o seu contexto social
marcado por uma realidade de grandes dificuldades, onde encontramos a
miséria e a violência como protagonistas do cenário em que vivem. Sobre a
afirmativa expressada pelos jovens sobre o surfe ter a capacidade de aliviar as
tensões do dia a dia, proporcionando relaxamento, podemos refletir essa ideia
diante de duas relações, a primeira, pela própria lógica do lazer, que, segundo
Friedmann (1983), passou a existir pela necessidade dos trabalhadores terem
76

momentos com atividades prazerosas capazes de aliviar as tensões cotidianas,


diminuindo os estresses que aconteciam no trabalho.
No que se refere à segunda explicação, essas afirmativas encontradas
na fala dos jovens tanto são elucidadas por um âmbito geral quanto especí-
fico do surfe, assim, partindo da dimensão ampla atrelada às características
encontradas nas práticas corporais de aventura, com base no estudo de Tahara
e Carnicelli Filho (2013), as atividades englobadas nesse grupo são vivências
espontâneas usadas para fugir da vida estressante das grandes cidades. Por-
tanto, nessa lógica de pensamento, podemos concluir que o surfe desenvolve
um papel importante na vida desses jovens, ao proporcionar, mesmo que
ainda de forma sutil, uma considerável minimização do quadro de sofrimento
vivenciado por essa juventude em decorrência de tal realidade.
Assim, o surfe pode ser visto como uma terapia no resgate da autoestima
desses garotos e garotas que vivem no Titanzinho. Porém, é preciso ter bom

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senso, como apontam Marinho e Inácio (2007), para não vincular esse posi-
cionamento de forma tão extrema ao ponto de ajuizarmos, no caso do surfe,
como um “remédio para todos os males”, pois essa posição reflete uma visão
romântica impregnada por uma postura tendenciosa não coerente. Contudo,
os autores esclarecem que essas práticas podem, através dos sentimentos e
emoções gerados em suas vivências, contribuir para mudanças de comporta-
mentos e atitudes atreladas às demais esferas da vida humana.
Focalizando para a dimensão mais específica pautada por uma reflexão
com base no surfe, essa constatação se justifica pelas sensações vividas tanto
pelo contato com a natureza como por momentos de intenso prazer ao deslizar
a onda, acarretando em um sentimento de liberdade para todo o corpo, que
parece ajudar no enfrentamento das exigências do mundo exterior ao mar.
São prazerosos sentimentos providos pela relação com a natureza, benéfica,
no sentido de compensar as situações de estresse do trabalho ou da vida coti-
diana, agindo na reestruturação do seu equilíbrio mental.
Portanto, o surfe apresenta-se como uma prática corporal lúdica, capaz
de aliviar as sensações de estresse, para esses jovens, promovendo o bem-
-estar e proporcionando momentos de lazer, aspectos esses importantes para
a qualidade de vida e o desenvolvimento do ser humano, sendo, assim, uma
prática benéfica para a juventude.
Depois dessa reflexão sobre o surfe como prática de lazer e bem-estar,
a seguir, discorremos sobre o surfe como agente de socialização e opção
para ocupar o tempo livre dos jovens, segunda categoria encontrada sobre
o significado do surfe. O surfe, enquanto a gente de socialização esteve
presente nas falas dos jovens quando eles afirmaram que, no surfe, existe
a possibilidade de encontrar amigos, configurando-se, portanto, como um
elemento para a socialização.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 77

Para essa afirmativa, tomamos como base o pensamento compartilhado


por Albuquerque (2006), quando esta declara que os espaços lúdicos, como as
ruas, as praias, as festas, são lugares importantes no que se refere à socialização
dos jovens, por estabelecerem valores, laços, reconhecimento e identificações.
Nessa reflexão do surfe como elemento socializador, também nos apoiamos na
constatação feita por Dayrel (2002, p. 119), para elucidarmos esse pensamento:

Nos últimos anos, e de forma cada vez mais intensa, podemos observar
que os jovens vêm lançando mão da dimensão simbólica como a principal
e mais visível forma de comunicação, expressa nos comportamentos e
atitudes pelos quais se posicionam diante de si mesmos e da sociedade.
É possível constatar esse fenômeno nas ruas, nas escolas ou nos espaços
de agregação juvenil, onde os jovens se reúnem em torno de diferentes
expressões culturais, como a música, a dança, o teatro, entre outras, e tor-
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nam visíveis, através do corpo, das roupas e de comportamentos próprios,


as diferentes formas de se expressar e de se colocar diante do mundo.

Diante dessas afirmativas, o surfe assume-se enquanto elemento de inte-


gração social da juventude. Nesse sentido, podemos afirmar que o processo de
socialização desses jovens se dá nas relações que ocorrem no mar, na praia.
São finais de tarde no outside, à espera das boas ondas ou fora, geralmente
sentados nos bancos ou nas pedras, como espectadores de uma cena que se
repete diariamente, registrada pela “câmera ocular” de meninos, meninas,
garotos, garotas, homens, mulheres, senhores e senhoras, que vibram com
as manobras empolgantes ou lastimam e até riem dos “caldos” sofridos pela
galera, como também constata Sá (2010, p. 237):

Na perspectiva da antropologia da imaginação dos jovens, o significado


simbólico do Serviluz precisa ser apresentado a partir de suas duas maiores
autoatribuídas riquezas socioculturais: a pesca artesanal e o surfe. São os
universos sociais entrecruzados destas duas práticas culturais que oferecem
as maiores recompensas simbólicas para o ideal e imagem de nós desses
jovens. Portanto, pesca e surfe são símbolos de ampliação da experiência
sociocultural desses jovens.

Portanto, o surfe se configura como um agente de socialização para esses


jovens, ao proporcionar encontros dentro e fora do mar, sendo um componente
integrador na formação de grupos juvenis que apresentam o mesmo interesse
nessa prática corporal, configurando-se como um elemento inicial de apro-
ximação entre os jovens, constituindo um coletivo social a partir do surfe.
Sobre o surfe como opção para o tempo livre dos jovens a ideia de
que o surfe é um esporte que ocupa o tempo livre dos jovens, mantendo-os
78

ocupados, longe dos perigos das ruas, reflete os posicionamentos colocados


pelos jovens entrevistados, quando eles afirmam que o surfe é um esporte
maravilhoso porque tira o “pessoal do mundo”. Essa última afirmação condiz
com o pensamento reducionista que exprime visões alienadas presentes em
nosso contexto social a respeito das práticas corporais, como a solução dos
problemas sociais da juventude.
Colocamos esse posicionamento em questão para que possamos refletir
que o problema não está na afirmação de que a prática corporal é vantajosa por
ocupar o tempo dos jovens, mas no pensamento de que os problemas sociais
dos jovens com relação especificamente ao envolvimento deles com o crime e
as drogas ocorrem por estarem ociosos. Transfere-se a raiz do problema para
essa justificativa, desfocando o fato de que essas situações-problemas ocorrem
devido a um contexto de extrema desigualdade social, que a maioria dos jovens
da camada popular que vive nas zonas de periferias das cidades são submetidos

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a enfrentar, sem oportunidade e sem condição de desenvolvimento social, pela
falta de educação e de outras garantias básicas necessárias para uma vida plena.
Nesse sentido, trago a importância de construirmos um diálogo emanci-
pado nesses espaços que se destinam a trabalhar socialmente com os jovens,
para que estes possam superar esses discursos alienantes que servem, inclu-
sive, como instrumento de dominação e opressão, além de que essas justifi-
cativas superficiais acabam por ser também um mecanismo de transferência
de culpa do Estado para o povo.
Espaços educativos e os educadores sociais podem ter como base o pen-
samento de Freire (1996, p. 23), quando este orienta que “[...] ensinar exige o
reconhecimento do ser condicionado”; se estes trazem em sua missão a luta
pela diminuição dos problemas sociais, inclusão dos que são excluídos em
nossa sociedade e a melhoria de vida da camada popular, com essa orientação,
de acordo com o pensamento freireano, é preciso rigorosidade no exercício
constante de reflexão crítica da realidade para superarmos a ideologia fatalista
embutida no discurso neoliberal de conformação das circunstâncias da vida.
O trabalho educativo, seja ele no espaço formal ou informal, precisa contri-
buir para que as pessoas tenham capacidade de fazer uma leitura crítica e histórica
dos fatos, para que elas não continuem sendo manipuladas e oprimidas. A postura
diante dessa orientação traz no seu bojo a negação aos argumentos liberais que
tentam naturalizar as desigualdades promovidas pela ordem social, econômica
e política vigente, indo na contramão do discurso defensor da meritocracia.
Buscamos, também, neste estudo, perceber quais seriam os sentidos que
estes jovens conferiam ao surfe na relação com sua vida, no intuito de encontrar
percepções mais íntimas no que tange à convivência com essa prática corporal
para as suas histórias, buscando sentidos mais profundos. Desse modo, as falas
desses jovens sobre os sentidos do surfe para a suas vidas foram as seguintes:
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 79

Na minha vida, né?! (pausa curta de emoção) o surfe é uma coisa especial,
assim, muito especial. É tipo como se eu tivesse uma outra família no mar,
o surfe é maravilhoso (Titanzinho, 13 anos).

Surfe é vida né?! Surfe é arte e eu acho que o significado é que quando
a gente tá surfando é muito bom se tem a sensação de ser livre, é isso
(Vizinho, 13 anos).

Ele é quase tudo, porque a gente vai surfar até uns anos né?! Porque o surfe
faz parte da nossa vida. Ele é um passatempo pra mim, porque eu poderia
tá fazendo coisa errada lá fora e ele ajuda na coisa física da gente e até
gosto, porque é envolvido com a natureza e é esporte (Portão, 15 anos).

Significa várias coisas, porque é junto da natureza, a gente vê o mar, a beleza


do Titan, vários turistas vêm muito conhecer o Titan, o Serviluz, acha que é
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perigoso porque tem a coisa ruim, mas tem coisa boa, tem o surfe também,
que é muito importante nas nossas vidas (Havaizinho, 15 anos).

Durante as entrevistas, emoções eram transparecidas nas falas desses


meninos e meninas. Em particular nessa pergunta, pôde-se perceber, ao expres-
sarem o sentido do surfe nas suas vidas, um misto de emoções, que iam desde
uma pausa, seguida de um quase choro de emoção, a expressões de sorriso
e alegria que transpareciam a importância do surfe para suas vidas. A pausa
seguida de um quase choro afundado por uma profunda inspiração foi de
apensas um dos jovens, como podemos perceber na transcrição da entrevista
do jovem Titanzinho; tanto por suas palavras quanto por essa situação, foi
possível perceber o quanto o surfe é um esporte que vai além das ondas,
apresentando sentidos bem mais abrangentes do que apenas a relação com
as manobras que são ali vivenciadas no mar.
As posições elencadas pelos jovens, ao anunciarem os sentidos que
o surfe tem nas suas vidas, refletindo, inclusive, uma visão ampliada com
relação a essa prática por parte dessa juventude foram: a) surfe como sen-
sação de liberdade; b) surfe como outra família no mar; c) ideia de que o
surfe é uma arte; d) o surfe como quase tudo; e) os vários significados do
surfe em suas vidas.
São expressões carregadas de sentimento de acolhimento, de pertenci-
mento, alegria e satisfação, que puderam ser percebidos tanto nas falas quanto
nas emoções transpassadas por eles ao responderem essa pergunta, vindo de
encontro ao que Doro (2015) localizou em sua pesquisa com idosos surfistas,
quando ele identificou as influências da prática do surfe na qualidade de vida
dos participantes, destacando os efeitos positivos, principalmente na promoção
de bons sentimentos para lidar com as dificuldades da vida.
80

A ligação com a natureza, a sessão de surfe com os amigos, os sentimentos


proporcionados, começam antes mesmo de se entrar no mar para surfar, assim
também como os que são mantidos horas após as sessões, proporcionam bene-
fícios físicos, psicológicos e sociais aos seus adeptos, o que faz com que muitos
surfistas o percebam como algo que vai além dos aspectos físicos, proporcio-
nando sensações para a vida que acontece também fora do mar (DORO, 2015).
Esses sentimentos de pertencimento e o reconhecimento das afetivida-
des geradas pelo surfe têm relação tanto pelas sensações no mar, quanto pelo
mundo que se abre a partir dele e as possibilidades positivas pautadas pela
construção de confiança, autoestima e perspectivas de vida, trazendo espe-
ranças a esses jovens como algo bom diante de suas vidas conturbadas pela
miséria e pela violência, como sendo uma forma de amenizar os problemas,
onde o surfe é um momento de alegria.
O amor que nasce nessa relação com o surfe e também com a natureza

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torna-se energia vibrante para o dia a dia desses jovens, trazendo, inclusive, um
direcionamento para suas vidas. Assim, podemos constatar a intensa relação
do surfe na vida desses jovens e como eles identificam essa relação a partir de
uma perspectiva positiva, como percebemos em uma das falas, quando um dos
jovens destaca o surfe como algo bom e de grande importância para suas vidas.
A partir do levantamento dessas reflexões, é importante que espaços
que se destinam a trabalhar com o surfe, independente da perspectiva, se de
cunho social, rendimento esportivo e ou com enfoque no ensino da técnica,
não fechem o seu objetivo de ensino apenas para a aprendizagem do aspecto
físico, visto que o surfe é uma prática corporal como uma filosofia de respeito
e harmonia às pessoas e ao meio ambiente que pode proporcionar o desen-
volvimento de diversas dimensões intelectuais, sensórias, gestuais, afetivas,
sociais, culturais entre outras, proporcionando uma educação de corpo inteiro
impregnada de corporeidade, de sentir-se e relacionar-se, superando assim um
conceito reducionista, tecnicista e superficial do surfe, indo além do “saber
fazer”, proporcionar um saber pensar, ser e conviver.
Com base nessa discursão, a reflexão que se pretende incitar é que, inde-
pendente do objetivo do aluno, seja lazer, saúde, rendimento, e do espaço onde
está acontecendo o ensino dessa prática, se é um projeto social, uma escola,
um clube, uma academia ou um centro de treinamento, é preciso ultrapassar
o mero ensino do gesto motor e pautar por uma vivência de ensino e aprendi-
zagem que se preocupe com a formação integral do cidadão, tendo como base
a compreensão que o ser humano é físico, mental, afetivo, social e espiritual.
Diante dessa constatação, podemos concluir que essas respostas reforçam a
ideia de que o surfe, para eles, é algo muito positivo em suas vidas, por proporcio-
nar relaxamento e alívio, boas sensações, refletidas no sentido mencionado por eles
ao destacarem a diversão e o prazer ao sentir a onda, além de ser um espaço para
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 81

que possam construir os laços de amizade, sendo importante para a sua socializa-
ção. Essas boas sensações proporcionadas pelo surfe vêm da capacidade presente
em todas as atividades físicas de uma forma geral, somada a fatores particulares
de tal prática, já que um dos benefícios dos exercícios físicos é a produção de
endorfina, substância narcótica de ocorrência natural que diminui a dor e aumenta
as sensações de conforto e bem-estar (NETO; WENDHAUSEN, 2011).
Partindo de uma análise mais específica, existe uma probabilidade maior
em atividades realizadas próximas à natureza promoverem essas sensações de
prazer, como apontam Romariz, Guimarães e Marinho (2011), que a sintonia
com a natureza, ou seja, o contato com o mar, as ondas, o sol, causa mudanças
ao corpo, à mente e ao espírito, aumentando a sensibilidades dos surfistas para
entrarem em conexões com outras esferas da vida humana, tranquilizando-os.
Os autores acima também apontam que as oportunidades de socialização, dentro
e fora do mar através do surfe, proporcionam contribuições para a manifestação
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do domínio social, oportunizando, igualmente, sensações de bem-estar.


Podemos constatar que essa finalidade mantém uma inter-relação com
o item anterior, partindo do princípio de que o lazer propicia condições de
recuperação psicossomática e de desenvolvimento pessoal e social importantes
aos seres humanos, trazendo benefícios à saúde em uma perspectiva global,
como aponta Requixa (1974), sobre a relação do lazer com a saúde. Essa
compreensão nos remete a uma constatação positiva sobre o fato de que essas
informações e orientações sobre a importância do exercício físico para a saúde
estão sendo compartilhadas e compreendidas por esse público, revelando a
presença de certo cuidado desses jovens com essa dimensão da vida, ainda
mais no contexto em que vivemos, onde estudos epidemiológicos constatam
o surgimento de fatores de risco que podem contribuir com o aparecimento
de doenças crônicas degenerativas em crianças e adolescentes, tornando-as
candidatas em potencial a apresentarem, quando adultos, graves distúrbios
funcionais (MODENEZE; SEQUEIRA; KOREN, 2009).
A relação desses jovens com o surfe e o reconhecimento de que essa prá-
tica proporciona benefícios à saúde deles mostram um indicativo importante,
visto que é proveitoso o contato desde cedo com a prática corporal, pois, além
de trazer inúmeros benefícios na fase presente, há grandes probabilidades de,
quando adultos, possam manter uma boa relação com essas práticas, levan-
do-as ao longo de suas vidas.
Porém, tão importante quanto identificar essa preocupação dos jovens
com a saúde, é entender como eles a compreendem, visto que existem vários
conceitos, inclusive concepções limitadas e reducionistas, que acabam por
promover ideias confusas sobre o que seria saúde. São conceitos que ora frag-
mentam o corpo, ora estão demasiadamente em ligação com uma ideia sobre a
aparência (aspectos estéticos) e os aspectos fisiológicos, tendo como exemplo
a saúde sendo representada pelo corpo atlético e a ausência de doenças físicas.
82

Considerações finais

Deste modo, visualizamos canais e ações de diálogos e de intervenções


possíveis, onde essas temáticas estariam presentes por toda a prática. Assim,
ensinar o surfe ultrapassaria o ensino do gestor motor, alcançando maiores
proporções, configurando-se como um trabalho de educação integral, ao abran-
ger todas as dimensões do ser humano, pautado também para a formação do
ser crítico mediada por uma abordagem de emancipação e superação.
Percebemos que os significados e os sentidos que os jovens atribuem ao
surfe trazem a ideia de lazer, usado como uma forma de diminuir o estresse,
como uma agente de socialização e como opção para ocupar o tempo livre.
Eles conferem ao surfe também sentimentos de pertencimento e de ligação
afetiva, expressando que o surfe tem vários significados, traz uma sensação de
liberdade, é como uma família do mar, como uma arte e como quase tudo em

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suas vidas. Para eles, os seus objetivos com o surfe estão ligados à intenção
de lazer, por ser um momento de grande diversão, em que têm boas sensações
e podem fazer amigos, como também existe o objetivo de cuidar da saúde
através do surfe, sendo uma prática corporal que faz bem o corpo e a mente,
capaz de diminuir o estresse.
Esses achados nos possibilitaram também reflexões e visualizações de
caminhos iniciais para que possamos pensar, construir e implementar uma expe-
riência de ensino e aprendizagem do surfe fundamentada por uma abordagem
educativa progressista, libertadora, pautada, portanto, pela dialogicidade, con-
textualização, reflexão-crítica, emancipação, criatividade, participação ativa,
autonomia, superação das práticas hegemônicas, luta pela justiça social, trans-
formação e libertação do povo contra os mecanismo opressores e desumanos.
Encontrar na voz desses jovens os sentidos e os significados do surfe foi
uma experiência de múltiplos conceitos, em que tivemos a oportunidade de
aprender e pensar mais sobre a relação do surfe com os jovens compreendendo
os aspectos socioculturais, psicológicos e também educativos. Percebendo o
surfe como uma prática para a formação humana cidadã e a inclusão socioe-
ducativa das juventudes.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 83

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CAPÍTULO 6
NARRATIVAS DE SURFISTAS
PROFISSIONAIS: construção
da identidade e da carreira
Mariana Vannuchi Tomazini
Lucy Leal Melo-Silva

Introdução
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Entender a constituição da identidade e a construção da carreira do


surfista profissional requer, inicialmente, uma breve apresentação do surfe
como modalidade de esporte de alto rendimento e dos modelos teóricos que
sustentam este estudo relacionados à construção de si e à construção da car-
reira. A construção de si é abordada com base em perspectivas sociológicas,
psicológicas e dinâmicas, e a construção da carreira a partir de acepções
construtivista e construcionista.
O surfe compreende uma atividade física de aventura na natureza, na qual há
o movimento corporal em intensa interação com o ambiente natural e a vivência
de aventuras que despertam sensações e emoções hedonistas (BETRÁN, 2003).
Em âmbito mundial, é o esporte náutico mais praticado e um dos esportes que
mais atrai praticantes, amadores e profissionais, de acordo com Forneck (2008).
Em 2015, o surfe foi confirmado na lista entre os novos esportes dos Jogos Pan-
-Americanos de 2019 no Peru e nas Olimpíadas de Tóquio de 2021.
No Brasil, a cultura do surfe possui grande aceitação e disseminação,
sendo o segundo país no ranking mundial em termos de consumo relacionado
à modalidade como destacam Bitencourt et al. (2006) e Forneck (2008). O
surfe de alto rendimento se encontra em crescente destaque e expansão no país
e os surfistas profissionais brasileiros vêm se destacando significativamente
na elite do surfe mundial. Em 2014, Gabriel Medina foi o primeiro campeão
brasileiro no circuito mundial de surfe de elite. Em 2015, Adriano de Souza,
repetiu o feito, conquistando o título mundial. Em 2018, Gabriel Medina tor-
nou-se o primeiro brasileiro bicampeão na elite do surfe mundial, alcançando
John John Florence, Tom Carroll e Damien Hardman, atletas estrangeiros que
também possuem dois títulos (GUIMARÃES, 2018)10. Em 2019, o Brasil

10 GUIMARÃES, F. Gabriel Medina é bicampeão mundial. [S.l.], 2018. Disponível em: https://hardcore.com.
br/gabriel-medina-conquista-bicampeonato-mundial-de-surfe/amp/. Acesso em: 1º nov. 2019.
86

teve seu terceiro campeão mundial de Surfe, Ítalo Ferreira, além de cinco
surfistas brasileiros no ranking, sendo três entre os quatro primeiros colocados
(CLASSIFICAÇÃO..., 2019)11. O campeonato mundial de surfe de elite 2020
foi cancelado em virtude da pandemia da covid-19 e postergado para maio
de 2021 (ALEXANDRINO, 2020)12. Porém, antes de ser cancelado, o Brasil
tinha onze brasileiros competindo, sendo três dentre os quatro melhores do
ranking. Atualmente, em 2020, o Brasil é o quarto país no ranking de obten-
ção de títulos mundiais no Surfe de elite masculino (CIRCUITO..., 2020)13.
Tais dados evidenciam o crescente desenvolvimento e valorização do Surfe
profissional em âmbito nacional e mundial. E, neste contexto de grande espe-
tacularização da modalidade, também há grande evidência do protagonista
deste espetáculo esportivo: o surfista profissional, foco deste estudo.
Para tratar da identidade, neste estudo, tem-se por base o Modelo Teó-
rico da Construção de Si de Guichard (2009). Esse modelo abarca três

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perspectivas: a sociológica, a cognitiva ou psicológica e a dinâmica. A
perspectiva sociológica assume que a autoconstrução ocorre em contextos
sociais estruturados. Nessa perspectiva os indivíduos agem, interagem e se
relacionam em contextos sociais e linguísticos (família, escola, vizinhança,
sistemas de relacionamento, relatos de vida) que ali se encontraram desde
quando nasceram. Assim, cada sociedade determina uma oferta identitária
específica. Nesta oferta de identidade, dois elementos são fundamentais: (a)
categorizações sociais de qualquer tipo (sexo, raça/etnia, religião, profis-
são, estado de saúde, entre outros); e (b) modos de relação consigo mesmo
(esquemas de si, formas biográficas) intimamente ligados a essas categorias
e em um determinado contexto.

Esta oferta é dada – como tal – quando o indivíduo nasce. Mas ela evolui
por meio da mediação de suas ações, interações ou jogos de linguagem,
os indivíduos contribuem para a evolução desses contextos sociais. Assim,
novas categorias aparecem (GUICHARD, 2009, p. 252).

Nas perspectivas cognitivas os indivíduos não ficam passivamente


impregnados por essa oferta de identidade. Há uma certa elaboração cognitiva
de cada membro da sociedade, existe um mundo externo e um mundo interno.

11 CLASSIFICAÇÃO do circuito mundial de surfe 2019 – masculino. 2019. Disponível em: https://globoesporte.
globo.com/radicais/surfe/mundial-de-surfe/noticia/classificacao-mundial-de-surfe-2019-masculino.ghtml.
Acesso em: 10 out. 2020.
12 ALEXANDRINO, R. Circuito mundial de surfe é cancelado por pandemia do coronavírus. O Globo, Rio de
Janeiro, 17 jul. 2020. Disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/circuito-mundial-surfe-%C3%A9-cance-
lado-130124035.html. Acesso em: 10 out. 2020.
13 CIRCUITO mundial masculino de surfe. 2020. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Circuito_Mun-
dial_Masculino_de_Surfe. Acesso em: 10 out. 2020.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 87

Os indivíduos conhecem o mundo social à sua própria maneira, e, em par-


ticular, os indivíduos adaptam alguns elementos desta oferta de identidade
para si próprios. Mais do que simplesmente impregnados, os elementos
são agarrados (GUICHARD, 2009, p. 253).

Para entender essa elaboração cognitiva três conceitos são relevantes:


quadro de identidade, forma de identidade, e sistema de forma de identidade
subjetiva. Os quadros de identidade cognitivos, são estruturas mentais de
atributos com valores padrão, se referem a diferentes grupos ou categorias
sociais. São as construções cognitivas, das diferentes categorias que consti-
tuem a oferta de identidade em evolução da sociedade a que pertence.

Na verdade, os quadros de identidade são estruturas cognitivas inferidas


das quais os indivíduos não têm consciência imediata. No entanto, os
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indivíduos têm plena consciência das formas de identidade que percebem


em relação a essas estruturas cognitivas (GUICHARD, 2009, p. 253).

Uma forma de identidade pode ser definida como uma determinada


maneira de ver a si mesmo e aos outros em um determinado contexto. Esses
sistemas de formas de identidade subjetivas podem ser definidos como conjun-
tos de modos de ser, agir e interagir em relação a uma determinada visão de si
mesmo em um dado contexto. Quando os indivíduos se constroem dentro de
uma forma de identidade particular, eles se apropriam dela e se identificam.
Nas perspectivas dinâmicas dois processos psicológicos intervêm na
autoconstrução do indivíduo de um sistema de formas de identidade subje-
tiva: (a) um processo corresponde àquelas antecipações de identidade e (b)
outro processo que corresponde à descentralização da própria experiência,
analisando-a do ponto de vista de outra pessoa, ou de um “outro generali-
zado”. Esses processos correspondem a dois tipos de reflexividade que, sob
tensão, constituem o Self. A reflexividade “eu-eu”, é baseada nos processos
pré-linguísticos de auto antecipação, em que o que se tornará o “eu” aparece
como um todo completo. Um menino, por exemplo, que aspira construir a
carreira no surfe, pode dizer: “‘Eu’ posso me imaginar ‘como o Medina”. A
segunda forma de reflexividade – a do “eu – você – ele / a” – origina-se nas
interações com os outros.
O que significa construção da carreira? Para tratar desse construto é
relevante refletir sobre o significado psicossocial do termo carreira. De acordo
com Ribeiro (2011), com base em Duarte (2009), o construto pode ser enten-
dido com base no construtivismo e no construcionismo. Com base no cons-
trutivismo trata-se de um conceito funcionalista e dinâmico que preconiza a
interação entre pessoas e a realidade profissional:
88

[...] por meio da construção da forma como as pessoas adaptam o trabalho


em suas vidas (não como as pessoas se ajustam às ocupações) e da cons-
trução da trajetória do comportamento (não da análise do comportamento
vocacional) (RIBEIRO, 2011, p. 36).

Por sua vez, sob a lente do construcionismo, a construção

[...] é a operação básica de relação entre pessoa e contexto, num processo


de coevolução indissociável, pelo qual a pessoa constrói sua trajetória
no mundo do trabalho elaborando e realizando continuamente projetos
de vida no trabalho que integrem as várias dimensões de sua vida pela
transformação contínua dessas dimensões e constituem sua identidade
profissional (RIBEIRO, 2011, p. 36).

A teoria de construção da carreira de Savickas (2005) explica o processo

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interpretativo e interpessoal no qual os indivíduos constroem a si mesmos,
direcionam seu comportamento vocacional, e dão sentido às suas carreiras.
Indivíduos compõem o self e a carreira através da reflexão sobre as expe-
riências, usando a capacidade única do ser humano de ser consciente de sua
consciência. Tratar de carreira significa falar de carreira subjetiva e não da
carreira objetiva. Por carreira objetiva entende-se o conjunto de posições que
uma pessoa ocupa desde a escola até a aposentadoria, abordagem comumente
adotada nas empresas quando se fala em progressão na carreira. Por sua vez,
a definição da carreira subjetiva envolve não a soma das experiências, mas o
significado que a pessoa atribui a estas experiências e refere-se: “à construção
subjetiva que atribui significação pessoal às lembranças anteriores, experiên-
cias presentes e aspirações futuras tecidas por um tema de vida que confere
um padrão à vida de trabalho de um indivíduo” (SAVICKAS, 2005, p. 43).
Desta forma, o modelo teórico da construção de si, de Guichard (2009) e a
teoria de construção da carreira, de Savickas (2005), subsidiam este estudo.
Na revisão da literatura não foram encontrados estudos sobre o surfista
profissional, sua atividade ocupacional e a construção de si e da carreira. Obje-
tivando preencher essa lacuna, um estudo maior foi realizado por Tomazini
(2017), em nível de mestrado. Este capítulo focaliza parte dos dados obtidos
para o mestrado da primeira autora, orientada pela segunda autora, que não
foram apresentados (e/ou o foram de modo pouco aprofundado) na dissertação
e que, portanto, serão analisados no presente estudo. Como parte de um livro
sobre a Psicologia do Esporte, com foco em aspectos socioculturais e psicológi-
cos dos praticantes do surfe, este capítulo objetiva descrever quem é o surfista
profissional, os aspectos nucleares de seu self, os modelos de conduta utilizados
na construção de sua identidade, seus interesses manifestos, seus temas de vida
e suas estratégias utilizadas para lidar com as demandas de vida e de carreira.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 89

Método

A investigação maior desenvolvida pela primeira autora desse capítulo e


orientada pela segunda autora foi desenvolvida no Programa de Pós-gradua-
ção em Psicologia da Faculdade de Filosofia de Ciências de Ribeirão Preto,
da Universidade de São Paulo e defendida em 2017. A dissertação na íntegra
está disponível no banco de teses e dissertações da USP. Este capítulo utiliza
dados obtidos com três dos quatro surfistas que participaram da investigação
maior de mestrado, que não foram apresentados (e/ou foram superficialmente
analisados) por sugestão da banca de qualificação, que recomendaram ana-
lisá-los em publicação posterior, dada a quantidade e qualidade dos dados
obtidos. A natureza da investigação apresentada nesse capítulo é qualitativa,
no formato de estudo de caso e foi realizado dentro dos padrões legais e
éticos, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da referida
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instituição universitária. A fim de investigar a construção da vida e carreira


de surfistas profissionais, adotou-se o paradigma life design como base teó-
rico-metodológica, que se ancora no modelo teórico da construção de si, de
Guichard (2009) e na teoria de construção da carreira, de Savickas (2005).

Participantes

Foi utilizada uma amostra composta por três atletas brasileiros de surfe,
com idade entre 15 e 27 anos, do sexo masculino (cujos dados foram obtidos
em 2016). Os critérios de inclusão foram: a profissionalização no esporte e
a categoria esportiva na qual competem. Assim, os participantes têm o surfe
de alto rendimento como profissão e competem na categoria profissional de
surfe. Com intuito de proteger a identidade dos mesmos, foram omitidos dados
que permitissem a identificação.
O participante 1 tem 27 anos, ensino médio incompleto, é profissional
do surfe há mais de 10 anos e definiu-se como pertencente ao nível socioe-
conômico baixo. O participante 2 tem 17 anos, ensino médio completo, é
profissional do surfe há menos de um ano e definiu-se sendo do nível socioe-
conômico médio. Por sua vez, o participante 3 tem 15 anos, cursa o primeiro
ano do ensino médio, é profissional do surfe há menos de um mês e defi-
niu-se sendo do nível socioeconômico médio. Os três participantes estavam
vivenciando transições em suas carreiras no momento da coleta de dados,
sendo que P2 e P3 enfrentavam um processo de adaptação a uma transição
normativa (transição para a carreira profissional e para o âmbito mundial de
competição) e P1, a uma transição não normativa (perda de patrocínio). As
transições normativas caracterizam-se por relativa previsibilidade, visto que
estão associadas às etapas que os atletas deverão atravessar. Já as transições
90

não normativas compreendem os eventos inesperados ou “não eventos” no


curso da carreira (ALFERMANN; STAMBULOVA, 2007). No domínio da
carreira, Schlössberg, Waters e Goodman (1995) descrevem três tipos de
situações de transições: (a) antecipadas, (b) não antecipadas e (c) não evento.
As transições antecipadas referem-se a eventos normativos, como denomina-
dos por Alfermann e Stambulova (2007), ou seja, aqueles que são esperados,
como formatura, casamento, primeiro emprego e aposentadoria. As transi-
ções não antecipadas, referem-se a eventos não programados, inesperados,
que tradicionalmente refletem crises ou rupturas, por exemplo, demissão e
burnout, ou mudanças sutis como perda de aspirações de carreira. Por fim, os
não eventos estão associados às mudanças que eram desejadas, mas que por
algum motivo não ocorreram, como por exemplo no caso de atletas a perda de
um campeonato. Nesse tipo de transição – de não evento – a pessoa é levada
a rever seu autoconceito, sua identidade. Para a situação ser definida como

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de transição precisa ser assim definida pela pessoa. Refletir sobre os tipos de
transições é importante no contexto deste estudo, uma vez que os participantes
se encontram em situação de transição e o mundo pós-moderno as transições
são cada vez mais frequentes.

Instrumentos e procedimentos

Para a obtenção de dados foi utilizado o roteiro da Entrevista intitu-


lado Construção de Carreira de Savickas – Career Construction Interview
(SAVICKAS; HARTUNG, 2012), em sua versão traduzida para o português
(de Portugal) como “Minha História de Carreira (MHC): manual para o
sucesso na vida/carreira” por (DUARTE et al., 2010). O roteiro é embasado
no paradigma Construção da Vida/Carreira (Life Design), que se apoia nas
teorias de Construção de Si (GUICHARD, 2009) e de Construção da Carreira
(SAVICKAS, 2005) e no construcionismo social. Por meio da MHC busca-se
compreender como os indivíduos constroem suas histórias de vida e de carreira
em torno de seus valores nucleares (DUARTE et al., 2010). O roteiro para a
entrevista sobre a construção de carreira possui questões-guias e compreende
um processo estruturado de investigação progressiva. É utilizado para o acon-
selhamento de carreira e neste estudo foi utilizado para fins de obtenção de
dados, pois as questões-guia facilitam a reflexão e a compreensão da história
de vida/carreira, revelando metáforas sobre aspectos nucleares individuais.
No “Aconselhamento de Carreira Life Design, o referencial teórico ali-
menta-se de uma relação dialógica por meio da qual se definem e ordenam os
argumentos, para depois os transformar em palavras que dão sentido e signifi-
cado à narrativa de cada um” (RIBEIRO; TEIXEIRA; DUARTE, 2019, p. 35).
Assim, os argumentos dos participantes, suas palavras, ou seja, as narrativas
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 91

constituem o objeto de análise deste estudo. Para maior aprofundamento no


paradigma Life Design, além da referência anteriormente citada, recomenda-se
o Handbook of Life Design de Nota e Rossier (2015).
Anteriormente, à realização das entrevistas, os participantes tomaram
ciência e consentiram por meio do Termo de Consentimento Livre Esclare-
cido e o Termo de Autorização para inclusão em Banco de Dados. No caso
dos participantes com idade abaixo de dezoito anos, foi assinado o Termo de
Assentimento Livre e Esclarecido pelos mesmos e os Termos de Autorização
para Participação em Pesquisa e Autorização para inclusão em Banco de
Dados por seus respectivos responsáveis. O processo de obtenção de dados
foi realizado individualmente, de modo presencial, no município de residência
de cada participante, em 2016. Após anuência dos participantes, as entrevistas
foram gravadas em áudio para posterior transcrição e análise dos dados.
Os dados foram analisados a partir do método de análise proposto por
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Savickas e Hartung (2012), que enfatizam que a narrativa eliciada pela entre-
vista sobre construção de carreira deve ser organizada e integrada em um senso
amplo de significância, a partir do conteúdo manifesto, buscando descobrir o
que é vital para o indivíduo. A atividade se organiza em quatro questões-guia,
objetivando obter dados específicos, estabelecidos a priori, e abordando os
aspectos nucleares de self, os modelos de conduta utilizados na construção da
identidade, os interesses manifestos, os temas de vida e as estratégias utilizadas
para lidar com as demandas de vida e de carreira. Cada questão-guia objetiva
obter dados específicos, estabelecidos a priori, que neste estudo denomina-
remos categorias e subcategorias temáticas. A relação entre as questões-guia,
as categorias e subcategorias temáticas são descritas na Tabela 1.

