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Ensino da História: Memória,

Oralidade e Patrimônio
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Pró-Reitoria de Programas de Graduação Núcleo de Educação a Distância (NEAD)


Lívia Maria Figueiredo Lacerda Márcia Loch

1ª Edição
Produção: Gerência de Desenho Educacional - NEAD Desenvolvimento do material: Marcio Simão de
Vasconcellos e Antonio Lucio Avellar Santos

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Sumário
Ensino da História: Memória, Oralidade e Patrimônio
Para Início de Conversa… .................................................................. 04
Objetivos ........................................................................................... 05
1. Escola dos Annales ................................................................ 06
1.1 Nova História e História do Tempo Presente ............................. 14
Referências ........................................................................................ 21
Para Início de Conversa…
Para entendermos a criação da Escola dos Annales na primeira metade
do século XX e seu grande impacto para a História no mundo moderno,
precisamos fazer uma breve apresentação desta disciplina, que se apresenta
como ciência a partir do século XVIII.

Isso se faz necessário para que possamos compreender o início da


História como ciência e seu desenvolvimento, apresentando todo o impacto
da Escola dos Annales no século XX para entendermos como este campo de
conhecimento avançou ao longo destes quase quatro séculos de existência e
se expandiu ao mundo por meio de sua relação com outras das ciências que
envolvem o campo das humanidades.

Iremos observar, portanto, que a História integra o grupo de ciências


que necessitam dialogar com outras formas de saber para que se conheça
profundamente suas especificidades.

4 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


Objetivos
▪▪ Caracterizar o método historiográfico difundido pelos intelectuais
da Escola dos Annales.
▪▪ Avaliar a importância da nova história para a construção do ensino-
aprendizagem.

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 5


1. Escola dos Annales
Precisamos compreender o movimento da História como ciência desde
o seu surgimento, no século XVIII, mas pensar História, ao que parece, já era
um hábito comum aos grupos humanos desde a antiguidade, mas com uma
compreensão singular e diferente da que temos hoje, isto é, entendê-la como
uma ciência acadêmica, bem sistematizada, como disciplina que faz parte da
formação humana.

Desde a Grécia antiga, História designava a narração dos fatos


humanos. Já o seu derivado, a historiografia, significava uma percepção da
História como conhecimento de maneira geral. Nesse sentido, a historiografia
deu à realidade histórica uma variedade de conceitos, os quais citaremos a
seguir.

Em um primeiro momento, o conceito de História é apresentado


como estudo das coisas relativas ao passado, mas sob a perspectiva de que
este passado possa ou não ter influência sobre os acontecimentos do presente.
“Nestas e em semelhantes expressões, o significado desse termo permanece
estritamente genérico: remete a uma dimensão do tempo e às relações que
podem ser estabelecidas entre ela e outras dimensões” (ABBAGNANO,
2007, p.584).

Na segunda etapa de seu desenvolvimento no mundo, a História é


compreendida como tradição, seja transmitida com questões que envolvem
crenças ou por técnicas desenvolvidas pelos homens em suas culturas com o
passar do tempo. “Às vezes, porém, a tradição é entendida como conservação
infalível e progressiva de todos os resultados e conquistas do homem; nesse
caso, o conceito identifica-se como plano providencial [...]” (ABBAGNANO,
2007, p.584).

O terceiro momento dessa progressão que tem o objetivo de definir


a História está mais próximo ou é mais relevante à filosofia. Entende-se,
aqui, que a história é formada pelo homem ou ser no mundo, seus hábitos
e costumes desenvolvidos culturalmente, fazendo com que as instituições
criadas por ele entrem na história, conferindo-lhe, portanto, a marca típica
de uma determinada forma cultural no mundo.

