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Organização dos textos: Luiz Garcia e Lucas Murari

Ano de publicação: 2016


KAFKA E O CINEMA
Mostra Kafta e o Cinema
ÍNDICE
Luiz Garcia e Lucas Murari (orgs)
1ª Edição
Maio de 2016
ISBN: 978-85-69488-02-6
Apresentação 5
Introdução, por Lucas Murari e Luiz Garcia 7
Todos os direitos reservados.
Kaftka: Metamorfoses da Leitura, por Maria 9
É proibida a reprodução deste livro
Cristina Franco Ferraz
ou de parte de seu conteúdo sem
prévia autorização da organizadora. O Profeta e os Fantasmas, por Luís Alberto 17
Rocha Melo

Filmar Kafka, por Cédric Anger 27
Kafka na Tela: Transduções Cinematográficas, 37
por Hernán Ulm
Franz Kafka e o Cinema: O Tesouro Revelado, 43
por Luiz Soares Júnior
Abecedário Kafkaniano Segundo Kundera, por 51
Milan Kundera
Biografias 59
Filmes 60
Créditos 82
Parceiros 84

2 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 3


A
CAIXA Cultural tem a honra de apresentar ao público a
mostra Kafka e o Cinema. Os projetos que ocupam os es-
paços da CAIXA Cultural são escolhidos através de seleção
pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrá-
tica e acessível a participação de produtores e artistas de todo o
país, e mais transparente para a sociedade o investimento dos re-
cursos da empresa em patrocínio.

A mostra Kafka e o Cinema coloca em evidência filmes relacio-


nados à vida e à obra de um dos mais importantes escritores do
século XX, Franz Kafka. É uma oportunidade do público conhecer
e refletir a influência desse autor no campo do cinema. A mostra
apresentará filmes de diferentes épocas e países, entre ficções, do-
cumentários e animações, destacando a multiplicidade de aborda-
gens que o texto kafkiano suscita.

A CAIXA é reconhecida como uma das empresas que mais investem


e apóiam a cultura no Brasil, com um investimento superior a R$
60 milhões de seu orçamento em patrocínio a projetos culturais.
O patrocínio a esse projeto é mais um meio de proporcionar a re-
flexão e o entretenimento aos visitantes de seus espaços culturais,
porque a vida pede mais que um banco.

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INTRODUÇÃO
Lucas Murari
Luiz Garcia

(...) agradeço-te sinceramente, meu caro max,


só que a falta de clareza dos fatos me é ainda
mais clara do que tua explicação. a única coisa
que posso dizer com convicção nisso tudo é que
teremos de fazer visitas mais demoradas e nume-
rosas ao cinema, à sala das máquinas e às guei-
xas, para poder compreender esse assunto, não
só para nós, mas para o mundo.
Kafka, Carta a Max Brod, 22 de Agosto de 1908

F
ranz Kafka (1883 – 1924), escritor da língua alemã, nascido
em Praga, capital da República Checa, é um dos autores es-
trangeiros mais conhecidos no Brasil. Seus livros vêm sendo
publicados há décadas, despertando o interesse contínuo de
novos leitores e influenciando várias gerações. Sua importância é
tanta que o termo “kafkiano” é utilizado frequentemente como
conceito, adjetivo para o ininteligível, labiríntico, características
recorrentes em sua obra. Ele busca um texto claro e realista, mas
que oculta uma atmosfera opaca e enigmática. A interpretação di-
reta recai naquilo que o crítico literário Harold Bloom denomina
como “armadilha de sua fuga idiossincrática da interpretabilida-
de”. Escreveu romances, contos, diários, cartas, aforismos, alguns
desses inacabados. São narrativas sobre um mundo em crise, que
muitas vezes figuram a opressão, o totalitarismo e a burocratiza-
ção da vida. É um escritor essencial para compreender algumas
das mudanças na literatura, no meio artístico e no pensamento
das últimas décadas.

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A mostra Kafka e o Cinema nasceu da constatação de olhares ci-
nematográficos heterogêneos sobre seu legado. Foram seleciona- KAFKA: METAMORFOSES
dos curtas, longas-metragens, documentários e animações, que
expõem a pluralidade de abordagens que foram dadas ao seu rico DA LEITURA
universo. Modesto Carone, tradutor brasileiro de Kafka e um dos Maria Cristina Franco Ferraz
especialistas em sua obra, no ensaio Alguns comentários pessoais so-
bre a tradução literária, publicado em seu livro Lição de Kafka (Com-
panhia das Letras, 2009), argumenta sobre a dificuldade da tradu-
ção do idioma original do autor em questão. O célebre início de A
Metamorfose, no original, utiliza três negações representadas pelo