Tabela 1 – Relação entre as questões-guia, as


categorias e as subcategorias temáticas

Questões-Guia (Norteadoras) Categorias Temáticas Subcategorias Temáticas

1.1. Perspectiva do Self


• Recordações Primárias 1.2. Modelos de Conduta na Construção
1. Self
• Heróis e Pessoas admiradas da Identidade
1.3. Atributos do Self

• Programas de TV, websites e


2. Interesses 2.1. Interesses Manifestos
revistas preferidos

3.1. Sabedoria do Self para a construção


• História favorita atual 3. Estratégias para a da história de vida e de carreira
• Frase favorita construção da vida/carreira 3.2. Estratégias para lidar com questões
de vida e carreira atuais

Fonte: Criado pelas autoras para fins deste estudo.


92

A primeira questão-guia é: Quem admirava enquanto crescia? Quem


eram os seus heróis e heroínas?). Ela investiga três pessoas, ídolos ou heróis
que a pessoa admirava enquanto crescia, que devem ser descritos em termos
de características psicológicas. Essa questão-guia objetiva compreender quem
foram os modelos de conduta na construção da identidade, eliciando dados
que compõem a categoria Self e as subcategorias Modelos de Conduta na
Construção da Identidade e Atributos do Self. A segunda questão-guia é:
Quais são as suas três revistas ou programas/conteúdos veiculados pela tele-
visão/internet favoritos?). Ela investiga as temáticas das fontes de informação
(revistas, programas de TV, seriados, websites) acessadas pelo indivíduo com
frequência no momento atual. Objetiva compreender quais são seus interesses
manifestos e eliciar dados que compõem a categoria Interesses e a subca-
tegoria Interesses Manifestos. A terceira questão-guia é: Atualmente, qual

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a sua história favorita? Ela possibilita ao indivíduo descrever o roteiro de
sua história em suas próprias palavras e explicar o que a torna favorita. Esta
questão elicia dados que compõem a categoria Estratégias para a construção
da vida/carreira e a subcategoria Estratégias para lidar com questões de vida
e carreira atuais. A quarta questão-guia (Qual é a sua expressão favorita)
elicia dados que compõem a categoria Estratégias para a construção da vida/
carreira e a subcategoria Sabedoria do Self para a construção da história
de vida e de carreira. Por sua vez, a quinta e última questão-guia investiga
três recordações primárias do indivíduo (relato de experiências vivenciadas
de preferência na infância), os sentimentos a elas associados e um título,
que sintetize o significado pessoal de cada experiência. Esta questão elicia
dados que compõem a categoria Self e a subcategoria Perspectiva do Self. A
seguir são apresentados e discutidos os resultados em função das categorias
e subcategorias temáticas.

Resultados e Discussão

Categoria temática: self

As questões-guia sobre os modelos de conduta e as recordações pri-


márias eliciam dados nucleares sobre o Self: sua perspectiva básica, seus
temas de vida (ideias ou demandas que dão coerência e continuidade à
história de vida/carreira, como as crenças, os valores, os interesses e os
objetivos), sua personalidade vocacional e suas características de personali-
dade (SAVICKAS; HARTUNG, 2012). Nesta categoria foram reunidas três
subcategorias: Perspectiva do Self, Modelos de Conduta na Construção da
Identidade e Atributos do Self.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 93

Subcategoria: perspectiva do self

A investigação sobre as recordações primárias é a última a ser realizada,


pois demanda maior vínculo entre entrevistador e entrevistado, porém, é a
primeira a ser analisada, por auxiliar a compreender a perspectiva básica
do Self: os temas de vida, o mundo no qual o indivíduo vive e sua forma de
interpretá-lo e de lidar com as experiências e as demandas de vida e carreira.
As recordações primárias pertencem ao passado, mas também falam sobre
o presente, pois a memória é ativada de forma seletiva e, intuitivamente,
são escolhidas aquelas que fazem sentido em relação à demanda de vida
e carreira atual. Assim, as memórias relatadas são uma espécie de mensa-
gem do Self para o próprio Self, para reforçar objetivos e inspirar a ação
(SAVICKAS; HARTUNG, 2012).
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A primeira recordação de P1 ocorreu aos 10 anos de idade e foi intitulada


“Perseverança [...] perseverar”. Sua família era contra a prática de surfe, por
associar a modalidade a aspectos pejorativos, como o ócio e o uso de drogas,
de modo que ele tinha que surfar escondido. Um dia, ao voltar para casa
após surfar, ele apanhou de sua mãe e seus tios. Apesar da experiência conter
aspectos negativos, ele a relata de modo positivo dizendo: “isso me marcou.
Eles me ajudaram agindo assim [...] me deu mais vontade de não desistir e
mostrar que eu poderia viver do surfe. Essa história é sobre perseverança
[...] porque muitos desistiriam no meu lugar [...] e eu não desisti”. A segunda
recordação de P1 ocorreu na adolescência, aos 17 anos e foi intitulada “Aju-
dar o próximo sem querer nada em troca”. P1 narra sobre um assalto quando
competia o circuito mundial no exterior, não falava inglês e teve que competir
passando fome, até receber ajuda de um dos surfistas da competição. “Me
marcou muito [...] ele me levou pra casa dele, fez comida pra mim. Nunca
tinha tido contato com ele e ele estendeu a mão sem pedir nada... aprendi a
sempre ajudar o próximo sem querer nada em troca”. A terceira recordação
de P1 ocorreu aos 6 anos e foi intitulada: “Transformando trauma em vitória”.
Ao jogar futebol com sua irmã, ele se machucou, o que deixou uma cicatriz
em seu corpo. Esta marca fez com que ele sofresse bullying no colégio e
recebesse um apelido que lhe causava raiva e constrangimento. Porém, ao
competir seu primeiro campeonato, um amigo o inscreveu na prova pelo
apelido, por não saber seu sobrenome: “Eu fui bem classificado e daí pra
frente comecei a competir com esse apelido. Não vejo mais como algo ruim,
pelo contrário, passou a fazer parte do meu nome”.
A primeira recordação de P2, intitulada “A pedrada violenta” ocorreu
na infância. Ele estava indo à uma festa de criança com um amigo e sua irmã
queria ir, mas ele não permitiu, pois ela tinha apenas três anos. Ela atirou-lhe
94

uma pedra, abrindo um corte grande em sua cabeça: “eu chorei pouco, mas
levei numa boa, não fiquei traumatizado”. A segunda recordação de P2 ocor-
reu na infância e foi intitulada “Mordida de cão”. O cachorro da vizinha
fugiu e mordeu-o, machucando-o. Ele chorou muito e passou a ter medo do
animal: “[...], mas devagar busquei enfrentar e fui perdendo o medo [...] eu
amo cachorro, então isso também ajudou”. A terceira recordação de P2 foi
intitulada “O caldo da vida”. Enquanto ele surfava, uma onda muito grande
o afogou, deixando-o submerso por longo tempo, como mostra o excerto a
seguir. “Fiquei apavorado [...] tonto [...] assustado [...] levei um bom tempo
pra conseguir surfar naquela praia de novo, mas continuei surfando e devagar
fui ficando mais tranquilo [...] o amor pelo surfe não me deixou desistir, me
fez continuar [...] e tentar até ter confiança de novo”.
A primeira recordação de P3, sobre a primeira vez que ele surfou, foi

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intitulada “Primeiro surfe” e ocorreu na infância. Seu pai o chamou para ir
à escolinha de surfe, onde seu irmão praticava a modalidade. Ao ver os alu-
nos sendo empurrados na onda pelo professor, ele pediu para ser empurrado
também, como mostra a narrativa a seguir.

Fiquei em pé já na primeira ondinha e me senti realizado [...] uma das


melhores sensações da vida [...] a primeira vez que subi na prancha [...]
aquele momento que você consegue ficar de pé e fala: nossa! Feliz da
vida [...] não queria sair da água, fiquei até anoitecer. Pedi para meu pai
me levar todo dia e comecei a ir todo dia! Foi o dia mais importante (P3).

A segunda recordação de P3 foi intitulada: “Meu primeiro time”, ocor-


reu aos sete anos de idade e se refere ao primeiro campeonato municipal
de futebol que ele ganhou, com seu time do colégio. “É uma história que
gosto muito e sempre vou lembrar da infância [...] vi todo mundo levan-
tando o troféu, gritando, deu aquela emoção e senti: quero ser isso da minha
vida [...] viver do esporte [...] trabalhar com esporte [...] até os oito anos
sempre fiquei em dúvida entre futebol e surfe”. A terceira recordação de
P3, intitulada “Caldão”, também ocorreu aos sete anos e refere-se a um
episódio no qual ele se afogou tentando surfar, pois ainda não tinha muita
habilidade na prática:

[...] era uma onda muito forte, eu era muito pequeno e estava no fundo
[...] levantei da água roxo [...] angústia de não poder respirar e vinha mais
onda, fiquei desesperado [...] nunca vou esquecer [...] aquela cena marcou
minha infância, na época fiquei traumatizado [...] um mês sem surfar [...]
devagar fui enfrentando [...], mas nunca me imaginei desistindo do surfe
[...] algo que eu amo [...] (P3).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 95

Segundo Savickas e Hartung (2012), dar um título às recordações não


compreende uma atividade meramente linguística: ele sugere o significado
central que a recordação tem para o indivíduo e contém temas de vida rele-
vantes. Em relação à temática contida nas recordações e em seus respectivos
títulos, pode-se observar a relevância das primeiras experiências esportivas;
o amor pelo surfe e o prazer vivenciado na prática da modalidade; o desejo
de “viver do surfe e/ou do esporte”; a vivência de experiências negativas na
vida e, principalmente no âmbito esportivo, seguidas de enfrentamento e supe-
ração; a presença de fatores de risco na prática esportiva e na construção da
carreira no esporte; a relevância do fair play (formação moral e ética do atleta)
no esporte de alto rendimento; a capacidade de significar dificuldades como
desafios, agindo de modo otimista e perseverante na busca pelo alcance de
objetivos de vida e de carreira; a relevância da rede de apoio social e material
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para a prática esportiva e, em síntese, a relevância dos fatores de proteção


internos e externos (como a motivação intrínseca e extrínseca para a prática
esportiva) para a iniciação e manutenção da prática e para a superação de
adversidades na construção da carreira esportiva.
Grande parte das recordações dos três participantes possui uma estrutura
semelhante: há o enfrentamento de dificuldades e o êxito na superação das
mesmas, ou seja, estão relacionadas à resiliência, que compreende a capa-
cidade de, ao enfrentar adversidades, vivenciá-las de modo construtivo e
perseverante, desenvolvendo recursos de enfrentamento e transformando a
vulnerabilidade em potencialidade. O processo de resiliência envolve a inte-
ração entre fatores de risco e de proteção e não há resiliência sem a adversi-
dade, pois é o enfrentamento do fator de risco que facilita a mobilização e o
desenvolvimento dos fatores de proteção (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006;
PLACCO, 2001; YUNES; SZYMANSKI, 2001). Neste mesmo sentido,
Savickas e Hartung (2012) enfatizam que as dores e traumas contidos nas
recordações primárias podem ser o “útero” no qual algo novo é gestado. Esta
potencialidade contida na dor e a relevância dos fatores internos e externos de
proteção para o êxito no enfrentamento de adversidades podem ser ilustradas
pelo título da recordação “Transformando trauma em vitória” de P1, por todas
as recordações de P1 e P2 e pela recordação a respeito do “Caldão” de P3.
Dentre estas recordações, apenas duas incluem a superação de adversidades
não relacionadas à prática do surfe (“A pedrada violenta” e “Mordida de cão”).
Nas recordações em que há superação de adversidades relacionadas ao
surfe, os fatores de risco enfrentados foram: ausência de rede de apoio segura
para a prática esportiva (recursos físicos, sociais, emocionais e financeiros
insuficientes); risco inerente aos esportes de aventura em ambientes natu-
rais (magnitude da onda) associado à inexperiência na prática esportiva. No
96

enfrentamento dos referidos fatores de risco foi mencionado pelos participan-


tes um fator externo de proteção, já considerado por teóricos da resiliência
como essencial na superação de adversidades: uma rede de apoio social segura,
nos casos em questão, composta por familiares e colegas da modalidade dos
participantes (ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006). De acordo com Sanches
(2009), os colegas da mesma modalidade esportiva, além de atuarem como
rede de apoio social e de compartilhamento de estilo de vida, interesses, emo-
ções e condutas, exercem significativa influência na construção da identidade.
Em relação ao fator de proteção rede de apoio social, nas recordações:
“Ajudar o próximo sem querer nada em troca” (P1) e “Primeiro surfe” (P3),
há a relevância do grupo de iguais composto por atletas da mesma modalidade
esportiva, aspecto já apontado por Sanches (2009) como importante rede
de apoio social e fator de proteção no esporte. Apesar da autora se referir a
modalidades coletivas, a recordação “ajudar o próximo sem querer nada em

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troca” evidencia que o mesmo pode ocorrer em uma modalidade individual.
Ademais, esta recordação também ilustra um episódio de fair Play no surfe.
O fair play compreende um dos conceitos básicos do olimpismo, movi-
mento desenvolvido por Pierre de Coubertin na primeira edição dos Jogos
Olímpicos Modernos de Atenas, e está relacionado a uma formação moral
e ética do atleta, em relação aos demais integrantes de uma competição, de
modo que os fins não justificam os meios na luta pela vitória. Refere-se a
valores olímpicos como a competição leal e sadia, a cultura de promoção da
paz e a proteção ao atleta (RUBIO, 2009). Podemos ilustrar tais valores no
episódio relatado por P1, no qual um de seus adversários o acolhe em sua casa
e o alimenta para que tenha condições de competir, pode ser considerado um
exemplo de fair play não formal, pois está relacionado à conduta e valores
éticos e morais subjetivos, visto que o comportamento ético não foi motivado
por regras oficiais escritas, mas sim por estados motivacionais e emocionais e
regras legitimadas culturalmente (LENK, 1986 apud RUBIO, 2009). Este epi-
sódio, que remete à uma trégua olímpica grega, momento de trégua nas guerras
e conflitos de qualquer ordem, este episódio, considerado por P1 um fator de
proteção no enfrentamento da adversidade, também ilustra um aspecto cultural
veiculado pela mídia como um valor da subcultura do surfe: a cultura da paz.
Algumas recordações primárias evidenciam que além de importante fator
de proteção, a rede de apoio social pode atuar como fator motivacional na adesão
e manutenção da prática esportiva, o que corrobora (AMARAL; DIAS, 2008)
sobre a importância de atores sociais (família, amigos e mediadores da prática
do surfe) na adesão ao surfe. Na recordação “Primeiro surfe”, P3 cita três atores
sociais relevantes na facilitação da prática do surfe: seu pai, que incentivou sua
iniciação esportiva no surfe e forneceu o apoio necessário para a manutenção
da prática; seu irmão, praticante da modalidade, que atuou como modelo a ser
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 97

seguido, e o professor da escola de surfe, que o auxiliou a realizar com segurança


e sucesso sua primeira experiência no esporte. Todos esses atores citados por P3
tiveram uma função de fator de proteção em sua trajetória de prática esportiva.
Nas recordações nas quais há superação de adversidades relativas ao
surfe, os participantes também mencionaram um fator de proteção interno
já enfatizados por Trombeta (apud SANCHES, 2009) como importante na
superação de transições e adversidades, o comportamento direcionado a metas
(no caso, “viver do esporte e do surfe”, objetivos partilhados pelos três partici-
pantes), que favorece a capacidade de encarar as adversidades como desafios
e o comportamento perseverante, observado nos participantes.
Ademais, todos os participantes citaram, em ao menos uma das recorda-
ções, exemplos de motivação intrínseca e extrínseca para a prática do surfe,
que atuaram como fatores de proteção essenciais para a iniciação e manuten-
ção da prática esportiva e para a construção da carreira no esporte. Os dados
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obtidos neste estudo corroboram a literatura sobre o engajamento na prática


do surfe e de esportes de aventura, no que tange à motivação intrínseca ser
o principal fator motivacional para a prática esportiva em tais modalidades
(COSTA, 2000; DIEHM; ARMATAS, 2004; MODRONO; GUILLÉN, 2016),
o que pode ser observado nas recordações “Perseverança [...] perseverar” (P1);
“Transformando trauma em vitória” (P1); “Caldo da vida” (P2); “Primeiro
surfe” e “Caldão” (P3). Em tais recordações, o principal fator propulsor e
mantenedor da prática esportiva foi o apreço pela prática da modalidade,
ilustrado pelo “amor ao surfe” e pelo prazer desfrutado durante a prática,
mencionados pelos participantes.
Outro aspecto nas recordações primárias que evidencia a relevância da
motivação intrínseca para a prática do surfe reside no fato de, apesar de algumas
narrativas trazerem um contexto empobrecido em termos de motivação extrín-
seca, ou seja, com muitos aspectos externos limitadores da prática esportiva
(oposição da família à prática esportiva, limitação financeira e experiências aver-
sivas relacionadas à prática do surfe), os participantes não desistiram de surfar.
Nas recordações “Mordida de cão” e “Caldo da vida” (de P2) e “Cal-
dão” (de P3), há um fator comum: o enfrentamento gradual e progressivo de
estímulos estressores (volta à prática de surfe após afogamento e contato com
cachorro após mordida, respectivamente). Além disso, foi mencionada uma
relação afetiva positiva anterior com o estímulo que se tornou temporariamente
aversivo (surfe e cachorro), o que possivelmente esteja relacionado com o
empenho dos participantes em superar a situação traumática. O afeto positivo
relacionado ao surfe nas recordações “Caldo da vida” (de P2) e “Caldão” (de
P3), que impediu que os participantes desistissem da modalidade após expe-
riências aversivas com a mesma, compreende mais um exemplo de motivação
intrínseca para a prática do surfe.
98

Segundo Diehm e Armatas (2004), os surfistas apresentam mais dimen-


sões da personalidade relacionadas à abertura às experiências, ao desejo de
vivenciar atividades de risco e aventura, à busca por vivenciar sensações e
emoções incomuns e prazerosas, de modo que, ao surfarem, experimentam
satisfação e recompensas inerentes à prática. Modrono e Guillén (2016) tam-
bém enfatizam que os windsurfistas, apresentam alto nível de motivação para
experimentar estimulações hedonistas. E Costa (2000), ressalta que a motiva-
ção para a prática de AFAN está relacionada ao desejo de experimentar uma
multiplicidade de sentimentos e sensações de prazer decorrentes da vivência
de riscos e aventuras, do alcance de objetivos e superação dos obstáculos
naturais. Amaral e Dias (2008) também enfatizam a busca por emoções e
sensações proporcionadas pela prática do surfe como motivos de adesão e
aderência à prática da modalidade. Os dados encontrados neste estudo e em
Tomazini (2017), corroboram o que enfatizam os referidos autores, pois, a

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alta motivação intrínseca para a prática do surfe observada entre os partici-
pantes também parece estar relacionada às sensações e emoções hedonistas
desfrutadas durante a mesma. A recordação “Primeiro surfe” (P3), ilustra
a realização hedonista propiciada pela estimulação e sensações inerentes à
prática do surfe e de AFAN, citada na literatura sobre surfistas, windsurfistas
e praticantes de AFAN, como mostra a narrativa a seguir. “Fiquei em pé já
na primeira ondinha e me senti realizado [...] uma das melhores sensações da
vida [...] Feliz da vida [...] não queria sair da água”.
Apesar da predominância da motivação intrínseca, o discurso dos parti-
cipantes também enfatizou a relevância da motivação extrínseca para a prá-
tica esportiva. Além da rede de apoio social já mencionada, que pode ser
considerado um fator relacionado à motivação extrínseca, os participantes
também citaram a relevância dos bons resultados esportivos e de gratificações
simbólicas e materiais recebidas após o alcance dos mesmos. “Meu primeiro
time” de P3 ilustra a importância da motivação extrínseca relacionada ao
alcance de resultados e à gratificação material para a construção da carreira
esportiva: o troféu, que denota a materialização da vitória, atuou reforçando
seu desejo de ser atleta profissional, como mostra a seguinte narrativa: “vi
todo mundo levantando o troféu, gritando, deu aquela emoção e senti: quero
ser isso da minha vida [...] viver do esporte [...] trabalhar com esporte [...]
até os oito anos sempre fiquei em dúvida entre futebol e surfe”. Neste trecho,
também é possível observar que o desejo de construir a carreira esportiva foi
anterior à escolha da modalidade esportiva.
Na recordação “Transformando trauma em vitória” de P1 também há a
relevância da motivação extrínseca, relacionada ao alcance de resultados: a
classificação no campeonato atuou como divisor de águas, reforçando a auto-
confiança do participante e ressignificando um apelido anteriormente pejorativo,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 99

que foi incorporado em sua identidade de atleta profissional de modo positivo.


Modrono e Guillén (2016) ressaltam que apesar de a motivação extrínseca não
ser o principal tipo de motivação envolvido na prática de windsurfe, em estudo
comparando atletas amadores e competidores, os autores observaram que os
atletas competidores apresentam maior nível de orientação para o alcance de
resultados. Neste sentido, a motivação extrínseca parece ser relevante quando o
objetivo da prática é o alto rendimento esportivo, como é o caso do participante
citado. Tanto na recordação “Meu primeiro time” de P3, quanto na recordação
“Transformando trauma em vitória” de P1, a motivação extrínseca relacionada
à vitória e à gratificação material potencializaram a motivação intrínseca para
a prática do surfe e para a construção da carreira esportiva.
Por fim, nas recordações que não se referem à prática de surfe, os fatores
de proteção utilizados no enfrentamento de adversidades foram o otimismo
(“levei numa boa, não fiquei traumatizado”), considerado um fator de proteção
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na literatura da resiliência (TROMBETA apud SANCHES, 2009) e lócus de


controle interno na busca da superação (“busquei enfrentar”). Em síntese,
nas recordações primárias, que evidenciam a perspectiva de mundo, ou seja,
a forma através da qual o mundo e as experiências são vistos e o modo de
reagir a eles, os participantes demonstraram uma perspectiva resiliente, tanto
nos âmbitos intra quanto extra esportivos.

Subcategoria: modelos de conduta na construção da identidade

Os heróis são considerados modelos de conduta, pois compreendem


recursos imaginativos que fornecem um diagrama de características e atribu-
tos, que são integrados pelos indivíduos na construção de sua identidade. Ao
descrever os heróis, o indivíduo está, ao mesmo tempo, descrevendo a cons-
trução e a composição de seu próprio self (SAVICKAS; HARTUNG, 2012).
Em relação aos modelos de conduta mencionados pelos participantes, P1 citou
um piloto de fórmula 1 e dois jogadores de futebol; P2 citou dois surfistas
profissionais e um super-herói e P3 citou um Preparador Físico de Surfe, um
colega da modalidade (surfe) e um surfista profissional. Os atletas de alto ren-
dimento mencionados foram: Mick Fanning (surfista), Miguel Pupo (surfista),
Adriano de Souza (surfista), Ronaldo (jogador de futebol), Romário (jogador
de futebol) e Ayrton Senna (piloto de fórmula 1). Os facilitadores e apoiadores
da prática esportiva escolhidos foram: Preparador Físico (surfe) e Colega da
modalidade (surfe). O super-herói escolhido foi Batman.
Como pode ser observado, dentre os nove heróis citados, oito estão rela-
cionados ao surfe e/ou ao alto rendimento esportivo, visto que seis são atletas
de alto rendimento considerados referência em suas respectivas modalidades
(sendo três surfistas, dois jogadores de futebol e um piloto de fórmula 1) e dois
100

são pessoas que ensinaram e apoiaram a prática esportiva. Amaral e Dias (2008)
enfatizam a influência da mídia esportiva na motivação para a adesão e prática
do surfe, o que vai ao encontro do fato de seis dos nove modelos de conduta
eleitos pelos participantes serem atletas de alto rendimento e terem construído
suas trajetórias de carreira em práticas esportivas veiculadas pela mídia.
Savickas e Hartung (2012) ressaltam que a seleção dos heróis pode ser
considerada a primeira escolha de carreira e diz muito sobre a identidade
vocacional. A escolha dos heróis evidencia que a identidade vocacional dos
participantes esteve associada ao esporte desde a infância. A influência dos
atletas de alto rendimento eleitos como heróis na construção da identidade
vocacional dos participantes pode ser ilustrada por alguns trechos das falas
dos mesmos, como “modelo de atleta a ser seguido” (P2), “eles me inspiraram
bastante” (P3) e na fala a seguir de P1, sobre os três atletas de alto rendimento,
que citou como heróis, como expresso na narrativa:

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[...] atleta de futebol sempre aparece malhando, se dedicando ao trei-
namento [...] tava começando a surfar e pensava: ‘se os caras da TV, os
melhores do mundo treinam que nem loucos, tenho que treinar. Se eu
fosse como ele (Ronaldo), mais determinado, mais focado, já poderia estar
vivendo só do esporte’ [...] os três (Ayrton Senna, Ronaldo e Romário)
eram talento de outro mundo [...] quando comecei a pensar em ganhar a
vida como atleta profissional, peguei toda essa determinação que via neles
e tento levar comigo pro resto da vida.

Essa fala ilustra o que enfatiza Rubio (2002) sobre a espetacularização


do esporte moderno e do poder dos meios de comunicação de massa que, ao
veicularem o protagonista do espetáculo esportivo como personalidade pública
associam à sua imagem valores desejados pela sociedade de consumo, como
sucesso, fama e uma vida vitoriosa, fazendo com que a figura de atleta seja
vista como ídolo, herói e ideal de ego. É possível observar que a importância
do “herói-atleta” na construção da identidade pessoal e vocacional de P1 trans-
cendeu a modalidade esportiva. Afinal, apesar de nenhum dos heróis citados
serem surfistas, eles são atletas profissionais considerados referências em suas
respectivas modalidades esportivas, fornecendo um modelo de conduta para
o participante na construção de sua identidade como atleta profissional e de
sua trajetória de vida e de carreira “[...] quando comecei a pensar em ganhar
a vida como atleta profissional, peguei toda essa determinação que via neles
e tento levar comigo pro resto da vida [...]”.
Essa narrativa também vai ao encontro de Rubio (2002), no que tange à
influência da mídia na escolha da carreira esportiva e na profissionalização no
esporte. A autora enfatiza que essa influência ocorre na medida em que a mídia
atua na construção do imaginário social sobre o esporte, veiculando histórias de
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 101

vida de atletas no espetáculo esportivo, em cenas que retratam feitos memoráveis


e carreiras esportivas de sucesso. Na fala de P1 nota-se que a construção do
imaginário esportivo pela mídia não se restringe à veiculação das competições
esportivas, mas também inclui bastidores da preparação física e adentra a rotina
dos atletas, permitindo que o expectador se sinta íntimo dos protagonistas do
espetáculo esportivo. Assim, ao facilitar a construção da imagem de atletas-he-
róis “acessíveis”, a mídia favorece que os mesmos sejam eleitos como modelos
de conduta por aqueles que possuem o sonho de ser atleta profissional.
A imagem de atletas-heróis veiculada pela mídia pode ser positiva, ao
transmitir um modelo de conduta admirável e edificante, como ocorreu no caso
de P1, que se sentiu motivado pelas características de seus ídolos e conseguiu
realizar seu objetivo de “ganhar a vida como atleta profissional”. Porém, esta
imagem também pode favorecer uma visão ingênua sobre a carreira espor-
tiva (“se eu fosse como ele, mais determinado, mais focado, já poderia estar
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vivendo só do esporte’ [...]”). Ter determinação, foco e dedicação ao treina-


mento físico, atributos associados aos heróis por P1, é condição sine que non
no esporte para uma performance de excelência e uma carreira bem-sucedida.
Porém, possuir tais atributos não é suficiente, vide a quantidade de atletas
que dedicam a vida ao esporte e não atingem o sucesso desejado. E, mesmo
aqueles que atingem o status de pessoas públicas famosas, segundo Rubio
(2002), em no máximo 20 anos enfrentam o declínio na carreira, caindo no
esquecimento e muitas vezes enfrentando problemas financeiros, sociais e
emocionais após a transição de carreira.
Apesar de Savickas e Hartung (2012) enfatizarem que os modelos de
conduta não devem incluir os Pais, pois são considerados uma influência
heterônoma (não podem ser escolhidos) e o foco da investigação é a influên-
cia autônoma (podem ser escolhidas), P3 incluiu seu Pai entre seus heróis
de infância (além dos três modelos de influência autônoma citados): “[...]
ele sempre me apoiou, desde pequeno ele me empurrava nas ondas [...] ele
foi um grande herói na minha vida”. O apoio parental à prática esportiva
foi tão importante para P3, que seu Pai passou a ser considerado um herói.
Tal aspecto ilustra o que enfatiza Wylleman et al. (2000): o apoio parental é
fundamental para os atletas, tanto no engajamento, quanto na manutenção da
prática esportiva desde o início.

Subcategoria: atributos do self

Os atributos utilizados na descrição dos heróis são igualmente aplicáveis ao


self: revelam concepções nucleares do autoconceito e da identidade, incluindo
características que o indivíduo possui ou necessita desenvolver para lidar com
suas demandas de vida e de carreira (SAVICKAS; HARTUNG, 2012). Os
102

atributos citados pelos participantes na definição de seus modelos de conduta


atletas, evidenciam alta motivação intrínseca para o aprimoramento da prática
esportiva e a construção da carreira no esporte (“muito determinado”; “tem
muita vontade”; “muito dedicado ao treinamento físico e à prática esportiva”;
“dedicado a sempre aprimorar a performance”; “muito focado”; “muito cen-
trado”); satisfação profissional (“pareciam amar o que faziam”); altos níveis de
eficácia e sucesso em termos de performance esportiva e atuação profissional
(“ágil”; “veloz”; “corajoso”; “era disparado o melhor surfeando”; “talento de
outro mundo”; “os melhores no que faziam”; “performance muito superior a
qualquer pessoa”; “muito competente no que fazia”; muito bem-sucedido na
vida e no esporte”; “eram profissionais no que faziam”).
Diversos atributos supracitados vão ao encontro da literatura acerca das
atividades físicas na natureza e do windsurfe. Costa (2000), observa uma
relação positiva entre praticantes de AFAN e níveis significativos de autocon-

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fiança e autoeficácia e enfatiza que isso se deve à superação de adversidades
intrínsecas do ambiente natural que ocorre nesse tipo de prática. E, segundo
Modrono e Guillén (2016), os windsurfistas, apresentam alto nível de motiva-
ção intrínseca para a prática esportiva e autoconceito físico positivo, incluindo
altos níveis de habilidade esportiva percebida.
Também foram mencionados atributos positivos de personalidade,
principalmente relacionados às habilidades sociais (“gostava de ajudar os
outros”; “brincalhão”; “sociável”; “espontâneo”; “autêntico”; “comunica-
tivo”; “humilde”; “educado”; “trata os fãs com atenção”; “conversa com todo
mundo”; “engraçado”; “garoto bom”; “do bem” e “tranquilo”). A maioria dos
atributos citados foram extremamente positivos, o que evidencia uma idea-
lização dos “atletas-heróis”, favorecendo que sejam eleitos como modelo de
conduta na construção da identidade e da carreira esportiva, o que pode ser ilus-
trado pelo atributo “exemplos de atleta”, associado por P1 a dois de seus heróis.
Segundo Lassance, Paradiso e Silva (2011), com base na teoria desenvol-
vimentista de Super, a satisfação profissional está relacionada à possibilidade
de implementar o autoconceito no papel de trabalhador. Neste sentido, visto
que os atributos associados aos heróis são aplicáveis ao self e que a maioria
dos atributos citados pelos participantes está relacionada ao papel de atleta
profissional, é possível afirmar que eles apresentam um bom nível de satis-
fação profissional em suas carreiras. Este aspecto foi confirmado por todos
os participantes ao longo da entrevista: eles referem experimentar satisfação
profissional, mesmo reconhecendo que a construção da carreira esportiva
inclui dificuldades constantes e muitas vezes não traz segurança financeira.
É possível observar semelhança entre os atributos dos participantes e
os atributos associados aos seus heróis, o que corrobora Savickas e Hartung
(2012), que enfatizam que, ao descrever o modelo de conduta, o indivíduo
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 103

também está se descrevendo. P1, por exemplo, define seu primeiro herói
como “muito competente no que fazia” e “gostava de ajudar os outros”. O
participante também pode ser considerado competente no que faz (pois atua
como surfista profissional há mais de uma década, possui grandes marcas de
surfwear em seu histórico de patrocínios e destaca-se em termos de perfor-
mance esportiva) e parece ter o “auxílio ao próximo” como tema de vida em
sua trajetória de vida e de carreira. Esta temática está contida em sua segunda
recordação primária, intitulada “Ajudar o próximo sem querer nada em troca”
e no momento atual, pois, além do papel de surfista profissional, ele atua como
professor voluntário de surfe em um Projeto Social.
Segundo Savickas e Hartung (2012), a primazia denota importância e o
primeiro modelo de conduta citado, de modo geral, é o mais relevante na cons-
trução da identidade e evidencia características nucleares do self. Os primeiros
heróis citados por P1, P2 e P3 (respectivamente, Ayrton Senna, Mick Fanning e
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um preparador físico de surfe) efetivamente foram descritos como os mais impor-


tantes para cada um deles. Todos são relacionados ao esporte e dois deles são
relacionados ao surfe, evidenciando que a prática esportiva e a referida modalidade
compreendem aspectos nucleares do autoconceito dos participantes. A relevância
do primeiro herói na construção da identidade pode ser ilustrada pela fala de P1:

Meu tio era apaixonado por fórmula 1 [...] e todo domingo a gente assistia
o Senna juntos [...] cresci assistindo ele. O Senna é um cara que admiro
até hoje [...] assisto tudo sobre ele [...] eu via ele como um herói nacional
[...] quando ele morreu eu era criança e chorei [...] por um cara famoso
que eu nunca tive contato [...].

De acordo com Savickas e Hartung (2012), o significado do herói para o


indivíduo e o sentimento a ele associado compreendem aspectos importantes
a serem considerados. Nessa fala alguns dados ilustram a relevância deste
modelo na construção da identidade de P1: o afeto a ele associado, visto que
o participante sofreu sua morte como a de alguém próximo, mesmo sem tê-lo
conhecido; a tenacidade desta admiração ao longo de seu desenvolvimento
(“cresci assistindo ele todo domingo [...] é um cara que eu admiro até hoje”)
e o fato de seus interesses manifestos atualmente estarem relacionados a este
modelo de conduta (“assisto tudo sobre ele”).
Essa fala também evidencia o papel da mídia, que, ao possibilitar o con-
sumo do “espetáculo esportivo” como prática de tempo livre e lazer, facilita
a inserção do esporte de alto rendimento na cultura familiar e a construção
da imagem de atletas como “heróis nacionais”. Ademais, nesta fala é possí-
vel observar que a existência de alguém significativo no núcleo familiar que
apreciava esporte (no caso de P1, seu tio) favoreceu que um atleta de alto
rendimento fosse eleito como modelo de conduta.
104

A forma como P3 descreve seu primeiro herói, um preparador físico de


surfe que mediou sua iniciação esportiva na modalidade, também evidencia
a relevância deste modelo para ele:

[...] eu tinha 5 anos, ele me empurrou na minha primeira onda [...] e eu


decidi: ‘você vai ser meu Padrinho’ [...] não Padrinho de batizado [...] mas
de consideração [...] ele começou a me ensinar a surfar, me empurrava na
onda e depois ia surfar a onda dele [...] eu pensava ‘ele é o melhor’! Ele
está comigo até hoje, ajudando sempre que precisei [...] já pagou minha
inscrição de campeonato, sempre do meu lado, apoiando.