6 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


Desse modo, constitui-se o desenvolvimento de uma Filosofia da
História, a qual se divide em cinco pontos:

1. A História como decadência, que se expressa em meio ao momento


da Antiguidade. Hesíodo a expressou em cinco idades de forma
sucessiva. A primeira compreende a idade do ouro até a idade dos
homens, ou seja, desde sua vivência como deuses até o momento em
que estão sujeitos a toda espécie de males. “Essa doutrina perdeu
o significado pessimista e tornou-se otimista: as idades estão em
ordem de progresso e não de decadência” (ABBAGNANO, 2007,
p.584). Ainda assim, na interpretação dos gregos à época, esse
período certamente é marcado pela decadência.
2. O segundo momento desse ciclo filosófico da História, o qual
concebia a cultura grega como o berço do seu desenvolvimento,
pensava a História como um ciclo. Em seu primeiro desdobramento,
por exemplo, os gregos imaginavam que a cada ciclo de vida iriam
surgir novos pensadores à maneira de Sócrates, Platão, o que nesse
processo significaria que os mesmos temas tratados por esses
filósofos no passado retornariam para serem discutidos em uma
nova realidade (ciclo) histórico.
Esse pensamento era muito comum aos estoicos. Alguns pensadores
reformularam esse conceito de História como ciclo e indicaram que

os ciclos históricos, as culturas, não se repetem de modo idêntico,


como julgavam os estoicos, mas a sua forma repete-se identicamente:
nascimento, crescimento e morte. “Toda a cultura, todo surgimento,
progresso e declínio, bem como cada um de seus graus e dos seus
períodos inteiramente necessários têm duração determinada, sempre
igual, sempre recorrente, com forma de símbolo. (ABBAGNANO,
2007, p.584)

3. O próximo ponto é o conceito de História como acaso, que não


é de tanto interesse do campo da filosofia. Podemos percebê-lo,
brevemente, já em Aristóteles. Esse filósofo, buscando diferenciar
as funções do poeta e do historiador, atribui ao último a obrigação
de relatar os fatos acontecidos na esfera do particular. O poeta, por
sua vez, deveria tratar das coisas relativas ao universal.

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 7


Para Aristóteles só o universal é tomado como fonte de conhecimento
científico. É nas palavras de Schopenhauer que podemos compreender melhor
a diferenciação que Aristóteles fazia entre o particular e o universal, a tarefa
do poeta no mundo e a do historiador. De acordo com esse filósofo:

A História do gênero humano, a intimidade dos acontecimentos,


a mudança dos tempos, os múltiplos aspectos da vida humana
em países e séculos diferentes, tudo isso é apenas a forma casual
assumida pela manifestação da Ideia; não pertence a esta, na qual
está apenas a objetividade adequada da vontade, mas ao fenômeno
que fica sendo conhecido pelo indivíduo; e é tão estranha, tão
inessencial e indiferente à Ideia quanto são estranhas às nuvens
as figuras que representam, ao rio a forma de seus sorvedouros
e das suas espumas e ao gelo suas figuras de árvores e flores.
(ABBAGNANO, 2007, p.585)

Ou seja, na concepção de Aristóteles, retomada por Schopenhauer,


a História do gênero humano nada mais é do que a interpretação dos fatos,
de um acaso ou fortuito, diante de um povo qualquer no mundo. A tarefa
do historiador, portanto, se resume na concepção aristotélica ao interpretar a
realidade que se apresenta a ele. Isso corresponde à habilidade de interpretar
eventos que surgem no que podemos compreender como devir histórico ou
acidentes, que vão surgindo em meio às diversas formas culturais humanas
espalhadas pelo mundo.

4. A História como progresso é uma ideia advinda do momento


histórico do Iluminismo no mundo, em que o papel da história se
ajusta ao progresso humano, buscando um ideal perfeito que nunca
será encontrado. Aqui temos uma percepção da História como
produção cultural que envolve seu surgimento, desenvolvimento ou
progresso, suas formas, até chegar à decadência e, consequentemente,
ao seu fim.