J
prefixo alemão "un": "unruhig" (in-tranquilo), "ungeheuer" (enorme, udeu habitante de Praga, Franz Kafka projetou uma visada
gigantesco, monstruoso) e "Ungeziefer" (inseto daninho que ataca oblíqua sobre o universo e a cultura alemães, criando mundos
pessoas, animais, plantas e provisões). Das três expressões, apenas bizarros e inquietantes. Seus relatos construíram espaços, se-
uma foi possível de traduzir literalmente, a de “unruhig”, aqui tra- res e experiências tão precisas e realisticamente traçados quanto
duzido por “intranquilo”. Por mais penoso que seja essa adaptação mais aparentemente “irrealistas” e labirínticos, delineados com a
linguística, Carone vem realizando um trabalho formidável como surpreendente nitidez e objetividade que em geral caracterizam os
tradutor de Kafka. Também buscamos que os filmes selecionados pesadelos. Esse efeito de “irrealização” não deve, entretanto, nos
para essa mostra estejam além da fidedignidade dos textos publi- extraviar: não corresponde de modo algum a um descolamento
cados por ele. Foi valorizado o trânsito entre as diferentes expres- com relação a processos históricos efetivamente em curso à épo-
sões artísticas. A mostra buscou ressaltar como o escritor foi visto ca. Opera, ao contrário, uma lúcida e irônica desmontagem de me-
por cineastas transnacionais no decorrer da história do cinema. canismos de poder, de regimes de valores efetivamente presentes.
São adaptações, transposições ou obras que se inserem naquilo
que denominamos como sensibilidade kafkiana. De início, cabe explicitar, de modo breve, a perspectiva de leitura
adotada. Com esse fim, retomo a seguir algumas observações de
Gilles Deleuze e Félix Guattari que confluem com a deste artigo.
No livro Kafka: Por uma literatura menor, os autores afastam o es-
critor da neutralização efetuada por interpretações que insistem
em considerá-lo afastado do “real”, lendo-o como um escritor inti-
mista, simbolista, alegórico ou absurdo. Segundo Deleuze e Guat-
tari, Kafka – tal como Nietzsche e Beckett, um “autor que ri” – é
um escritor sobretudo “político, adivinho do mundo futuro” (De-
leuze e Guattari, 1975, p. 75). Eis o que os autores escrevem em um
pé de página esclarecedor:

“Cólera de Kafka quando era tratado como um es-


critor intimista: assim, desde o início das cartas a
Felícia, sua reação violenta contra os leitores ou os

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críticos que falam, antes de mais nada, em vida in- “Esse método da desmontagem ativa não passa pela crítica, que
terior. (…) Não é por acaso que toda interpretação ainda pertence à representação. Consiste, antes, em prolongar, em
de tendência neurótica insiste ao mesmo tempo em acelerar todo um movimento que já atravessa o campo social: ele
um lado trágico e angustiado e em um lado apolíti- incide em um virtual já real sem ser atual (as potências diabólicas
co. A alegria de Kafka, ou do que Kafka escreve, não do futuro que, por ora, somente batem à porta).” (Deleuze e Guat-
é menos importante que sua realidade e seu cunho tari, 1975, pp. 88-89).
políticos. (…) Não dispomos de outro critério para o
gênio senão a política que o atravessa e a alegria que A partir de Henri Bergson - autor muito presente no pensamento
ele comunica. Chamamos de interpretação vil, ou deleuzeano -, o real não se confunde com o visível, mas contém
neurótica, toda leitura que transforma a genialida- uma grande parcela de virtualidade, aninha camadas de virtuali-
de em angústia, em trágico, em ‘assunto ou questão dade1. É na aceleração ficcional da realidade, por vezes ainda em
individual’. Por exemplo, Nietzsche, Kafka, Beckett, estado de virtualidade, que reside a potência política e cômica da
tanto faz: os que não os leem com muitos risos invo- obra de Kafka. Imprimindo um ritmo mais acelerado ao relógio,
luntários e com frêmitos políticos, deformam tudo.” suas obras dão a ver processos efetivamente em curso, em geral
(Deleuze e Guattari, 1975, p. 75-76) ainda não evidentes sob o modo de estados de coisas historica-
mente configurados. Tais processos são constante e insidiosamen-
A alegria referida pelos autores nessa citação pode ser aproximada te neutralizados, naturalizados pelos hábitos e pelo senso comum.
da concepção nietzschiana do trágico, remetida à força afirma- Assim é que certas “potências diabólicas do futuro” que na época
tiva que não se esquiva do aspecto problemático da vida; antes, apenas batiam à porta (fascismo, americanismo, burocracia) pre-
o acentua, intensifica e celebra, liberando o riso. Não se trata de cipitam-se nos textos alquímicos de Kafka, minuciosamente es-
uma gargalhada tola, mas de algo como o que Nietzsche chamou quadrinhadas, surpreendidas antes mesmo de alcançarem nitidez
de “riso de ouro dos deuses”, impregnado de uma distância salutar e até mesmo consistência histórica.
com relação à comédia da existência e atravessado por uma agu-
deza capaz de liberar o vivente de pressões esmagadoras. A ficção revolucionária de Kafka nada tem, portanto, de absurda.
Ela produz uma aceleração do real que termina por decodificar
Ainda segundo Deleuze e Guattari, Kafka se pretendia menos um e desmontar-lhe as ardilosas engrenagens. Só na medida em que
espelho – metáfora privilegiada tanto do mimético, do ficcional, se confunde realidade com estados de coisa, na medida em que
quanto do modelo de identidade prevalecente - do que um “relógio não se pressentem suas camadas de virtualidade é que se tende a
que avança” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 107). Em seus textos, o inscrever a literatura de Kafka no confortável lugar do absurdo, no
escritor promove uma aceleração do pensamento e da percepção zoológico do onírico, desativando sua função corrosiva como dis-
que põe a nu mecanismos políticos ainda não claramente identi- positivo de desmonte de relações de poder e valores efetivamente
ficáveis para os que recobrem o que aí está com amortecedoras operantes no mundo.
camadas de senso comum. Em O processo, por exemplo, segundo
Deleuze e Guattari, a máquina literária kafkiana procede a uma Prova dessa eficácia e inserção política residiria, como veremos,
desmontagem efetiva e potente da máquina da lei, acoplada à da em um dos textos mais conhecidos de Franz Kafka, não por acaso
representação. Os autores esclarecem: 1 A noção de virtualidade, definida como “real sem ser atual”, remete diretamente
à obra de Bergson (Bergson, 2006). No sentido filosófico, “virtual” não se opõe a
real, mas a “atual”, tal como, por exemplo, na palavra da língua inglesa actual.