O fato de P3 considerá-lo como Padrinho evidencia o grande significado


deste modelo de conduta. Alguns aspectos em sua fala sobre esse modelo
de conduta são dignos de destaque: ele foi o ator que facilitou sua primeira

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experiência com a prática de surfe; ele propiciava a segurança necessária para
que P3 pudesse realizar a iniciação esportiva e, concomitantemente, facilitava
a exploração do ambiente e o enfrentamento de desafios (“ele me empurrava
na onda”); ele surfava junto com “seu aprendiz”, utilizando sua prática como
exemplo e, portanto, como um recurso pedagógico; e ele atuou como rede
de apoio no desenvolvimento da prática de surfe e na construção da carreira
esportiva ao longo de diferentes fases do ciclo vital.
Outro mediador importante para P3 em sua iniciação no surfe, um colega
da escola de surfe, também foi citado como herói: “ele não era o melhor
no surfe, mas sempre me ajudou a aprender e a melhorar, me incentivava a
entrar no mar, a surfar [...] ele foi importante porque ficou uma tarde no mar
me ensinando e aí eu consegui dar minha primeira rasgada*” (*manobra de
surfe). Nesta fala, é possível perceber que o motivo da admiração de P3 não
foi o nível de proficiência no surfe, mas o apoio para a aprendizagem e o
desenvolvimento da prática esportiva.
Dentre os quatro heróis citados por P3 (incluindo seu Pai), três favo-
receram seu desenvolvimento no surfe, de modo que o apoio social para a
prática do surfe, por meio da influência parental e dos mediadores da mesma,
foi relevante em seu desenvolvimento no esporte e na carreira esportiva.
Segundo Rubio (2002), a escolha da carreira esportiva e a profissionalização
no esporte não sofrem a influência somente de aspectos relativos à disposição
individual inicial, como talento, vontade latente e determinação para perseguir
objetivos, também é relevante a ação de fatores externos, como a influência
parental e o papel dos formadores. A fala a seguir evidencia a importância
do apoio parental para o desenvolvimento da prática e da carreira esportivas
de P3, o que corrobora Wylleman et al. (2000), que enfatiza este apoio como
essencial para a participação e o sucesso da criança no esporte:
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 105

eu tinha medo de ir pro fundo [...] e meu pai sempre me levava no fundo e
ficava lá comigo, sempre me apoiando [...] me empurrando nas ondas [...]
me incentivando a ir nas ondas grandes e não nas pequenas [...] sempre me
apoiando nos campeonatos, correndo atrás pra mim, sempre foi comigo
[...] acho que ele foi um grande herói na minha vida também.

O pai de P3 atuou como facilitador da ambientação física, comportamen-


tal e emocional às intempéries do ambiente natural, fornecendo a segurança e
o estímulo necessários para que o participante desenvolvesse autonomia para
a prática esportiva no mar. De acordo com Costa (2000), tal ambientação é
essencial para lidar com as variáveis, desafios e riscos inerentes à prática de
AFAN. Neste sentido, todos os atores que facilitaram a prática esportiva de
P3 (Pai, treinador e colega de surfe) que foram citados como heróis, atuaram
como uma espécie de figura de apego seguro. Segundo Bolwby (1984), a figura
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de apego seguro atua como um porto-seguro e, concomitantemente, estimula


a exploração ambiental, favorecendo o aprimoramento da autoconfiança e da
autonomia no desenvolvimento infantil. Do mesmo modo, a existência de
uma figura de apego seguro parece ser importante na mediação da iniciação
e do desenvolvimento esportivos na prática do surfe, trazendo a segurança
necessária para que haja o enfrentamento das intempéries do mar e dos desa-
fios intrínsecos da modalidade.
Nesse sentido, as características atribuídas por P3 aos heróis que facili-
taram e apoiaram sua prática de surfe fornecem pistas importantes para pen-
sarmos sobre a atuação da rede de apoio social e dos mediadores da prática
esportiva que, de acordo com Sanches (2009), possuem grande relevância e
influência na saúde mental dos atletas. Os atributos mencionados pelo partici-
pante (“pessoa incrível”; “sempre dando risada”; “brincava comigo” “sempre
me apoiou”; “paciente”; “acolhedor”; “cuidador”; “me levava a sério”; “me
dava atenção”; “me orientava”; “me estimulava”; “me incentivava”; “sempre
me ajudou a aprender as manobras”; “disposto a ensinar”) evidenciam a rele-
vância de uma mediação da prática esportiva lúdica, afetiva, acolhedora, segura,
encorajadora e voltada para a facilitação da aprendizagem, do desenvolvimento
na modalidade, do enfrentamento de desafios e do desfrute da prática.
Ao modelo de conduta que não está relacionado ao esporte (Batman),
foram associados os atributos: “lutava contra o mal e os vilões”; “salvava o
mundo”; “ajudava o próximo”; “apesar de ter tido uma infância sofrida, con-
tinuou sendo um cara do bem” e “era veloz e corajoso”. Atributos estes muito
similares aos associados aos atletas-heróis. Por fim, os atributos citados pelos
participantes, que não estão diretamente ou somente relacionados ao papel de
atleta profissional, evidenciam aspectos do Self que podem ser explorados em
outros papéis sociais, concomitantes ao papel de atleta, como na construção
106

da dupla-carreira e/ou utilizados para nortear a recolocação profissional após


a aposentadoria no esporte. A dupla carreira denota o desenvolvimento do
papel de estudante paralelo ao papel de atleta profissional e compreende um
importante recurso na adaptação às constantes transições da carreira esportiva
a após a carreira esportiva (ANGELO, 2014). Dentre tais atributos, foram
citados “gostava de ajudar os outros”, “salvava o mundo”; “lutava contra
o mal”; “fazia por ele, mas também pelos outros”. Estes atributos possuem
aspectos nucleares comuns (a empatia, o cuidado com o próximo e a realiza-
ção de ações positivas e altruístas, que transcendem benefícios pessoais) que
podem ser aplicáveis em atividades ocupacionais e/ou de lazer dentro e fora
do âmbito esportivo, como expressão do autoconceito.

Categoria: interesses

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Subcategoria: interesses manifestos

Os interesses manifestos permitem a avaliação da coerência ocupacional


e revelam quatro dimensões: (a) os ambientes nos quais o indivíduo deseja
trabalhar; (b) os tipos de pessoas com as quais deseja interagir; (c) os tipos
de problemas que deseja solucionar e (d) os procedimentos que gosta de usar
(SAVICKAS; HARTUNG, 2012). Segundo os autores a compreensão dos
interesses manifestos, ou seja, aqueles que já se encontram presentes na vida
do indivíduo, é mais relevante do que a investigação de interesses latentes para
a construção da carreira. A principal forma utilizada pelos participantes deste
estudo para acessarem seus interesses manifestos é a internet, em segundo
lugar a televisão (principalmente os canais fechados), em terceiro lugar as
mídias escritas (revistas especializadas) e por último, os livros.
P1 enfatiza que seus programas e sites favoritos são aqueles relativos à sua
atuação profissional, tanto no que tange à prática esportiva (sobre o surfe de
alto rendimento), quanto ao gerenciamento de sua rotina profissional (sites de
inscrição em campeonatos de surfe e sites de hotéis e passagens, para organiza-
ção das constantes viagens a trabalho). Também foram citadas as redes sociais
(com destaque para o Instagram), que P1 utiliza para o gerenciamento midiático
de sua carreira e de sua imagem como pessoa pública, nas quais divulga sua
rotina de atleta profissional e estabelece contato com seus seguidores. Também
foi citado o acesso a e-mails, para fins pessoais e profissionais. P1 citou um
seriado que assiste com frequência atualmente e definiu seu enredo como: “um
comerciante/empreendedor autoconfiante e autêntico, que se destaca por ser
considerado o melhor do mundo em seu nicho de atuação”.
De acordo com P2, seu principal interesse é o surfe e as principais formas de
acessar tal interesse são a internet, a televisão e os filmes e revistas especializados
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 107

na modalidade: “gosto de estar informado sobre tudo do universo do surfe, eu


assisto qualquer coisa que passa sobre surfe”. Dentro deste universo da moda-
lidade referido por P2, ele enfatiza o interesse por assistir e ler sobre: atletas
surfando; os melhores surfistas; história do surfe; mercado do surfe; novidades
sobre atletas (como lesões, conquistas ou perdas de patrocínios esportivos) e
campeonatos ao vivo (principalmente, todas as etapas do antigo World Cham-
pionship Tour – circuito mundial da elite do surfe que hoje é realizado na World
Surf League). Além dos conteúdos relativos aos surfe, P2 enfatiza apreciar futebol
e esportes de modo geral e documentários sobre animais, natureza e cultura. O
acesso às redes sociais também foi ressaltado como uma prática frequente.
Os interesses manifestos de P3 também se referem prioritariamente ao
surfe. O participante gosta de assistir os melhores surfistas, pois procura vê-los
surfando para aprender e evoluir em sua própria performance esportiva. Os
demais conteúdos citados foram: aventuras, superação de obstáculos, trajetó-
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rias de vida, guerra, curiosidades e histórias inusitadas. Todos os participantes


relataram assistir com frequência os canais especializados em surfe e em
esportes de aventura na natureza.
No que tange às dimensões dos nichos que satisfazem os interesses mani-
festos dos participantes, há o apreço por atuar em ambientes ocupacionais com-
petitivos, ao ar livre, que permitam a vivência de aventuras em contato com a
natureza e também em ambientes que permitem o acesso à internet e a atuação
no formato de home office; em relação ao componente humano do ambiente
ocupacional, há a preferência por interagir com pessoas autoconfiantes, autên-
ticas, que apresentam excelência em termos de performance e são consideradas
as melhores em sua atuação profissional; em relação aos tipos de problemas
que preferem solucionar, estão aquele relativos à otimização da performance
esportiva, ao gerenciamento da profissão de atleta e à superação de dificuldades
na busca pela realização de objetivos; e, em relação aos tipo de procedimento
que preferem utilizar, estão as habilidades físicas e atléticas, além de habilidades
relativas à negociação, liderança e gestão. As dimensões dos interesses manifes-
tos dos participantes podem ser ilustradas por percepções dos surfistas acerca
da construção na carreira na modalidade, mencionadas por Tomazini (2017): o
surfista profissional “tem que trabalhar muito dentro e fora do mar” e “ser um
dos melhores do mundo”, em referência à atuação que se dá em um ambiente
laboral extremamente competitivo e que está relacionada ao desenvolvimento
da performance esportiva, mas também à administração da carreira.
Ao realizar um paralelo entre os heróis citados pelos participantes e seus
interesses manifestos, sob a luz da teoria de Savickas e Hartung (2012), é possível
perceber que os interesses manifestos dos participantes apresentam coerência
ocupacional, visto que mostram-se consistentes e contínuos ao longo da trajetória
de vida e de carreira: todos elegeram heróis relacionados à profissionalização no
108

esporte de alto rendimento e/ou ao universo do Surfe como modelos de conduta


na construção da identidade, o que evidencia que os interesses manifestos atuais
já se faziam presentes na primeira escolha vocacional que realizaram na infância.
Como mencionado anteriormente, o nível de satisfação profissional está
associado à oportunidade que o indivíduo tem de implementar seu autocon-
ceito no papel de trabalhador, mas também de, nesse papel, satisfazer suas
habilidades, valores, interesses e necessidades (LASSANCE; PARADISO;
SILVA, 2010). Além dos atributos relacionados à construção do self (adjeti-
vos associados aos heróis/modelos de conduta), os interesses manifestos dos
participantes também estão majoritariamente associados ao surfe e ao papel de
atleta de alto rendimento, o que reforça um bom nível de satisfação profissio-
nal. Ademais, o fato de a grande maioria dos atributos do self e dos interesses
manifestos dos participantes estarem associados ao papel de atleta profissional
aponta para uma forte identidade atlética, que se refere ao “grau relativamente

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ao qual o indivíduo se identifica com o papel de atleta” (BREWER; VAN
RAALTE; LINDER, 1993 apud BREWER, 1998). Segundo os autores, uma
identidade atlética exagerada pode ser um fator de risco, principalmente para
a adaptação às transições não normativas e na transição de carreira esportiva.
Nesse sentido, os interesses manifestos que não estão diretamente vinculados ao
surfe e ao alto rendimento esportivo são relevantes, pois evidenciam aspectos
importantes, passíveis de serem desenvolvidos em outros papéis sociais, visto
que, de acordo com os autores, uma identidade multidimensional facilita que
o atleta se adapte aos desafios e transições da carreira esportiva e possibilita
uma transição mais saudável no processo de encerramento da mesma.

Categoria: estratégias para a construção da vida/carreira

Subcategoria: estratégias para lidar com


questões de vida e carreira atuais

A história favorita no momento atual revela aspectos essenciais da própria


história de vida e torna-se favorita por compreender uma metáfora que possui
um roteiro ou plano incipiente necessário para lidar com as questões de vida
e de carreira atuais (SAVICKAS; HARTUNG, 2012). Os dados obtidos vão
ao encontro do que enfatizam os referidos autores, pois os roteiros citados
pelos participantes possuíam conteúdos ilustrativos das demandas de vida e
carreira que estavam vivenciando no momento, bem como estratégias para
solucionar as problemáticas enfrentadas e/ou objetivos almejados.
A história eleita por P1, definida por ele como “uma história que te faz
pensar, pois você fica vidrado pensando no que vai acontecer” é sobre um
homem que é preso e condenado, mas é salvo por um planejamento estratégico,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 109

que “antecipa, planeja e pensa sempre no próximo passo que vai dar”. P1
está vivenciando uma transição não normativa, considerada o tipo de tran-
sição mais delicada na carreira esportiva, por se tratar de um evento inespe-
rado (ALFERMANN; STAMBULOVA, 2007; SCHLÖSSBERG; WATERS;
GOODMAN, 1995). Após ser patrocinado por mais de uma década por uma
grande empresa de surfwear, ele perdeu repentinamente a maior parte de seu
patrocínio. A estratégia implícita na história, para auxiliá-lo a lidar com sua
demanda de vida/carreira atual (contida no trecho “antecipa, planeja e pensa
sempre no próximo passo”) aponta para a importância um planejamento estraté-
gico dos próximos passos que dará em sua carreira e, portanto, está relacionada
à relevância de um processo de planejamento e gestão da carreira esportiva.
A história mencionada por P2 fala sobre luta, dedicação e superação
para um atleta tornar-se campeão e referência em sua modalidade: “por ter
muita determinação, ser focado no esporte, dedicado ao treinamento físico
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e ter o apoio de um treinador muito bom, ele atinge o objetivo [...] supera
muita dificuldade, obstáculo, vence o melhor atleta e se torna um grande
campeão”. No momento atual, P2 encontra-se em adaptação a uma transição
normativa, ou seja, uma transição previsível ao longo da carreira esportiva
(ALFERMANN; STAMBULOVA, 2007; SCHÖSSBERG et al., 1995). Há
menos de um ano ele realizou a transição da categoria amadora para a profis-
sional. Apesar de satisfeito, ele considera esta transição bastante desafiadora
e enfatiza que a categoria profissional é bem mais competitiva e as vitórias
são menos frequentes, de modo que é necessário ter muito mais foco do que
na categoria anterior para manter a motivação e atingir bons resultados. O
roteiro da história citada evidencia uma estratégia para a manutenção da
motivação, a superação dos obstáculos e o alcance dos resultados almejados
na categoria profissional: ter determinação, dedicação ao treinamento físico
e apoio profissional e social para a prática esportiva.
A história citada por P3 despertou seu interesse por ser, segundo ele: “uma
história real, com suspense, que dá vontade de saber o que vai acontecer no
próximo capítulo. Sobre um homem que conseguiu vender seu trabalho pelo
mundo, por ser confiante, determinado, destemido, focado e, mesmo enfren-
tando obstáculos, foi crescendo, se desenvolvendo, ganhando dinheiro e ficando
conhecido pelo seu trabalho”. P3 realizou a transição da categoria amadora para
a profissional há um mês e está na iminência de realizar os primeiros campeo-
natos na nova categoria, em âmbito mundial. A estratégia implícita na história
citada, para que ele possa desenvolver-se no campeonato mundial e alcançar seu
objetivo de ter reconhecimento social e financeiro como surfista profissional é
enfrentar os obstáculos com confiança, determinação, coragem e foco.
Tanto P1 quanto P3 definem suas histórias de forma parecida, apesar de se
tratarem de enredos diferentes e de estarem vivenciando momentos e transições
110

diferentes na carreira. Ambos enfatizam a ânsia de saber o que acontecerá nos


“próximos capítulos”, o que pode ser considerado uma metáfora sobre o dina-
mismo da carreira esportiva, com suas inerentes e constantes transições, que
demandam do atleta a capacidade de reinventar-se e adaptar-se constantemente,
e que reforça a importância do processo de planejamento e gestão de carreira.

Subcategia: sabedoria do self utilizada para construir


a história de vida e de carreira – lema de vida

A análise da frase favorita revela o melhor conselho do self para o pró-


prio self. Implícito na frase favorita está algo que pode impulsionar a agir de
forma estratégica na construção de um projeto de via e de carreira que façam
sentido para o indivíduo (SAVICKAS; HARTUNG, 2012). Todos os partici-
pantes mencionaram a frase “nunca desista” como favorita. P1 efetivamente

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descreve esta frase como um tema de vida: “Acho essa frase bem forte [...]
muitas pessoas falam por falar, mas para mim ela tem um significado bem
forte, que me ajudou a vida inteira”. É possível observar, nos dados trazidos
por P1, que esta frase efetivamente compreende um tema de vida, pois está
presente em seu discurso e em sua ação ao longo de sua trajetória de vida e
de carreira. Este aspecto pode ser ilustrado por sua primeira recordação pri-
mária (“Perseverança [...] perseverar”) na qual ele enfatiza a importância de
não desistir perante as adversidades (“Essa história é sobre perseverança [...]
porque muitos desistiriam no meu lugar [...] e eu não desisti”). Logo, perse-
verar e não desistir diante dos obstáculos compreende um aspecto nuclear de
seu self. Na medida em que todos os participantes elegeram esta frase como
favorita, é possível compreender que “não desistir” compreende um tema de
vida nuclear para estes atletas profissionais, que os orienta e dá coerência e
continuidade às suas trajetórias de vida e de carreira. O fato de todos citarem
a mesma frase como lema de vida pode trazer pistas sobre a relevância do
comportamento resiliente na cultura da modalidade em questão.
Outras frases mencionadas pelos participantes foram: “surfe é vida” e
“treine mais” (P2) e “olhar os problemas olhando para frente e pensando que
vou conseguir, que sempre existe uma saída”; “surfar é meu lema de vida”;
“buscar seguir os objetivos para evoluir”; “ser sempre mais dedicado, vencer
a preguiça, treinar mais” (P3). Tanto a frase “olhar os problemas olhando para
frente e pensando que vou conseguir, que sempre existe uma saída”; quanto
a frase “buscar seguir os objetivos para evoluir” (de P3) estão indiretamente
relacionadas ao tema de vida “nunca desista” e podem ser consideradas estra-
tégias para persistir diante dos obstáculos. Como já mencionado, tanto o oti-
mismo quanto o comportamento direcionado às metas (contidos nas frases),
são citados na literatura sobre resiliência como fatores de proteção importantes
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 111

no enfrentamento de adversidades (TROMBETA apud SANCHES, 2009). A


relevância da dedicação contínua à prática do surfe visando o aprimoramento
do desempenho esportivo também está contida nas frases citadas por P2 e P3,
de modo que também parece ser um tema de vida importante para ambos.
As frases “surfe é vida” (P2) e “surfar é meu lema de vida” (P3) vão
ao encontro de Amaral e Dias (2008), que enfatizam esta conotação do surfe
enquanto estilo de vida como um dos motivos importantes para adesão e
aderência à prática do surfe, além de reiterar a alta motivação intrínseca para
a prática do surfe já relatada por outros estudos (DIEHM; ARMATAS, 2004;
MODRONO; GUILLÉN, 2016). Tais frases também ilustram o significado do
Surfe na vida dos participantes, que transcende a prática de uma modalidade
esportiva e a escolha de uma carreira, possuindo sentido existencial e papel
nuclear na essência e perspectiva do self, de modo que o surfe aparece como
principal tema de vida dos participantes.
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Considerações finais

O objetivo deste estudo consistiu em compreender aspectos nucleares


sobre a construção da identidade, do self, da vida e da carreira de surfistas
profissionais, por meio de estudos de caso realizados com três surfistas bra-
sileiros, do sexo masculino. Apesar de a vivência de transições na carreira
não ter sido um critério de inclusão na amostra, o fato de os três participantes
estarem se adaptando a algum tipo de transição, normativa ou não normativa,
no momento da coleta de dados já revela algo importante sobre a carreira
esportiva: a existência de constantes transições desafiadoras e consequente-
mente, a necessidade de adaptação a elas.
As trajetórias de vida e de carreira dos participantes apresentam episó-
dios de superação desde a infância. O self dos participantes está relacionado
à capacidade de enfrentamento de adversidades de modo resiliente e à alta
motivação intrínseca para a prática esportiva, atributos que se mostraram
importantes tanto para a adaptação às demandas do esporte de alto rendimento
e da carreira esportiva, quanto às intempéries do ambiente marinho. O auto-
conceito dos participantes mostrou-se positivo e relacionado a altos níveis de
autoeficácia, de habilidade esportiva percebida, de motivação intrínseca para
a prática do surfe e de habilidades sociais, principalmente relacionadas ao
apreço pelo auxílio ao próximo. A construção da identidade dos participantes
está associada prioritariamente a modelos de conduta relacionados ao alto
rendimento esportivo e sofre a influência da mídia, que facilita a construção
e a idealização da imagem de atletas-heróis no imaginário esportivo. O apoio
social para a prática esportiva mostrou-se bastante relevante para a iniciação
e desenvolvimento esportivos, para a construção da identidade vocacional
112

e para o enfrentamento de transições e adversidades ao longo da carreira.


A identidade vocacional dos participantes se encontra associada à prática
esportiva, ao esporte de alto rendimento e ao surfe desde a infância.
Os interesses manifestos evidenciaram a existência de uma forte identi-
dade atlética, de satisfação profissional e de coerência ocupacional, visto que
estão prioritariamente relacionados à prática do Surfe e ao gerenciamento da
profissão de atleta profissional. As estratégias utilizadas pelos participantes
para construir a vida e a carreira incluem recursos externos e principalmente
internos de enfrentamento de adversidades, incluindo a motivação intrínseca
para a prática do surfe e a dedicação constante ao aprimoramento esportivo,
além do processo de planejamento e gestão da carreira esportiva. Os temas
de vida mostraram-se bastante semelhantes para todos os participantes e
apresentam coerência e consistência ao longo de suas histórias de vida e de
carreira, unificando-as.

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A entrevista de construção de carreira, instrumento de obtenção e aná-
lise de dados utilizado neste capítulo, corroborou resultados observados na
pesquisa com surfistas profissionais, realizada por Tomazini (2017), que por
sua vez, utilizou como instrumento um roteiro de entrevista semiestruturada.
Dentre os resultados encontrados em ambas as análises estão: a importância
da rede de apoio social para a prática esportiva e a construção da carreira no
esporte; a existência de uma identidade vocacional precocemente relacionada
ao esporte de alto rendimento e ao surfe; alta motivação intrínseca para a
prática do surfe e para a construção da carreira esportiva, importante fator
de proteção interno; um comportamento resiliente e tenaz, orientado para o
alcance da meta: “viver do surfe”; altos níveis de satisfação profissional; a
preponderância do papel de atleta e de interesses relacionados à prática e à
carreira esportivas; o Surfe como principal tema de vida, que transcende o
autoconceito ocupacional, compõe o estilo de vida e guia a carreira subjetiva.
O fato de tais resultados terem sido encontrados através de dois instrumentos
diferentes, reitera a validade dos mesmos.
Segundo Angelo (2014), o processo de gestão de carreira é realizado de
variadas formas e inclui não só o conhecimento do contexto de trabalho e da
carreira objetiva, mas, principalmente, da carreira subjetiva e dos temas de
vida ao longo da trajetória de vida e de carreira dos atletas. Neste sentido,
acreditamos que os dados objetivos e subjetivos obtidos neste estudo acerca
da construção do self, da carreira e da vida destes surfistas profissionais bra-
sileiros fornecem pistas importantes para futuros estudos e intervenções que
objetivam o desenvolvimento de atletas e o processo de orientação e gestão
de carreiras no surfe de alto rendimento.
Assim sendo, os objetivos deste estudo foram alcançados no sentido de
apresentar aspectos psicológicos de profissionais do surfe que favorecem o
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 113

reconhecimento da identidade pessoal e profissional dos atletas. Os estudos de


caso mostram, também, a qualidade do instrumento Minha História de Vida
e de Carreira, utilizada neste estudo, como uma ferramenta útil para obten-
ção de dados de pesquisa e também para uso na prática do aconselhamento
de carreira. A análise das narrativas pelas lentes do paradigma Life Design
constitui importante contribuição para a área da orientação profissional e de
carreira e, como pudemos observar nestes estudos de caso, também para a
Psicologia do Esporte, sobretudo na modalidade esportiva surfe, ao disponi-
bilizar uma estratégia de observação do campo conectada com as demandas
para o século XXI.
Uma das limitações deste estudo se refere à composição da amostra em
termos de gênero. Apesar de o sexo masculino não ser um dos critérios de
inclusão na amostra, a proporção entre surfistas profissionais de ambos os
sexos é bastante assimétrica, havendo uma hegemonia masculina, de modo
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que, na busca por participantes dispostos a colaborar com esta pesquisa, a


amostra acabou sendo composta apenas por indivíduos do sexo masculino.
Esta seleção natural da amostra aponta para importantes questões de gênero
no surfe de alto rendimento, evidenciando a importância do desenvolvimento
de pesquisas sobre esta temática com surfistas profissionais do sexo femi-
nino. Tal aspecto corrobora Nepomuceno e Monteiro (2019) e Schwartz et al
(2013), que enfatizam a pequena representatividade das mulheres nos esportes
e práticas de aventura e no surfe, respectivamente, e aponta para a impor-
tância de questões de gênero no esporte em futuras investigações. Outras
sugestões para futuras investigações podem ser direcionadas à construção da
carreira em aspectos do desenvolvimento humano, incluindo estágios do ciclo
vital, tais como estabelecimento (estabilização, consolidação e progresso),
manutenção (atualização e inovação) e desengajamento (pré-aposentadoria e
aposentadoria) no cenário contemporâneo, caraterizado pelo mundo VUCA:
volátil, incerto, complexo e ambíguo, em todas os seguimentos profissionais
e sobretudo no esporte.
114

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CAPÍTULO 7
MULHERES AO MAR: o fenômeno
dos coletivos femininos de surfe
Júlia Frias Amato
Marina Simons Barbosa de Oliveira
Anna Beatriz Vargas Panfili

O swell feminino
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A cultura esportiva se tornou uma das principais referências no estilo de


vida de populações em diferentes sociedades, sobretudo por ser uma fonte
inesgotável de símbolos e representações sociais. Segundo Torres e Retondar
(2007), o significado social das práticas esportivas envolve, além dos bene-
fícios físicos, também as dimensões subjetivas de valores, relações sociais,
reconhecimento de si mesmo e diversos outros sentidos que mobilizam as
pessoas a praticar tal ação. A prática do surfe no Brasil se tornou bastante
popular nos últimos anos, influenciado pelo estilo de vida relacionado à natu-
reza e à liberdade, bem como pela grande visibilidade, por parte da mídia,
dos bons resultados de surfistas profissionais brasileiros.
No imaginário social, a representação sobre o surfista está relacionada
à coragem, força e agilidade e frequentemente associada a corpos masculi-
nos. Tradicionalmente o surfe é considerado uma prática altamente masculina
(BOOTH, 2001; EVERS, 2009) e, por um período, foi associada à compe-
titividade e agressividade, o que fez com que a identificação e dedicação à
prática por mulheres diminuísse (WAITT, 2008). No entanto, este cenário vem
passando por transformações significativas, principalmente pela presença, cada
vez mais expressiva, de mulheres dentro d’água. Nepomuceno e Monteiro
(2019), destacam essa apropriação da modalidade pelas mulheres, o que tem
gerado transformações na cultura do surfe, tão marcada por aspectos machistas.
Em todo litoral brasileiro, houve a entrada de um swell feminino nos
principais points de surfe do país nos últimos anos. Os coletivos femininos
de surfe se tornaram bem comuns em diversas praias, atraindo meninas e
mulheres interessadas em iniciar a prática, bem como surfistas amadoras,
em busca de companhias femininas para cair na água. Neste capítulo ire-
mos explorar o fenômeno dos coletivos femininos de surfe, que surgiram
a partir dos anos de 2010 e que já são mais de 30 e estão espalhados por
nove estados brasileiros.
120

Cultura surfe e estilo de vida

O surfe é uma das modalidades pertencentes aos ‘esportes de ação’ e/ou


‘lifestyle sports’, que se referem a uma gama de atividades realizadas indi-
vidualmente e que estão intimamente relacionadas com o desafio de superar
limites e de vencer etapas ricas na imprevisibilidade oferecida pelo meio sel-
vagem ou urbano (PARLEBAS, 1998). Ao ter que superar as dificuldades de
um ambiente desconhecido, o ser humano desfruta de um prazer inigualável
e se sente realizado, encaminhando novos sentidos à aventura construída a
cada vez que pratica esse tipo de esporte (TORRES; RETONDAR, 2007). Nos
‘lifestyle sports’ os praticantes se identificam por meio de estilos, disposições
corporais, expressões e atitudes reconhecíveis, relacionados a um estilo de
vida distinto e uma identidade social específica (WHEATON, 2013).
O estilo de vida ligado ao surfe se diferencia da sociedade enquanto

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grande grupo, se tornando atraente por possuir uma visão de mundo que o
caracteriza e que está relacionado à liberdade e à natureza, a partir de uma
linguagem própria e de seus símbolos, como a prancha de surfe. Os ideais, os
valores e os estilos compartilhados pelos surfistas são alguns dos fatores que
os fazem serem reconhecidos enquanto seres pertencentes a uma subcultura
(AMATO; SOUZA; FALCÃO, 2019). A partir dessa forma particular de se
relacionar com a realidade e de construir sua identidade, o estilo de vida
do surfe tem grande influência no interesse de novos adeptos, que desejam
incorporar estes símbolos a sua vida pessoal (DIAS; ALVES JUNIOR, 2007).
Os aspectos relacionados ao estilo de vida do surfista estão ligados a noção
de saúde, beleza, juventude, coragem, ousadia e liberdade (AMARAL;
DIAS, 2008; AMATO; SOUZA; FALCÃO, 2019).
Na sociedade capitalista pós-moderna, os produtos e experiências têm
significados importantes, podendo influenciar na identidade de um indivíduo
e na sua participação em determinados grupos ou subgrupos. A indústria do
surfe movimenta mais de 30 bilhões de dólares anualmente no mundo, e o
Brasil é o segundo país que mais consome artigos relacionados ao surfe, sendo
que cerca de 90% desse consumo se dá por simpatizantes do esporte e do
estilo de vida dos surfistas (FORNECK, 2008). Esse estilo de vida, baseado
nos significados e experiências com o mar através de uma prancha, desen-
volveu uma cultura própria com filmes, vestuários e estilo musical (AMATO;
SOUZA; FALCÃO, 2019).
De acordo com Amaral e Dias (2008), o papel desempenhado pela
mídia esportiva permite que pessoas consigam ter acesso a cultura do surfe
e seus símbolos, despertando assim um interesse e curiosidade, mesmo em
pessoas que moram em cidades não litorâneas. As imagens espetaculares
de surfistas em lugares paradisíacos amplamente difundidas em revistas,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 121

filmes, propagandas e, principalmente, nas mídias sociais, funcionam como


estímulos para despertar o desejo e a imaginação de boa parte das pessoas
que as acessam. Nesse sentido, a mídia de massa “apreende, decodifica,
amplifica e reforça um determinado perfil para a prática do surfe, induzindo,
de certo modo, mais e mais pessoas a procurá-lo como um canal de reali-
zação dos seus desejos” (AMARAL; DIAS, 2008, p. 9). De acordo com a
Associação Brasileira da Indústria e dos Esportes com Prancha, a cidade
de São Paulo é a cidade não litorânea com mais surfistas no mundo, com
cerca de 150 mil praticantes, mesmo estando há pelo menos 70 quilômetros
do mar (QUEIROZ, 2019).
O crescente interesse pelos esportes de ação está relacionado com a busca
de se aventurar de uma forma diferente, que traga uma quebra do cotidiano.
A vida urbana e o estresse que a acompanha são fatores que influenciam na
adesão dessas atividades, que muitas vezes envolvem viagens à natureza
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como uma fuga da rotina vivida nas cidades (VAROTO; SILVA, 2010). Nesse
sentido, o surfe também pode ser associado a esse contraponto à vida metro-
politana, no sentido de compensar as situações de estresse da vida cotidiana,
agindo na reestruturação do equilíbrio mental através da interação com o mar
(AMARAL; DIAS, 2008; PEREIRA NETO et al., 2017).
Esta interação harmoniosa entre o ser humano e a natureza, presente na
prática do surfe, pode proporcionar mais energia e disposição, que vão além
das águas. O surfe favorece a sintonia entre corpo, mente e meio ambiente,
através de experiências intensas e significativas (BABOGHLUIAN, 2003).
Segundo Nepomuceno e Monteiro (2019), o esforço pela busca do equilíbrio
físico e psicológico traz possibilidades de aprendizagem e conhecimentos
através das vivências relacionadas ao contato com o mar e as ondas. Os prin-
cipais motivos para a aderência ao surfe estão relacionados ao contato com a
natureza, à busca por emoções corporais intensas e sentimentos como felici-
dade, liberdade, prazer e bem-estar, também à possíveis benefícios à saúde,
satisfação pessoal e relacionamentos interpessoais (AMARAL; DIAS, 2008;
PEREIRA NETO et al., 2017).
A experiência do surfar transcende os limites do mar, alcançando outros
aspectos da vida daqueles que o praticam. Comumente é possível obser-
var mudanças no estilo de vida dos praticantes de surfe, influenciando suas
rotinas, características físicas e emocionais, e a forma de lidar com a vida.
Hábitos mais saudáveis, como os alimentares, são incorporados ao dia a
dia e práticas como yoga ou meditação passam a ser associadas ao surfe. O
contato com a natureza muitas vezes também auxilia na conscientização da
importância da preservação das praias e do mar, influenciando em decisões
de consumo dos surfistas (PEREIRA NETO et al., 2017; CRISTOFFOLI;
DE MORAES; TELLES, 2018).
122

Mulheres ao Mar

O esporte é um dos meios que mais favorece a expressão e preservação


da masculinidade (DUNNING; MAGUIRE, 1997). Segundo Willis (1994), o
esporte é influenciado pela sociedade, assim como reflete e reforça valores da
sociedade em que está inserido. Desse modo, o surfe sempre foi dominado por
homens que, de acordo com Knijnik e Cruz (2010), raramente dividiam o mar
com as mulheres; sendo um espaço social altamente masculino, excludente e
sexista (BOOTH, 2001; EVERS, 2009). Em uma tradicional atuação passiva,
às mulheres restava o papel de espectadoras, admiradoras ou torcedoras, a
espera dos namorados ao saírem do mar (KNIJNIK; CRUZ, 2010).
Apesar do número crescente de mulheres praticantes de surfe, de acordo
com estimativas da International Surfing Association, elas ainda representam
apenas cerca de 19% da população mundial de surfe (BURTSCHER, 2018).