Os filósofos, propondo soluções para impedir o fim trágico, pensaram


em uma História ideal eterna. Nesse sentido, o filósofo Karl Jaspers (1883-
1969) se expressou de maneira otimista quanto ao fim da história:

8 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


[...] o único fim projetável da H. é a unidade da humanidade, não
alcançável por meio da ciência ou da uniformidade linguística ou
cultural, mas da “ilimitada comunicação daquilo que é diferente
historicamente, tal como se pode realizar num diálogo incessante,
numa luta amorável. (ABBAGNANO, 2007, p.585)

A História, como ordem providencial, está unida à última compreensão


que vimos anteriormente, ou seja, a História como progresso. Cada momento
dessa ciência é o ápice do seu momento, não podendo ser melhor ou
menor, mas apenas o que é no tempo. A concepção da História como algo
necessário se ajusta à História como plano providencial. Nesse sentido, passa
a representar desenvolvimento humano até se chegar à perfeição. Esse estado
humano de perfeição se aprimora e se desenvolve de forma significativa em
meio à Filosofia da Religião, na qual o estado de perfeição não pode ser
alcançado nesse mundo, mas apenas em uma realidade totalmente distinta da
que vivemos.

Talvez o grande articulador desse movimento seja o Bispo Agostinho


de Hipona (354-430), teólogo e filósofo cristão. Para ele, seu sistema religioso
filosófico abrangia duas realidades totalmente distintas. O plano providencial,
para Agostinho, se apresentava como uma grande disputa na linha histórica
entre a cidade de Deus (celeste) e a cidade terrena.

Os três períodos em que a H. se divide, segundo Agostinho, não são


mais que o desenvolvimento do plano providencial. No primeiro, os
homens vivem sem leis e ainda não há luta contra os bens do mundo.
No segundo, os homens vivem sob a lei e por isso combatem contra
o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça,
em que os homens combatem e vencem. (ABBAGNANO, 2007,
p.585-587)

Essa estrutura da História como ordem providencial mediada por


Agostinho e com forte ênfase religiosa perdurou, ainda, na Idade Média. No
século XII, as palavras proféticas de Gioacchino da Fiore são fundamentadas
na mesma estrutura de Agostinho de Hipona. Para Gioacchino, a Idade do

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 9


Pai se refere à Lei (à Torah dos judeus), a Idade do Filho se refere à vinda
do Messias, Jesus de Nazaré, em seus registros nos Evangelhos. Por fim,
são apresentadas a Idade do Espírito Santo, que é derramado sobre todas
as pessoas no mundo, e a Idade da Graça, período “da inteligência plena da
verdade divina” (ABBAGNANO, 2007, p.586).

Após apresentar esses breves conceitos sobre o desenvolvimento da


História ao longo dos tempos, destacando seus primórdios na Grécia Antiga e
sua relação direta com a filosofia, devemos pensar a ciência da História para os
tempos modernos, ou seja, a partir de sua existência como ciência no século
XVIII e como disciplina, já no século XIX.

As definições de ciência e disciplina da História nesses séculos


procuraram se afastar dos conceitos advindos da cultura grega em seus
argumentos tomados da filosofia como ciência fundamental, mãe de todas
as outras formas de saber. Não que a filosofia fosse inteiramente descartada,
mas a História como nova ciência e disciplina precisava, urgentemente, de um
caráter próprio.

Nesse sentido, ficou estabelecido que a História seria uma disciplina


destinada à interpretação da realidade. Analisando os registros históricos mais
antigos (as fontes), o historiador seria aquele que, de forma isenta e sem
críticas pessoais, daria voz ou vida ao passado de modo totalmente imparcial.

Logo surgiram muitas críticas a essa maneira de se fazer História.


Em momento posterior, acreditou-se que a participação do historiador,
em sua total liberdade de criação a partir das fontes, seria fundamental ao
processo de se pensar a História como ciência e disciplina, estabelecendo
um posicionamento contrário aos que compreendiam o fazer histórico como
um ato exclusivo às análises das fontes pesquisadas, sem a interferência do
pesquisador.

Desde então, fazer História ficou restrito ao primeiro momento


mencionado, no qual, dentro das universidades, havia uma metodologia
engessada sobre o fazer História e sua arte de conhecimento como disciplina.