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um dos mais lidos na chave do absurdo ou do pesadelo: A meta- certo dia, destino do obediente e torturado Gregor Samsa, que fica
morfose. Cabe assinalar que não estou pleiteando aqui uma leitu- de início, comicamente, mais preocupado em perder o trem e a
ra mais “verdadeira” de Kafka ou que tais interpretações estejam hora de ir trabalhar do que com sua estranha nova condição. Logo
equivocadas. O que está em jogo não é a verdade, mas, ao que me ele, que se sacrificava tanto pela família, se torna um inseto vil,
parece, algo mais grave: o interesse da literatura para nós, sua po- sujo, ser abjeto e insacrificável.
tência de falar sobre este mundo. A fim de destacar a contundên-
cia política que também atravessa A metamorfose, retomo, a se- É inevitável articular, contemporaneamente, o sentido de “insa-
guir, uma de suas expressões mais significativas, a rigor intraduzí- crificável” às teses de Giorgio Agamben a respeito da “vida nua”.
vel em português, em todas as suas nuances. Trata-se justamente Agamben recupera um velho conceito jurídico romano, o de
do inseto carapacento em que Gregor Samsa se vê (ou melhor, se “homo sacer”, remetido àquele que, sendo por demais vil para ser
percebe) metamorfoseado logo no início da novela. Na competen- sacrificado, ficava à mercê de qualquer homem, que poderia matá-
te tradução de Modesto Carone (Kafka, 2011), o que se lê é “inseto -lo sem ser punido. Agamben lembra igualmente a diferença grega
monstruoso”; em alemão ungeheures Ungeziefer (Kafka, 1999). entre bios, vida politicamente qualificada, e zoé, vida nua, huma-
namente desqualificada. O autor vincula tal categoria a modos
Em uma conferência proferida em 1983 e publicada em uma cole- de vida modernos e contemporâneos, tanto no caso dos campos
tânea de textos de Kafka, Modesto Carone ressalta a dificuldade de concentração quanto no do prolongamento tecnologicamen-
da tradução desses termos. Destaca, inicialmente, o adjetivo un- te equipado de “vidas vegetativas”, configurando o que chama de
geheuer, que significa de fato “monstruoso” e que, na forma subs- “neomortos”, seres ligados a máquinas que habitam CTI’s. A vida
tantivada, das Ungeheuer, equivale a “monstro”. O tradutor acres- politicamente desqualificada, a vida nua, pautada mais no corpo
centa: “etimologicamente, ‘aquilo que não é familiar, aquilo que biológico (com ênfase no cérebro, em hormônios e genes) do que
está fora da família, infamiliaris”, que se opõe a geheuer, o que é no sujeito da ação coletivamente determinada, também está ex-
‘manso, amistoso, conhecido, familiar’” (Kafka, 2011, p. 223). Esse pressa no termo utilizado por Kafka (Ungeziefer), não deixando,
sentido corrobora, portanto, de saída a situação tragicômica de portanto, de ter sido apontada e antecipada em A metamorfose.
Gregor Samsa, bom filho, cumpridor de deveres, que trabalhava
para sustentar a família e resgatar dívidas dos pais. E que acorda É entretanto ainda em outra direção que podemos atestar as ca-
transmutado em um antifamiliar Ungeheur. madas de virtualidade e a aceleração do relógio que se manifes-
tam nessa novela de Kafka. Com efeito, a palavra Ungeziefer teve
Tal sentido, no entanto, não esgota a expressão utilizada, pois vem uma trajetória ominosa no século XX2, tornando-se atualmente
acoplado a outra palavra repleta de historicidade. Vejamos algu- um termo tabu, evitado por alemães politicamente conscientes
mas implicações do termo alemão usado para o inseto em que ou corretos. Com efeito, esse era um termo recorrente no que se
Gregor Samsa se transforma uma manhã em que despertara de costuma chamar de “Retórica da violência”, acionada por Hitler e
sonhos inquietos. Na mesma conferência, o tradutor lembra o pela propaganda nazista, para desqualificar em especial os judeus:
sentido original pagão de Ungeziefer: “animal inadequado ou que palavras como Parasit (parasita), Wanze (percevejo), Spulwurm
não se presta ao sacrifício”. Esclarece, por fim, que esse conceito (lombriga) e Ungeziefer (inseto).
alargou-se, passando “a designar animais nocivos, principalmente
insetos, em oposição a animais domésticos como cabras, carneiros Trata-se, portanto, de um sentido mais do que pejorativo, aviltan-
etc. (Geziefer)” (ibd., p. 223). A justaposição dos dois termos inten- te, equivalendo a “praga”, menos que escória, e sugerindo uma
sifica, assim, o aspecto não familiar e indomesticável que se torna, 2 Devo tais indicações a meu professor Carlos Abbenseth.