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A hipermasculinidade presente na cultura do surfe afasta muitas mulheres
da prática e aquelas que continuam devem desenvolver uma série de estraté-
gias para negociar espaço e respeito neste território dominado pelos homens
(NEMANI; THORPE, 2016).
Como Booth (2001) destaca, até que se aceitem a existência de formas
alternativas de surfar, as mulheres continuarão a lutar por reconhecimento e
aceitação dentro da cultura. A manutenção e o desempenho dos sistemas de
poder existentes são normalizados por meio de atos de exclusão expressos
através de hierarquias culturais e localismo que regulam as formas de ser
surfista (OLIVE; MCCUAIG; PHILLIPS, 2013). Além de haver também
intersecções, já que na maioria dos locais, os homens, surfistas de pranchinha,
jovens e brancos são aqueles que tendem a definir as regras dentro da água
(EVERS, 2009; NEMANI; THORPE, 2016).
No surfe, a exclusão ou marginalização das mulheres ocorre por meio de
entendimentos culturais e expectativas sobre as formas como a prática deve ser
realizada ou suposições sobre o desempenho masculino e feminino. O padrão de
referência e excelência é o masculino, o que consolida a ideia de uma condição
de exceção ou contraposição da mulher (OLIVE; MCCUAIG; PHILLIPS, 2013;
BANDEIRA; RUBIO, 2011). Nesse sentido, as surfistas mulheres ao buscarem
“aprimorar seus desempenhos, se deparam com a necessidade de incorporar
qualidades e capacidades normalmente vinculadas como signos de virilidade
masculina” (NEPOMUCENO; MONTEIRO, 2019, p. 104). No entanto, elas
ainda não são reconhecidas por sua performance, mas sim por aspectos estéticos
a partir de uma teia de significados historicamente construídos (VIEIRA, 2007).
Conforme Goellner (2010), o corpo é produzido na e pela cultura; ele
mesmo é uma construção social, cultural e histórica. Para tanto não são as
semelhanças biológicas que o definem, mas, fundamentalmente, os significados
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 123

culturais e sociais que a ele se atribuem; os campos teóricos ao enfatizarem


a dimensão cultural do corpo não negam sua materialidade biológica, mas
não são pela biologia que se justificam determinadas atribuições culturais.
Segundo Booth (2004):

As linhas entre habilidades atléticas, sexualidade e erotismo são extre-


mamente tênues e ainda mais no contexto de uma cultura dominada por
homens, onde qualquer representação do corpo feminino meramente como
um objeto sexual, reforça estereótipos negativos das mulheres (p. 102).

Nesse sentido, de acordo com Knijnik, Horton e Cruz (2010), pela prática
do surfe se dar em um ambiente onde os corpos estão à mostra o tempo todo e
a ideia de “corpo perfeito” se fazer presente, existe uma grande preocupação
em relação aos corpos femininos, que talvez tenha formas “não condizentes”
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com valores e expectativas ainda arraigados na sociedade. Ainda segundo os


autores, “a postura ativa, desafiadora que a surfista precisa assumir questiona
a tradicional passividade da mulher” (KNIJNIK; HORTON; CRUZ, 2010,
p. 1174). A prática do culto ao corpo, na perspectiva de objeto de consumo,
passou a assumir um lugar central na vida das pessoas como uma preocupação
generalizada, perpassando todos os setores, classes sociais e faixas etárias,
amparada por um discurso que ora faz uso da questão estética, ora mostra
preocupação com a saúde (CASTRO, 1998).
Nepomuceno e Monteiro (2019) identificaram que a vergonha de expor o
corpo em um mundo social cheio de homens e a sensação de intimidação por
ainda não terem o domínio das habilidades/capacidades exigidas na prática
do surfe, faz com que isso se torne desafio para a inserção e desenvolvimento
de mulheres no esporte. Podemos relacionar isso ao estereótipo da mulher
surfista, construído pela mídia, que envolvem representações de gênero como
emocionalidade e feminilidade, sendo estas mais notadas do que as habilidades
esportivas (HUNTER, 2016).
No Brasil, como em outras culturas ocidentais, a mídia também promove
o estereótipo de mulher nos esportes de ação como uma feminilidade jovem,
branca, heterossexual e atlética, com “outras” mulheres permanecendo prati-
camente invisíveis (MALCHROWICZ-MOSKO; AMATO; VELOSO, 2020).
De acordo com Knijnik, Horton e Cruz (2010), existem intersecções no surfe
e, também, nas praias brasileiras em termos de classe social, raça e gênero,
assim como na sociedade em geral. Segundo os autores “as surfistas ainda
estão presas em uma teia de corpo e identidade que é um elemento central da
hegemonia masculina dominante que permeia a sociedade brasileira” (p. 1180).
No entanto, embora as mulheres que não se encaixam no estereótipo
da “surfista californiana” (COMER, 2010), dificilmente façam parte da elite
124

mundial de surfe, elas sempre estiveram deslizando sobre as ondas. Segundo


Nemani e Thorpe (2016), as vozes das mulheres não brancas praticantes dos
esportes de ação, mesmo em menor número, têm o potencial de oferecer per-
cepções valiosas sobre as várias formas de poder operando em e por meio de
seus corpos, além das estratégias que elas empregam para negociar espaços
dentro dessa cultura, como ocorre no surfe.
Segundo Knijnik e Cruz (2010), as surfistas se tornaram protagonistas na
criação de novas formas de mulheres estarem no mundo, através do questiona-
mento de velhos modelos estabelecidos, a partir de sua prática corporal, lançando
novas e diferentes possibilidades de ser mulher no imaginário popular, princi-
palmente em um ambiente tão significativo para o Brasil como são suas praias.

O surfe coletivo

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Além de representar um meio de conexão com a natureza e com si
mesmo, o fator de sociabilização também é muito presente no surfe. Desde
o contato inicial com o esporte, até a sua permanência na prática, a rede de
relacionamentos próxima, composta principalmente por familiares e/ou ami-
gos, tem um papel fundamental, fazendo nos pensar que o surfe tenha mais de
coletividade do que de competitividade em sua prática amadora (PEREIRA
NETO et al., 2017; AMARAL; DIAS, 2008).
Nesse sentido, Amaral e Dias (2008) destacam a amizade como algo
primordial no surfe, demonstrando um misto entre individualismo e coleti-
vidade na adesão desse esporte. Por mais que a prática seja individual, estar
com outras pessoas é um fator que atrai e motiva, muito embora, às vezes se
limite apenas a esse núcleo dos relacionamentos próximos, já que um número
grande de surfistas no mar pode gerar tensões, por haver um número limi-
tado de ondas. Pereira Neto e colaboradores (2017) também apontam que as
amizades feitas no surfe e o convívio com elas são motivos importantes na
influência da adesão do esporte.
No caso das mulheres, Nepomuceno e Monteiro (2019) destacam a
influência da participação de outras mulheres no incentivo a iniciação no surfe
e como a companhia feminina no mar, e até mesmo a mera presença de outras
no mundo do surfe, produzem entusiasmo pela prática, gerando identificações
e motivação. A presença de outras mulheres na água gera um estímulo capaz
de aumentar o interesse pelo surfe, além do compartilhamento do mesmo
espaço estar associado a um aumento da motivação, sobretudo pelos processos
de identificação de gênero. Nesse sentido, os autores destacam a importância
social da presença de mulheres no mar, influenciando na motivação para a
prática e na criação de uma espécie de rede informal de colaboração entre as
mulheres (NEPOMUCENO; MONTEIRO, 2019).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 125

De acordo com Rowlands (1997), no nível coletivo, as mulheres desenvol-


vem uma identidade de grupo e um senso de ação coletiva que está intimamente
relacionado ao conceito de “poder junto com” (“power with” em inglês). Por
meio da ação coletiva, elas ganham mais poder para negociar seus interesses
do que estando sozinhas. E embora o surfe seja uma modalidade individual, o
componente social nesse sentido é muito importante. Comley (2016) argumenta
que surfar com um “exército de mulheres” pode criar um sentimento de empo-
deramento uma com as outras. Burtscher (2018) destaca que na perspectiva de
um grupo de surfistas do Sri Lanka, surfar com as amigas é algo especial por
se sentirem mais confortáveis juntas e contentes em compartilhar experiências.
Segundo Rowlands (1997), ter uma identidade comum pode contribuir
para o processo de empoderamento das mulheres, pois compartilhar as mes-
mas paixões e preocupações pode criar um vínculo entre elas e dar-lhes um
sentimento maior de força. Os coletivos femininos de surfe espalhados pelo
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mundo se tornam um espaço seguro no qual as mulheres podem apoiar umas


às outras, ajudar umas às outras a melhorar suas habilidades no surfe e, even-
tualmente, passar seus conhecimentos. Conforme Comley (2016) e Burtscher
(2018), o coletivo de surfe pode ser um espaço potencial de união feminina
a partir do sentimento de sororidade, com o aperfeiçoamento de habilidades
no surfe, enquanto desenvolvem um sentimento de empoderamento. Para
Nepomuceno e Monteiro (2019), o processo de identificação de gênero per-
mite que as surfistas possam criar redes de amizade, podendo reverberar na
organização política e na ampliação de uma espécie de consciência de classe.

Os coletivos femininos de surfe


No intuito de identificar os coletivos femininos de surfe espalhados pelo
Brasil, iniciamos uma busca mais aprofundada através das plataformas digitais
como sites relacionados a esportes, surfe e mulheres, bem como sites de con-
teúdo, Podcasts e programas de televisão específicos sobre o surfe feminino;
mas, a principal fonte foram as redes sociais como Facebook e Instagram.
Todos os grupos encontrados possuem um perfil em pelo menos uma dessas
redes, facilitando a divulgação dos objetivos do coletivo e chamando atenção
do público feminino através de imagens de mulheres surfando.
Os grupos de surfe feminino nos dias atuais evidenciam um fenômeno
que dá uma nova forma para o surfe feminino no Brasil. Ao fazermos um
levantamento sobre os coletivos femininos existentes encontramos 36 grupos,
de nove estados e que se organizam em torno da prática do esporte, seja por
meio de viagens (dentro e fora do país), bate-voltas14, aulas de surfe, projetos
14 Bate-volta é uma viagem de duração de um dia ou menos para o litoral para uma sessão de surfe e está
relacionado, principalmente aos surfistas que moram em cidades não litorâneas e precisam fazer esse
deslocamento para praticar o esporte.
126

sociais, além de compartilhamento de conteúdo e venda de produtos. Estima se


que milhares de mulheres tiveram contato com o surfe por meio desses grupos,
principalmente por meio de experiências nos “bate-voltas”, que muitas vezes
são uma possibilidade para mulheres que moram em cidades não litorâneas
de experimentarem a modalidade.

Estado Números de Coletivos

São Paulo 11

Santa Catarina 6

Bahia 5

Rio de Janeiro 4

Ceará 4

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Espírito Santo 2

Rio Grande do Sul 2

Pernambuco 1

Maranhão 1

Total: 36

Conforme a tabela podemos ter a dimensão do alcance nacional desses


coletivos femininos de surfe, divididos por estado. Ao analisarmos por região,
notamos uma concentração maior no Sudeste com 17 grupos, seguida pela
região Nordeste, com 11, e região Sul com 8. Muito embora a prática do surfe
não seja exclusivamente feita por pessoas que moram em cidades litorâneas,
percebemos que os coletivos fazem parte de estados/regiões com acesso direto
ao mar. É importante ressaltar que muitas viagens organizadas pelos coleti-
vos femininos de surfe atraem, inclusive, mulheres de estados fora dos nove
citados, possibilitando que mulheres que residem em cidades não litorâneas
possam se mobilizar e praticar o surfe de alguma forma.
Nesse sentido, algo relevante neste levantamento é que São Paulo, que
está há pelo menos 70 quilômetros do litoral, é a cidade com mais adeptos
a prática do surfe no mundo, com aproximadamente 150 mil praticantes.
Além de representar 25% do consumo de produtos de surfe no Brasil (QUEI-
ROZ, 2019). Dentro desse recorte é fundamental apontar que as mulheres
correspondem cerca de 17% dos praticantes de surfe da cidade e o turismo
ligado ao surfe para locais domésticos ou internacionais, é um dos setores que
mais cresce no mundo (PONTING, 2009). Para tanto, podemos pensar que
os coletivos femininos de surfe possam ter influência na iniciação e adesão
na prática dessas mulheres metropolitanas.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 127

A respeito dos coletivos femininos de surfe do estado de São Paulo é


importante destacar que todos encontram-se no litoral norte, nas praias da
Baleia, Cambury, Juquehy, Riviera de São Lourenço e em Ubatuba. O que
nos leva a reflexão sobre quais grupos sociais possuem acesso à prática do
surfe através desses coletivos, já que esta parte do litoral do estado é a mais
rica. O deslocamento é um fator que pode influenciar na acessibilidade des-
ses espaços, tendo em vista que há custos implicados, de modo a revelar que
pessoas com condições financeiras mais altas, podem frequentar esses locais
com mais frequência. Os custos para o deslocamento envolvem, por exemplo,
o abastecimento do automóvel e, portanto, o gasto com combustível, que
dependerá da distância e quantidade de pessoas que irão dividir tais gastos.
Também é necessário levar em conta a possibilidade de deslocamento por
meio de ônibus, considerando os custos da passagem de ida e volta. O ato de
combinar o deslocamento até o litoral para a próxima caída no mar através
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de caronas solidárias, é um dos aspectos que mais mobiliza as mulheres nos


grupos de redes sociais exclusivos dos coletivos.
Frente a este fato, é interessante ressaltar que a prática do esporte para
as surfistas que não moram em cidades litorâneas envolve uma organização
para o deslocamento, que incluem: datas, horários, locais, formas de deslo-
camento e despesas financeiras. No planejamento para uma viagem também
há um estudo em torno das condições da natureza, ou seja, uma leitura e
compreensão de previsões de onda.
Nos demais estados, é possível perceber que os coletivos femininos de
surfe se concentram principalmente nas capitais. No entanto, outros polos
importantes do surfe nacional também contam com a presença de mulheres
pertencentes a estes grupos como em: Torres (RS), Araranguá (SC), Garopaba
(SC), Vila de Regência (ES), Itacaré (BA), Paracuru (CE) e Ipojuca (PE).
Os coletivos desses polos estão menos relacionados com a parte comercial
de viagens de surfe e mais como coletivos de surfe amador e, também, com
projetos sociais voltados para meninas e mulheres.
Em sua grande maioria, os coletivos femininos se concentram no surfe
de pranchinha, muito relacionado à maior exposição desta forma de surfar nas
mídias. Mesmo a iniciação se dando em pranchas funboard, muitas das mulhe-
res se espelham e se motivam para aperfeiçoar suas habilidades para um dia
droparem em pranchas menores. No entanto, as longboarders e bobyboarders
também marcam presença nestes grupos, existindo dois grupos exclusivos
para a prática do surfe em longboard e bodyboard no Rio de Janeiro-RJ e
Garopaba-SC, respectivamente.
Os 35 coletivos femininos de surfe encontrados foram fundados por mulhe-
res que, muitas vezes, tem que alternar entre serem apoiadoras do surfe femi-
nino e outras profissões. Algumas poucas conseguem viver profissionalmente
128

apenas do coletivo, como a fundadora do Maré Alta (SP), Bruna Bessa, que
embora tenha se formado em jornalismo, investe em seu grupo, organizando
viagens, sessões de surfe e compartilhamento de conteúdos nas redes sociais.
Algumas outras, tem o coletivo como fonte de renda, mas também possuem
outras profissões, como a fundadora do Surfe Nelas, Aline Karines, que tam-
bém é engenheira. Além disso, mesmo a maioria das fundadoras serem sur-
fistas amadoras, alguns coletivos de surfe feminino contam com surfistas e
ex-surfistas profissionais como suas criadoras, como Claudinha Gonçalves do
Coolture Life (RJ), Suelen Naraísa do Girls Surfing Experience (SP) e Nuala
Costa do TPM-Todas Para o Mar (PE). Isso demonstra a importância de termos
a participação de referências do surfe no movimento dos coletivos femininos.
Outro ponto interessante de análise refere-se aos nomes dos coletivos,
que em sua grande maioria remetem, de alguma forma, a questões envolvendo
o feminino e o surfe: Gals at the Sea (SP), Surfe com Elas (SP), Salty Sisters

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(SP), Surferinhas (SP), Girls Surfing Experience (SP), Surfe Nelas (SP), BBQ
Only Girls (SP), Gaia Surfe Feminino (RJ), Bailarinas do Mar (RJ), Brasil Surfe
Girls (RJ), Elas no Surfe (SC), Elas Também Dropam (SC), Surfe Femino em
Movimento (SC), Ela Surfe (SC), Let’s Go Surfing Girls (SC), TPM-Todas Para
o Mar (PE), Curralzinho Surf Girls (CE), Surfe Ladies (CE), Surfe Feminino
Ceará (CE), Surfe das Manas (CE), Surfe Feminino Capixaba (ES), Surfe
Feminino do Maranhão (MA), Surfe Feminino Salvador (BA), Crowd Feminino
(BA), Itacaré por Elas (BA), Meninas do Mar (BA) e Crowd Florido (RS).
Estes nomes ao mesmo tempo que trazem o mar e o surfe como ponto
central, reforçam a presença das mulheres nesse ambiente que ainda é visto
como masculino por parte da sociedade. Além disso, os nomes estão relacio-
nados a sororidade, ou seja, a um grupo de mulheres unidas em torno de uma
mesma identidade. Identidade esta que está relacionada a um feminino que
não se intimida frente às expectativas sociais ou a um espaço dominado pelos
homens, mas que mostra justamente seu potencial de ir ao mar e conquistar
seu espaço no fazer. A união entre as mulheres, evidenciado nos coletivos,
revela uma potencialidade de desenvolver e agregar cada vez mais praticantes
ao esporte. Sendo assim, é possível entender os coletivos como um aparato
que facilita a união e reunião para a prática do surfe.

Considerações finais

Ao investigar mais afundo sobre os coletivos por meio de plataformas


digitais (Instagram, Podcasts, Facebook, Sites) ficou nítido que esses grupos
não se resumem apenas a encontros de mulheres para praticar o surfe, pois
há uma extensão deste para além do mar. Os coletivos femininos de surfe
também buscam trabalhar e propagar a cultura do surfe entre as mulheres,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 129

possibilitando discussões acerca de temas como o cuidado com o meio


ambiente, conexão com o corpo e com a natureza, até mesmo à questões
alimentares. Ou seja, trazem uma visão do surfe como estilo de vida, e não
apenas como um esporte. Porém, mais do que essa concepção, os coletivos
femininos de surfe buscam incentivar, convidar e permitir que as mulheres
reafirmem a liberdade e a potencialidade de seus corpos que constantemente
são inferiorizados, objetificados e violentados pela sociedade.
Por fim, esses coletivos femininos de surfe quebram barreiras ao forta-
lecerem o surfe feminino, e trazem de forma concreta que o surfe pode ser
praticado por todas, saindo do estereótipo das surfistas inseridas em um deter-
minado padrão de beleza, divulgado pela mídia. Os coletivos, ao contrário,
possibilitam que todo tipo de mulher passe a ocupar espaços que antes eram
mais difíceis de serem ocupados por elas e que ainda são, como apontado por
Vanessa Prando Bertelli, uma das fundadoras do coletivo Longarina em uma
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entrevista para o UOL (2019):

No coletivo a gente se fortalece. O grupo cria uma bolha protetora. Dentro


do mar, ombro a ombro, a gente fica mais potente, a gente pode tudo. Lá,
mulheres que nunca experimentaram tanta liberdade se empoderam. Vão
descobrindo sua força juntas e levam isso do surfe para a vida, para as
relações pessoais e de trabalho.

Portanto, os coletivos femininos de surfe podem ser um meio para mulhe-


res serem protagonistas de uma nova perspectiva sobre a prática e cultura do
surfe, através de um espaço mais acolhedor, incentivando na luta constante
pela equidade de gênero.
130

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CAPÍTULO 8
EM BUSCA DE EMOÇÃO, EQUILÍBRIO
E TRANQUILIDADE: estudo qualitativo
sobre a relação entre surfe e saúde.
Léo Barbosa Nepomuceno

Introdução
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O surfe é uma prática corporal e esportiva disseminada no Brasil e no


mundo, formando grandes mercados consumidores e influenciando milhões
de pessoas. Os surfistas participam da paisagem cotidiana de diversas cidades
e compartilham um singular estilo de vida marcado pelo contato frequente
com a natureza (BANDEIRA; RUBIO, 2011; PRESTON-WHITE, 2002;
EVERS, 2006), pela excitação prazerosa que envolve a prática (NEPOMU-
CENO, 2018) e por sensações fortes relacionadas a experiências de risco.
(BREIVIK, 2010). A grande adesão ao surfe e sua disseminação dentro das
sociedades, em geral, demanda estudos para compreender os modos como
surfistas se apropriam dessa modalidade de prática, bem como para analisar
quais seus benefícios, em termos de saúde, para diversos tipos de praticantes.
Estudos recentes investigam os efeitos positivos do surfe como uma prática
terapêutica relevante para a saúde física e psicossocial em diversas populações
(BENNINGER et al., 2020; MATIAS et al., 2019).
A discussão sobre a importância das práticas corporais e esportivas para
a saúde é urgente no mundo atual. No plano da saúde pública, a busca por
conhecimentos interdisciplinares e intersetoriais é fundamental. Nessa pers-
pectiva muitos esforços são empreendidos visando superar noções de saúde
como mera ausência de doença ou como anomalias no plano biológico. Bus-
ca-se compreender que os cuidados em saúde devem considerar as relações
que os sujeitos estabelecem com seus ambientes e vidas cotidianas. Diante de
tais desafios, o modelo biomédico é limitado para compreender o fenômeno
da saúde, requerendo novos saberes e práticas capazes de ampliar as formas
de cuidado em saúde. Como destacam Czeresnia, Maciel e Oviedo (2013,
p. 19), “à medida que as práticas e produtos provenientes do conhecimento
médico se multiplicam, se disseminam e se intensificam, o corpo é cada vez
mais medicalizado”. Diante do problema que envolve a medicalização da
136

vida tornam-se relevantes estudos que deem subsídios para pensar alternativas
em termos de cuidado, prevenção de doenças e promoção da saúde.
Sabe-se que a prática regular da atividade física é um elemento impor-
tante para a promoção da saúde e a prevenção de doenças. Os efeitos em
termos de bem-estar psicológico também são importantes tanto para o tra-
tamento de transtornos mentais, quanto para a promoção da saúde mental
(WEINBERG; GOULD, 2008). Conforme Lourenço et al. (2017), quando
inserida no contexto de vida de pessoas acometidas com transtornos men-
tal, a prática da atividade física, como modalidade terapêutica, tem efeitos
benéficos para a saúde. De acordo com Weinberg e Gould (2008, p. 426), a
prática de exercício físico regular proporciona uma melhor qualidade de vida
o que engloba a satisfação na vida, no trabalho, melhor qualidade de sono,
aumento da autoestima e do autoconceito, aumento do sentimento de prazer,

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diminuição do efeito do estresse fisiológico e psicológico, entre outros fatores.
Estudos sobre a relação entre a prática de atividade física regular e a
melhora da saúde mental tem reconhecida validade na confirmação de sua
eficácia na redução dos sintomas da depressão, melhora do estado de humor,
da qualidade do sono, do apetite e a da autoestima, refletindo positivamente
na saúde global de praticantes (ANIBAL; ROMANO, 2017). Como desta-
cam Mello, Stella e Antunes (2005): “os estudos sugerem que a prática de
atividade física exerce um efeito protetor nas esferas física e psicológica
agindo como elemento promotor de mudanças com relação a fatores de
risco para muitas doenças” (2005, p. 7). No entanto, a consistente adesão à
prática regular de atividade física, consolidando estilos de vida ativos e pro-
tetores da saúde, é um desafio permeado por uma complexa gama de fatores
psicológicos e socioculturais que incidem sobre os processos motivacionais
dos(as) praticantes (WEINBERG; GOULD, 2008; SAMULSKI, 2002). Nesse
ínterim, urge compreender os significados e sentidos das práticas corporais e
esportivas em diferentes contextos, visando identificar particularidades per-
tinentes às modalidades e analisar os modos como os sujeitos se apropriam
e significam tais práticas.
O presente trabalho visa apresentar resultados parciais da pesquisa
“Aspectos sociais e psicológicos envolvidos no surfe: uma abordagem qua-
litativa e exploratória”. Tal pesquisa é ligada ao Laboratório Cearense de
Psicologia do Esporte e do Exercício (LACEPEX) do Instituto de Educação
Física e Esportes (IEFES) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem
como objetivo analisar percepções de praticantes regulares de surfe sobre
a relação entre o surfe e a saúde, destacando mudanças em suas vidas que
estão relacionadas com a prática. A análise da temática proposta aqui pode
ser complementada com a leitura do capítulo 9 do presente livro.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 137

Metodologia

A presente pesquisa é um estudo hermenêutico de abordagem qualitativa


realizado a partir do uso de entrevistas semiestruturadas com praticantes de
surfe dos Estados do Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo.
Para a construção do material empírico da pesquisa (coleta de dados),
foram realizadas entrevistas semiestruturadas junto a 35 surfistas de vários
níveis de proficiência e tempo de prática, sendo 13 mulheres e 22 homens, com
idades variando entre 19 e 55 anos. Dentro do grupo de participantes, 4 eram
estudiosos que já desenvolveram pesquisas científicas e ou intervenções em
psicologia do esporte com a modalidade. Ainda com relação às experiências
dos(as) entrevistados(as), 8 eram profissionais ativos (6 homens e 2 mulhe-
res), 8 entrevistados eram competidores da categoria máster (todos homens
acima de 35 anos), 20 tinham mais de 15 anos de prática de surfe, 8 tinham
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mais de 30 anos de experiência, 7 tinham menos de 2 anos de experiência.


Dentre os entrevistados 22 já fizeram viagens nacionais e internacionais, 7
tiveram trajetória como competidores na World Qualifying Series (WQS) e 1
na World Surfe League (WSL) – respectivamente 2ª e 1ª divisão do campeo-
nato mundial de surfe profissional. As entrevistas foram realizadas em dois
períodos: uma primeira etapa no segundo semestre de 2018, onde se entrevis-
taram 21 surfistas. E outra no primeiro semestre 2020, onde se complementou
a fase de construção das informações com mais 14 entrevistas.
A análise de dados coletados pautou-se na perspectiva teórica e técnica da
hermenêutica de textos de Paul Ricoeur (1989/2008) utilizando procedimentos
de compreensão e análise dos textos oriundos das transcrições das entrevistas
realizadas. Utilizou-se do software Atlas TI para auxiliar no processo de codi-
ficação e categorização dos textos analisados. Como fruto da análise, foram
definidas grandes categorias que aglutinam os principais temas que surgiram
nos discursos analisados. Foram elas:1) Aspectos socioculturais do surfe; 2)
Habilidades psicológicas envolvidas na prática; 3) Significados do surfe para
os praticantes; 4) Surfe, estilos de vida e relação com a saúde.
O presente trabalho analisa a categoria “Surfe, estilos de vida e relação
com a saúde”. Tal categoria é composta por 9 subcategorias demonstradas na
Figura 1. O tema principal abordado aqui, portanto, será a relação entre surfe
e a saúde na perspectiva dos(as) participantes da pesquisa. Como destacado
na referida figura, as percepções de que o surfe está relacionado a uma busca
por tranquilidade, equilíbrio e enfrentamento do estresse ganharam destaque
e centralidade no presente estudo. A recorrência dessa percepção entre os(as)
participantes consolida, em nossa compreensão, a convicção de que o surfe
constituiu-se como uma potente estratégia de cuidado em saúde mental vol-
tada para o fortalecimento e promoção da saúde em geral para os(as) surfistas
138

entrevistados(as). Como veremos nos tópicos de análise e discussão, a prática


do surfe adquire um significado especial no que tange ao seu potencial tera-
pêutico e gerador de bem-estar psicológico.

Figura 1 – Análise de dados – associação entre as subcategorias com


número de citações contidas dentro do material empírico produzido

Surfar como Surfe como


tratamento de oportunidades de
Benefícios desenvolvimento
relacionados a doenças {7-1} Surfe como
e trabalho {6-1}
sociabilidade {5+1} manutenção da
saúde {11-1}

Mudanças de Surfe como


hábitos e ou Tranquilidade, determinação,
comportamentos equilíbrio e superação e
de risco {14-1} enfrentamento do resiliência {7-1}
estresse (saúde

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mental e bem
estar) {50-8}
Benefícios Benefícios
relacionados ao relacionados ao
contato com a condicionamento
natureza {17-1} físico {15-1}

A seguir, discutiremos os resultados parciais da análise de dados qua-


litativos construídos na pesquisa, focando nossa atenção na interpretação
dos discursos que delimitam visões do surfe e do surfar como reflexos de
uma busca por tranquilidade e equilíbrio diante de rotinas e ou cotidianos
estressantes. Como demonstrado na figura 1, tal subcategoria articula todas as
outras, expressando uma síntese inicial de nossa interpretação sobre o material
coletado dentro do tema geral “relação entre surfe e saúde”.

Resultados e discussão

As informações analisadas nas entrevistas nos permitem compreender


que as relações entre surfe e saúde, de um modo geral, são permeadas por
experiências prazerosas e motivadoras para os(as) entrevistados(as). A prática
regular do surfe está associada a práticas de cuidado de si e pela reprodução
de uma cultura esportiva permeada pela relação com a natureza. Destacam-se
alguns elementos componentes da prática do surfe como: diversão-ludicidade,
aventura-risco-desafio e sensação de liberdade e de bem-estar psicológico.
Os(as) participantes da pesquisa destacaram a prática do surfe como fonte de
prazer, equilíbrio e tranquilidade. Alguns enfatizaram a capacidade da prática
ser um fator de valorização da vida, permitir experiências de espiritualidade e
de manutenção da saúde física e mental. Tais temas serão abordados adiante.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 139

O surfe é percebido como uma “terapia” para muitos dos problemas de


saúde que os(as) praticantes relataram ter. Pudemos analisar a identificação
do surfe como fator importante para o tratamento de doenças e problemas
de saúde em geral, bem como impulsionador motivacional para a mudança
de comportamentos de risco. E em específico, vale destacar, o surfe foi per-
cebido como um relevante mecanismo de promoção da saúde mental como
abordaremos mais adiante.

Surfe como parte do tratamento de doenças e como impulsionador


de mudanças de hábitos e comportamentos de risco

A análise das entrevistas permitiu a identificação de um conjunto de doen-


ças e problemas de saúde em que o surfe foi percebido como elemento ou fator
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relevante de terapia complementar para o tratamento: enfrentamento do câncer,


alergias, sinusite, rinite, labirintite e asma. No que tange aos comportamentos
de risco, encontramos o surfe relacionado ao controle e modificação de peso
corporal e de hábitos como tabagismo e consumo de álcool. A modalidade
aparece associada à aquisição de um estilo de vida percebido como mais sau-
dável em todas as entrevistas realizadas. Tal estilo de vida seria constituído e
reforçado através de experiências prazerosas, por um lado, e se consolidaria
numa busca por dar conta de uma espécie de exigência de preparação para
que se possa continuar surfando – já que a prática imporia um conjunto de
pré-requisitos de saúde para que o(a) surfista continue se desenvolvendo na
modalidade e busque boas performances.
Dois dos entrevistados relataram que o surfe contribuiu para o emagreci-
mento ou para um maior poder de controle do peso corporal. Como destacado
no relato abaixo:

Eu era bastante obeso e com o surfe eu consegui emagrecer 25 kg. Então,


correlacionando saúde e surfe, ele representa muito para mim, porque essa
perda de peso foi graças a ele. [...] A cada dia que passava eu me olhava
no espelho: ‘Eu estou mais magro!’. Mas, no início, o objetivo não era
esse. O objetivo era surfar, gostar de estar ali na praia (Entrevistado 15).

Os relatos convergem no sentido de destacar o surfe como uma forma


de mudar comportamentos ao sabor de experiências de alegria e prazer. A
satisfação com o fato de praticar o surfe é notável em todas as entrevistas rea-
lizadas. Trazendo esse dado para o campo temático da Psicologia do Esporte,
podemos reafirmar que a modalidade apresenta características especiais. Como
destacam Weinberg e Gould (2008, p. 435):
140

Embora muitas pessoas iniciem programas de exercícios para melhorar a


saúde e perder peso, é raro que elas continuem nesses programas a menos que
considerem a experiência agradável. Em geral, elas continuam um programa
de exercícios em função da diversão, da felicidade e da satisfação que ele traz.

Como veremos adiante, o surfe tem enorme potencial para promover a saúde
mental de praticantes. Nesse contexto, Godfrey et al. (2015) investigaram como
um projeto social que usa o surfe como intervenção foi capaz de influenciar a
sociabilidade de 114 jovens com idades entre 8 e 18 anos que enfrentam proble-
mas de saúde mental ou exclusão social. Os resultados do estudo apontam que
a modalidade foi capaz de deixar os jovens mais felizes e proporcionar melho-
ras na sociabilidade. Outros estudos também convergem em seus resultados na
perspectiva de afirmar que a prática do surfe está relacionada a sentimentos de
felicidade (CADDICK, SMITH E PHOENIX, 2015; BUSH, 2016).

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Ademais da diversão, felicidade e satisfação relacionadas, surfar é uma
atividade que exige cuidados de preparação por parte de seus praticantes.
Quando associados a outras necessidades de saúde, tais cuidados de preparação
para surfar ou “surfar bem” acabam por impulsionar mudanças de compor-
tamento e de estilo de vida que fortalecem os sujeitos no enfrentamento de
desafios relacionados à saúde. Como expresso no relato abaixo:

Para começo de conversa eu era fumante, fumava em cerca de três car-


teiras de cigarro por dia. E a primeira coisa que o surfe mudou na minha
vida foi justamente parar de fumar. Porque não dá para surfar e fumar ao
mesmo tempo. Isso foi a primeira coisa. E eu já queria parar de fumar e
não conseguia. Então, o surfe foi uma ferramenta, uma alavanca para esse
desejo (Entrevistado 3).

Foi recorrente a relação do surfe com a melhoria de condicionamento


físico e resistência aeróbica percebida, com mudança de estilos de vida ante-
riormente mais sedentários e/ou mais desregrados. O surfe também está rela-
cionado a mudanças positivas na alimentação e na qualidade do sono em
grande parte dos(as) participantes da pesquisa.
No que tange a mudanças de hábitos e comportamentos de risco, foi
interessante notar que o surfe também apareceu como uma escolha de vida
ou oportunidade para sair da criminalidade para dois dos entrevistados, e fora
percebido como um caminho de desenvolvimento pessoal para alguns dos(as)
surfistas profissionais entrevistados(as). Um deles destaca:

Através do surfe e da competição, tive oportunidade de viajar e conhecer


pessoas e lugares novos, culturas diferentes. E aprendi muito com isso.
Porque moro na favela e as oportunidades seriam bem limitadas. E o surfe
abriu portas para viver experiências (Entrevistado 27).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 141

Apesar de haver uma forte crítica às desigualdades sociais e precárias


condições de trabalho existentes dentro do campo esportivo do surfe, outros
surfistas profissionais entrevistados relataram oportunidades de desenvolvi-
mento relacionadas à escolha da carreira como atleta profissional. Os relatos
são recorrentes em destacar que “o surfe abriu fronteiras” e facilitou o desen-
volvimento pessoal deles e delas, constituindo-se como mais um elemento
discursivo que evidencia a associação entre surfe e saúde.

Surfe como forma de manutenção da saúde


e ter condicionamento físico

No que tange ao condicionamento físico ou às dimensões de saúde mais


diretamente associadas às ideias de “saúde física” ou “preparação física do
corpo”, o surfe é percebido como uma potente prática corporal e esportiva que
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traz importantes contribuições para a saúde. Como sintetizado por uma das espe-
cialistas entrevistadas o surfe trabalharia a dimensão física da saúde que se refere
a “aptidão física, a capacidades físicas como força, resistência cardiorrespiratória,
flexibilidade, coordenação motora, agilidade e velocidade” (Entrevistada 29).
Melhorias de saúde ou benefícios relacionados ao surfar, nessa dimensão
“física” foram identificados pelos(as) participantes como mudanças de estilos
de vida sedentários, melhora no condicionamento físico, melhora no fôlego e
disposição. No entanto, as referências à preparação física relacionada ao surfe
geralmente estavam associadas a uma preparação também psicológica e a “ensi-
namentos” que a prática trazia, como abordaremos adiante. A partir de nossa pes-
quisa, destacamos que as percepções do surfe como uma atividade produtora de
sentimentos de felicidade ou de satisfação/realização relacionam-se diretamente
à alta adesão por parte dos(as) praticantes. Os(as) surfistas entrevistados(as),
portanto, potencialmente se enquadravam no que a literatura científica chama de
população fisicamente ativa. Como destacam Weinberg e Gould (2008, p. 427):

Embora o exercício possa ter impacto negativo sobre a qualidade de vida


se o indivíduo tiver o hábito de treinar de forma excessiva (p.ex., fadiga,
lesões por abuso, energia diminuída), o exercício geralmente está associado
com diversos índices relacionados à qualidade de vida.