10 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


No entanto, muitas críticas e análises vieram para desconstruir o modelo
adotado nas academias. É nesse sentido crítico que se apresenta a Escola
francesa dos Annales, a fim de rever alguns posicionamentos históricos, ou
melhor, repensar a maneira de se fazer História no mundo.

A Escola dos Annales é vista como um movimento historiográfico que


surgiu na França na primeira metade do século XX. Como observamos, desde
sua criação como ciência e disciplina acadêmica, a ciência da História ficou
restrita às análises de fatos e datas de uma maneira positivista.

O positivismo foi uma corrente totalmente fundamentada na ciência


e nos avanços do homem enquanto ser cultural que produz os seus próprios
avanços diante de sua realidade. Nesse sentido, o homem, ao longo de sua
existência, foi criando inúmeras formas de dominar a natureza. E, nesse
aspecto, o positivismo é um movimento romântico, no sentido de que toda a
vida humana está à mercê dele. A ciência se torna o guia do homem em sua
vida individual, estabelecendo-se como uma nova religião, e sua existência
acaba por enfraquecer as estruturas religiosas, até então soberanas quanto à
interpretação da vida humana.

Desse modo, o positivismo estimula o surgimento e a afirmação da


sociedade estruturada no desenvolvimento técnico-industrial. Portanto, as
metodologias que surgem são baseadas nesse princípio positivista, que as
interpreta como a mais pura maneira de encontrar a verdade dos fatos.

Para um maior esclarecimento desse movimento, apresentaremos, a


seguir, seus princípios básicos:

1º. A ciência é o único conhecimento possível, e o método da ciência


é o único válido: portanto, o recurso a causas ou princípios não
acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos; a
metafísica, que recorre a tal método, não tem nenhum valor. 2º. O
método da ciência é puramente descritivo, no sentido de descrever
os fatos e mostrar as relações constantes entre os fatos expressos
pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos (Comte); ou

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 11


no sentido de mostrar a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a
partir dos mais simples (Spencer). 3º. O método da ciência, por ser
o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e
da atividade humana; toda vida humana, individual ou social, deve
ser guiada por ele. (ABBAGNANO, 2007, p.909)

A Escola do Annales, então, pode ser compreendida como um


movimento intelectual que revolucionou a História, repensando-a junto a
outras formas de saber.

Em 1929, surgiu na França uma revista intitulada Annales d’Histoire


Économique et Sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch.
Ao longo da década de 1930, a revista se tornaria símbolo de uma
nova corrente historiográfica identificada como Escola dos Annales.
A proposta inicial do periódico era se livrar de uma visão positivista
da escrita da História que havia dominado o final do século XIX
e início do XX. Sob esta visão, a História era relatada como uma
crônica de acontecimentos, o novo modelo pretendia substituir as
visões breves anteriores por análises de processos de longa duração
com a finalidade de permitir maior e melhor compreensão das
civilizações das “mentalidades”. (GASPARETTO JUNIOR, 2010)

O modelo construído pela Escola dos Annales entrava diretamente em


choque com a metodologia tradicional com a qual a História era concebida.
Agora, a percepção histórica estava ambientada em uma questão muito mais
profunda e apresentava uma historiografia bem mais vasta.

Segundo a Escola dos Annales, o tempo histórico se apresentava de


maneira diferente na diversidade cultural. Portanto, cada cultura entendia o
tempo histórico em ritmos diferentes quando comparadas umas às outras.
Para compreender o tempo histórico em meio à diversidade cultural, a Escola
dos Annales trouxe para suas análises o conceito de interdisciplinaridade.

A interdisciplinaridade fez com que a historiografia se abrisse às


diferentes subdivisões das Ciências Sociais, como a arqueologia, a antropologia,
mas foi integrada, principalmente, à sociologia. A partir dos estudos dessas
Ciências Sociais, a História pôde ampliar o seu campo de estudo. Assim,
ficou mais clara a percepção de que o tempo histórico não é percebido da

12 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


mesma forma em todos os grupos socioculturais e que fatores como a forma
econômica desses grupos também interferem diretamente nessa percepção.