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espécie de ser que deveria ser eliminada, erradicada. A associação uma maneira específica na sociedade alemã, mesmo na Praga do
nazista entre o judeu e o inseto insacrificável cristalizou-se histo- tempo de Kafka ou (suprema ironia) entre judeus alemanizados.
ricamente pelo menos de dois modos precisos: o gás utilizado nos Vejamos, por exemplo, um trecho da Carta ao pai (Kafka, 2007)
campos de concentração era o Ziklon B, um inseticida; a redução à em que o missivista relata de que modo o pai destratava e aviltava
mais radical vida nua efetivava o processo de eliminação da huma- seus amigos, judeus mais pobres, atores:
nidade daqueles confinados nos campos de concentração (como
atualmente, em novos campos3). Aliás, também nesse sentido ou- “Bastava que eu demonstrasse um pouco de interes-
tro texto de Kafka apresenta uma cena antecipatória: no final de A se por uma pessoa – o que não acontecia com muita
colônia penal, o estrangeiro que foge da colônia tropical, pulando freqüência, devido a meu modo de ser - para que,
em um barco, rechaça violentamente com uma corda dois habi- sem qualquer consideração por meu sentimento
tantes da ilha (o sentenciado e o guarda) que queriam escapar com ou respeito por meu julgamento, você viesse com
ele dali4. insultos, calúnias e aviltamento. Pessoas infantis e
inocentes, como por exemplo o ator ídiche Löwy, ti-
A contaminação entre praga, verme, inseto e vida nua não deixa, nham de pagar caro por isso. Sem conhecê-lo, você
evidentemente, de se manifestar na cultura e na história do Brasil. o comparava, de uma maneira tão terrível que eu já
Nossos Ungeziefer são, em geral, negros e índios, favelados, pobres tinha esquecido, a um Ungeziefer (inseto), e assim
ou nordestinos. Em uma entrevista concedida ao finado Caderno como tão frequentemente com relação a pessoas que
Prosa e Verso do jornal O Globo, publicado em 12/04/2014, Maria me eram caras, você tinha automaticamente à mão
Rita Kehl lembra que, embora evidentemente não haja confirma- provérbios sobre cães e pulgas.” (Kafka, 2007, p. 13,
ção oficial, durante a construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista), no tradução minha).
período da ditadura militar, os índios relatavam que aviões passa-
vam jogando “uma coisa que não queimava o mato, mas queimava Por esse exemplo, pode-se constatar tanto a difícil tradutibili-
a gente por dentro”. Maria Rita Kehl acrescenta: “Obviamente não dade do termo empregado por Kafka em A metamorfose quanto
há documentos oficiais sobre isso, mas, pelos relatos, podia ser sua pregnância política e social. Nesse sentido, o autor realizou
pesticida.” (Kehl, 2014, p. 3). Interpretar portanto o monstruoso na novela um verdadeiro golpe de mestre, metamorfoseando um
inseto kafkiano sobretudo na chave do onírico ou do absurdo é alemão bom filho, obediente e cioso de seus deveres no monstru-
desconhecer os ominosos crimes cotidianamente perpetrados, em oso inseto, fazendo com que incorporasse efetivamente um dos
geral contando com nossa conivência ou indiferença. Indiferença, termos mais usados para desqualificar o outro. Ao mesmo tempo,
aliás, claramente expressa no personagem do Pesquisador estran- revela de que modo a família, estrutura política de base, mostra
geiro que visita a anacrônica colônia penal para relatar o que vê, toda a sua crueldade ante as transformações radicais, perante as
agindo apenas de um modo: fugindo (Ferraz, 2015, p. 70). possíveis viradas dos filhos. Mesmo a irmã, inicialmente próxima
a Gregor Samsa metamorfoseado em inseto, e a mãe, de início
Em uma perspectiva mais diretamente ligada ao mundo em que conivente com sua alimentação, só ficam aliviadas e descortinam
Kafka viveu, assinalemos que a palavra Ungeziefer era utilizada de um nova vida, banhada de sol, depois que o Ungeziefer está morto,
eliminado, em conseqüência da agressão (com uma maçã que se
3 Agamben considerou o “estado de exceção” como regra da política.
4 Ver, a esse respeito, o capítulo 4 (“Na colônia penal: uma leitura dos trópicos”)
incrusta na carapaça) direta do pai. Eis assim mais um pesadelo
do livro Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada (Ferraz, 2015, p. que teima em se concretizar na história humana.
61-77).