Outro aspecto relevante no que diz respeito ao presente tópico, aparece


expresso na frase de uma das entrevistadas: “Em relação ao corpo, mantenho
uma rotina de exercícios para poder fluir mais no surfe” (Entrevistada 35).
Assim, o condicionamento físico relacionado ao surfe não necessariamente
aparece como uma consequência da prática do surfe, mas de um esforço de pre-
paração para surfar bem ou surfar melhor. Como já mencionado anteriormente,
142

o desenvolvimento do(a) surfista dentro da modalidade acaba por impulsionar


mudanças de estilo de vida relacionadas a exigências de preparação para o
aprimoramento da performance, que implica no engajamento do(a) praticante
em práticas corporais voltados para a melhoria e ou manutenção do desem-
penho/rendimento. Retomando a reflexão sobre a adesão ao surfe por parte
dos(as) participantes da pesquisa – como algo relacionado à percepção de
sentimentos de felicidade, podemos observar que, por outro lado, a própria
saúde aparece como um pré-requisito para surfar. Os(as) surfistas, portanto,
não estão somente usufruindo dos efeitos positivos da prática em sua saúde.
Mas, também, estão a investir em cuidados de saúde para poder continuar a
manterem-se ativos e em desenvolvimento dentro da modalidade. O seguinte
relato exemplifica a centralidade do surfe no que tange às questões de saúde:

Na minha saúde o surfe influência muito. Porque eu passo o dia trabalhando

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sentado, aí se eu não praticasse surfe eu era um sedentário. Por exemplo,
eu tenho lesão por esforço repetitivo (LER). no braço e com a prática do
surfe eu tento alongar pra não me impedir de surfar. E em tudo eu penso
assim: pra melhorar a saúde e surfar. Eu não posso me lesionar para não
perder o surfe. Aí eu penso que o surfe, na minha saúde é importantíssimo.
Por que eu preciso ter saúde, pra quê? Pra surfar! É isso (Entrevistado 6).

A modalidade, então, é concebida como uma prática corporal e esportiva


que aglutina um conjunto de outras práticas de cuidado em saúde, constituindo-se
potencialmente como uma excelente forma de manutenção e fortalecimento da
saúde. Para a maioria dos(as) participantes da pesquisa, a prática é estruturante
de estilos de vida e a principal atividade de manutenção de cuidados corporais.

Sociabilidades

O surfe, como um esporte individual, é pouco referido como motivado


pela sociabilidade. Além disso, o espaço sociocultural da modalidade é bas-
tante marcado por algumas desigualdades de classe social, de caráter étnico-ra-
cial e de gênero. Tais desigualdades estão presentes e foram abordadas em dois
outros capítulos do presente livro (capítulo 3 e 7). No entanto, mesmo diante
de tais desafios alguns dos(as) entrevistados(as) destacaram que a sociabilidade
ligada à modalidade é marcada por laços afetivos. Assim, a cultura do surfe foi
percebida como importante para moldar a identidade social dos(as) surfistas
participantes do estudo. Como destaca uma das especialistas entrevistadas,
“a dimensão social (do surfe) refere-se ao sentido de pertencimento cultural,
a socialização com as pessoas e, também, na relação com valores (ética) e o
exercício político” (Entrevistada 29). Pudemos perceber que a convivência na
praia e as amizades construídas no processo de inserção e envolvimento com
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 143

a modalidade fortaleceram a relação que surfistas estabelecem com a prática.


Assim como discutido por Weinberg e Gould (2008), ao apontarem as razões
para exercitar-se, as oportunidades de socialização cumprem importante papel.
Apesar de ser uma prática corporal e esportiva individual, o “socializar-se”
constituiu-se como um fator relevante em nossa pesquisa.
Vários foram os relatos que destacaram a importância de amigos e ami-
gas que compartilham os valores e gostos relacionados à cultura esportiva
do surfe. Destacaram-se, nessa temática específica, as amizades construídas
pelas mulheres dentro da modalidade que, como em diversas localidades do
país e do mundo, se associam para fortalecer a presença da mulher no surfe.
Em nosso caso, o seguinte relato ilustra o fenômeno:

Às vezes, a gente não sabia surfar tão bem ou não tinha companhia para
ir à praia. Então assim, o que eu penso de primeira mudança em minha
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vida relacionada ao surfe foi um grupo de mulheres que encontrei e me


inseri. E eu não conheceria se não fosse pelo surfe. A gente se encontra
de vez em quando. Mas toda vez que a gente se encontra na praia é um
carinho e uma conexão muito forte (Entrevistada 20).

Assim, como o relato aponta, outros relatos de mulheres entrevistadas


apontaram um conjunto de amizades significativas construídas no surfe. Nesse
contexto, podemos destacar alguns estudos sobre gênero, que abordam o
surfe como uma forma de mediar a associação e empoderamento de mulheres
(COMER, 2010; NEPOMUCENO; MONTERO, 2019; WAITT, 2008). Dentre
tais trabalhos, destacamos o de Comer (2010) que estuda o surfe feminino,
analisando como a modalidade é influenciada pela participação das mulhe-
res em diversos contextos. A autora desenvolve o conceito de “localismo de
meninas” para descrever a experiência das mulheres em disputas por priori-
dade de ondas e respeito no meio do surfe. As conclusões do estudo apontam
que a subcultura do surfe politizou as mulheres surfistas de diversos modos.

Surfe é uma forma de cultivar a relação com a natureza

A análise dos dados qualitativos construídos através das entrevistas nos


trouxe de modo recorrente a menção à caracterização do surfe como prática
corporal e esportiva na natureza. A relação com o mar, com as ondas, com o
ambiente praiano e, de um modo mais amplo, com “a natureza” é recorrente-
mente evocada nos discursos de surfistas. A relação com a natureza, portanto,
constituiu-se como uma subcategoria muito relevante na análise do corpus
empírico da pesquisa. Tal relação é estruturante das experiências dos(as) sur-
fistas e acaba por delimitar as possibilidades de ser surfista e a caracterizar
a modalidade surfe. Como destaca outra especialista entrevistada o surfe é:
144

[...] uma maneira de você ter uma conexão com a natureza de uma maneira
muito forte e intensa, onde a gente pode explorar tanto a questão ambiental
quando essa questão interna nossa. É uma via de exploração dupla, da
natureza e de nós mesmos. Então o surfe para mim é essa conexão, esse
estilo de vida que sustenta essa conexão (Entrevistada, 30).

Surfar, portanto, constitui-se como um diálogo com as ondas (NEPOMU-


CENO, 2017) que traz efeitos subjetivos importantes para os praticantes. A
conexão com a natureza e o esforço de buscar equilíbrio físico e psicológico é
algo notável na motivação de diversos(as) praticantes de surfe. Nessa perspec-
tiva, a modalidade passa a enquadrar-se como esporte de aventura ou esporte
com a natureza oferecendo possibilidades de aprendizagens e conhecimentos
derivados do apuro da sensibilidade relacionada com o contato com o mar e
as ondas (BANDEIRA; RUBIO, 2011; NEPOMUCENO, 2017).

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Nesse contexto, Kampion e Brown (1998) afirmam a existência de uma
“essência” no surfe, que decorre da relação fundamental entre homem e natu-
reza, entre o homem e as ondas:

[...] enquanto expressão do relacionamento essencial entre homem e natu-


reza, o surfe é único na sua clareza. E enquanto metáfora da vida e qualquer
coisa que a vida nos atira, não tem paralelo. A vida é uma onda. [...] Tudo
no mundo material se manifesta em ondas, mas, embora a dinâmica das
ondas module as fases da nossa existência, esse facto só se torna mais
graficamente aparente quando o homem vai para o mar. A representação
mais arquetípica e simbólica desse relacionamento – entre o homem e os
ritmos e força da natureza – está expressa no ato de apanhar uma onda. A
pureza elementar desse encontro explica bem o atrativo quase universal
do surfe (KAMPION; BROWN, 1998, p. 27).

Clifton Evers (2006) explora o mundo dos homens que surfam. O artigo
é autorreflexivo e aborda aspectos interessantes da experiência de surfar.
Segundo o autor, um surfista sente as ondas e passeia com elas, não simples-
mente sobre elas. As ondas formam parte dos corpos dos que surfam e esses
são parte delas. É uma troca em que as ondas se quebram sobre os corpos até
que não se sabe onde o surfista começa e onde a onda termina. O corpo do
surfista se estende para ser parte da complexidade de uma onda.
Na conexão com o oceano o(a) surfista tem que se adaptar às condições
ambientais de modo a exercitar a abertura ao ineditismo e ao risco, bem como a
aprimorar sua percepção de modo a construir um conhecimento refinado sobre
os sinais dados pelos fatores ambientais presentes nos contextos de prática.
Surfistas adquirem conhecimento sobre as ondas através do contato direto
com elas, desenvolvem uma sensibilidade frente a tudo que muda a forma e
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 145

ocorrência das ondas. Estão geralmente atentos(as) ao vento, às condições


climáticas, à direção, ao tamanho e à energia das ondulações. Preston-Whyte
(2002) explica como os surfistas dão sentido aos espaços materiais por onde
passam. Observando como os surfistas interagem com as costas, as condições
do mar e as praias, o autor argumenta que a negociação entre esses espaços
envolve habilidades sensoriais de resolução de problemas – adquiridas na
experiência do surfar. Essa conexão visceral com a natureza significa que
estamos falando de um tipo específico de corpo, moldado pelas experiências
vividas com as ondas do mar. Nesse ínterim, lidar com as constantes mudanças
ambientais é um exercício que exige humildade e respeito ao mar, diante de
imprevisibilidades que moldam a experiência de interação com a natureza.
Como destaca uma das surfistas profissionais entrevistadas:

Eu acho que o surfe, primeiramente, trabalha muito a nossa humildade,


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porque a gente está acostumado a estar no controle das coisas e, quando a


gente não está no controle da situação isso gera medo e falta de confiança.
E quando eu digo que a gente está fora do controle é porque a natureza que
diz a última palavra, que manda as ondas. Você não consegue controlar
quando as ondas vão vir, como vai ser, se você vai cair, ou não vai cair.
Então, acaba que o surfe te ensina ser mais pé no chão e ter a humildade
que você não está no controle, é a natureza que está (Entrevistada 27).

A atribuição de sentidos a essa modalidade de prática corporal e espor-


tiva na natureza frequentemente evoca a relação com a espiritualidade do(a)
surfista. A espiritualidade e a experiência de transcendência cultivadas no mar,
foram citadas em vários momentos no material empírico produzido na pesquisa
e corrobora com outros estudos já realizados sobre o surfe (AMRHEIN; BAR-
KHOFF; HEIBY, 2016; WHEATON, 2017; RYNNE, 2016). Como exemplo,
dessa dimensão de espiritualidade, vejamos o que relata um dos entrevistados:

O surfe hoje em dia pra mim, é a minha espiritualidade. Ele está ligado
não só à qualidade de vida, mas a uma prática que transcende, onde tudo
está conectado numa visão holística de conexão corpo, mente, natureza,
enfim a interação entre o ser humano e um cosmo, que é muito maior
(Entrevistado 9).

Rynne (2016) investigou o papel do surfe no desenvolvimento físico


e social de adolescentes indígenas australianos participantes de um projeto
social e aponta que os praticantes desenvolveram uma visão holística sobre
a prática, compreendendo que ela não gerava apenas benefícios físicos, mas
também proporcionava uma íntima relação com as ondas, constituindo-se
como uma via de repasse da cultura local e proporcionando uma reconexão
146

com o lado espiritual, com a terra, com o oceano e o fortalecimento de laços


comunitários. Wheaton (2017), por outro lado, analisou significados que
o surfe tem nas vidas de adultos acima de 40 anos na Inglaterra e apontou
que, além de fortalecer as identidades dos surfistas, as sensações de euforia
e maior conexão com a espiritualidade estão relacionadas à prática do surfe.
Amrhein, Barkhoff e Heiby (2016) desenvolveram pesquisa junto a 100 sur-
fistas de 18 a 62 anos do Havaí e EUA e apontam que surfistas apresentam
mais relatos acerca da espiritualidade e demonstram maior qualidade de
vida associada a menores índices de depressão e ansiedade em comparação
com a população que não surfa.
Pautados pela análise do material empírico produzido em nossa pesquisa,
podemos afirmar que o surfe proporciona experiências singulares de autoco-
nhecimento e de desenvolvimento pessoal construídas na interação com o

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meio natural. A prática constante parece fomentar um conjunto de habilidades
psicológicas cognitivas e de controle emocional através de relações com o mar
e com as ondas, que vão se tornando íntimas, afetivas e transformadoras. O
desenvolvimento pessoal relacionado à modalidade é, no entanto, fruto de um
esforço de enfrentamento de condições ambientais, muitas vezes, ameaçadoras
que requer um exercício de dedicação e de superação.

Tornar-se surfista envolve determinação, superação e resiliência

As experiências de surfar estão relacionadas a um conjunto de esforços de


superação de dificuldades constantes dadas pelas condições de mar, bem como
pelas refinadas habilidades exigidas para o aprimoramento da performance.
A superação das dificuldades é identificada como uma fonte importante de
motivação, uma experiência de satisfação descrita como única e intensa. A
coragem é exigida para que se possa colocar-se à prova, superar limitações,
superar a tensão colocada pelo medo. O surfe, então, “significa desafio, sair
da zona de conforto” (Entrevistada 23). Como destacada por outra das parti-
cipantes, o surfe proporciona um “momento de fortalecer o emocional pelo
encontro com sensações de prazer e realização, mas também de superação do
medo, trabalhando a coragem” (Entrevistada 20).
Não é fácil surfar, as dificuldades acompanham todo o desenvolvi-
mento do(a) surfista. A coleção de relatos que pudemos recolher no decor-
rer da pesquisa nos possibilita levantar a hipótese de que a modalidade,
com o avanço do aprendizado relacionado à prática contínua, acaba por
fortalecer psicologicamente os(as) surfistas, algo muito próximo da noção
de resiliência – entendida como resistência ao estresse e ou recuperação e
superação de alterações emocionais causadas por estresse (BRANDÃO;
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 147

GIANORDOLI-NASCIMENTO, 2011). A exigência de coragem e a expe-


riência da superação estiveram presentes em todos os relatos analisados.

Coragem e sensação de superação. [...] psicologicamente você se sente


muito bem. Assim, porque você vê que consegue ter uma capacidade
enorme em seu corpo, em sua mente, seu espírito tem uma capacidade
enorme de vencer as coisas, de surpreendentemente lidar com as forças
do mar (Entrevistado 11).

Os(as) surfistas destacam experiências de superação de limites e desen-


volvimento de habilidades psicológicas através da prática regular, implicando
na promoção de estilos de vida saudáveis muito ligados a uma busca por
superação e divertimento. A persistência na aprendizagem, a coragem e a
disciplina, que são elementos enfatizados como fatores necessários para o
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desenvolvimento de habilidades psicológicas dos surfistas, nos permitem


afirmar que a prática da modalidade contribui para tornar os(as) surfistas
resilientes. Os(as) entrevistados(as) destacam a relevância, como fruto do
esforço e dedicação no surfe, da percepção da capacidade de enfrentar desafios
e superar medos como uma espécie de conquista que o surfe pode trazer para
os mais dedicados. Thorpe (2016) investigou o potencial do surfe e outros
esportes de ação e concluiu que tais esportes contribuem para diminuir níveis
de estresse e tensão, bem como contribuíram para desenvolver a resiliência
nos(as) praticantes. Já Marshall e colaboradores (2019) avaliaram efeitos
terapêuticos desencadeados pelo surfe e destacaram que surfar afeta positi-
vamente indicadores de autonomia, bem-estar, confiança, melhorias na saúde
e amplia a capacidade de resiliência. O processo motivacional que envolve o
surfe pode destacar importantes questões para o estudo da adesão à atividade
física regular, sobretudo pela mistura de sensações de prazer e de medo, que
endossam a experiência de superação.
A análise do corpus empírico coletado na pesquisa, tem nos permitido
interpretar que o surfe é uma prática corporal e esportiva marcante para
todos(as) entrevistados(as). Tornar-se surfista foi um processo acompanhado
por mudanças de hábitos, consolidação de estilos de vida percebidos como
mais saudáveis, gerador de oportunidades de desenvolvimento humano, de
benefícios como condicionamento físico, resiliência e formação de laços de
amizade e sentimentos de pertença à cultura esportiva da modalidade. Sua
prática aparece também associada ao tratamento de doenças ou problemas
de saúde como já vimos. Pudemos perceber, assim, que a prática constante
do surfe, constitui-se como estratégia de promoção e manutenção da saúde
para todos(as) entrevistados(as) que, de um modo ou de outro, percebeu os
efeitos benéficos em suas vidas. No entanto, cabe ainda abordarmos o principal
148

argumento dado por tais surfistas no que tange à relação entre surfe e saúde,
os benefícios do surfe para a saúde mental.

Em busca da tranquilidade e equilíbrio: aspectos qualitativos da


relação entre surfe e saúde mental

A ideia do surfe como terapia foi a ideia mais recorrente em termos quanti-
tativos (apresentando maior frequência do tema nos discursos) e qualitativos na
nossa pesquisa (apresentando alta relevância dentre os significados e sentidos da
prática). Os(as) praticantes atribuem ao surfe um sentido de cuidado em saúde,
com forte ênfase na saúde mental. Nesse contexto, a modalidade exige, para um
bom desempenho ou mesmo melhor proveito da prática que os(as) surfistas des-
liguem-se dos problemas cotidianos e que estejam presentes e concentrados(as)
ao surfar. Os entrevistados relatam que a atividade traz alívio do estresse coti-

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diano, auxilia na busca por equilíbrio e tranquilidade frente aos desafios do dia a
dia. Com fortes resultados em termos de bem-estar psicológico (WEINBERG;
GOULD, 2008), surfar é percebido como uma atividade que traz implicações
para o estilo de vida dos praticantes, já que requer que o(a) praticante esteja em
sintonia com o mar e preparado para os desafios lúdicos e esportivos com as ondas.
Destaca-se, dentre os discursos dos(as) entrevistados(as), que a relação
entre surfe e saúde mental é muito forte. O surfe, nesse contexto temático, é
percebido como uma espécie de remédio para a saúde mental, trazendo paz
de espírito, alívio de tensões, possibilidade de esquecer os problemas e uma
forma de trabalhar expressividade corporal. As palavras e frases recorrentes
nessa subcategoria contribuem para atribuir sentidos ao surfar como uma prá-
tica que traz “alegria”, “paz”, “calma”, “relaxamento”, “leveza”, “liberdade”
e “tranquilidade” para o dia a dia. Como ilustrado no relato abaixo:

Num momento em que eu estou estressado, infeliz, basta eu ir para a praia,


pegar umas ondinhas e aquilo dali transforma meu o meu dia, deixa meu
dia melhor. Até diante de problemas que a gente, as vezes tem, o surfe abre
horizontes, abre sua mente. Deixa você mais relaxado e faz com que você
consiga resolver seus problemas com mais facilidade (Entrevistado 7).

Destaca-se a polaridade dinâmica equilíbrio-calma x descontrole-deses-


pero, como forma de descrever o que acontece no plano psicológico na prática
do surfe como experiência de superação. Como falou uma das entrevistadas:

É uma atividade que me revigora, que me acelera, ou acalma, afinal, é uma


prática com muitas facetas. Que me traz ensinamentos, como abordei na
questão anterior, no sentido de me trazer reflexões e tentar aplicar o que
se vive no surfe em outros aspectos da vida (Entrevistada 24).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 149

Utilizando-se de ideias de Le Breton (2009), Elias e Dunning (1992) que,


com enfoque antropológico e sociológico respectivamente, abordam o potencial
de algumas práticas corporais em possibilitar intensos momentos de excitação
prazerosa e experiências numinosas (especialmente ligadas a explosões emo-
cionais e exposições a condições de risco), entendemos que o surfe constitui-se
como uma prática de grande relevância sociocultural já que permite o contato
com experiências singulares e intensas, do ponto de vista subjetivo, permitindo
o enfrentamento de medos e a vivência de intensas emoções e de experiências
de superação potencialmente importantes para o autoconhecimento.
Segundo a perspectiva socioantropológica mencionada, os momentos e
experiências de excitação e prazer se tornaram raros dentro dos processos civi-
lizatórios vividos nas sociedades ocidentais, devido ao alto grau de controle e
racionalidade que permeiam os comportamentos sociais (LE BRETON, 2009;
ELIAS; DUNNING, 1992; NEPOMUCENO, 2018). Nesse contexto, enten-
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demos que o surfe, assim como outras modalidades de esporte e de lazer,


possibilitam o acesso a raros momentos em que a vivência de emoções intensas
e experiências de transcendência tornam-se possíveis. Sobretudo pelas vivên-
cias de enfrentamento e superação de riscos, o(a) surfista aprende a lidar com
tais emoções intensas e medos, aprende a enfrentar condições ameaçadoras e,
com esforço e dedicação, tem oportunidades de acessar experiência sublimes
de superação de condições adversas e incertas. O aprendizado relacionado à
prática, assim situa-se numa busca por equilíbrio que remete à dinâmica emo-
cional relacionada à prática. Os efeitos percebidos da experiência de surfar,
entendidos como benefícios psicológicos adquiridos com a prática podem ser
sintetizados em termos como “calma” e a “tranquilidade” para agir:

Um aspecto em relação ao psicológico, é que eu consegui ficar um pouco


mais calmo. Porque tem muitos momentos de risco. E você tem que ficar
calmo senão você acaba se dando mal dentro do mar. Então, eu acho que
esse aspecto da calma foi o que o surfe me trouxe (Entrevistado 17).

Destacamos nesse contexto temático, a possibilidade de um fortaleci-


mento de habilidades de presença dos(as) praticantes, o que implicaria na
intensificação de relações materiais com o mundo (GUMBRECHT, 2010;
2015). O surfe, nesse ínterim, pode ser compreendido como uma prática que
potencialmente melhora habilidades psicológicas atencionais de concentração,
constituindo-se como uma prática promotora da saúde mental, pelos efeitos
terapêuticos relacionados e pelas habilidades psicológicas exigidas e desen-
volvidas ao surfar. Como destaca um dos surfistas amadores entrevistados:
“Hoje a prática do surfe é um momento de desligar do mundo e se concentrar
apenas nas ondas, um momento de relaxar e esquecer tudo e se concentrar só
150

na prática da atividade” (Entrevistado 3). Aventando sobre as possibilidades


de interpretar o significado do surfe no mundo contemporâneo, podemos
considerar sua prática como uma forma de se desapegar das obrigações e
preocupações rotineiras e encontrar uma saída ou um escape frente às pres-
sões sociais relacionadas às identidades assumidas. Talvez, nessa perspectiva,
estejamos falando de um exercício lúdico e controlado de desaparecimento de
si, como um comportamento social presente na cultura contemporânea. Como
destaca Le Breton (2018, p. 77):” algumas atividades de alta concentração
são para seus adeptos uma fonte de dissolução de si, uma clivagem que lhes
permite abandonar qualquer outro engajamento”.
Essa busca por uma fuga da rotina, essa vontade de “esquecer os pro-
blemas” e apenas se conectar com o mar e surfar aparece como uma subcate-
goria relevante dentro dos discursos produzidos em nossas entrevistas. Aqui
a referência à concentração é recorrente e pode ser ilustrada por outro relato:

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“Psicologicamente eu me desligo dos problemas, esqueço, procuro focar ali só
na prancha, no mar, no meu corpo. Saber só direcionar a minha atenção para
aquele momento” (Entrevistado 18). Desse modo, através desse esforço cons-
tante em se concentrar no surfe e se equilibrar nessa dinâmica relacional com
as ondas, entendemos que o(a) surfista acaba por desenvolver um conjunto de
habilidades psicológicas de controle emocional e atencional que podem estar
associadas a essa busca por tranquilidade e calma que subjaz o desafio de surfar.

Enquanto você está surfando (pegando onda), se você está esperando a


onda no outside parado (local após a arrebentação das ondas), você tem
que prestar atenção na onda que vai entrar, na onda que vai tomar na
cabeça, na onda mais forte. Principalmente quando o mar está grande
essa atenção é redobrada. Então, é um esporte que você tem que estar
totalmente atento e prestando atenção no ali e no agora. Então, eu acho
que você precisa saber deixar os problemas de lado, as preocupações de
lado no momento que você entra na água. Por isso eu acho que o surfe é
um esporte que faz bem para sua cabeça. E é isso, você tem que ter essa
atenção total (Entrevistada 21).

Como já dito, os usos do surfe como uma forma de buscar tranquilidade


e equilíbrio foram recorrentes nos discursos produzidos na pesquisa. Alguns
relatos eram mais diretos e abertos como o dessa surfista amadora: “Tive
várias experiências ruins com tristeza, ansiedade, problemas familiares e o
mar me trouxe calma em todas essas fases ruins” (Entrevistada 35). E desse
surfista profissional: “Então, eu nunca me descontrolei na minha vida, de ser
um cara acelerado, porque o surfe me dá essa paz” (Entrevistado 2). Esse
controle e equilíbrio emocional relacionados à modalidade também foi objeto
de outras pesquisas. Pittsinger, Kress e Crussemeye (2017), por exemplo,
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 151

verificaram aumento significativo do afeto positivo relacionado à atividade


física e de percepções de tranquilidade após apenas uma sessão de prática do
surfe. Caddick e Smith (2017) estudando os efeitos terapêuticos de sessões de
surfe em ex-combatentes de guerra com Transtorno de Estresse Pós-Traumá-
tico (TEPT) e ou depressão, verificaram diminuição de sintomas e aumento
de sensações de bem-estar e de liberdade. Em uma recente revisão, Matias
e colaboradores (2019), identificaram trabalhos científicos que consideram
a existência de indicadores terapêuticos associados ao surfe, potencialmente
capazes de serem utilizados como estratégia de cuidado em populações clí-
nicas específicas, como nos casos de TEPT, Transtorno do Espectro Autista
(TEA), transtornos de ansiedade e de depressão.
A prática regular do surfe, como analisada em nossas entrevistas, pode
ser concebida como uma busca constante pelos efeitos terapêuticos e de bem-
-estar psicológicos relacionados à prática. Os efeitos terapêuticos em termos
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de saúde mental destacam-se nessa modalidade. Não é à toa que a modalidade


tem sido objeto de pesquisas que avaliam sua potencialidade terapêutica em
populações clínicas (CADDICK; SMITH, 2017; CADDICK; SMITH; PHOE-
NIX, 2015; GODFREY; DEVINE-WRIGHT; TAYLOR, 2015) e populações
não clínicas (THORPE, 2015; ROY, 2014; BEAUMONT; BROWN, 2015).
Cabe, aqui, em nosso caso, aprofundarmo-nos na compreensão dos sentidos
e significados atribuídos a essa prática, contribuindo para elucidar a relação
entre surfe e saúde mental de surfistas de várias idades e níveis de proficiên-
cia. Nesse contexto, destacamos que a prática recorrente do surfe pode ser
compreendida um exercício incessante de busca por equilíbrio e tranquilidade.
Como destacado na frase de uma das entrevistadas:

Eu vejo a funcionalidade do surfe nesse equilíbrio entre a nossa situação


física – o nosso corpo, o nosso funcionamento do corpo, esse dinamismo
físico que a gente trabalha no surfe – e uma organização mental. Então,
o surfe acaba fazendo essa ligação entre o físico e a mente. Porque, para
mim, organizar-me mentalmente é desenvolver algumas habilidades como o
enfrentamento de medos, é você colocar o foco, compreender sua capacidade
de realizar coisas dentro da água. E essas conquistas que você tem na água,
você pode transpor isso para o cotidiano. E no cotidiano, você também con-
segue ter, a partir dessa conquista dentro da d’água, esse entendimento que
você está bem fisicamente, organizado psiquicamente. [...] É um transporte,
essa relação que eu vejo do surfe com a saúde, de a gente conseguir ter essa
interação entre a conquista física e a organização psíquica (Entrevistada, 30).

Os benefícios do surfe para a saúde mental se expressam de várias for-


mas no corpo e na vida dos(as) surfistas, revelando-se como uma prática
corporal e esportiva de grande relevância sociocultural. Jorge Bento (2013)
152

é um autor que nos auxilia na compreensão sobre a mediação que o esporte


pode realizar no que tange ao desenvolvimento humano e sociocultural rela-
cionado à questão da saúde e do estilo de vida. Ele destaca que a construção
de culturas desportivo-motoras influenciadas pelo imperativo de um culto
positivo ao corpo podem contribuir para melhoria da qualidade de vida. Nessa
perspectiva, analisamos que o surfe apresentou-se como um caminho longo e
prazeroso de desenvolvimento e fortalecimento da saúde dos(as) praticantes
da pesquisa. Assim, a modalidade apresenta-se como um exemplo de positive
addiction ou vício positivo (GLASSER, 1977), onde uma prática corporal ou
exercício é realizado de forma quase compulsiva e apaixonada e contribui
para ajudar os praticantes a se desenvolverem mais fortes e saudáveis. Em
sintonia com a ideia de um vício positivo por surfar, analisamos que, nas
experiências dos(as) entrevistados(as), os benefícios percebidos da prática
do surfe para a mudança e consolidação de estilos de vida são notáveis. A

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modalidade é percebida como uma prática que fortalece a saúde através de
uma intensificação positiva da qualidade de vida.

Considerações finais

A relação entre prática de surfe e benefícios para a saúde foi percebida


por todos(as) os(as) entrevistados(as). Nesse ínterim, foram destacadas a rela-
ção entre a prática do surfe e a mudança de comportamentos, muitas vezes,
associada ao tratamento de doenças e enfrentamento de problemas de saúde.
Tal relação pôde ser identificada tanto no plano da saúde em sua dimensão
física, quanto na dimensão psicológica ou mental. Algumas referências foram
feitas a experiências de espiritualidade relacionadas ao surfe. A percepção dos
benefícios da prática da modalidade para a saúde de surfistas foi permeada
pela referência à relação com a natureza e a experiências de superação e de
autoconhecimento. Os benefícios do surfe para a saúde foram analisados em
duas dimensões sobretudo: os efeitos do surfe e os requisitos de preparação
exigidos para a melhora e manutenção da performance. Desse modo, pôde-
-se perceber que a modalidade exige um conjunto de práticas de cuidado em
saúde para que o(a) surfista mantenha-se praticando a modalidade e a própria
prática do surfar constitui-se como uma forma de cuidado.
O estilo de vida ligado ao surfe é enaltecido pelos(as) praticantes da pesquisa
como marcado pela convivência/sociabilidade nas praias, por experiências de
felicidade ensejadas em cenários regados pela aventura e conexão com a natureza,
implicando no treino de sensibilidades e de habilidades de resolução de problemas.
Foi comum a relação entre o surfe e o sentimento de alegria e de tranquilidade.
Tais sentimentos quando associados ao estilo de vida do surfista, possibilitam-nos
endossar a interpretação de sua importância para a saúde mental dos praticantes.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 153

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CAPÍTULO 9
EFEITOS TERAPÊUTICOS DO
SURFE NA SAÚDE MENTAL
Erick Francisco Quintas Conde
Raquel Nogueira da Cruz

Introdução

Evidências cumulativas vêm comprovando a existência de diferentes


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benefícios da prática contínua de atividades físicas para a promoção da saúde


física e mental. Sendo tais práticas consideradas excelentes estratégias para
melhoria de quadros clínicos, habilidades cognitivas, estados emocionais e
indicadores de saúde em geral (LANG et al., 2010; CEVADA et al., 2012;
MOUNTJOY et al., 2013).
Especificamente na esfera psicológica, sabe-se que além de estimular o
desenvolvimento cognitivo e propiciar uma melhor regulação emocional, o
exercício físico pode também atuar como fator protetor de déficits cognitivos
decorrentes do envelhecimento, bem como atenuar sintomas de diferentes
transtornos mentais (LANG et al., 2010; CEVADA et al., 2012). Segundo a
literatura científica, há muitas evidências que sustentam a correlação entre as
práticas regulares de atividade física, à redução dos sintomas de ansiedade,
estresse e depressão, por exemplo (SALMON, 2001; STRÖHLE, 2009).
Popularmente entre praticantes, o surfe é considerado uma forma de terapia,
sendo muito utilizado como estratégia para lidar ou superar adversidades emo-
cionais, minimizar efeitos do estresse laboral e como possibilidade de integrar
funções motoras e psíquicas (MATIAS, 2019). Em uma recente revisão, Matias
e colaboradores (2019), identificaram que alguns trabalhos científicos já estu-
daram indicadores terapêuticos associados ao surfe, supostamente capazes de
auxiliar na melhoria da qualidade de vida e ajudar na promoção da saúde mental
em quadros clínicos específicos, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumá-
tico (TEPT), Transtorno do Espectro Autista (TEA), quadros de ansiedade e
depressão e também como elemento de suporte e desenvolvimento pessoal.
Em uma revisão específica sobre o potencial terapêutico do surfe, Ben-
ninger e colaboradores (2020), ressaltaram que o termo Surfe terapia passou
a ser oficialmente utilizado pela International Surfe Therapy Organization
(ISTO) para caracterizar um método de intervenção que combina a instrução
para o desenvolvimento no surfe com atividades estruturadas para promoção
158

de bem-estar psicológico, psicossocial, de saúde física e mental. Nesta revisão,


os pesquisadores ressaltaram que os primeiros programas terapêuticos tendo
o surfe como intervenção principal surgiram na década de 1990 e que, desde
então, foi observado um crescimento para mais de 50 programas de surfe terapia
espalhados pelo mundo, em 2020. Tais programas tem sido destinados ao aten-
dimento de uma população bem diversificada, sejam jovens com deficiência,
pessoas com transtornos psicológicos, TEA e veteranos de guerra com TEPT.
Em termos de publicação científicas, o referido levantamento indicou que o pri-
meiro estudo que reportou propriedades terapêuticas do surfe, só foi publicado
em revista científica com revisão por pares no ano de 2010 (MORGAN, 2010)
e que apenas recentemente foram publicados alguns poucos ensaios de controle
randomizados (WALTTERS et al., 2019a, 2019b). Para os autores, existe ainda
uma escassez de pesquisas sobre as práticas baseadas em evidências em surfe
terapia que apóiem o impacto global das intervenções existentes.