Desde a sua criação, em 1929, a Escola dos Annales marcou


significativamente o campo da historiografia a partir da compreensão de que era
necessária uma nova historiografia longe dos parâmetros mais conservadores
da disciplina, conforme estabelecido pela metodologia usualmente praticada
nas universidades até o momento. Diante disso, a historiografia exercida pela
Escola dos Annales ganhou notoriedade, expandindo-se e evoluindo em seus
métodos, criando outros ramos da historiografia para o mundo moderno e
pós-moderno.

Podemos citar, rapidamente, as 4 fases dessa escola e seus respectivos


pensadores, os quais contribuíram, e alguns ainda contribuem, para o avanço
dessa ciência e disciplina no mundo.

A primeira fase é marcada pelos fundadores-criadores Marc Bloch


e Lucien Febvre. A segunda etapa, já nos anos de 1950, é marcada pela
produção constante de Fernand Braudel. Em um terceiro momento, destaca-
se uma atividade mais plural de intelectuais, como Jacques Le Goff e Pierre
Nora. O quarto estágio se inicia em 1989, período que presencia um grande
desenvolvimento do ramo conhecido como História Cultural. Dentre seus
principais colaboradores estão Georges Duby e Jacques Revel.

O que buscamos apresentar, nesse ponto, é a grande importância


e colaboração da Escola dos Annales para o ramo da historiografia,
revolucionando a maneira como a História era feita, já bem estabelecida nas
universidades por meio da metodologia impulsionada pelo positivismo. O
surgimento da ciência e da disciplina História ocorre de maneira bem extensa
e, por vezes, complexa. Aqui buscamos precisar somente alguns momentos de
seu nascimento e desenvolvimento como ciência.

Não só a Escola dos Annales foi beneficiada com a utilização da


interdisciplinaridade em suas análises, visto que as disciplinas que perfazem
o que conhecemos como Ciências Sociais também desfrutaram e cresceram
junto à nova historiografia.

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 13


1.1 Nova História e História do Tempo Presente
No tópico com o qual abrimos esse capítulo, abordamos sobre a
importância da Escola dos Annales para os estudos historiográficos, com a
ideia de que as culturas possuem os seus próprios métodos de compreensão
de sua história. Por isso, afirmamos, mais uma vez, que as percepções de
tempo são variadas nos sistemas culturais existentes no mundo.

Arqueologia, antropologia e sociologia, portanto, são disciplinas


que hoje são fundamentais aos estudos da chamada historiografia moderna.
Nesse sentido, as novas análises, a partir do foco da interdisciplinaridade,
possibilitam uma melhor percepção do outro sem que o componente
etnocêntrico, ainda muito comum no mundo, continue a contaminar os dados
coletados principalmente de culturas distantes.

Diante dessa perspectiva, aquilo que se entende como realidade


histórica em tempos mais recentes, pode ser compreendida em sua dimensão
temporal, ou seja, a história como algo que pertence ao passado, tradição e
como memória de um grupo de pessoas.

Em sua dimensão material, a história se apresenta em meio aos


rudimentos e princípios elementares (portanto, mais simples) encontrados na
diversidade cultural, principalmente quando os grupos humanos estudados
estão longe dos princípios que envolvem uma sociedade moderna. As análises
mais antigas, ainda dependentes da Filosofia da História, foram abandonadas,
dando lugar a um novo conceito “em clima de crítica e desencanto com a
ideologia do progresso” (LE GOFF, 1986 apud ABBAGNANO, 2007, p.594).

A partir desse momento, temos uma ressignificação da atuação de


uma historiografia que concede espaço para as análises que optam pela
multiplicidade das histórias, em vez da continuidade de um modelo de
explicação dos fatos particulares por uma abordagem totalizante.

Assim, podemos pensar nas análises de Max Weber (1864-1920), o


grande sociólogo alemão, e sobre como o seu conceito sociológico, o tipo
ideal, trouxe grande contribuição à historiografia moderna.