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Referências Bibliográficas
O PROFETA E
AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua – Homo Sacer.
Lisboa: Editorial Presença, 1998. OS FANTASMAS
Luís Alberto Rocha Melo
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes,
2006.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka (pour une littérature mi-


neure). Paris: Minuit, 1975.

N
o futuro indeterminado em que se passa Quem é Beta?
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Ruminações: cultura letrada e dis- (Nelson Pereira dos Santos, 1973), uma guerra devastou a
persão hiperconecada. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2015. civilização e o mundo está dividido entre duas categorias
de seres humanos: os contaminados e os não-contamina-
KAFKA, Franz. Brief an den Vater. 2007. Frankfurt: Fischer Tas- dos. Enquanto estes se protegem em abrigos e trincheiras, aqueles
chenbuch Verlag, 2007. vagam pela terra como zumbis, clamando por comida e água em
meio a uma paisagem tropical exuberante. Vestem-se com trapos
______. Die Verwandlung. Frankfurt: Suhrkamp, 1999. e panos coloridos, são magros e depauperados, andam a esmo,
em bandos, e se tornam presas fáceis das balas disparadas pelos
______. Essencial Franz Kafka. Seleção, introdução e tradução de não-contaminados.
Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Le-
tras, 2011. No Brasil em preto e branco de O profeta da fome (Maurice Ca-
povilla), cravado no ano de 1969, o horror é a medida de todas as
KEHL, Maria Rita. Entrevista ao Caderno Prosa e Verso “Violações relações. Num circo de arrabalde, um recurso extremo: a grande
de ontem e hoje”. Jornal O Globo, 12/04/2014. atração é o homem que come gente. Só assim o público pagante
aumenta. A audiência exige o macabro espetáculo, mas um incên-
dio destrói o circo. Enquanto astronautas pousam na Lua, os lixões
proliferam, os homens se matam por um pedaço de pão ou um
naco de carne e um artista de circo descobre que só será possível
escapar da miséria ganhando dinheiro com a própria fome.

O profeta da fome estreou nas salas paulistanas em junho de 1970,


durante a Copa do Mundo, um dos períodos mais tétricos da di-
tadura militar. Segundo o próprio Capovilla, “passou serenamente
pela censura” e “não foi mal de bilheteria” (MATTOS, Carlos Alber-
to, 2006, p. 135). Quem é Beta? foi exibido na Quinzena dos Reali-
zadores em Cannes e em seguida lançado em um único cinema
no Rio de Janeiro (o Cinema-1), em abril de 1973, sendo friamente

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recebido pela crítica e pelo público. Em um caso como no outro, Quem é Beta? aceita o desafio contemporâneo, apostando em um
verifica-se o descompasso entre o engajamento político, a neces- curioso atravessamento da cultura pop pelos novos paradigmas fi-
sidade de comunicação com o grande público e a fabulação alegó- losóficos e históricos que então ecoavam da Europa para o mundo.
rica como escape à atmosfera opressiva em que o meio cultural Nada melhor do que o gênero da ficção-científica para estabelecer
estava imerso. esse cruzamento – além, é claro, das mensagens cifradas para con-
sumo local, recurso no entanto ironicamente negado pelo diretor
Ao mesmo tempo em que volta seu olhar para o passado recente, desde o prólogo do filme, quando a tela preta e a voz over do pró-
especificamente para o Cinema Novo e o fracasso de um projeto prio Nelson advertem1:
nacional-popular abortado pelo golpe de 1964, O profeta da fome
incorpora os sinais de uma renovação latente no cinema brasileiro Não procurem mensagem neste filme; se alguma
pós-1968 – seja a partir da presença de José Mojica Marins (então houver será sempre contribuição de sua parte. Não
famosíssimo como o Zé do Caixão) interpretando o faquir Ali Khan, acreditem no que os atores estão fazendo em cena.
seja absorvendo na equipe técnica alguns dos primeiros alunos do Nunca foi de nossa intenção dar realismo ao com-
curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, como portamento dos personagens, porque tudo acontece
Roman Stulbach, Plácido de Campos Jr. e Aloysio Raulino. como numa história em quadrinhos: sem compro-
misso, absolutamente sem compromisso [...] Por isto
Não por acaso, o próprio Capovilla dirá que o filme, ao estrear em encontrem uma posição confortável na sua poltro-
1970, já chegaria “defasado em dois anos com relação às mudanças na, desatem os músculos, deixem a cabeça livre e os
de linguagem no cinema brasileiro”, embora compartilhasse com olhos também, como aliás deverão fazer em todo e
outros filmes daquele momento o desencanto em relação à capa- qualquer filme. (AVELLAR, José Carlos, 1973, p.2)
cidade de mobilização popular. “Em seguida ao AI-5”, prossegue o
cineasta, “vivíamos um processo tão destrutivo e sem esperanças Em O profeta da fome a consciência do drama reflui em sentimento
que só me restava fazer um filme que jogasse tudo para o ar. Não de horror e dilaceração, apenas em parte atenuado pelos elemen-
mais adiantava louvar o revolucionário. A alegoria era uma forma tos cômicos, aqui e ali sublinhados no roteiro. No mergulho exis-
de fugir ao confronto” (MATTOS, Carlos Alberto, 2006, pp. 135-136). tencial de Capovilla, a seriedade tem um peso trágico. É um fardo
levado às costas, ainda que prestes a ser atirado no primeiro terre-
Quem é Beta? era outra resposta às “mudanças de linguagem no no baldio à sombra dos arranha-céus. Nelson Pereira dos Santos,
cinema brasileiro” de que fala Capovilla. Atento ao trabalho de ci- por sua vez, olha de lado e sorri para o bode em que o Brasil havia
neastas mais jovens como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Luiz se tornado. Inviável o projeto nacional-popular – aliás, retomado
Rosemberg Filho, Geraldo Veloso, Neville D’Almeida e Andrea To- em nova chave no excepcional O amuleto de Ogum (1974) –, Nelson
nacci, entre outros, mas também dialogando com os companhei- realiza com Quem é Beta? um filme ambíguo, irregular, balbucian-
ros da geração anterior – Paulo César Saraceni, Walter Lima Jr. e te, absurdo, precário, sombrio. E no entanto, surpreendentemente
Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo –­ , o realizador de Rio, 40 bem-humorado.
graus e Vidas secas sabia perfeitamente que o discurso cinemano-
vista havia entrado em curto-circuito e os instrumentos de análise Tanto em O profeta da fome quanto em Quem é Beta? verifica-se
da situação política brasileira estavam sendo implodidos por uma uma violenta tensão entre o espetáculo do corpo aprisionado e
nova massa crítica, teórica e conceitual.
1 A cópia restaurada em 2007 e exibida no Canal Brasil não contém esse prólogo,
constante da versão em 35mm lançada comercialmente na época.