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Marshall e colaboradores (2019) avaliaram indicadores psicológicos em
jovens participantes do “Wave Project”, que é um projeto realizado na África
do Sul com a proposta de promover saúde e bem-estar através da prática do
surfe, que atua como elemento de transformação psicossocial. Os pesquisa-
dores indicaram que a aprendizagem e o desenvolvimento no surfe podem
ampliar indicadores de autonomia, confiança, bem-estar e de resiliência, além
de melhorar os laços sociais entre praticantes.
Devine e Taylor (2015) também avaliaram indicadores psicológicos em
jovens encaminhados aos projetos psicossociais com queixas de exclusão
social ou relacionadas à saúde mental. Os pesquisadores utilizaram a Escala
de Bem-Estar de Crianças de Stirling (SCWBS) e o relato dos pais e/ou
responsáveis como fontes de informações principais. Em seus resultados,
verificaram que a inserção no projeto promoveu mudanças positivas para a
grande maioria da amostra, tendo sido reveladas diferenças estatisticamente
significativas na pontuação da Escala de Bem-Estar após participação no pro-
grama de atividades de surfe. Os autores concluíram que o impacto do projeto
foi extremante positivo para a vida pessoal e familiar de seus participantes.
Marshall e colaboradores (2020) propuseram um modelo teórico para
explicar a amplitude dos efeitos terapêuticos promovidas por um programa de
surfe terapia da Fudação Memorial Jimmy Miller, através de uma perspectiva
amparada em componentes psicossociais e comportamentais. Os autores suge-
riram que a possibilidade de aprender novas habilidades através do surfe, com
respeito ao próprio ritmo e sem julgamentos, aliada à inserção em um grupo
social de apoio mútuo, são importantes agentes terapêuticos nos referidos
programas. Os autores ressaltaram que os processos psicossociais estimulados
pelo surfe seriam eliciadores dos efeitos terapêuticos, possibilitando a des-
conexão com fontes de estresse e reconexão com a natureza e com círculos
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 159

sociais, com diminuição do isolamento, sensações de bem-estar e redução dos


sintomas em diferentes quadros clínicos (MARSHALL et al., 2020).
Muito embora a proposta teórica de Marshall e colaboradores (2020) seja
uma contribuição importante ao pensamento científico e ao desenvolvimento
de modelos efetivos para esta nova modalidade terapêutica, a complexidade
das questões associadas ao surfe como terapia esbarra em algumas limitações
ainda existentes nas esferas técnica, científica e teórica, como a falta de parâ-
metros comparativos, de estudos com controle randomizado, de normatização
e padronização das orientações de instrutores de surfe; variações metodológi-
cas nas intervenções, na frequência de treinos, no tempo da sessão e duração
do programa de intervenção; da diversidade de instrumentos utilizados para
as medições e de atividades adicionais oferecidas pelos programas, para além
do surfe. Este, que é um aspecto fundamental a ser considerado, dado que
muitos programas de terapia com surfe também usam atividades complemen-
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tares como atendimentos psicológicos, mentoria, programas de desenvol-


vimento de habilidades sociais, yoga, psicoeducação e trabalhos de grupos
para promoção um ambiente social inclusivo e positivo (PONTING, 2020;
INTERNATIONAL SURFE THERAPY ORGANIZATION, 2019). Também
foram verificadas divergências nos critérios utilizados para definir a condição
de vulnerabilidade social (SARKISIAN et al., 2020; DEVINE; WRIGHT;
GODFREY, 2020; GOMES et al., 2020). Essa natureza multifatorial dificulta
o desenvolvimento de um conhecimento mais amplo sobre os mecanismos
de cura inerentes à prática da modalidade.

Emergência de perspectivas integrativas à compreensão


dos mecanismos terapêuticos do surfe

Em complementação às proposições psicossocial, de Marshall e colabora-


dores (2020) e espiritual de Amrhein e colaboradores (2016), convém destacar
que poucos estudos sobre efeitos terapêuticos do surfe tem considerado que
grande parte dos benefícios pode ser atribuída a uma série de modulações
fisiológicas, geralmente estimuladas por atividades físicas diversificadas,
dentre as quais destacam-se: a) o aumento do fluxo sanguíneo cerebral, que
pode ampliar a conectividade neuronal e melhorar o funcionamento cog-
nitivo; b) maior síntese de neurotransmissores monoaminérgicos (como a
serotonina, noradrenalina e dopamina), envolvidos na regulação do humor e
em diversas funções cognitivas, emocionais e comportamentais (MEEUSEN;
MEIRLEIR, 1995; KANDEL; KUPFERMANN; IVERSEN, 2000); c) amplia-
ção da síntese de Iirisina, que é um hormônio sintetizado no tecido muscular
durante a prática de exercícios físicos, que demonstrou características de
neuroproteção (LOURENÇO et al., 2019), implicações na recuperação da
160

funcionalidade sináptica, na manutenção das funções cognitivas (KÜSTER


et al., 2017; LOURENÇO et al., 2019) e de regulação da ansiedade (UYSAL
et al., 2018); d) aumento da síntese de fatores neurotróficos.
Na literatura científica, estímulos com exercícios aeróbios têm sido impli-
cados com regulações monoaminérgicas (LIN; KUO, 2013) e se mostraram
eficientes na diminuição de sintomas de diferentes quadros clínicos, como
depressão, ansiedade e Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT) (MOTTA
et al., 2013). De forma similar, o surfe também estimula o metabolismo aeróbio
(MENDEZ-VILLANUEVA; BISHOP, 2005) e parece ter implicações terapêu-
ticas a diferentes condições clínicas, incluindo o TEPT, tal como reportado por
Caddick et al. (2015); Caddick e Smith (2017); Rogers et al. (2014); Caddick et
al. (2015) e Schvirtz et al. (2018), bem como influencias no declínio do estresse,
da ansiedade e de sintomas depressivos (SCHMID et al., 2019; AMRHEIN et
al., 2016; ROGERS et al., 2014; THORPE, 2015; SCHVIRTZ et al., 2018).

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Mais especificamente, Caddick e colaboradores (2015a; 2015b) veri-
ficaram que, com a inserção no universo do surfe, veteranos de guerra com
sintomas de TEPT reportaram uma ressignificação da vida e dos padrões
estereotipados pela rigidez militar. Mudanças estas, que foram acompanhadas
pela redução dos sintomas do TEPT, como melhorias em indicadores da saúde
física e psicológica. Os participantes indicaram ainda, que o envolvimento com
o surfe propiciou aumento da sensação de bem-estar, associada a diminuição
de dores, de pensamentos ansiogênicos do TEPT e ideações suicidas. Tam-
bém foram verificados indicadores de aumento da felicidade, do sentimento
de liberdade e melhoria na esfera psicossocial. Rogers e coautores (2014),
entrevistaram veteranos da operação Liberdade Duradoura (operação militar
realizada no Iraque) com diagnóstico de TEPT e/ou transtorno depressivo
maior que optaram pela oceanoterapia, um programa terapêutico de surfe e
imersão no oceano. Após 5 sessões (com 4 horas de duração), os participantes
reportaram diminuição nos sintomas de TEPT e de depressão.
Além disso, foram identificados relatos de que a prática desta modali-
dade pode influenciar na regulação de diversos estados emocionais, como no
aumento da felicidade (GOLDFREY et al., 2015, BUSH, 2016), da autocon-
fiança (SCHIMID et al., 2019, MARSHALL et al., 2019; ROGERS et al., 2014;
WIERSMA, 2014), do bem-estar (MARSHALL et al., 2019; WHEATON et
al., 2017; WHEATON, 2019; OLIVE, 2015; BEAUMONT; BROWN, 201,
BRASIL et al., 2016; CADDICK; SMITH, 2017; CADDICK et al., 2015;
SCHVITZ et al., 2018), do afeto positivo, da percepção da tranquilidade (PITT-
SENGER et al., 2017), bem como da ampliação de sentimentos de empodera-
mento. Tais alterações também poderiam ser explicadas pela modulação dos
circuitos monoaminérgicos e de endocanabinóides, considerando os efeitos
psicofisiológicos da atividade física na regulação do humor e de estados emo-
cionais (MEEUSEN; MEIRLEIR, 1995; DESLANDES et al., 2009).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 161

É importante salientar que alguns estudos também apontam a existência


de efeitos positivos do surfe na saúde mental de praticantes que não estão
vinculados a programas terapêuticos ou de desenvolvimento psicossocial.
Pittsinger e colaboradores (2017) realizaram um estudo para verificar o efeito
de 30 minutos da prática do surfe sobre o afeto induzido pelo exercício. Os
participantes preencheram uma Escala de Afetividade da Atividade Física
(Physical Activity Affect Scale, PAAS) antes da prática do surfe e logo após
o treino. Os resultados apontaram que o afeto positivo e as percepções de
tranquilidade aumentaram significativamente após a prática do surfe, enquanto
o afeto negativo e a percepção de fadiga diminuíram significativamente. Tais
evidências corroboram com a premissa de que o surfe também deve ser das
uma modalidades esportivas que possuem propriedades antidepressivas e
ansiolíticas, tal como tem sido proposto para outras atividades e modalidades
(MEEUSEN; MEIRLEIR, 1995; DESLANDES et al., 2009).
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Furley e Dorr (2016) investigaram se capacidades de tomada de decisão


poderiam ser aperfeiçoadas em função da experiência no surfe. Os participan-
tes compuseram quatro grupos considerando a variável “experiência”: grupo
controle (não atletas), principiantes, com pouca experiência e experientes, com
mais de 10 anos de prática. Como resultados principais, os autores aponta-
ram que os surfistas com maior experiência possuem habilidades cognitivo-
-perceptuais mais desenvolvidas e melhor capacidade de distinguir as ondas
surfeáveis das não surfeáveis.
Com base nessas evidências, propomos aqui o termo Teoria Integrativa por-
que, embora não tenham sido encontradas evidências empíricas associando dire-
tamente os efeitos da prática do surfe às referidas modulações psicofisiológicas,
convém considerar que o surfe como prática corporal esportiva estimula o meta-
bolismo aeróbio e anaeróbio (MENDEZ-VILLANUEVA; BISHOP, 2005), apre-
sentando indicadores fisiológicos e com gasto energético equiparáveis a outras
modalidades esportivas, incluindo nado livre (MEIR, LOWDON; DAVIE, 1991).
Outro aspecto importante a ser considerado na dimensão fisiológica é
a possibilidade da prática do surfe também afetar capacidades tróficas do
organismo, ponderando que muitos tipos de exercícios físicos influenciam
a síntese de neurotrofinas, como o Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro
(em inglês, Brain Derived Neurotrophic Factor – BDNF). Essa neurotrofina
assume função importante na aprendizagem e no desenvolvimento cognitivo
através da neurogênese e neuroplasticidade, com funções na preservação da
circuitaria neuronal, na integridade e na reorganização de redes sinápticas
(RUSSO-NEUSTADT; BEARD; COTMAN, 1999; GOMEZ-PINILLA et
al., 2010). Ademais, o BDNF também possui implicações na regulação de
enzimas antioxidantes e na inibição da apoptose, uma espécie de morte celular
autoprogramada pelo organismo (ANDERSEN, 2004). Níveis baixos desta
162

neurotrofina estão diretamente relacionados a quadros de demências, como


Parkinson e Alzheimer, bem como doenças cardiovasculares, diabetes do tipo 2
e obesidade, (KRABBE et al., 2007; NAGAHARA; TUSZYNSKI, 2011).
Dessa forma, por estimular fatores neurotróficos, o exercício físico contribui
para o desenvolvimento de funções e habilidades psicológicas, para a reabi-
litação neuropsicológica e a sobrevida neuronal.
Ainda nessa perspectiva estruturante do exercício físico e de práticas
esportivas, deve-se considerar que o surfe também pode afetar o desenvolvi-
mento biopsicossocial de seus praticantes estimulando capacidades neurotrófi-
cas no organismo. Tal proposta se ampara nos indicadores de que a modalidade
parece estimular a especialização cognitiva de funções requisitadas pela prática
(FURLEY; DORR, 2016), influenciar na estruturação da personalidade e no
desenvolvimento da autonomia e da corporeidade (ROY, 2014; RYNNE, 2016;
SCHIMID et al., 2019; MARSHALL et al., 2019).

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Em 2020, o Global Journal of Community Psychology Practice publicou
uma edição especial sobre os modelos terapêuticos com surfe, na qual, a maio-
ria dos publicados, se dedicou a realizar avaliações sobre efeitos terapêuticos
ao longo de um programa de surfe terapia (WALTER et al., 2020). Os estudos
variaram quanto à população atendida, sendo observados estudos com jovens
em situação de vulnerabilidade, pessoas com depressão, com Eranstorno
do Espectro Autista, com deficiências físicas e/ou TEPT. Os objetivos dos
programas variaram em ênfases para promoção de bem-estar, saúde mental,
desenvolvimento pessoal e de habilidades sociais. Mas em geral, indicaram a
ocorrência de efeitos terapêuticos nos diferentes quadros avaliados. Os estudos
também adotaram diferentes instrumentos de medidas, sempre destinados à
mensurar processos psicológicos e/ou psicossociais (WALTER et al., 2020).
Diante dos aspectos apresentados, o presente capítulo reforça sua pre-
tensão de que a proposta teórica de Marshall et al., (2020) para explicar os
efeitos terapêuticos do surfe seja ampliada, sem desconsiderar a dimensão
espiritual, de Amrhein e colaboradores (2016) a uma proposta teórica que
considere a influência dos mecanismos psicofisiológicos do exercício como
variável subjacente aos efeitos terapêuticos encontrados.
Por fim, a presente proposta também ressalta que, além dos componentes
psicossociais, mecanismos fisiológicos e da dimensão espiritual, uma Teoria Inte-
grativa aos Efeitos Terapêuticos do Surfe deve também considerar que a imersão
em ambientes naturais, por si só, pode ser considerada um elemento terapêutico
(MIYAZAKI; PARK; LEE, 2013). Pesquisas tem indicado que quanto maior for
a imersão das pessoas nos ambientes naturais, maiores são as chances de uma
vida com mais qualidade de vida e saúde mental (LEE, JUYOUNG et al., 2012;
SONG et al., 2013). Como as referidas dimensões estão integradas, ressalta-se
que pesquisadores Japoneses compararam índices psicofisiológicos de pessoas
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 163

que se voluntariaram a observar áreas de florestas e áreas urbanas, tendo sido


observadas reduções significativas na frequência cardíaca e na concentração de
cortisol salivar, bem como aumento predominância parassimpática. No estudo em
questão, foi concluído que a simples observação de áreas naturais pode alterar,
positivamente, estados fisiológicos do indivíduo, melhorando indicadores de
regulação autonômica (LEE, JUYOUNG et al., 2009).
Outra pesquisa realizou um estudo comparativo entre parâmetros psico-
fisiológicos obtidos um ambiente natural, em procedimento conhecido como
banho de floresta, com dados obtidos no meio urbano (LEE, JUYOUNG et
al., 2011). Por indicadores de cortisol salivar, os pesquisadores concluíram que
durante a imersão no ambiente natural houve predominância de componentes
parassimpáticos e diminuição da atividade simpática em comparação com a
imersão em ambiente urbano.
Especificamente falando do ambiente de imersão dos surfistas, o oceano,
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também é possível encontrar evidências de que a imersão humana nesse meio


também é, por si só, capaz de potencializar efeitos terapêuticos (CRAW-
FORD, 2016; ROGERS; MALLINSON; PEPPERS, 2014). Logo, em uma
perspectiva integrativa, propõe-se que a base teórica para explicação dos
efeitos terapêuticos da prática do surfe considere, ao menos, as evidências
inerentes ao surfe e aos componentes já verificados, englobando as dimen-
sões bio-psico-social, natural e espiritual (MARSHALL et al., 2020; CRA-
WFORD, 2016; AMRHEIN et al., 2016).

Considerações finais

Modelos de intervenção terapêutica através da prática do surfe têm sido


utilizados em diferentes partes do mundo, por profissionais de diferentes áreas
da saúde. Assim, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas,
profissionais da psicologia, entre outros, tem complementado intervenções
específicas com a introdução de seus clientes no ambiente surfeístico, tendo
como finalidade a potencialização de efeitos terapêuticos ou a manutenção e
promoção da saúde (BENNINGER et al., 2020). Dentre as aplicações, têm
sido observadas evidências de que modelos terapêuticos baseados no surfe
podem ajudar a diminuir sintomas de depressão, de transtornos de ansiedade,
melhorar quadros de TEA, auxiliar no desenvolvimento pessoal e ajudar pes-
soas em situação de vulnerabilidade, bem como facilitar o desenvolvimento
e adaptação funcional de pessoas com deficiência física e intelectual (MAR-
SHALL et al., 2020; MATIAS et al., 2019).
Contudo, ainda que muitos programas operem com a premissa de que
esses benefícios para a saúde física e psicológica sejam consequências natu-
ralmente esperadas da inserção na modalidade e que praticantes de surfe
164

sejam defensores natos dos efeitos terapêuticos da modalidade, existe um


claro entendimento por parte de pesquisadores e pela própria Organização
Internacional de Surfe Terapia, de que o desenvolvimento de modelos efetivos
depende de estudos mais rigorosos que sejam capazes de explorar as lacunas
existentes (WALTER et al., 2020).
Após análise dos artigos sobre programas de surfe terapia disponíveis
até então, Walter e colaboradores (2020) fizeram uma recomendação para o
desenvolvimento científico dos modelos terapêuticos com surfe pela realização
de estudos mais rigorosos, com controle randomizado, utilizando comparações
entre grupos e controlando mais variáveis como tempo dos programas de inter-
venção, caraterísticas do ambiente, frequência e duração das sessões de surfe.
Mediante estudo dos referidos trabalhos e em função das considerações
realizadas perante à emergência de modelos integrativos aos efeitos terapêuti-
cos do surfe, espera-se, conforme observado, maior aproximação e articulação

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de dados psicológicos, sociais e fisiológicos para uma compreensão mais
ampla e integrada dos relatos à favor de uma condição terapêutica ao surfe.
Adicionalmente, com os avanços no estudo o campo da espiritualidade no
esporte (WATSON; NESTI, 2005; AMRHEIN et al., 2016) e com melhores
compreensões sobre propriedades terapêuticas do ambiente de inserção (CRA-
WFORD, 2016; ROGERS; MALLINSON; PEPPERS, 2014), tais dimen-
sões também devem entrar no bojo teórico que se propõe a oferecer base
que sustente a efetividade dos programas e práticas de surfe na promoção e
manutenção da saúde mental.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 165

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CAPÍTULO 10
A PSICOLOGIA NO SURFE ADAPTADO
Maria Gabriela Carreiro
Marina Penteado Gusson

O surfe como modalidade esportiva estreará nos Jogos Olímpicos de


Tóquio em 2021, mas, na verdade, possui uma relação antiga com o meio
olímpico. Foi através do havaiano Duke Kahanamoku, na edição de 1912,
em Estocolmo, que o surfe se tornou conhecido. Depois de ter ganhado duas
medalhas na natação, todos souberam que era surfando que Duke fazia seus
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treinamentos, disseminando assim a modalidade e introduzindo-a na Amé-


rica e, posteriormente, na Austrália. Garantiu ainda medalhas nas edições
da Antuérpia e Paris, ingressando no Hall da Fama da natação mundial e,
simultaneamente, deixando seu legado no surfe.
Esta modalidade conta com um número crescente de adeptos e se des-
dobrou também em sua versão adaptada, possibilitando a prática por pessoas
com deficiência através da adequação de técnicas e equipamentos. Quando
conduzido por uma equipe multidisciplinar, visa que a significação obtida
através do esporte seja positiva e, desta forma, transportada para o dia a dia,
promovendo bem-estar e transformação pessoal. O contexto do surfe adaptado
promove chances de autossuperação e exploração corporal, sendo uma impor-
tante via de reabilitação se a pensarmos sob a ótica da conquista de qualidade
de vida e crescimento pessoal. Os trabalhos em surfe adaptado têm mostrado
os benefícios conquistados com a prática, apontando a seguinte correlação:
a pessoa que adquire uma deficiência e é inserida em um ambiente para a
prática de um esporte desafiador que requer uma adaptação dinâmica expande
também a habilidade de se adaptar ao cotidiano. Desta forma, o surfe adaptado
auxilia a promoção do indivíduo e a aquisição de benefícios psicossociais.

Um olhar histórico sobre deficiência e


prática da Educação Física

Ao longo da história, a palavra deficiência carrega consigo uma infinidade


de conceitos, termos e significados que, ao invés de elucidar a execução de
ações sociais, polemizam e auxiliam na estagnação de possíveis movimentos
em prol do desenvolvimento das pessoas com deficiência, geralmente, em
decorrência das dúvidas que permeiam esse contexto (GUGEL, 2006).
170

Na busca literária e em reflexões posteriores sobre o termo deficiência


é possível perceber tentativas de melhorar e dignificar esse significado, junto
a propostas de ações que favoreçam o direito das pessoas que compõem este
cenário bastante complexo e escasso de olhar. Entretanto, em nossa diver-
sidade cultural, tendo como base os primeiros relatos e informações sobre
formas de participação social das pessoas com deficiência, são inúmeras as
vezes em que a linha cronológica parece regredir para práticas discriminató-
rias ao invés de evoluir para uma relação de possibilidades (GUGEL, 2006).
Gugel (2006) afirma que o distanciamento das pessoas com deficiência
por parte daquelas consideradas “normais” ocorreu em grande proporção
desde a antiguidade e potencializou a marginalização a partir dos conceitos
de aberração, invalidez, anormalidade e outras referências que denotavam
propensão a considerá-las socialmente dispensáveis.
Com o passar do tempo e após o término das guerras mundiais e do

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Vietnã, grandes mudanças aconteceram. Em função de muitos terem adquirido
a condição de deficiência durante as batalhas, tornou-se premente a neces-
sidade de programas de reabilitação (GUGEL, 2006). De certo modo, as
relações e o contato com essa realidade abriram espaço para decretos, leis e
declarações universais, fazendo emergir a chance de desconstrução de ter-
mos ultrapassados e abrindo, consequentemente, chances de reconstrução e
evolução para um maior acolhimento.
Dentro deste movimento, a atividade física adaptada foi embutida
como forma de ampliação em diversos sentidos, dotando-se não só de
importância terapêutica em reabilitação como também da aquisição de
novas possibilidades de vivências aliadas à superação e rendimento espor-
tivo (GORGATTI; COSTA, 2005).
No Brasil, estima-se que cerca de 46 milhões de pessoas apresentem
algum grau de dificuldade, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) em 2010. Se pensarmos em dez anos de diferença desta
última coleta de dados até a atualidade, é provável que exista um aumento
significativo dos números, o que nos desperta à necessidade de atribuir maior
importância à consideração desta condição. Gugel (2006, p. 21) aponta que,
ainda hoje, “para qualquer estatística que se olhe, percebe-se a ausência da
pessoa com deficiência porque ela não é incluída no universo social-produ-
tivo”. Assim, salta diante dos olhos que a influência de uma historicidade
permeada pela marginalização e discriminação da pessoa com deficiência
persiste até hoje em diferentes prismas, sejam eles discretos ou explícitos.
As políticas públicas necessitam de delineamento para se tornarem menos
nebulosas, visando lidar de forma mais dinâmica com a necessidade das pes-
soas com deficiência, as quais têm por direito a igualdade de condições.
Por uma série de fatores, que incluem baixa renda econômica e dificuldades
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 171

envolvendo o meio educacional, o que ocorre muitas vezes é um atendimento


público inadequado e escasso. Por outro lado, as ações políticas existentes
raramente são percebidas pela população que não vive a realidade desta condi-
ção. Isso revela falta de interesse, o qual se reflete na inacessibilidade daqueles
que literalmente dependem deste caminho para sobreviver (GUGEL, 2006).
A Declaração dos Deficientes Mentais, datada de 1970, foi o primeiro
documento oficial voltado aos direitos das pessoas com deficiência e, de
acordo com Gugel (2006), visava alterar a ótica de exclusão e aproximar
os deficientes mentais dos demais seres humanos. Cinco anos depois, e de
forma mais abrangente, a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de
Deficiências foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU,
Resolução n. 30/84, 1975) e teve como objetivo divulgar diretrizes de pre-
servação dos direitos previstos por ela. Daí em diante, a intenção de fortale-
cer a discussão sobre as pessoas com deficiências e seus direitos levaram a
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manifestações de diferentes ordens, a maioria delas com foco na preocupação


com o direito à educação.
Dentro deste contexto, a Educação Física Adaptada começa a se poten-
cializar a partir da década de 80 e, de acordo com Gorgatti e Costa (2005),
houve uma transformação no olhar da limitação para enfatizar a funcionalidade
numa visão holística que considera três elementos: o déficit, a participação
e atuação no contexto.
De acordo com Duarte e Costa (2006), a Educação Física Adaptada
passou então a considerar esses elementos em seu processo, visando garan-
tir iguais oportunidades de participação ativa e não somente contemplativa
na prática de atividade física em ambientes distintos, dispondo-se a refletir
continuamente sobre formas de minimizar possíveis desvantagens. Nestas
condições, os objetivos se focam no desenvolvimento de habilidades, enco-
rajando a autossuperação e o aprendizado, otimizando o potencial individual.
Esta nova perspectiva impulsionou trabalhos no sentido de conhecer
melhor a área e buscar intervenções mais adequadas para gerar benefícios nos
aspectos físico, psicológico e social para pessoas com deficiências. No entanto,
a realidade nos mostra que é preciso explorar ainda mais o plano de atividade
e esporte adaptado para que possamos concretizar o discurso de garantia de
iguais oportunidades através da ampliação no campo de modalidades, tornan-
do-as menos excludentes. Para Duarte e Costa (apud RODRIGUES, p. 120),

Temos tido a oportunidade de observar que os resultados alcançados na


melhoria e qualidade de vida dessas pessoas ultrapassam os resultados
publicados pelas pesquisas científicas, uma vez que o cotidiano nos opor-
tuniza verificar expressões que, muitas vezes, não são apreendidas pelos
métodos da ciência [...].
172

O fato de a Educação Física apresentar formato pouco inclusivo em


algumas escolas regulares é decorrente do despreparo de alguns educadores
somado à pequena incidência do número de praticantes, estimulando assim a
dispensa da prática para camuflar a própria dificuldade do profissional em lidar
com o aluno com deficiência na sua relação com os demais. Quando este aluno
frequenta a aula, fica muitas vezes limitado a atividades regulares e monóto-
nas. Em contrapartida, a atividade física, quando adaptada e pensada sob o
olhar pedagógico, pode proporcionar contribuição significativa para a cons-
cientização social sobre as possibilidades a serem exploradas pelas pessoas
com deficiência e sua participação ativa no meio (DUARTE; COSTA, 2006).
As modalidades esportivas, quando trabalhadas nas escolas regulares, vol-
tam-se quase sempre para as presentes no meio olímpico e que ocorram indoor,
utilizando quadras ou campos. Neste parâmetro, o esporte adaptado se concen-
tra nas modalidades paralímpicas. Para concretizar os objetivos surgidos nos

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anos 80, de uma participação ativa das pessoas com deficiência nas atividades
físicas, é fundamental pensar também nas vertentes esportivas que ocorrem em
espaços externos, tais como surfe e outras modalidades radicais e de aventura,
considerando os cenários diversificados em que acontecem. Assim, faz-se neces-
sário estender o olhar para práticas que até então eram consideradas inviáveis
para as pessoas com deficiência e adequá-las sob forma de ações inclusivas.
Por isso, este capítulo apresenta a modalidade surfe adaptado (agora tam-
bém nomeada de Parasurfe) não só sob a perspectiva histórica de seu surgimento,
como também da atuação da psicologia do esporte neste cenário. E, ainda,
discorrer sobre os benefícios obtidos através desta modalidade observando a
forma como as experiências se transportaram do esporte para o cotidiano dos
praticantes, auxiliando na melhoria da adaptação frente aos diferentes contextos.

O surfe brasileiro a partir da década de setenta


Para resgatar a história do surfe adaptado faz-se necessário nos orien-
tarmos a partir de aspectos temporais relacionados aos acontecimentos que
marcaram a trajetória do surfe brasileiro nas décadas passadas.
Nos anos 70, as mudanças no surfe brasileiro em virtude da evolução
no número de praticantes foram consequência do surgimento das primeiras
fábricas de blocos de poliuretano para manufatura de pranchas no Brasil,
potencializando o movimento esportivo e cultural que o surfe alimenta até
os dias de hoje. A crescente quantidade de adeptos e a evolução do nível téc-
nico inevitavelmente impulsionaram as primeiras competições e, com isso, a
profissionalização de alguns surfistas, desenvolvendo o interesse empresarial
e da mídia. A necessidade de organizar este esporte emergente provocou o
surgimento das primeiras associações de surfe, que se encarregavam dos
campeonatos e da parte burocrática (DANUCALOV, 2002).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 173

Ao final desta década, o Brasil sofria em função dos resquícios da dita-


dura militar e o surfe evidenciava uma dualidade: profissionalismo e ascensão
esportiva x cultura liberalista. Esta última associou à imagem do praticante
o uso de drogas, liberdade sexual e musicalidade pautada no rockn’roll, pro-
movendo um conceito generalista do surfista como pessoa irresponsável e
despreocupada. Esta ideia persiste na atualidade, mas vem sendo superada
devido às ações positivas e organizadas que buscam difundir o esporte em
seus aspectos benéficos nos parâmetros de saúde e prevenção de doenças
(DANUCALOV, 2002; GUTENBERG, 1989).
Nos anos 80 o surfe nacional sofreu uma grande decadência. De acordo
com Gutenberg (1989, p. 149), “é provável e natural que a mais forte razão
tenha sido a má estruturação do esporte”. Poucas pessoas tinham um interesse
genuíno de organizar o surfe, e a desunião resultou numa mudança significa-
tiva quando as empresas que davam suporte a este contexto mudaram o foco
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para outras dimensões esportivas e segmentos sociais.


Apesar da falta de visibilidade, na época havia dois aspectos em que
o surfe não sofria declínio: a técnica dos surfistas em manobras cada vez
mais elaboradas e a evolução no design das pranchas. Ambos estabeleceram
uma relação fundamental para que o esporte continuasse se desenvolvendo.
Em 1982, um importante evento impulsionou a modalidade: o I Festival Olym-
pikus de Surfe, realizado em Florianópolis por Flavio Boabaid, Arnaldo Spyer
e Roberto Perdigão, três amigos que uniram esforços para nortear o campeo-
nato sob novas perspectivas (GUTENBERG, 1989).
Considerado um sucesso na visão de Gutenberg (1989), o evento ino-
vou em dois aspectos: a premiação bem elaborada e o julgamento feito de
acordo com parâmetros de associações internacionais. Os poucos juízes bra-
sileiros carregavam consigo a preocupação de aprender e disseminar esses
critérios, buscando um julgamento mais justo e menos subjetivo possível,
que considerasse tipo de manobra, potência, controle, linha de onda, veloci-
dade e dificuldade de execução. Esses critérios, apesar de não tão simples de
serem avaliados, davam um parâmetro de observação mais apurado e, de certa
forma, forçavam os atletas a delinearem cada vez mais o surfe que realizavam
(DANUCALOV, 2002).
Este festival foi realizado por três anos consecutivos, abrindo espaço, nos
anos posteriores, para que empresas do ramo (as quais pertenciam a surfistas
que tinham como objetivo viver da modalidade) se tornassem patrocinadores,
confirmando a existência de um interessante movimento de mercado voltado
ao esporte. Com a mídia especializada emergindo novamente após tentativas
frustradas e com eventos de porte sendo produzidos, o mercado de surfwear
ganhou força e, assim, o surfe viveu uma nova explosão de adeptos e mercado
(DANUCALOV, 2002).
174

Um novo marco foi conquistado em 1986, quando o Brasil sediou uma


etapa do circuito mundial em Florianópolis com patrocínio da empresa bra-
sileira de surfewear Hang Loose. Gutenberg (1989, p. 199) afirma que

O Hang Loose Pro Contest significou a volta dos eventos internacionais


para o Brasil. Foi um passo gigantesco para que o esporte se estabilizasse.
Serviu para que os surfistas nacionais conhecessem os novos caminhos
do esporte [...].

Foi também durante este evento que aconteceu uma reunião entre inte-
ressados na fundação de uma instituição responsável por solidificar o esporte.
Assim surgiu a Associação Brasileira de Surfe Profissional (Abrasp), que se
consolidou dois meses mais tarde. De acordo com Gutenberg (1989, p. 197),
“se perdessem o instante, o surfe poderia atrasar, mais uma vez, seu desen-

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volvimento em cinco, talvez dez anos”.
O Hang Loose Pro Contest continuou acontecendo nos anos seguintes
em diferentes localidades. Até que o evento realizado em 1992 na cidade
de Guarujá, litoral paulista, contribuiu para que o surfe adaptado saísse do
anonimato. Foi nesta etapa que aconteceu não só o primeiro contato entre
um surfista adaptado e surfistas profissionais do mundo todo, mas também
a primeira divulgação desta vertente no parâmetro do surfe profissional. Até
então, os atletas e a maioria dos membros da organização nunca tinham pre-
senciado esta forma de surfar15. Antes de detalhar esta passagem, é preciso
resgatar a história do pioneiro dessa modalidade.
O breve relato a seguir é fruto de entrevistas e conversas informais
durante as quais foram revelados os dados mais importantes da história de
vida do criador do surfe adaptado. Algumas das vivências, como o acidente
e a reabilitação, foram descritos porque norteiam o Programa de Surfe Adap-
tado e as ações profissionais desenvolvidas atualmente, cenário apresentado
neste capítulo.

Surfe Adaptado – de Alcino a Pirata


“O impossível está na mente dos acomodados”
(Alcino Neto – Pirata)

O pioneiro do surfe adaptado no Brasil, Alcino José da Silva Neto,


mais conhecido como Pirata, nasceu no Guarujá em 1969 e iniciou a prática
do surfe como meio de lazer aos sete anos de idade. Por volta dos doze,
passou a explorar a face competitiva do esporte em campeonatos regionais

15 Este dado foi obtido através de Alcino José da Silva Neto, surfista presente no evento.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 175

e municipais. Na escola, recebia incentivo do professor de Educação Física,


que permitia a prática do surfe no horário escolar da disciplina em substi-
tuição às aulas convencionais. Órfão de mãe aos três anos de idade, Alcino
costumava passar as festas de fim de ano com a família materna em São
Lourenço, Minas Gerais.
No dia trinta e um de dezembro de 1985, aos dezesseis anos de idade,
sofreu um grave acidente quando a mobilete em que estava colidiu com um
carro que vinha em alta velocidade na contramão. Com três sérias fraturas
expostas na perna esquerda, Alcino foi imediatamente submetido a uma cirur-
gia. Passados cinco dias, com seu estado de saúde começando a se agravar, foi
transferido para São Paulo, onde haveria mais recursos de atendimento. Mais
uma cirurgia foi feita. Desta vez, com objetivo de recuperar a parte vascular
e reconstituir a perna. Os dias se passavam e os resultados, entretanto, não
aconteciam conforme o esperado.
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Com muita dor, agora não mais mascaradas pelo efeito de medicamen-
tos, e frente ao risco de morte que corria, Alcino questionou o médico sobre
suas condições. Apresentando baixo peso e chances remotas de recuperação,
Alcino recusou a proposta de uma nova cirurgia, e, percebendo que seria o
único meio de cessar as dores e melhorar seu estado físico, levantou a possi-
bilidade de amputação.
Depois de assinar o termo de consentimento, passou pela cirurgia de
amputação, que ocorreu de forma tensa devido a uma parada cardiorrespirató-
ria. Na recuperação, Alcino sentiu-se aliviado ao perceber que a dor infecciosa
havia dado espaço à passageira dor pós-cirúrgica, mas viveu simultaneamente
a insegurança de enfrentar o mundo que o aguardava fora do hospital. De
volta ao Guarujá um mês após o acidente, tinha a necessidade de reestruturar
a vida adaptando-se às novas condições.
A primeira grande dificuldade foi em relação à locomoção. As ruas, assim
como a praia e outros trajetos que faziam parte do cotidiano de Alcino, não
eram acessíveis ao deslocamento em cadeira de rodas. Nesta fase, ele pouco
saía às ruas devido aos obstáculos e resolveu voltar para Minas Gerais, onde
teria auxílio de familiares e outros recursos para se preparar melhor e tomar
novamente liderança de sua vida.
Em sua avaliação, esta foi uma decisão benéfica, pois, distante do Gua-
rujá, conseguiu focar integralmente em sua reabilitação, dedicando-se à apren-
dizagem do deslocamento com muletas e à fisioterapia, que se concentrou na
preparação do coto para receber futuramente uma prótese. Havia tido contato
com algumas pessoas que as utilizavam e isso o despertou para que refizesse
seu condicionamento físico. Considera, contudo, que durante esse período seu
principal meio de reabilitação foi o cavalo que ganhou de seu avô. Além de
176

poder ir e vir de onde quisesse, o exercício auxiliou na reestruturação de sua


estabilidade e equilíbrio. Ele não sabia, mas estava fazendo uso da equoterapia.
Para retomar o contato com a água, ambiente que sempre esteve presente
em sua vida, começou a frequentar a piscina de um clube cuja estrutura pro-
porcionava seu acesso para a prática de natação. Fazer aulas não era planeja-
mento de Alcino, pois sabia nadar, mas a proposta surgiu quando passava o
dia com amigos na piscina e o professor do clube, vendo seu deslocamento
na água, convidou-o para participar de um treinamento. Haviam-se passado
seis meses do acidente e os treinos de natação aconteciam sem a necessidade
de direcionamentos muito específicos, já que Alcino agregava experiência do
surfe e afinidade com a água.
Fundamentalmente, o incentivo dado pelo educador físico que minis-
trava as aulas teve papel essencial nesta fase. O professor estimulou Alcino
a participar do grupo de competições, despertando a vontade de competir

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borboleta e costas, estilos que nunca havia treinado. A possibilidade de rea-
lizar a saída de dentro d’água era considerada uma facilidade e, para sua
surpresa, houve provas em que ganhava de pessoas sem deficiência. Desta
forma, ganhar e perder proporcionava um preparo para que ele pudesse
enfrentar obstáculos maiores em sua vida cotidiana. Estas competições auxi-
liavam a significação de sua deficiência. Por conta dos resultados, passou a
encará-la como um aspecto que não o limitava em suas realizações, o que
gerava maior dinamicidade em adaptar-se às condições. Assim, começou a
perceber que pessoas com e sem deficiência podiam ter as mesmas chances
tanto na piscina como em aspectos do dia a dia.
Foi assim que, em 1987, voltou ao Guarujá com a ideia de retornar ao
esporte com o qual mais tinha identificação: o surfe. Certa manhã na praia,
pegou a prancha emprestada de um amigo e foi para o mar. Naquele momento
ainda não imaginava como faria para se posicionar. Quando tinha as duas
pernas, colocava a esquerda atrás e a direita na frente. E quando arriscou
deslizar em uma espuma viu seu estilo surgir instintivamente. Com a falta
da perna esquerda, manteve como base (atrás) a perna direita, utilizou a mão
direita no espaço onde estaria a perna da frente e a mão esquerda segurou a
borda. Os amigos na beira da praia se entusiasmaram com o feito. Foi deles
que, observando dia a dia o novo estilo de surfe e de vida de Alcino, surgiu
um novo apelido: Pirata. E foi deste apelido que se originou uma nova iden-
tidade, sob a qual é conhecido mundialmente.
A partir daí, Pirata passou a praticar o surfe adaptado em busca de deli-
near sua técnica e refinar a qualidade do surfe para que pudesse pegar ondas
mais perigosas. Em 1988 passou a ser patrocinado pela marca de surfwear de
um amigo. E foi isso que, junto a outros esforços, contribuiu para a ascensão
de Pirata no esporte. Já não tinha pai e o avô não concordava com esse estilo
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 177

de vida, o que intensificou a busca de oportunidades para que pudesse viver


do surfe. Ao esporte, que carregava resquícios da marginalização, agora se
unia mais uma condição de dificuldade: a marginalização da deficiência.
Estes dois preconceitos resultavam em um olhar ainda mais distante por
parte de algumas pessoas, e isso movia Pirata de forma ainda mais intensa
para a missão de difundir a nova vertente do surfe.