14 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


Afirmamos, então, que o que temos no mundo são histórias que devem
ser percebidas a partir da própria expressão cultural de um povo qualquer, ao
qual o pesquisador/historiador se dedica. Por isso, a metodologia elaborada
por Max Weber ainda se mantém tão importante em diversos campos das
Ciências Sociais e, na História, sua influência não seria diferente. Vamos
tentar compreendê-la.

Weber buscou entender as sociedades modernas. Por isso suas


teorias são menos comuns no campo da antropologia, que é a ciência que
busca compreender as formas de vida dos povos mais simples, sem escrita,
conhecidas como sociedades ágrafas.

Nesse sentido, pensar as sociedades modernas ocidentais é buscar


compreendê-las em seu processo de racionalização. “Weber concebia o
fenômeno histórico como único e individual e negava a existência de leis do
devir histórico. Cada civilização terá sua história peculiar, cada uma evolui de
forma própria e única” (TEIXEIRA, 2003, p.69).

Nesse aspecto, já podemos perceber a preferência da nova historiografia


pelo campo da sociologia weberiana por se ajustarem às suas concepções. Ao
conceber a percepção histórica como uma evolução individual, como no caso
de Weber, cada civilização constrói sua própria concepção de maneira peculiar.

Weber, portanto, não faz parte do grupo de intelectuais que


compreendem as causas históricas como únicas, isto é, com a habilidade
de operar da mesma maneira em todas as civilizações. Em suas análises, o
sociólogo se afasta do materialismo histórico e das concepções evolucionistas
tão comuns no seu tempo. O pensamento weberiano se desprende, de maneira
contundente, dos autores das grandes sínteses do século XIX. Logo, Weber
jamais foi um evolucionista.

É fundamental ter claro esse antievolucionismo de Weber e a


sua concepção de História como um leque de possibilidades para
entender o que Weber chama de processo de racionalização ocidental.
Esse não seria de forma alguma gerado por um imperativo ou
necessidade humana universal. Seria algo histórico e bem específico.
A racionalização de que fala Weber, como sublinha Julien Freund

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 15


(1975:19), “não deve ser confundida de maneira alguma com a
pretensa racionalidade imanente à História que arrastaria o devir
humano em um movimento de progresso universal. (TEIXEIRA,
2003, p.71)

A chegada da teoria da evolução no século XIX, com a Europa


impulsionada pela obra de Charles Darwin (1809-1882), A origem das espécies,
de 1859, causou um grande impacto nas mais diversas áreas do pensamento
humano. Nesse sentido, todas as áreas logo se tornaram dependentes das
teorias darwinianas de alguma forma.

Sendo assim, o evolucionismo se tornou uma teoria universal. No


sentido histórico, afirmava-se que todos os grupos humanos divididos em
povos e civilizações já estariam evoluindo a fim de que, em algum momento
no devir histórico, se tornassem as maiores potências daquele momento
europeu do século XIX. Ao longo do tempo, ficou claro que a percepção
evolucionista aplicada às Ciências Humanas, naquele instante, era de viés
etnocêntrico. Nesse sentido, Weber se afasta de toda tendência universalista/
evolucionista em relação ao processo de construção das civilizações modernas,
objeto de sua pesquisa.

É totalmente injusta a crítica que se faz de etnocêntrico a Weber,


um autor que, embora reconhecesse que “todo o conhecimento
da realidade cultural é sempre um conhecimento subordinado a
pontos de vista especificamente particulares” (WEBER, 1885:97),
muito se preocupou em não emitir juízos de valor. Talvez até sua
preocupação em evitar juízos de valor o tenha levado a poupar a
racionalidade ocidental de mais críticas. (TEIXEIRA, 2003, p.72)

Weber entendia a ideia de que as formas culturais possuem o seu tipo


específico de racionalização, mas, para ele, importava buscar a compreensão
de qual era a forma da racionalização das civilizações ocidentais, que, em sua
percepção, era apenas mais um tipo ideal junto às muitas outras.