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o desejo de mobilidade e prazer. Para manter o interesse de um das autoridades. O paradoxo é duplamente irônico: para ganhar
público cada vez mais escasso, Ali Khan aceita mastigar cacos de dinheiro e se livrar da fome, Ali Khan precisa cultivar o jejum; para
vidro e pregos enferrujados, enfiar espadas em seu corpo, ser en- libertar-se do imobilismo servil como empregado do circo, torna-
terrado vivo e até mesmo ensaiar comer a carne tenra de uma -se um corpo imóvel e aprisionado.
criança. Com exceção da antropofagia, que lhe provoca repulsa,
todos os outros desafios o faquir cumpre com a máxima compe- Aqui verifica-se a ideia de resistência como resultado do cruzamen-
tência. A dor não o intimida, as vaias não o incomodam. Ali Khan to entre a conscientização do “personagem popular” – subtraída
é um despossuído de si próprio: alvo dos olhares de admiração ou a revolta romântica – e a solidão torturada do herói de Um artista
desprezo, seu corpo ao mesmo tempo frágil e resistente é ofereci- da fome. Nesse conto de Franz Kafka, no qual o roteiro de Maurice
do em sacrifício, já que todo sacrifício é também um espetáculo. Capovilla e Fernando Peixoto foi parcialmente inspirado, o faquir
Até aqui, a lógica do aprisionamento ainda é sutil: o circo, com busca superar sua própria perfomance como uma secreta resposta
sua lona esfarrapada e seu picadeiro miserável, é a arena na qual o ao desprezo de que passa a ser alvo. Ir além significa ultrapassar o
artista a cada noite desfaz-se de sua própria identidade. Alienação próprio corpo, desligar-se de um passado de glórias minado pelos
consentida, porque parte necessária do jogo. Mas é contra essa novos tempos de consumo imediato e reificação. É esse cruzamen-
espécie de prisão que Ali Khan lentamente se insurge. to entre a tradição cinemanovista e o expressionismo kafkiano
que faz de Ali Khan, magistralmente interpretado por José Mojica
Após o incêndio no circo, O profeta da fome retoma a clássica traje- Marins, um personagem incomum no cinema brasileiro dos anos
tória do migrante: ao lado de sua companheira Maria (Júlia Miran- 1960-70.
da) e do domador de feras (Maurício do Valle), Ali Khan encontra
um cego nordestino (Adauto Santos), mistura de oráculo e violeiro A capacidade de resistir é portanto um dado que não deve ser me-
cantador. O grupo segue por uma floresta envolta em neblina; a nosprezado na construção narrativa de O profeta da fome, e que
canção-cordel cantada pelo cego que os acompanha narra toda a também está presente em Quem é Beta?. No filme de Nelson Perei-
travessia. Por um pedaço de pão, o faquir perde um olho, extraído ra dos Santos, o conflito que se estabelece entre os contaminados
pela ponta da faca do cruel domador. Quando está prestes a ceder e os não-contaminados aponta, por um lado, para o abismo en-
o outro olho, Maria atinge com uma enorme pedra a cabeça do tre as classes sociais; por outro, para a dominação dos miseráveis
domador, que morre. pelos quem detêm a competência técnica e tecnológica. Os não-
-contaminados fazem parte desse último grupo. Possuem armas
Ali Kahn, agora cego de um olho, resolve montar com a ajuda de e radiotransmissores, alimentando com eles a máquina do poder.
Maria um espetáculo em uma cidadezinha do interior – curiosa- Mas também são vítimas desse sistema, já que se mantêm enclau-
mente indefinida em termos regionais –, no qual ele é crucificado. surados em abrigos, em uma ilusória vantagem em relação aos
O povo da cidade começa a peregrinar até o monte em que o faquir contaminados.
se exibe na cruz, e ele passa a incomodar a igreja e o coronel. Ali
Khan e Maria são presos. Sozinho em sua cela, tendo pão e água A forma arquitetônica desses abrigos – ou pelo menos do abrigo
como únicos alimentos oferecidos, Ali Khan passa os dias deitado, em que se instalam os não-contaminados Maurício (Frédéric de
jejuando. Aos poucos, em aparente delírio, toma consciência de Pasquale), Regina (Regina Rozemburgo), Gama (Jean-Dominique
sua fome e percebe nela a única arma para superar a miséria. É en- Ruhle) e Beta (Sylvie Fennec) – é moderna, circular, arejada e bem
tão que se torna o “artista da fome”, sendo exibido nas ruas de São iluminada, com grandes portas e janelas delimitando os territó-
Paulo em uma urna, chegando mesmo a ganhar o reconhecimento rios interior e exterior, não a partir da osbtrução de um ou de ou-