Esforços pela difusão da modalidade

A etapa do circuito mundial de surfe Hang Loose Pro Contest, realizada


no Guarujá em 1992, proporcionou à Pirata mostrar como era possível surfar
sendo portador de deficiência. Ele se inscreveu no campeonato para disputar
com atletas do circuito, mas momentos antes de sua bateria aceitou ceder sua
vaga para um atleta que havia perdido a inscrição. Assim, passou a ser conhe-
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cido por atletas do mundo todo, entre os quais circulava na área do evento e
surfava nas horas vagas da competição. Estes atletas deram a ele a visão de
que aquilo que ele realizava era de grande valia para o surfe e para as pessoas
que precisavam de um incentivo de vida. Pirata chamou atenção não só dos
atletas, mas também do patrocinador do evento. Ao final da etapa, tornou-se
o primeiro surfista adaptado profissional com um patrocínio consolidado.
A partir daí começaram as viagens internacionais em busca da técnica em
ondas maiores e de outras pessoas que fizessem o surfe de forma adaptada.
Soube através de uma revista que um sul africano havia perdido a perna em
um ataque de tubarão e continuava surfando. Mas o fato de, por vários anos,
não ter encontrado pessoalmente alguém que praticasse a modalidade inten-
sificou a ideia de divulgar o esporte e aliar-se a uma instituição que pudesse
contribuir nesta difusão.
Em 1997 no primeiro curso de instrutor de surfe no Brasil, Pirata conse-
guiu que as pessoas tomassem conhecimento do surfe adaptado pela primeira
vez. Já tendo uma escola de surfe nesta época, mostrou também que uma
pessoa com deficiência era capaz de dar aulas para outras pessoas, sendo elas
deficientes ou não. Sua certificação como instrutor foi um importante passo
para a inclusão da pessoa com deficiência no surfe, seja como aprendiz ou
como instrutor.
Em 1998, numa viagem de Pirata aos Estados Unidos, houve a primeira
implantação do surfe adaptado numa instituição de surfe, concretizada atra-
vés do reconhecimento oficial pela International Surfing Association – ISA
sobre a existência desta modalidade e de um projeto de surfe adaptado,
chamado Surfing for All. O mesmo movimento aconteceu com a Confe-
deração Brasileira de Surfe, que também reconheceu oficialmente a ver-
tente esportiva. Inicialmente, os trabalhos de divulgação eram feitos com
178

demonstrações de Pirata antes das baterias finais em campeonatos de surfe.


Estandes eram montados no intuito de conscientizar as demais federações
filiadas à ISA para que também promovessem a inclusão e incentivo ao
esporte adaptado. Pouco a pouco, a curiosidade aumentava e pessoas com
deficiência começavam a aparecer durante as demonstrações em busca de
informações sobre o programa.
Em 2004, Pirata se tornou membro diretor da ISA e da Confederação
Brasileira de Surfe na área de Surfe Adaptado e, assim, promoveu um DVD
institucional com distribuição gratuita para mais de quarenta federações de
surfe filiadas a ISA, ou seja, mais de quarenta países. O conteúdo demons-
trava experiências com surfe adaptado em diversos tipos de deficiência, pau-
tadas em respaldo sobre segurança e pranchas adaptadas, difundindo assim a
ideia de que cada federação poderia incentivar o surfe adaptado em seu país
para que, futuramente, acontecessem campeonatos mundiais desta categoria.

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O primeiro Campeonato Mundial de Surfe Adaptado foi realizado
em 2007 na Flórida durante um grande evento esportivo de modalidades radi-
cais para pessoas com deficiência. O campeonato contou com a participação de
dez surfistas de vários países com deficiências distintas e o local escolhido foi
uma piscina de ondas artificiais, onde Pirata se consagrou o primeiro campeão
mundial da modalidade. Em 2008, convidado pela fisiologista do exercício
para auxiliar soldados que desejavam praticar ou aprender o surfe como meio
de reabilitação pós-guerra, fez a primeira inserção do surfe adaptado no centro
de reabilitação do exército americano em San Diego. Em 2009 lançou o DVD
Surfing for All 2, com o mesmo intuito do primeiro, porém mais diversificado
em deficiências atendidas e técnicas demonstradas.
Alcino Pirata continuou se dedicando ao trabalho de difusão da moda-
lidade enquanto a ISA expandia os formatos competitivos, tanto em relação
aos eventos quanto aos critérios de julgamento. Em 2019, grandes mudanças
aconteceram através da própria ISA junto ao Comitê Paralímpico Internacio-
nal. As classificações funcionais foram revistas, categorias foram alteradas
para o total de oito e novas regras foram estabelecidas, tais como dezesseis
vagas por país divididas entre masculino e feminino, e antidoping para os
finalistas. Tudo isso devido ao reconhecimento oficial da modalidade.
Em 2020, o surfe adaptado foi reconhecido também pelo Comitê Olím-
pico Brasileiro e, neste mesmo ano, sob a chancela do Comitê Paralímpico
Internacional, aconteceu o primeiro “Amp Surfe ISA World Para Surfing
Championship”. Neste importante evento, Pirata se consagrou campeão na
categoria Para Surfing Kneel – PS-K, ou seja, surfe de joelhos ou sentado na
prancha, merecidamente consolidando um marco em sua história pessoal e
também em seu trabalho de difusão do surfe adaptado pelo mundo.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 179

Realidade atual do Surfe Adaptado

Apesar de o surfe adaptado estar em progressivo desenvolvimento atra-


vés de pessoas que participam de projetos de incentivo e instituições espor-
tivas, ainda é considerável a pouca importância atribuída pela maioria a esta
modalidade como meio de reabilitação, lazer, profissionalização e/ou vivência
esportiva. Vários fatores agravam essa realidade. Entre eles, a marginaliza-
ção do deficiente dentro da modalidade da qual estamos tratando, e a baixa
credibilidade da possibilidade de auxílio e investimento em esporte radical
capaz de promover inclusão quando pensado sobre o prisma da adequação
de material, técnica e oportunidades adequadas.
Munster e Almeida (2006) explicitam que o necessário para inclusão
não remete exclusivamente à diferenciação de conteúdos, mas de técnicas,
organização e adaptações específicas para que as necessidades dos educandos
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e a participação em programas de atividades motoras sejam asseguradas.


A participação e a acessibilidade das pessoas com deficiência ainda se
contrapõem com o que poderíamos considerar ideal para uma vivência mais
confortável. Profissionalmente, a ampliação do foco de trabalho, do envolvi-
mento e das intervenções torna-se necessária para que sejamos capacitados
para atender adequadamente às pessoas com deficiência em nossa sociedade.

Um diálogo entre adaptações e possibilidades

Quando o nome de uma modalidade esportiva está aliado à palavra adap-


tado, significa que há uma distinção relacionada ao modo como esta prática
acontece, seja em termos de utilização de materiais planejados que acolham a
condição física do praticante, seja na habilidade motora que a pessoa apresenta
ou ainda ambos ocorrendo simultaneamente (PORRETTA, 2004). Duarte e
Santos (2003, p. 93) afirmam que “[...] o conceito de adaptação é extrema-
mente fluido e particular. Um conceito com muitas variáveis, e que usamos
cotidianamente, pois a adaptação é parte rotineira de nossas vidas”.
Nesse sentido, podemos pensar quanto o cotidiano nos leva a criar adap-
tações nas diferentes situações e quanto estamos aptos para isso. Na maioria
das vezes, as adaptações são perceptíveis somente quando uma mudança
brusca acontece em nossas vidas, alterando seu curso e nos tornando mais
conscientes sobre nossa habilidade de adaptar. Duarte e Santos (2003, p. 94)
trazem dois conceitos de capacidade de adaptação: a involuntária ou instintiva
e a adquirida. A adaptação involuntária ou instintiva remete a alterações físicas
e fisiológicas que nos mantêm vivos. Já a adaptação adquirida depende de
nossa inserção no ambiente. Trata-se da adaptação que fazemos nos diferentes
âmbitos da vida, tais como escola, família, esporte, entre outros.
180

As pessoas com deficiência encontram na adaptação um meio funda-


mental para a sensação de bem-estar e conforto no decorrer de suas vidas.
Neste contexto é necessário destacar que a adaptação não remete apenas
aos aspectos físicos e ambientais, mas também ao emocional e às condições
socioeconômicas que ele apresenta unidos à capacidade de resolver problemas,
como afirma Duarte e Santos (2003, p. 94).
Este quadrante direciona o trabalho profissional junto às pessoas com
deficiência e aumenta as chances de resultados satisfatórios. Assim, o esporte
adaptado implica utilizar a criatividade para aderir condições adaptáveis, sem-
pre que possível buscando prevalecer autonomia e independência daquele que
pratica. Para isso é preciso considerar, como ressalta Duarte e Santos (2003,
p. 94), que “a adaptação faz-se em dupla via em nosso meio, visto que não
existe para o portador de necessidades especiais adaptação unilateral. Ela tem

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que ocorrer do portador para com seu meio e vice-versa”.
Neste movimento bilateral, o esporte adaptado e a atividade física adap-
tada são grandes áreas para o exercício prático deste conceito. Na proposta
citada por Winnick (2004, p. 6), “esporte adaptado designa o esporte modi-
ficado ou criado para suprir as necessidades especiais dos portadores de
deficiência” e

A atividade esportiva adaptada também pode ser realizada com o propó-


sito de lazer ou recreação, dentro de programas formais, abertos ou não
estruturados, ou ainda como parte do estilo de vida de pessoas ou grupos.
Esta atividade também pode ser realizada para o bem-estar ou para fins
médicos e terapêuticos.

Considerando que surfe é “andar sobre a face das ondas em direção


à praia, especialmente se for sobre uma prancha”, como cita Gutenberg
(1989, p. 13), podemos avaliar que se trata de uma modalidade quase sem-
pre praticada de forma individual, na qual o surfista desenvolve cada vez
mais afinidade com o ambiente, usufruindo-o como meio de elaborar sua
prática e ampliar sua autonomia em relação ao mar e a si mesmo através
de autoconfiança, realização e ampliação de desempenho gradual. O surfe
adaptado busca também abarcar esta proposta, incluindo de modo simultâneo
o conceito de movimento bilateral que ocorre dos profissionais para a pessoa
com deficiência e vice-versa.
Surfe adaptado é o deslize nas ondas de acordo com a condição do
praticante para que ele possa desfrutar e desenvolver a capacidade de autos-
superação de forma prazerosa e segura, trabalhando simultaneamente a
capacidade funcional, a consciência sobre o corpo e o desenvolvimento de
habilidades psicológicas como motivação, comunicação e autoconfiança.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 181

Esta modalidade atende diversos tipos de deficiência, visto que possibilita


o desenvolvimento de respaldos técnicos de acordo com a necessidade de
cada pessoa. Ou seja, considerar a condição física apresentada e sua forma
de adaptar-se no ambiente torna a prática direcionada e proporciona segu-
rança e diversão.
O surfe adaptado conta necessariamente com o envolvimento de equipes
multidisciplinares/multiprofissionais para que a atividade seja pensada dentro
de um plano pedagógico que englobe intervenções específicas e meios de
adaptação que podem variar visando o sucesso da experiência.
Na prática, é possível perceber que o surfe adaptado pode promover um
envolvimento entre participantes e profissionais num cenário motivador, onde
valores e relações interpessoais são aspectos constantemente trabalhados. A
modalidade carrega consigo diferenças em torno do modo como acontece:
tudo depende do histórico e do grau da deficiência, e de como a pessoa encara
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esta condição em relação ao seu dia a dia. A condição psicológica apresen-


tada antes da prática é um indicador extremamente importante que deve ser
considerado pelos profissionais para que possam integrar de forma adequada
o objetivo da prática e os apoios que serão necessários dentro e fora d’água.
Neste sentido, Gorgatti e Costa (2005) afirmam que é fundamental considerar
a individualidade de cada participante.
A motivação para a prática é fator relevante porque explicita como cada
praticante está significando aquele momento de atividade. Há quem busque
o surfe adaptado como meio para reabilitação, outros que buscam diversão e
lazer e ainda os que pretendem buscar o rendimento. Por conta disso, é preciso
clareza dos objetivos tanto por parte dos profissionais envolvidos quanto por
parte do praticante.
A psicologia do esporte busca sustentar este momento auxiliando a pes-
soa com deficiência a esclarecer o que ela está buscando nesta atividade e
como esta significação irá se transportar para sua vida cotidiana. O que se
espera após cada experiência de surfe adaptado é que a pessoa leve para sua
rotina mais autoconfiança, independência e controle sobre as situações, pois
o surfe é uma ferramenta que pode propiciar tais sensações. Uma pessoa com
deficiência severa dos membros, por exemplo, consegue, através do surfe
adaptado, sentir-se independente e ativa por estar em movimento, mesmo não
realizando ou realizando poucas ações com o corpo. O deslize proporcionado
pela força da onda complementa a falta de mobilidade do corpo, e esta união
traz resultados bastante interessantes, podendo resultar numa significação
positiva para a vida das pessoas com deficiência. É uma chance de pensar em
movimento quando há falta dele.
Vale salientar que as intervenções realizadas em surfe adaptado através
da psicologia do esporte não ocorrem apenas nos limites da areia: algumas
182

vezes há necessidade de estar na água junto ao praticante, principalmente


durante as experiências iniciais. A figura do psicólogo neste momento pode
ter grande representação de confiança, o que facilita a promoção da sensação
de segurança no ambiente marítimo, onde geralmente há baixa frequência ou
pouco conhecimento da pessoa com deficiência.
Exercícios na água proporcionam explorar as dimensões corporais, e
ampliar esta percepção otimiza a adaptação motora no ambiente (CAM-
PION, 2000) durante o surfe adaptado. Por ser mais densa, a água do mar
facilita o nado, enquanto as correntezas auxiliam o deslocamento dos mem-
bros e a busca por equilíbrio para se manter sobre a prancha traz aumento
da consciência corporal e estimula a interação com o meio. De acordo com
Steinman (2003), surfar potencializa melhorias na amplitude de movimento,
na coordenação, na sensação de bem-estar psicológico e na participação social.
Além destas características, o autor afirma que

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Aliada ao prazer de estar em contato com as forças da natureza, a prática do
surfe estimula a produção de endorfinas, entre outras substâncias químicas
cerebrais que aliviam o estresse e propiciam, além de uma sensação de
bem estar, uma mudança favorável no estado de humor.

Campion (2000, p. 28), referindo-se aos exercícios realizados na água,


afirma que

Sair de sua cadeira de rodas, abandonar as muletas e andadores e encontrar


a liberdade de movimentos e a independência proporcionam o bem estar
físico e psicológico que não podem ser atingidos na mesma extensão ou
em qualquer atividade.

A união das características positivas relacionadas aos exercícios aquá-


ticos e à prática do surfe sugere que o surfe adaptado é uma via de aquisição
de benefícios tanto do âmbito físico como psicológico. Lepore (2004) afirma
que os benefícios físicos e psicossociais dos esportes aquáticos são mais
nítidos e importantes às pessoas com deficiência do que às sem deficiência.
As observações acerca dos resultados obtidos pelo praticante algumas vezes
estão aliadas aos resultados proporcionados por outras atividades físicas e/ou
procedimentos terapêuticos também realizados pela pessoa. Neste sentido,
o surfe adaptado soma com vertentes de terapia e pode sinalizar aspectos
a serem trabalhados por elas. Existem casos em que os resultados derivam
somente da prática do surfe adaptado e, por apontarem melhoria na condição
de bem-estar do praticante, são importantes para podermos apreciar a modali-
dade como fonte interventiva e instrumento para reabilitação, se esta for con-
siderada sob a ótica da conquista de qualidade de vida e crescimento pessoal.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 183

Pode-se observar durante a atuação profissional que o cenário do surfe


adaptado traz demandas diversificadas. Algumas delas são comuns e podem
ser citadas frente a casos verificados, como o medo de sofrer nova lesão (prin-
cipalmente por parte dos cadeirantes) ou ferir o coto (no caso de amputados).
A atuação psicológica, quando emerge algum destes aspectos, consiste em
prestar esclarecimentos para que as dúvidas sejam sanadas. Estes esclareci-
mentos somam explicações verbais ao contato com o material utilizado para
que o praticante conheça o equipamento e adquira confiança em realizar a
vivência esportiva.
Em relação às lesões, um estudo realizado aponta que o surfe conven-
cional apresenta baixo índice de lesão quando comparado a outros esportes,
como afirma Steinman (2003, p. 42). Em suas pesquisas, ele constatou que “a
incidência de lesões que resultaram na impossibilidade do praticante surfar
por um ou mais dias ou que requereram atenção médica foi de 2,5 para cada
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mil dias de surfe”.


Com referência aos cadeirantes na prática adaptada, vale ressaltar que
a prancha utilizada é bastante estável, tendo revestimento confortável, não
cortante, com boa margem de segurança. Além disso, adereços podem ser pro-
duzidos sob medida para acolher uma deformidade física ou fornecer melhor
posicionamento, otimizando a respiração. Considerando que o praticante
situa-se na beira d’água e recebe apoio de várias pessoas para o surfe, pode-
mos sugerir que os riscos de lesão durante a prática do surfe adaptado são
remotos. O planejamento da prática deve priorizar acima de tudo a segurança,
que engloba escolha de equipamento unido à técnica apropriada ao indivíduo,
respeitando primordialmente sua condição física.
O surfe adaptado para cadeirantes também envolve alguns momentos
singulares, como a transferência da cadeira de rodas para a prancha. A par-
ticularidade sobre a forma de encarar este momento deve ser considerada
pelos profissionais envolvidos. Algumas pessoas sentem-se inseguras em sair
da posição de costume para deitar sobre a prancha na água, enquanto outras
ficam mais à vontade para isso. Nas experiências obtidas, observa-se que a
presença do psicólogo neste momento tem função de diluir possíveis tensões
decorrentes desta transferência, certificar sobre o bem-estar no posicionamento
do praticante e incentivá-lo a experienciar aquela nova situação. Os meios de
acessibilidade como rampas, pisos não escorregadios, cadeiras de rodas para
água e chuveiros também são importantes para integrar sensação de conforto
e um clima agradável para a prática.
No surfe adaptado o trabalho do psicólogo se estende também aos fami-
liares ou acompanhantes que assistem à vivência na beira d’água e expressam
as mais variadas reações emocionais. Esta acolhida é importante para que o
184

ambiente permaneça favorável à prática e para que todos possam partilhar


positivamente desta experiência esportiva.
Faz-se necessário difundir o surfe adaptado para a continuidade de inves-
tigações sobre pontos positivos promovidos pela modalidade. A divulgação
desta prática não deve ser direcionada apenas para pessoas com deficiência,
mas também para a sociedade em geral, visando criar oportunidade de integra-
ção social e conscientização sobre a possibilidade de participação esportiva ou
de prática de tempo livre pelas pessoas com deficiência num contexto distinto
e que integra à natureza.

Notas finais sob a ótica profissional em psicologia

Para finalizar, é fundamental destacar algumas considerações. Devido

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à escassez de estudos e pesquisas na área, alguns conteúdos abordados neste
capítulo provêm de informações obtidas dos praticantes e de observações rea-
lizadas durante meu trabalho prático como psicóloga neste campo de atuação
por mais de dez anos. É importante lembrar que nem sempre os benefícios
desta modalidade poderão ser quantificados, mas o impacto que o esporte
adaptado tem sobre a vida social dos praticantes é facilmente percebido, o que
ressalta a necessidade de aprofundar os conhecimentos relacionados à área.
Como psicólogas, consideramos fundamental apontar que uma modali-
dade esportiva facilita o alcance de alguns objetivos, sendo uma via de aqui-
sição para novas condições do indivíduo. É interessante observar a psicologia
atuando num contexto múltiplo que envolve as áreas social, esportiva e a reabi-
litação. Considerá-las como complementares direciona as intervenções e facilita
o desenvolvimento pessoal do praticante numa perspectiva de qualidade de vida.
É importante que o cenário esportivo seja olhado com cautela para que
viabilize trabalhar valores diversificados, explorando-os, modificando-os ou
até mesmo reafirmando-os. No surfe adaptado, a praia por muitas vezes traz
impressão de algo descompromissado, liberto. Por este motivo, deve ser ainda
mais trabalhado para que não seja um local de alienação, mas um ambiente
de participação ativa.
A partir do envolvimento e experiência da primeira autora com a moda-
lidade, percebemos a necessidade constante de tomar distância do processo
num exercício de reflexão que antecede a ação direta posterior. Este exercício
visa fundamentalmente a qualidade das intervenções que exigem competências
como dinamicidade, criatividade e empatia, essenciais para o caminhar do
procedimento. Existe também a necessidade de perceber as emoções conse-
quentes do envolvimento, identificando-as e cuidando para compreendê-las,
evitando assim ser tomado e/ou paralisado por elas. Pensar no papel de agentes
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 185

transformadores da identidade de um indivíduo num plano de alteração de


conceitos, crenças e valores sociais antes cristalizados significa pensar não
apenas no individuo em questão, mas em todos os que o rodeiam numa visão
abrangente de transformação. Desta forma, a transformação não pertence
apenas a uma pessoa: todos se transformam. É por isso que a responsabilidade
do processo envolve a compreensão do papel de cada um.
Deste modo, proporcionar a prática pensada de forma pedagógica e mul-
tidisciplinar, onde cada profissional contribui nos parâmetros de sua área
em um processo pensado de forma global, exige elucidação dos diferentes
papéis. Assim, torna-se possível formar pontes de comunicação essenciais
para concluir com sucesso os objetivos dos praticantes.
O surfe adaptado, frente às diversas qualidades observadas, tem como
desafio constante ser tratado com coerência, seriedade e responsabilidade por
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parte dos que proporcionam esta oportunidade, tais como escolas de surfe,
instituições esportivas ou projetos independentes, assim como pela sociedade
e pelas políticas públicas que olham externamente o processo. Ao psicólogo,
cabe ter a visão macro do processo, avaliando-o constantemente e buscando
mantê-lo em progressão.
Outro ponto importante a ser considerado diante das diversas experiências
nas quais atuamos, é que o surfe adaptado não deve ser pensado de forma
generalizada em termos de técnicas e adaptações, pois cada caso remete a
um procedimento que engloba especificidades que consideram a condição
idiossincrática apresentada por cada indivíduo. Também é relevante destacar
que parte das dificuldades para conseguir incentivos financeiros para projetos
neste sentido acontece em função da vertente não aglutinar grandes números
de participantes simultaneamente devido à tamanha especificidade.
Para finalizar, chamamos atenção ao fato de que todas as modalida-
des oferecidas para as pessoas com deficiência, paralímpicas, radicais ou
de aventura, possuem potencial para importantes mudanças em termos de
transformação pessoal. Sendo assim, de forma alguma devem ser despre-
zadas, merecendo reflexões constantes sobre o modo como estão sendo
ministradas e proporcionadas em prol de sustentarmos a ideia de igualdade
de oportunidades entre todos.
186

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CAPÍTULO 11
SURFE, ESTILO DE VIDA E
DEPRESSÃO: a opinião de Kelly Slater
Tiago Brant de Carvalho Falcão

Enquanto prática, o surfe proporciona um aprendizado intangível através


da interação entre o ser humano e o meio ambiente, principalmente em manhãs
solitárias nas praias mais isoladas que revelam sutilmente suas ondas por trás
da neblina baixa que se ergue à medida em que o sol esquenta a atmosfera.
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Para os surfistas mais obstinados, este é um momento a ser celebrado. Sozinho


neste ambiente, o surfista experimenta a quietude do ser imerso à natureza,
com o silêncio apenas interrompido pelo som das ondas que quebram solitárias
ao aguardo de um surfista madrugador. Nesse sentido, o surfe é praticamente
uma meditação a céu e mar abertos. Durante os anos oitenta, essa era a rotina
dos surfistas em praias pouco frequentadas de Ubatuba: acordar e chegar
à praia ainda no escuro, para assistir ao nascer do sol sentado em cima da
prancha, além da linha de arrebentação.

Cultura Surfe

Uma atitude que espelha, em muito, a postura dos hippies da Califórnia dos
anos 1970. Desde essa época, fruto dos movimentos culturais revolucionários que
tiveram seu apogeu no final dos anos 1960, houve um aumento substancial nos
chamados esportes ligados à natureza, também conhecidos como esportes alter-
nativos (RINEHART; SYDNOR, 2003) ou Lifestyle Sports (WHEATON, 2004).
Neste ambiente, interessa mais o lúdico que o prático e evidente, deixando normas
e regras em segundo plano se comparadas às sensações de risco e prazer.

A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural, no sentido mais


amplo, de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o
lazer e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera
respirada por homens e mulheres urbanos (HOBSBAWM, 1995, p. 323).

O surfe tornou-se um símbolo desta cultura jovem, constantemente lem-


brado por sensações de prazer em meio à natureza, levando muitos a imaginar
um esporte onde o único objetivo é a diversão e comunhão com o cosmos
num ambiente considerado sagrado por seus adeptos como a praia e o mar.
190

O surfe, entre outros esportes, proporciona situações difíceis de encontrar


em esportes tradicionais, com ambientes específicos, delimitados e regula-
mentados para sua prática. Em se tratando de surfe, é preciso estar à vontade
em outra zona de conforto. A zona de impacto, configurada pelo mar e as
ondas que quebram no litoral, delimitando a área de prática. São necessárias
não apenas habilidades relacionadas ao ambiente e ao corpo, como também
à mente. Surfar, como outros esportes ligados à natureza, envolve lidar com
a imprevisibilidade, gerando estresse, mas também proporcionando a recom-
pensa, amplamente desejada, que é uma forte mistura de sensações e expe-
riências maravilhosas (BREIVIK, 2010).
Embora associado à cultura jovem, em termos de história o surfe pode
ser considerado uma prática ancestral, principalmente nas ilhas polinésias
do Oceano Pacífico, conforme relata Drew Kampion em “Stoked! a History
of Surfe Culture” (1997, revisado em 2003), ou na costa norte do Peru, onde

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pescadores da região de Huanchaco enfrentam ondas com seus caballitos
de totora, embarcações tradicionais de palha datadas há mais de 4 mil anos
(WARSHAW, 2010), para trazer o pescado oriundo de longas jornadas de
pescaria. Ao regressarem para a costa, estes pescadores utilizam o impulso
gerado pelas ondulações para retornar à praia montados em seus caballitos
de totora, num gesto muito parecido com o surfe polinésio.
Kampion (2003) defende que o Surfe foi revelado para a civilização oci-
dental em 1778 pelo capitão da Marinha Real Britânica James Cook, quando
sua tripulação atravessava o norte do Oceano Pacífico no caminho de volta
à Europa. A primeira impressão, ao avistar nativos surfando nus em tábuas
de madeira, é descrita por Cook: “era impossível não concluir que aquele
homem sentia o mais supremo prazer enquanto era guiado tão rápido e tão
suavemente pelo mar” (KAMPION, 2003, p. 32). Após o primeiro contato,
os colonizadores seguiram, como na maioria das colônias europeias, um pro-
cesso de exploração e catequização que acabaria por matar estimados 400.000
nativos havaianos, resultando em menos de 40.000 sobreviventes. Kampion
(2003) afirma ainda que os missionários ingleses consideraram o surfe imoral
e, portanto, baniram a prática da cultura havaiana por mais de um século.
Apenas no início do século XX, por meio do nadador e campeão olímpico
Duke Kahanamoku, é que o mundo voltou a ouvir falar do surfe. Medalhista
de ouro nos 100m livre em Estocolmo – 1912 e também na Antuérpia –
1920, Duke participou de três edições Olímpicas e ganhou cinco medalhas:
em Estocolmo – 1912, foi ouro nos 100m livre e prata nos 4x200m livre; na
Antuérpia – 1920, foi ouro nos 100m livre e ouro nos 4x200m livre; em Paris
– 1924, foi prata nos 100m livre. Kahanamoku era um completo watermen e
tinha um carisma poucas vezes reproduzido no esporte. Por conta da fama
oriunda de seu domínio olímpico, Duke se tornou o embaixador mundial
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 191

do surfe, introduzindo a prática que, conforme justificava, era a fonte de sua


performance atlética. Fez demonstrações nos Estados Unidos, em 1912 e
também na Austrália, em 1914, difundindo largamente o surfe nesses lugares.
Não por acaso, estas nações sempre foram as grandes protagonistas
do esporte desde a criação do circuito mundial de surfe, por dois surfistas
havaianos, Randy Harrick e Fred Hammings, em 1976, quando instituíram a
International Professional Surfers, IPS, e também nas décadas seguintes, sob
tutela da Association of Surfing Professionals, ASP, de 1982 a 2014, fundada
pelo australiano Ian Cairns. Nesse período, os australianos conquistaram 20
títulos mundiais, enquanto norte-americanos conseguiram 19, incluindo os
onze títulos mundiais conquistados pelo maior campeão da história, o flo-
ridense Kelly Slater. Em 2014 a ASP foi comprada pela empresa de mídia
ZoSea para transformá-la em World Surfe League, WSL. Desde então, quem
vem chamando a atenção no esporte dos reis havaianos são os brasileiros,
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tanto dentro, quanto fora da água.


Além do bicampeão mundial Gabriel Medina, último campeão mundial
pela ASP, em 2014, e Adriano de Souza, primeiro campeão mundial pela
WSL em 2015, Ítalo Ferreira foi campeão mundial em 2019, batendo na final
o mesmo Gabriel Medina que tinha se sagrado bicampeão mundial no ano
anterior, 2018, mantendo assim o domínio brasileiro na elite do surfe mun-
dial. O próprio Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial, perseguindo uma
vaga no time americano que disputará a primeira edição olímpica do esporte
em Tóquio 2021, reconheceu o mérito de Ítalo Ferreira ao ser batido por ele
na semifinal da última etapa do circuito mundial em 2019, o Pipemasters no
Havaí, que resultou em título da etapa e do mundial para o potiguar, além de
classificar dois outros americanos para os Jogos Olímpicos, mas não Slater:
“eu queria o título do Pipemasters, a classificação para as olimpíadas, mas
provavelmente me sentiria mal se tivesse passado para a final e Ítalo não”
(Slater, 2019). Além do sucesso competitivo, o Brasil é o país com maior
número de seguidores nas mídias sociais da WSL, sendo 31% da audiência
no Facebook e 24% da audiência no Instagram (WORLD SURFE LEA-
GUE, 2018). Quem observa e dominação atual, ignora o fato de que o Brasil
era um coadjuvante distante na década passada.

O amadurecimento de um esporte

Um século atrás, o surfe apenas iniciava sua trajetória no mundo ociden-


tal, conquistando a California, para depois se espalhar pelo mundo. Dentre as
muitas pessoas inspiradas pelas apresentações de Duke nos Estados Unidos nas
décadas de 1910 e 1920, encontrava-se Tom Blake, um jovem do interior de
Wisconsin que mudaria o surfe para sempre. Blake começou a produzir suas
192

próprias pranchas, inspirado nos antigos modelos havaianos expostos no Bishop


Museum em Honolulu. Aplicando técnicas próprias na fabricação, Blake chegou
a um produto final que era infinitamente mais leve, moderno e manobrável do
que tudo o que havia sido confeccionado até então. Em 1928, Blake trouxe
suas pranchas para a Califórnia onde, em um dos primeiros campeonatos de
surfe noticiados, na praia de Corona del Mar, surfou com tamanha agilidade e
maestria que chocou os 10.000 espectadores ali presentes (KAMPION, 2000).
Foi ele também quem criou a quilha, um tipo de estabilizador no fundo
da prancha que trouxe uma manobrabilidade inédita às pranchas de surfe
uma vez que, até então, pranchas não possuíam quilhas, pois entre os nativos
havaianos não havia preocupação em direcionar as pranchas. Esse modelo
foi denominado de Single Fin, monoquilha. Nos anos 70, o surfe se tornaria
uma prática ainda mais popular e, consequentemente, surgiram novas ideias
de quilhas e modelos para melhorar a performance dos surfistas sobre as

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ondas. O shaper californiano Steve Liz, inspirado no desenho de um peixe,
diminuiu o tamanho das pranchas e lançou a revolucionária Fish, com duas
quilhas ou twin fins, biquilhas. Já em 1980, o surfista, competidor e shaper
australiano Simon Anderson venceu duas etapas seguidas do circuito mundial
com um modelo de prancha diferente, que possuía três quilhas em tamanhos
iguais. Eram as primeiras triquilhas, ou Thrusters, por conta de sua segurança
e confiabilidade, do inglês thrust. Esse modelo foi muito bem aceito e trans-
formou definitivamente os rumos do surfe moderno para se tornar dominante
no mercado e no circuito mundial até os dias de hoje.
Ainda nos anos 1980, tivemos outras inovações, como pranchas com
mais de três quilhas, bicos e rabetas diferenciadas, mas sem o mesmo sucesso.
A fabricação de pranchas com 4 quilhas teve início com o surfista brasileiro
Ricardo Bocão e estas pranchas ainda fazem sucesso para condições específicas
de ondas rápidas e tubulares, em que as quadriquilhas funcionam perfeitamente.
Assim como no aspecto do design, no campo cultural o surfe também
começou a aparecer e evoluir a partir dos anos 1960, com uma emergente
cultura praiana que se desenvolveu na costa do estado americano da California,
como efeito dos tempos de paz recém iniciados ao final da segunda guerra
mundial. Na praia de Malibu, próxima à cidade de Los Angeles, uma jovem
estudante chamada Kathy Koehner se apaixonou pelo surfe e por seus surfistas,
passando a dedicar seu tempo à praia e às ondas. Após dois anos nesta rotina,
nos quais ascendeu ao posto de surfista local em Malibu e ganhou o apelido de
Gidget, Kathy resolveu abandonar a praia para seguir os estudos universitários.
No entanto, seu pai Frederick Koehner, um roteirista de filmes, transformou
em seriado algumas das aventuras de Gidget. No ano de 1959 após comprar
os direitos de Koehner, a Columbia Pictures lançou no mercado americano
o filme “Gidget – A Little Girl with Big Ideas”. O sucesso instantâneo da
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 193

película foi tão grande que levou centenas de milhares de novos praticantes
às praias dos Estados Unidos (BORTE, 2000). O movimento iniciado pelo
filme pode ser comparado a poucas manifestações culturais de massa vistas
antes e, com o sucesso da indústria de filmes em Hollywood, esta cultura
emergente se espalhou rapidamente pelo mundo.
Como resultado desse movimento cultural que emergia nas décadas de 1950
e 1960, principalmente nos Estados Unidos, o surfe foi unindo elementos à sua
formação. As músicas utilizadas na sonografia dos filmes com melodias agitadas
e marcantes foram um dos aspectos que se desenvolveram junto a essa formação
cultural. Bruce Brown utilizou muito em seus filmes os solos de guitarra de Dick
Dale, que viriam a influenciar a formação de inúmeros grupos rotulados sob o
gênero surfe music. O maior ícone desse gênero surgiu na década de 1960 com
os californianos Beach Boys que foram, por determinado tempo, os Beatles da
América. A sua influência, juntamente com Gidget e Endless Summer, foram
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pilares centrais na formação da cultura surfe (HELLER, 2010).