A preocupação de Weber com esse tipo de racionalização ocidental


se fazia pertinente porque era uma perspectiva compreendida como aquela
que venceu diante de outras já existentes. Nesse aspecto, é perceptível
que as civilizações modernas são dependentes desse tipo de racionalização

16 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


ocidental, a qual Weber tão bem conceituou e que se aproximava da leitura
matemática que os homens fizeram da natureza, “[...] um processo crescente
de intelectualização com elaboração de princípios, regras, critérios que
pretendem ter validade universal e coerência interna, num projeto próximo
ao do matemático” (TEIXEIRA, 2003, p.72).

Para Max Weber, há uma particularidade ou unicidade para todas as


realidades históricas. Cada grupo social humano, desde o mais simples até às
civilizações modernas, possui uma forma particular de compreender e viver a
sua própria história.

Porém, essa realidade histórica particular a cada grupo humano é


o resultado de uma série de ações humanas, em seus próprios ambientes
culturais específicos. Os indivíduos, em seus grupos sociais, agem por uma
série de interesses também específicos, os quais Weber entende como ações
subjetivas.

Por isso o objetivo das ciências históricas seria tanto identificar


os fatores externos à subjetividade que levaram à essa ação (ou
seja, explicar a ação), como seria analisar essa subjetividade
compreendendo intenções e sentidos dos sujeitos (compreender a
ação). Weber adota o método compreensivo na medida em que
julga fundamental entender as disposições subjetivas dos sujeitos
para adotar ou não um estilo de vida. (TEIXEIRA, 2003, p.74)

A fim de compreendermos melhor a subjetividade dos sujeitos sociais,


ou seja, suas particularidades tornadas em ações sociais, podemos rapidamente
tratar um pouco do pensamento weberiano a respeito da religião, pois nenhum
outro sociólogo pesquisou tão a fundo a religião, principalmente a protestante
e suas ramificações, como Max Weber.

Weber nunca se interessou pelo estudo das religiões em si. O que lhe
interessava era como um determinado contexto religioso poderia influenciar
nas ações, atitudes e disposições que formatavam o fiel, promovendo a
assimilação de um certo tipo de conduta que, aqui, corresponde às orientações
do segmento religioso escolhido, o que pode envolver a rejeição de certos
hábitos de vida que são inconciliáveis com a opção religiosa do indivíduo.

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 17


Enquanto um elemento historicamente fundamental na formação
da conduta humana nas diferentes sociedades, a religião se torna
um tema de pesquisa importante. Através dela se poderia em certa
medida “compreender”, ou seja, conhecer os motivos e intenções,
de um conjunto de ações sociais. (TEIXEIRA, 2003, p.75)

A religião, para Weber, era o objeto de pesquisa na busca pela


compreensão do tipo ideal das sociedades ocidentais, extremamente
racionalizadas. Suas análises sobre o protestantismo e suas ramificações o
levaram a afirmar que as sociedades modernas ocidentais foram responsáveis
pelo sucesso do capitalismo segundo um hábito ou estilo de vida.

Weber compreendeu que alguns religiosos, nesse caso protestantes,


seguiram os padrões de vida de seus pais, mas outros, nem tanto. Ele observou
e comprovou que alguns indivíduos, em função de suas preferências religiosas,
atribuíam à vida secular o mesmo hábito de vida de seus contextos religiosos.

O protestantismo, analisado por ele, favoreceu o acúmulo de riquezas


em alguns grupos sociais modernos, já que o mundo em si, visto pela
ótica protestante, sempre foi compreendido como um lugar de perdição. O
verdadeiro tesouro, a tão almejada vida eterna, estava no pós-morte, no céu.

Mas, como a vadiagem ou preguiça também era um pecado que


levaria os protestantes ao inferno, era preciso trabalhar para agradar a Deus.
Trabalhando de forma incessante, cada protestante dava um testemunho
da existência de Deus no mundo, ou seja, suas obras mundanas, seculares,
representavam um sinal da presença de Deus no mundo perdido.