20 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 21


tro lado, mas da quase total visibilidade que permite enxergar o os não-contaminados são apenas intermediários entre as torres de
“dentro” e o “fora” sem obstáculos significativos. Os habitantes controle – verdadeiras instituições disciplinares ocultas pelas on-
desse abrigo são, por sua vez, monitorados por invisíveis estações das de transmissão sonora – e as hordas de desnutridos que vagam
de controle, acessadas pelos radiotransmissores. Aparentemente, pelo mundo.
os não-contaminados dominam o território, expulsando ou elimi-
nando a tiros os contaminados. Mas na verdade são os não-conta- A ideia de uma sociedade panóptica é comum a Foucault e a Kafka,
minados que se encontram sitiados, peças de uma engrenagem de bastando citar em relação ao segundo os romances O processo e
vigilância e autovigilância ininterrupta, introjetada e tanto mais O castelo. Como salienta Margareth Rago a propósito de Vigiar e
eficaz quanto menos discernível. punir e do conto Um relatório para uma Academia, em Foucault e
Kafka “o homem aparece como uma triste figura da Modernidade,
Não é difícil reconhecer aí a sociedade panóptica formulada por pois sua origem, que tem uma data e uma história, advém de um
Michel Foucault em Vigiar e punir, que teria no projeto arquitetô- encarceramento relativamente recente” e “resulta da supressão da
nico de Jeremy Bentham seu modelo inspirador: liberdade animal, do confinamento em jaula, da territorialização.”
(RAGO, Margareth, 2005, p.42).
[...] se é verdade que a vigilância repousa sobre indiví-
duos, seu funcionamento é o de uma rede de relações O faquir Ali Kahn e os não-contaminados pertencem a essa espé-
de alto a baixo, mas também até um certo ponto de cie de “humanos enjaulados”, como demonstram as semelhanças
baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” entre a circularidade do palco circense e a arquitetura panóptica
o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se do esconderijo futurista – ambas sublinhadas, aliás, no uso expres-
apoiam uns sobre os outros; fiscais perpetuamente sionista da lente grande-angular pelos fotógrafos Jorge Bodanzky
fiscalizados. (FOUCAULT, Michel. 2009, p.170) e Dib Lutfi –, ou entre as estruturas devassadas da urna em que se
imobiliza o jejuador e do abrigo em que se escondem os não-con-
As bases dessa vigilância são a visibilidade e o anonimato. Por isso, taminados. A urna transparente e o abrigo exposto à luz solar e aos
ver sem ser visto é tão necessário para os que de fato estão no holofotes de segurança impõem a seus habitantes o regime das
controle do sistema. Os não-contaminados acreditam ocupar o lu- noites brancas, a vigilância incontornável, a atualização incessante
gar de mando, de quem vê sem ser visto, ou seja, daqueles que do presente – seja no exercício de concentração que administra a
vigiam e estão sempre prontos a eliminar o perigo e a reinstituir a fome, seja na paranoia que disciplina os corpos em guerra. Nesse
ordem – um perigo que de fato não os ameaça, e uma ordem que processo, o apagamento do passado é etapa fundamental para a
também não lhes interessa, mas que cultivam como escravos sem sobrevivência diária e para a docilidade dos subordinados.
correntes. O preço dessa ilusão é o despertar compulsório e o ata-
que sem tréguas ao potencial subversivo das temporalidades sub- A representação da sociedade disciplinar contida em O profeta da
jetivas – incluindo aí a memória, os sonhos, os desejos. O ontem fome e em Quem é Beta? se mantém atual e ecoa na formulação de
ou o amanhã deixam assim de fazer sentido. A perda da memória Jonathan Crary a respeito do novo estágio da economia capitalista
e a destruição das utopias são decorrências diretas de um presente contemporânea, que o autor denomina de “24/7”, e que pressupõe,
intensificado e sempre renovado, ou seja, constantemente defa- entre outras coisas, o trabalho e o consumo sem pausas em uma
sado. Eis a perversidade da operação: a ideia de passado é substi- sociedade altamente informatizada:
tuída pela fórmula do eterno atraso; o futuro torna-se sincronia
impossível. Condenados ao presente e à visibilidade constantes, Um mundo 24/7 é desencantado, sem sombras nem