Os filmes de surfe ajudaram a criar outro fator determinante no desen-
volvimento e aglutinação de padrões da cultura surfe, as revistas especiali-
zadas. Pioneira, a americana Surfer, foi impressa pela primeira vez em 1960.
Inicialmente concebida como um foto-livro, as primeiras 10 mil cópias, que
acompanhavam o filme Surfe Fever, do artista e cineasta John Severson, esgo-
taram-se rapidamente. Antevendo uma boa oportunidade comercial, Severson
lançou em 1961 a Surfer Quarterly, mas a enorme demanda o fez mudar o
formato para seis edições ao ano com a Surfer Bi-Monthly, em 1962, e a partir
de 1976 a revista tornou-se uma publicação mensal (KAMPION, 2000).

Surfe no Brasil

No caso do Brasil, o surfe demorou um pouco mais a ser incorporado


pela mídia e cultura do país, ainda que trazido por influência de viajantes pro-
venientes da Califórnia na primeira metade do século passado. Os primeiros
relatos sobre um surfista em praias brasileiras datam de 1934, quando um
piloto intercontinental americano, naturalizado brasileiro, Thomas Rittchers
trouxe a primeira prancha importada para Santos, no litoral paulista. A pri-
meira prancha produzida nacionalmente apareceria no ano de 1938, feita pelos
cariocas Osmar Gonçalves, João Roberto Suplicy e Júlio Putz, ainda inspirados
no modelo trazido por Rittchers. O desenvolvimento do esporte se atrasou no
Brasil por conta das dificuldades em conseguir material de qualidade para a
fabricação de pranchas, tanto pelo alto custo, quanto pelas dificuldades na
importação dos mesmos (AMATO; SOUZA; FALCÃO, 2019).
Assim como em outras partes do planeta, a prática do surfe no Brasil
se tornou mais visível nas décadas de 60 e 70. Em meio a um regime militar
194

extremamente rígido, os surfistas eram taxados como pessoas ociosas, que não
queriam assumir compromissos para poderem passar suas horas ocultando-se
do barulho da cidade, entregues à melodia salgada das ondas cariocas. Enfren-
tando uma ditadura, os surfistas eram verdadeiros guerreiros que lutavam,
ainda que de forma passiva e à beira-mar, contra um sistema ameaçador que
acometia todos aqueles que almejavam uma sociedade livre de censura, dotada
de direitos hoje considerados básicos como ir e vir, expor ideias, fazer música
e, até mesmo, surfar as belas ondas do nosso privilegiado litoral.
Desde o fim da ditadura, que durou praticamente 20 anos, de 1965 a 1985,
o surfe amadureceu como esporte, transformando aos poucos sua imagem
rebelde e descompromissada em atividade de alto rendimento e passível de
grandes lucros por parte de surfistas e patrocinadores.
Mesmo antes da aparição dessa geração vitoriosa comandada por três
campeões mundiais, o Brasil já vinha conquistando, a passos lentos, um nobre

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espaço no cenário do surfe mundial através da garra, do amor e do talento que
os nossos atletas sempre demonstraram dentro da água, principalmente ao
representar nossa bandeira. Essa onda foi apelidada pelos locutores da World
Surfe League de Brazilian Storm, a tempestade brasileira.

Novos Tempos

O fenômeno da aparição e crescimento do surfe no Brasil e no mundo


corresponde ao período da história conhecido como pós-modernidade, iniciado
em meados do século XX. Tornou-se comum falarmos do nosso tempo como
aquele da alta velocidade, quase relegando ao esquecimento um tempo não
muito distante, em que a vida se parecia com um caminhar sem pressa por trilhas
seguras. Para entender essa alta velocidade é necessário compreender a sociedade
contemporânea. Comparada à sociedade do século XIX e de parte do século
XX, a nossa subverteu antigos estilos de vida. Os novos estilos se alimentam de
contínuas inovações tecnológicas e cientificas, e também de valores e padrões
socioculturais inspirados na afirmação de novas identidades. Assim, a descon-
tinuidade das tradições é uma marca importante da pós-modernidade. “[...] o
ciclo histórico em que nos encontramos está inteiramente tomado pela mudança
acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam-se inovações tecnológicas
e modificações socioculturais que repercutem sobre todos os planos e setores da
vida social” (NOGUEIRA, 1995, p. 107). Como indaga Agnes Heller:

[...] a transformação das experiências da vida cotidiana, com a introdução, nos


lares e mesmo na vida íntima, de uma tecnologia sempre em mudança. Tem
se que mudar hábitos, ideias, credos – e reaprender praticamente tudo três
vezes na vida. Quanto tempo se consegue resistir? (HELLER, 1999, p. 65).
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 195

Não há uma expressão única para designar o nosso tempo e as sociedades
nele forjadas. Pós-modernidade, modernidade tardia, sociedade de controle,
sociedade da norma e sociedade líquida são algumas das designações atri-
buídas a ele por estudiosos da contemporaneidade. Vivemos numa sociedade
complexa e multifacetada. Uma sociedade global que, de um lado, mantém
seus cidadãos fortemente interconectados e, de outro, extremamente vulne-
ráveis em seus vínculos relacionais de inclusão e pertencimento.

O emergir da individualidade assinalou um progressivo enfraquecimento,


a desintegração ou destruição da densa rede de vínculos sociais que amar-
rava com força a totalidade das atividades da vida. Assinalou também que
a comunidade estava perdendo o poder – e/ou o interesse – de regular
normativamente a vida de seus membros (BAUMAN, 2007, p. 31).
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Na pós-modernidade, o indivíduo torna-se a própria referência. Nesse


caldo, ganham significado o presente e não o futuro, o imediato e não o mediato,
os projetos individuais, de grupos particulares, de minorias e não mais os de
coletivos expressos nas classes sociais. A ação política é, portanto, contami-
nada pela fragmentação dos interesses. Por meio de diversos microgrupos
identitários, a sociedade civil coloca em segundo plano os canais tradicionais
de representação e mediação dos interesses coletivos (partidos, parlamentos,
sindicatos). Como diz Jean Lyotard (2002), este é o período em que todas as
grandes narrativas (teleologias ou visões de mundo) que privilegiam o cole-
tivo entram em crise e introduzem a primazia dos indivíduos e dos direitos
humanos, direitos dos cidadãos. O movimento dos jovens em 1968, “é proibido
proibir”, já sinalizava uma ruptura com a socialização disciplinar e propugnava
uma socialização negociadora mais indutora da afirmação dos indivíduos. Por
outro lado, a consolidação dos Estados Nações abriu espaços para a indivi-
dualização crescente. Desta forma o indivíduo pode trilhar sua liberdade, não
mais dependente da família ou da comunidade, mas sim do Estado Nação que
assumiu progressivamente, pela via de suas políticas públicas, a sobrevivência
e a proteção de seus indivíduos. Os fenômenos de globalização, reestruturação
produtiva e a financeirização da economia representaram uma ruptura com a
sociedade salarial que parecia uma conquista irreversível no período do pós
guerra. Vimos crescer progressivamente o setor de serviços com a introdução
de novas variantes em torno do trabalho: trabalhadores autônomos, empregos
em meio período, trabalho a domicílio, on-line etc.
Com a financeirização da economia, a produção de riqueza dispensa, cada
vez mais, o trabalho assalariado, produzindo uma nova composição na relação
entre trabalho material e imaterial (NEGRI, 2001). Já é notório que a automação
vem provocando um enorme desemprego estrutural, mas a falta de trabalho,
196

como entendíamos tradicionalmente, tem propiciado a expansão da chamada


plena atividade. Os esportes de aventura assumem estas características: são
individuais e motivados por vontade própria, são formas de lazer, mas, para
os que se destacam, podem se tornar uma atividade rentável e profissional.
Nos tempos atuais o indivíduo, e nele a utopia do consumo, da técnica e
da informação, torna-se referência. Assim, ganham significado os discursos de
nicho, em detrimento das grandes teleologias sociais; os projetos individuais,
particulares, de minorias, em detrimento de expressões coletivas, de classes
sociais e de maiorias.
Mais que o individualismo, o indivíduo é nosso foco de reflexão. Na
sociedade contemporânea, tomada pela velocidade das mudanças, incertezas,
falta de trabalho e voraz consumo, a prática dos esportes de aventura promete
a afirmação da liberdade do indivíduo e do enfrentamento de suas angústias,
transformando o risco e a natureza em parceiros no controle de sua liberdade

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e emancipação. A adesão dos esportes de aventura aos Jogos Olímpicos pode
neutralizar a busca deste indivíduo por afirmação e, contrariamente, exaltar
o sentido do coletivo e da afirmação humanitária. É nesse veio que emergem
os movimentos de defesa ecológica, de defesas de gênero e raça, e de defesa
dos consumidores, entre outros, que expressam características plurais, mas
fragmentadas e particulares, próprias da sociedade contemporânea.
O mesmo movimento acontece nos meios de comunicação, fazendo com
que a sociedade substitua, a princípio lentamente e, mais tarde, de forma
acelerada, veículos tradicionais de mídia como jornais, revistas, televisão e
rádio, todos no formato unidirecional, ou seja, dos produtores de conteúdo ao
público em geral, para o modelo digital, multidirecional e compartilhável pos-
sibilitado pela internet, como são as chamadas mídias sociais (SHIRKY, 2011).
Hoje, tudo é instantâneo e a unanimidade totalitária não é mais o modelo
ideal, abrindo espaço para uma diversidade infinita de estilos e preferências,
trazendo à tona culturas de nicho antes relegadas a um plano inferior, como
é o caso do surfe e dos esportes de aventura.
Assim podemos compreender a grande popularidade do surfe, do skate
e de outros esportes de aventura, que se casam igualmente ao individualismo
e à solidão de muitos dos indivíduos urbanos. Além de individuais, são ati-
vidades livres e de baixo custo: dependem apenas do interesse e do esforço
próprio, além de haver uma boa disponibilidade de locais públicos para sua
prática, considerando a variedade infinita de obstáculos urbanos para o skate e
as democráticas ondas espalhadas nos mais de oito mil quilômetros do litoral
brasileiro. Paradoxalmente esses esportes transformam-se em possibilidade de
conexão, de sociabilidade e garantia de vínculos, campo fértil para a prática e
desenvolvimento de valores humanos que encontram simetria nos chamados
valores Olímpicos de respeito, amizade e excelência.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 197

Água Salgada não Cura Depressão

Nada disso, no entanto, garante uma existência mais leve e feliz para seus
praticantes, diante das pressões complexas que constituem o tempo presente.
Tanto que temos nos deparado, cada vez mais, com uma realidade descon-
certante para os mais céticos, o suicídio de surfistas e atletas de outras moda-
lidades esportivas ligadas ao prazer e ao risco, reconhecidamente talentosos
e teoricamente livres da depressão por viver uma vida que a grande maioria
da população considera idílica. Este capítulo pretende desmistificar o esporte
dos reis havaianos e lançar luz sobre uma doença sutil e onipresente, capaz
de atingir todos os extratos da sociedade, incluindo seres altamente espiri-
tualizados e em constante contato com as forças da natureza, e seus efeitos
benéficos, como é o caso dos surfistas.
Recentemente, tivemos tristes casos de surfistas campeões mundiais
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cometendo suicídio ou vivendo de maneira temerosa, envolvidos com alto


consumo de drogas, a ponto de perder a vida, como foi o caso do tri campeão
mundial Andy Irons, que faleceu em 2 de novembro de 2010, aos 32 anos de
idade, após uma parada cardíaca provocada por uma overdose de remédios.
Em abril de 2019, com 49 anos de idade, Sunny Garcia, outro havaiano
campeão mundial (em 2000), tentou suicídio e chegou a ficar em coma, mas
sobreviveu para viver seus próximos anos com sequelas provocadas pelo
incidente. Em 17 de julho de 2020, Derek Ho, o primeiro campeão mundial
de surfe vindo do Havaí (em 1993), tirou sua própria vida aos 55 anos, após
uma longa batalha contra o consumo de drogas. Entre nós brasileiros, o caso
mais emblemático é o do jovem surfista catarinense Jean da Silva, campeão
brasileiro de surfe em 2010 que, após uma longa batalha contra a depressão,
cometeu suicídio em 24 de novembro de 2017, aos 32 anos, em Joinville.
Durante o Pipemasters 2019, a etapa decisiva do circuito mundial de surfe
realizada em Pipeline, no Havaí, que consagrou Ítalo Ferreira como campeão
mundial, levamos a questão ao principal ícone do esporte no planeta, Kelly
Slater, 11 vezes campeão mundial e testemunha participante dos últimos 30
anos de história do surfe competitivo no mundo.

Tem a ver comigo, tive muitos amigos que cometeram suicídio, temos
o Sunny (campeão mundial de surfe em 2000) que está apenas se segu-
rando, ele está melhorando um pouquinho, mas esteve muito deprimido e
cansado de sua vida, se sentindo desta forma em sua mente, mesmo tendo
tantas pessoas que ele ama e que o amam de volta, ele tem esse apoio,
mas não conseguia mais suportar o que sentia por dentro. É muito duro
ver um amigo ou qualquer pessoa passar por isso, mas é especialmente
difícil ver alguém próximo a você e que você conhece desde sempre...
198

Perdemos o Woody, chefe de segurança da WSL, um querido amigo meu


que escolheu dar fim a sua vida, há uns quatro ou cinco anos... ele estava
lá em todos os títulos mundiais que eu ganhei, cara... quando sua mente
vai numa direção negativa, você tem que aprender a perceber que é a sua
mente fazendo isso, e não você enquanto pessoa, o seu coração, é sua
mente fazendo isso [...] JFK (John Fitzgerald Kennedy) disse: todos os
problemas são criados pelo homem e podem ser resolvidos pelo homem,
então temos que acreditar que sempre existe uma resposta. É terrível ver
uma pessoa nesse lugar, dá pra entender porque as pessoas se viciam em
drogas, álcool e todo o tipo de coisa, porque é difícil se conectar neste
mundo acelerado com bilhões de pessoas e, ao mesmo tempo, perceber sua
própria importância algumas vezes, então é importante se desligar de toda
notícia, toda mídia de vez em quando, se alimentar melhor, sair de perto
das pessoas e não falar por algum tempo, fazer um detox, não se cobrar
tanto, porque a depressão é uma coisa real, está na sua cabeça, mas é um

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problema real que afeta tantas pessoas” (SLATER, 2019).

Pergunto se ele já teve este tipo de pensamento contra si próprio.

Sim, eu já tive (este tipo de pensamento). Enfrentei momentos terríveis


internamente, especialmente porque minha vida é repleta de altos momen-
tos, muito altos, então tenho baixos que são diferentes de outras pessoas...
eu tenho altos que são diferentes de outras pessoas. Tem algo que faz
cada um de nós acordar, que nos faz trabalhar e quando essa coisa deixa
de funcionar, quando você já não sente o mesmo prazer que antes, você
pode ficar desesperado. Então você deve ter uma diversidade de locais
diferentes para depositar sua energia, seus pensamentos, sua cabeça, além
de pessoas pra conversar (SLATER, 2019).

Considerando sua declaração sobre altos e baixos, pergunto a ele onde


consegue seus altos ultimamente:

Eu caio em Pipeline nos dias bons (risos), ainda (!), é o mesmo sentimento
de quando eu tinha doze anos de idade, eu continuo amando do mesmo
jeito, talvez mais, porque hoje não tenho mais medo, como eu tinha antes,
então aproveito muito mais (SLATER, 2019).

Encerrada a entrevista, uma outra jornalista pergunta sobre sua nota dez
durante o último Pipemasters. Sua resposta traduz o que ele quis dizer com
“altos diferentes de outras pessoas”.

Essa foi uma das melhores ondas da minha vida. Não era uma onda per-
feita, se eu olhasse pra essa onda da areia, eu diria que era uma ondinha
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 199

legal, mas não o tipo de onda que você viaja ao outro lado do planeta pra
surfar. Mas lá dentro foi incrível. Uma daquelas ondas em que, duas ou
três vezes no percurso eu pensei que não ia conseguir completar (foi legal,
mas ela não vai me deixar sair...), então eu acho que algumas vezes nós
temos que acreditar em mágica. E aquele foi um momento mágico em
minha vida (SLATER, 2019).

Mágica, pela ótica do 11 vezes campeão do mundo no esporte dos reis,


é um estado de espírito, uma sensação tão inexplicável quanto inigualável,
frequentemente ligada ao surfe e altamente procurada por atletas praticantes
de esportes ligados à natureza. A depressão, por outro lado, também pode ser
considerada um estado de espírito, só que pertencente ao espectro oposto,
sombrio e negativo, talvez exatamente o inverso ao que Slater considera
mágico. Resta compreender como evitar o outro lado desta moeda, algo que
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o próprio campeão, assim como todos nós mortais, ainda busca. Intrigante,
no entanto, é constatar que o surfe, com seu histórico que nós leva a com-
preender os importantes aspectos terapêuticos e lúdicos do esporte, ainda é
impotente para conter a depressão no controverso ambiente contemporâneo,
ocasionando problemas de saúde mental, depressão e suicídio, mesmo dentro
do estilo de vida idílico proporcionado pelo surfe e seu alegre ambiente social.
Ou seria exatamente este ambiente inspirador e jovial o grande disparador
deste fenômeno?
200

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ÍNDICE REMISSIVO
A
Adversidades 33, 95, 96, 97, 99, 102, 110, 111, 112, 157
Água 16, 18, 20, 22, 24, 37, 40, 43, 48, 94, 98, 119, 122, 124, 150,
151, 175, 176, 181, 182, 183, 191, 194, 197
Alto rendimento 85, 89, 95, 99, 100, 103, 106, 108, 111, 112, 113, 194
Ansiedade 58, 59, 60, 61, 63, 64, 146, 150, 151, 157, 160, 163, 165
Atividade física 71, 84, 85, 136, 147, 151, 153, 154, 155, 157, 160,
161, 170, 171, 172, 180, 186, 201
Atleta 58, 59, 60, 61, 62, 66, 95, 96, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 105,
106, 107, 108, 109, 110, 112, 116, 141, 177
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C
Carreira esportiva 95, 98, 99, 100, 101, 102, 104, 106, 108, 109, 110,
111, 112, 114, 211
Coletivos femininos de surfe 8, 119, 125, 126, 127, 128, 129
Competição 12, 37, 45, 57, 58, 59, 61, 62, 63, 89, 93, 96, 140, 177
Construção da identidade 7, 85, 91, 92, 96, 99, 100, 102, 103, 108, 111
Cultura 26, 28, 31, 33, 37, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 51, 53, 54, 56, 72,
74, 84, 85, 96, 103, 107, 110, 119, 120, 122, 123, 124, 128, 129,
133, 138, 142, 143, 145, 147, 150, 154, 173, 189, 190, 192, 193,
201, 203, 204

D
Desigualdades de gênero 56, 116, 132, 155

E
Educação 26, 27, 47, 57, 64, 65, 67, 68, 78, 80, 82, 83, 84, 114, 116,
117, 130, 131, 136, 153, 166, 169, 171, 172, 174, 187, 202, 204,
209, 210, 211, 212, 213
Educação física 26, 27, 57, 64, 65, 83, 84, 114, 130, 136, 153, 166,
169, 171, 172, 174, 187, 202, 209, 210, 211, 212, 213
Efeitos terapêuticos 8, 147, 149, 151, 157, 158, 159, 162, 163, 164
Esporte 3, 4, 9, 24, 27, 28, 29, 32, 35, 38, 39, 41, 45, 49, 54, 55, 56,
57, 59, 60, 64, 65, 66, 69, 70, 71, 73, 74, 77, 78, 79, 83, 84, 85,
88, 89, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 108,
109, 111, 112, 113, 114, 116, 120, 122, 123, 124, 125, 127, 128,
206

129, 130, 131, 132, 136, 137, 139, 142, 144, 149, 150, 152, 153,
155, 156, 164, 165, 167, 169, 171, 172, 173, 174, 176, 177, 178,
179, 180, 181, 184, 187, 189, 190, 191, 193, 194, 197, 199, 200,
201, 203, 209, 210, 211, 212, 213

F
Filosofia 26, 27, 37, 44, 53, 80, 89, 117, 201, 209, 210, 211, 212

L
Lazer 9, 38, 44, 71, 75, 76, 80, 81, 82, 83, 84, 103, 106, 114, 130, 132,
149, 174, 178, 180, 181, 189, 196, 200, 201, 204
Liberdade 74, 75, 76, 79, 82, 119, 120, 121, 129, 138, 148, 151, 160,
173, 182, 195, 196, 203

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M
Medicina do esporte 65, 165
Motivação 60, 62, 95, 97, 98, 99, 100, 102, 109, 111, 112, 124, 132,
144, 146, 168, 180, 181

N
Natureza 11, 12, 15, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 31, 33, 44, 45, 49, 54, 55,
60, 67, 71, 76, 79, 80, 81, 84, 85, 89, 102, 107, 114, 119, 120,
121, 124, 127, 129, 130, 131, 135, 138, 143, 144, 145, 152, 153,
158, 159, 181, 183, 189, 190, 196, 197, 199, 200, 202, 203

O
Ondas 7, 19, 20, 22, 24, 25, 31, 33, 34, 36, 44, 45, 49, 50, 54, 55, 58,
61, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 79, 81, 83, 84, 101, 105, 121,
124, 143, 144, 145, 146, 148, 149, 150, 161, 176, 177, 178, 180,
189, 190, 192, 194, 196, 198, 199

P
Prancha 7, 11, 12, 15, 16, 18, 19, 20, 22, 24, 25, 26, 33, 34, 35, 58,
70, 73, 74, 94, 120, 121, 150, 176, 178, 180, 181, 182, 183, 189,
192, 193
Prática corporal 9, 32, 33, 69, 71, 76, 77, 78, 80, 81, 82, 124, 135, 141,
142, 143, 145, 147, 151, 152, 161
Prática esportiva 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106,
109, 111, 112, 116, 187
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 207

Psicologia do esporte 3, 4, 9, 27, 28, 29, 56, 59, 60, 64, 65, 66, 88,
113, 116, 130, 132, 136, 137, 139, 155, 156, 167, 172, 181, 187,
209, 210, 211, 212

S
Saúde 8, 41, 45, 74, 75, 80, 81, 82, 83, 86, 105, 120, 121, 123, 135,
136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 147, 148, 149, 151, 152, 153,
154, 157, 158, 160, 161, 162, 163, 164, 167, 173, 175, 186, 187,
199, 201, 204, 209, 210, 211, 212
Saúde mental 8, 105, 136, 137, 139, 140, 148, 149, 151, 152, 154,
157, 158, 161, 162, 164, 199, 210, 212
Sociedade 32, 36, 37, 40, 43, 46, 47, 48, 51, 53, 54, 55, 67, 68, 77, 78,
86, 87, 100, 120, 122, 123, 128, 129, 154, 179, 183, 184, 194,
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195, 196, 197


Superação 82, 95, 96, 97, 98, 99, 102, 107, 109, 111, 146, 147, 148,
149, 152, 170
Surfe 3, 4, 7, 8, 9, 12, 13, 15, 16, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 31, 32,
33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57, 58, 60, 63, 65, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76,
77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 93, 94, 95, 96, 97,
98, 99, 100, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 110, 111, 112, 113, 114,
115, 116, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129,
130, 131, 132, 133, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143,
144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 157,
158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 167, 169, 172, 173, 174,
175, 176, 177, 178, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 189,
190, 191, 192, 193, 194, 196, 197, 199, 200, 201, 204, 210, 211
Surfe adaptado 8, 169, 172, 174, 176, 177, 178, 180, 181, 182, 183,
184, 185
Surfistas 7, 12, 20, 23, 25, 34, 35, 37, 38, 40, 49, 50, 53, 54, 56, 57,
58, 63, 70, 71, 72, 79, 80, 81, 83, 84, 85, 86, 89, 93, 98, 99, 100,
107, 111, 112, 113, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 127,
128, 129, 131, 132, 133, 135, 137, 138, 140, 141, 142, 143, 144,
145, 146, 147, 148, 149, 151, 152, 161, 163, 172, 173, 174, 178,
189, 191, 192, 194, 197

T
Treinamento 57, 58, 63, 74, 80, 83, 100, 101, 102, 109, 175, 210,
212, 213
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SOBRE OS AUTORES
Anna Beatriz Vargas Panfili
Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP). Atualmente é pós-graduanda em Psicologia do Esporte pelo Instituto
Sedes Sapientiae. Tem experiência na área da Psicologia do Esporte com
modalidades coletivas e atendimento clínico. É membro do grupo de estudos
da consultoria Flow Psicologia do Esporte.

Erick Francisco Quintas Conde


Psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio); Doutor em Neurociências pela Universidade Federal Fluminense
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(UFF); Professor do departamento de Psicologia da Universidade Federal


Fluminense (CPS/ESR); Coordenador do Núcleo de estudo e aplicação em
Psicologia do Esporte (Neape/UFF). Membro do Grupo de Trabalho em Psi-
cologia do Esporte da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia (ANPPEP).

Fidel Machado de Castro Silva


Doutor e Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Cam-
pinas (Unicamp). Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal
do Ceará (UFC). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética
do Movimento (GPFEM – Unicamp). Membro do MARGEM: Laboratório
de Pesquisa em Educação Física e Humanidades (Unicamp). Membro da
Associação Internacional de Filosofia do Esporte.

Júlia Frias Amato


Psicóloga graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Especia-
lista em Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae; Mestra em
Ciências pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São
Paulo. Integrante do Grupo de Estudos Olímpicos da USP desde 2011. Sócia
fundadora da consultoria Flow Psicologia do Esporte, atuando com atletas de
modalidades individuais e coletivas. Além de surfista amadora.

Léo Barbosa Nepomuceno (org.)


Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pro-
fessor Adjunto do Instituto de Educação Física e Esportes e da Pós-Graduação
em Saúde Pública da UFC. Mestre em Psicologia pela UFC. Especialista
com Residência Multiprofissional em Saúde da Família pela Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UVA). Graduado em Psicologia pela UFC. Membro
210

do Grupo de Trabalho em Psicologia do Esporte da Associação Nacional de


Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Membro do Laboratório
de Avaliação e Pesquisa Qualitativa em Saúde (LAPQS) da UFC. Membro da
Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp). Atua em pesquisas
sobre Psicologia Social do Esporte; Estudos socioculturais do esporte; Corpo,
subjetividade e saúde.

Liana Araújo Scipião


Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Ceará (2012). Especializa-
ção em Saúde Mental pela Universidade Estadual do Ceará (2015).

Liana Lima Rocha


Doutoranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Mestra em Educação Brasileira pela UFC. Professora de Educação

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Física do Ensino Básico da rede estadual do Ceará. Participante do Grupo de
Estudos e Pesquisa – Saberes em Ação.

Lino Délcio Gonçalves Scipião Junior


Doutorando em Ciência do Desporto, é Mestre em Ciências do Desporto,
ambos pela Universidade de Trás os Montes e Alto Douro em Portugal. Espe-
cialista em Treinamento Desportivo pela Universidade Estadual do Ceará.
Bacharel em Educação Física pela Faculdade Católica de Fortaleza. Docente
do Curso de Graduação em Educação Física da Unifametro, e de cursos de
extensão universitária. Trabalha com Treinamento Personalizado e Prepara-
ção Física de atletas de surfe e bodyboard, sendo preparador físico da Tetra
Campeã Mundial Isabela Sousa, e de atletas como Michael Rodrigues. Tem
experiência na área de Educação Física, com ênfase em Treinamento Funcio-
nal, Musculação e Preparação Física.

Lucy Leal Melo-Silva


Psicóloga, Livre-docente e Professora Associada Sênior da graduação e da
pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Coeditora
da Revista Brasileira de Orientação Profissional. Pesquisadora com bolsa de
produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico (CNPq). Membro da ABOP e do GT ANPEPP Carreiras: informação,
orientação e aconselhamento.

Maria Eleni Henrique da Silva


Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Professora
Adjunta do Instituto de Educação Física e Esportes da Universidade Federal
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 211

do Ceará (UFC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação


Brasileira da UFC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Saberes em Ação –
Eixo Formação de Professores de Educação Física e Esporte.

Maria Gabriela Carreiro


Psicóloga formada pela Universidade Metodista de Piracicaba, especialista
em psicologia do esporte pelo instituto Sedes Sapientiae, psicologa da con-
federação brasileira de surf de 2007-2010, trabalhou na implantação do surf
adaptado junto ao Pirata Surf Club na International Surfing Association (ISA)
e em projetos de surfe para mulheres. Contribuiu no primeiro curso de tow in
para mulheres. Atualmente atua como psicóloga do esporte no projeto “Surfa
que Cura”, em Guarujá, São Paulo.

Mariana Vannuchi Tomazini


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Psicóloga e Mestra em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e


Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP),
(Dissertação sobre Carreira Esportiva no Surfe). Especialista em Psicologia
do Esporte e do Exercício Físico pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua em
Psicologia Clínica e do Esporte. Trabalha na Secretaria Municipal da Saúde
de Limeira, atuação em CSF, Nasf e CAPSi. Membro da Associação Brasileira
de Psicologia do Esporte (Abrapesp).

Marina Penteado Gusson


Psicóloga graduada pela Universidade de São Paulo (USP). Especialização em
Psicologia do Esporte e em Clínica Reichiana pelo Instituto Sedes Sapientiae.
Possui vasta experiência de trabalho como psicóloga do esporte em várias
modalidades esportivas. Atualmente é psicóloga da seleção brasileira de fute-
bol feminino, de diversas equipes do SESI de Vila Leopoldina (SP), bem como
trabalha com atendimento em psicologia clínica e esportiva.

Marina Simons Barbosa de Oliveira


Bacharelado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Integrante do Grupo de Estudos da “Flow Psicologia do Esporte”.
Surfista amadora, busca relacionar suas experiências na modalidade com os
estudos em Psicologia.

Natali Cristofolli Wendich


Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Pós-
-Graduada em Psicologia e Promoção de Saúde pelo Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
(FMRP/USP). Residente em Saúde Coletiva e Atenção Primária pela Facul-
dade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
212

Rafael Campos Veloso


Doutor em Ciências na área dos Estudos Socioculturais e Comportamentais
da Educação Física e Esporte pela Escola de Educação Física e Esporte da
Universidade de São Paulo (USP), atuando em investigações que envolvem
os campos dos estudos do imaginário, filosofia, antropologia cultural e her-
menêutica simbólica (mitohermenêutica), aplicados ao esporte, jogo e demais
fenômenos do movimento do corpo humano. Especialista em Treinamento
Desportivo pelo Centro de Estudos em Fisiologia e Treinamento (CEFIT).
Licenciatura e Bacharelado em Educação Física pela Universidade Metodista
de São Paulo (Umesp). Membro do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) do
Centro de Estudos socioculturais do Movimento Humano (CESC) da Uni-
versidade de São Paulo (USP), desde 2009. Membro da Academia Olímpica
Brasileira desde 2016.

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Raquel Nogueira da Cruz
Graduação de Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF/Cam-
pos); Estágio no Ambulatório Ampliado de Atenção em Saúde Mental. Interes-
sa-se pelas áreas de Neuropsicologia, Psicologia Hospitalar, Terapia Cognitiva
Comportamental e Psicologia do Esporte.

Thabata Castelo Branco Telles


Pesquisadora (pós-doc) na Escola de Educação Física e Esportes de Ribeirão
Preto (EEFERP) da Universidade de São Paulo (USP) e Institut des Sciences
du Sport-Santé de Paris (I3SP). Doutora em Psicologia pela Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto-(FFCLRP-USP), com pesquisa
nos Arquivos Husserl – Paris (ENS-CNRS/Fapesp) de 2016 a 2018. Possui
graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e Mestrado
em Psicologia (Unifor). É atual presidente da Associação Brasileira de Psico-
logia do Esporte (Abrapesp). Membra do Grupo de Trabalho em Psicologia do
Esporte da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
(ANPPEP). Atua com ênfase em fenomenologia; psicologia do esporte & do
exercício; artes marciais & esportes de combate; corpo; movimento.

Tiago Brant de Carvalho Falcão


Graduado em Jornalismo (Anhembi Morumbi – MTB 55930), Direito (PUC/
SP – OAB 138183) e Publicidade (ESPM). Mestre em Ciências da Atividade
Física (EACH/USP – 2019). Carreira desenvolvida na área de produção de
conteúdo, roteiro, produção, direção, edição e captação de imagens. Atuação
em jornalismo esportivo, com experiência em liderança de equipe, reporta-
gem, apresentação, locução e entrevistas. Vivência em ONGs e empresas de
comunicação, entretenimento, editoras, produtoras e agencias publicitárias.
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE: aspectos socioculturais e psicológicos 213

Vinícius Cardoso de Souza


Licenciatura e Bacharelado em Educação Física pelo Centro Universitário das
Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Especializado em Psicomotricidade
pelo ISPEGAE. Atualmente professor de Educação Física do ensino infantil
e fundamental I da escola GIS SP. Também atuando na área de treinamento
personalizado com foco na melhora do condicionamento físico de crianças,
adultos e idosos. Membro do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO) desde 2018
exercendo estudos e pesquisas no campo da educação formal e não formal
através do esporte e a aquisição de valores humanos como fruto desse processo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Anna Beatriz Vargas Panfili
Erick Francisco Quintas Conde
Fidel Machado de Castro Silva
PSICOLOGIA DO ESPORTE E SURFE
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS E PSICOLÓGICOS
Júlia Frias Amato
Léo Barbosa Nepomuceno O livro consiste na reunião de trabalhos vinculados ao campo cien�fico da Psicologia
Liana Araújo Scipião (Social) do Esporte e áreas afins, os quais tem como objeto de estudo o surfe como modali-
Liana Lima Rocha
dade de prá�ca corporal e espor�va. A proposta do livro é contribuir para ampliar conheci-
Lino Délcio Gonçalves Scipião Junior
mentos sobre aspectos psicológicos e socioculturais relacionados à prá�ca do surfe. Para

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Lucy Leal Melo-Silva
tal, o livro é composto por ensaios, revisões de literatura e relatos de pesquisa que abor-
Maria Eleni Henrique da Silva
dam um conjunto amplo de questões e temas, que nos permitem ampliar os olhares sobre
Maria Gabriela Carreiro
as par�cularidades da prá�ca do surfe e suas expressões no lazer e no esporte. Encontra-se
Mariana Vannuchi Tomazini
aqui o fruto de parcerias estabelecidas entre autoras e autores de diversos estados brasi-
Marina Penteado Gusson
leiros, filiados a variados grupos de pesquisa com enfoques e abordagens teóricas diferen-
Marina Simons Barbosa de Oliveira 
tes. Tais parcerias foram forjadas no Grupo de Trabalho de Psicologia do Esporte da Asso-
Natali Cristofolli Wendich
ciação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e fomentadas nos
Rafael Campos Veloso
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Vinícius Cardoso de Souza da ao tema. A obra apresenta-se como uma relevante fonte de pesquisa para estudantes,
profissionais e pesquisadores(as) interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre
o surfe e suas dimensões e singularidades.

ISBN 978-65-251-0005-0

9 786525 100050

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