Esse ethos, o ideal de comportamento social refletido na disciplina


de vida daqueles fiéis, favoreceu o sucesso do capitalismo no mundo, já que
era necessário trabalhar praticamente em todos os dias da semana. Mas, ao
receber o seu salário, não poderiam, em virtude de sua ética protestante,
gastar seus ordenados em coisas fúteis, consideradas mundanas, que ameaçam
o seu estilo de vida, pondo em risco, inclusive, a salvação eterna almejada após
suas mortes.

18 Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas


Embora considere fundamental o papel das motivações no
desenvolvimento histórico, Weber não está advogando que os
homens sejam capazes de guiar a História segundo suas intenções.
Mas, pelo contrário, chama a atenção para os fatores históricos que
limitam essas ações e condicionam as motivações, e ainda sublinha
as consequências não intencionais de grande parte das ações humanas.
Os protestantes puritanos agiam asceticamente procurando a
salvação de suas almas e não o desenvolvimento do capitalismo. Esse
último foi uma mera consequência não intencional. (TEIXEIRA,
2003, p.95)

Portanto, as análises de Weber, quando comparadas à História,


afirmam que as pessoas não possuem o poder de controlar a História ou
os fatos que a própria vida nos apresenta em toda sua complexidade, mas
são justamente esses fatos históricos inesperados que possibilitam a ação dos
indivíduos e, como ele mesmo afirma, condicionam (regulam) as motivações
humanas.

E, nesse processo de regulação das ações humanas diante de suas


motivações para alcançarem o que desejam, surgem outros comportamentos,
os quais Weber classifica como consequências não intencionais, explicitando de
forma clara as análises do ethos (comportamento) dos puritanos protestantes
do seu tempo, que, como ideal, tinham a salvação de suas almas, segundo as
suas regras religiosas. Buscando por ela (a salvação) de maneira disciplinada,
acabaram favorecendo a afirmação do capitalismo no mundo, um acidente de
percurso, se assim pudermos conceber, visto que não essa não era, de forma
alguma, sua intenção principal.

A partir da compreensão da forma religiosa do protestantismo de


seu tempo, Weber apresentou, em suas análises, aquilo que ele formulou e
conceituou como tipo ideal. Nesse aspecto, cada grupo social nos fornece os
seus tipos ideais, sua forma particular de viver no mundo.

Para o campo da História, conforme concebido e expandido pela Escola


dos Annales, os tipos ideais weberianos ajudaram a impulsionar os estudos das
sociedades modernas. Claro que Weber é apenas mais um em meio a tantos
outros sociólogos importantes do seu tempo e de tantos outros posteriores a
ele, mas estabelece um capítulo fundamental dentro da sociologia. Sua grande

Conteúdos e Metodologias do Ensino de Ciências Humanas 19


produção textual, por vezes densa, contribui imensamente para os campos das
Ciências Sociais e das Ciências Humanas.

Neste capítulo, fizemos um breve panorama da evolução da História


até sua chegada nas academias como disciplina, enfatizando, em meio a este
processo de evolução, a marcante reviravolta causada pelos pensadores da
Escola dos Annales, os quais, abrindo mão de uma leitura da História no
mundo de maneira positivista, iniciaram uma nova concepção baseada na
colaboração de outras formas de saber, como a sociologia.

Neste sentido, vimos a importância do pensamento do sociólogo


alemão Max Weber que, dentro da sociologia, talvez seja o nome mais
estudado, de modo que suas ideias fossem mencionadas em inúmeros
trabalhos acadêmicos, artigos, monografias, dissertações e teses nas Ciências
Humanas, bem como nas Ciências Sociais, ainda que alguns de seus escritos
deixados para nós sejam complexos.

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Referências
ABBAGANANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2007.

GASPARETTO JUNIOR, A. Escola dos Annales. Infoescola. Disponível


em: https://www.infoescola.com/historia/escola-dos-annales/. Acesso em:
03 out. 2019.

TEIXEIRA, F. (org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis-


RJ: Vozes, 2003.

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