22 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 23


obscuridade ou temporalidades alternativas. É um também o são os contaminados, mas sua capacidade de romper as
mundo idêntico a si mesmo, um mundo com o mais fronteiras eugênicas a singulariza em relação aos demais. Talvez
superficial dos passados, e por isso sem espectros. uma questão de classe? O fato é que quando Beta retorna ao abri-
Mas a homogeneidade do presente é um efeito da go, Maurício dispara em sua imagem, mas ela reaparece duplica-
luminosidade fraudulenta que pretende se estender da nela mesma e em outra mulher, grávida (Ana Maria Miranda),
a tudo e se antecipar a todo mistério ou ao desco- lembrando o sol duplo de A máquina fantástica, de Adolfo Bioy Ca-
nhecido. Um mundo 24/7 produz uma equivalência sares – romance com o qual, aliás, Quem é Beta? também guarda
aparente entre o que está imediatamente disponível, forte identidade. Beta e a mulher grávida são imagens produzidas
acessível ou inutilizável e o que realmente existe. O e reproduzidas no interior/exterior dos desejos e das lembranças,
espectral é, de alguma maneira, a intrusão ou irrup- passado/futuro eclipsando o presente, bomba-relógio de efeito
ção no presente por algo que está fora do tempo e desconhecido. Uma descontinuidade, um ruído na luminosidade
pelos fantasmas do que não foi descartado pela mo- opressora, interstício por onde penetra aquilo que ainda virá.
dernidade, de vítimas que não serão esquecidas, da
emancipação não realizada. (CRARY, Jonathan, 2014, Em Quem é Beta?, a capacidade inerente ao cinema de registrar a
p.29) vida e transformar esses registros em fantasmas do passado que as-
sombram o presente não deixa de ser vista como um instrumento
Como foi dito acima, o ato de resistir, evidente em O profeta da de libertação. Outras possibilidades de resistência se apresentam
fome, também está presente no filme de Nelson Pereira. As “tem- no filme, a exemplo da comunidade hippie com a qual Maurício e
poralidades alternativas” e os “fantasmas” de que falam Jonathan Beta interagem. Os integrantes dessa comunidade procuram, sub-
Crary surgem em Quem é Beta? de maneira cristalina. No primei- vertendo a temporalidade normativa, reconectar-se com a natu-
ro caso, a irrupção do passado se torna possível quando Maurício reza e a espiritualidade, isto é, com um passado pré-industrial no
apresenta a Regina um aparelho que ele mesmo construiu, em seus presente da devastação capitalista. Curiosamente, essa comuni-
mínimos detalhes, e que consegue materializar “os pensamentos dade alternativa também utiliza o aparelho de projetar memórias
da cuca”. Maurício projeta as imagens desse aparelho em uma tela para se comunicar com um de seus membros (Arduíno Colasanti),
de fumaça. As imagens projetadas são as memórias afetivas dos que se encontra exilado.
personagens. O potencial transformador desse aparelho está no
entanto limitado ao abrigo em que se encerram os não-contamina- Mas não sejamos ingênuos: o aparelho que capta e reproduz ima-
dos e portanto tem um alcance ainda diminuto. Mas quando Beta, gens é similar ao fuzil. O olho que materializa os sonhos é o mes-
a personagem-chave do filme, se introduz no cotidiano de Maurí- mo que mira impiedosamente nos contaminados. O simples gesto
cio e Regina, não só o aparelho passa a ser usado como registro de fechar um olho e manter o outro aberto não deixa de reproduzir
de um projeto futuro (Beta “grava”, nele, seu desejo de partir e de em escala mínima a tensão proposta por Capovilla e Nelson Perei-
viver novas aventuras), como as imagens projetadas ultrapassam ra entre a vigília e a impossibilidade do sono, entre o autocontro-
os limites do abrigo: quando ela parte, leva também as memórias le e a vigilância exterior, entre a subjetividade e a sujeição, entre
de Maurício e Regina em sua bolsa. aquilo que se vê e aquilo que não se pode (ou não se deve) projetar.
Nesse sentido, o tapa-olho de Ali Khan é quase uma gag: em terra
De certa forma, Beta é um fantasma, um espectro que desesta- de cego, quem tem um olho é rei.
biliza a homogeneidade do presente, e o espectro é outra figura
desafiadora e recorrente em Kafka. Beta é um fantasma como A amargura de O profeta da fome e o humor quase cínico de Quem

24 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 25


é Beta? talvez não tenham sido devidamente valorizados ou com-
preendidos em sua época. Mas como objetos fantasmáticos, via- FILMAR KAFKA
jaram no tempo e chegaram até nós luminosos, desconcertantes
Cédric Anger1
e inspiradores.

Referências Bibliográficas

AVELLAR, José Carlos. “As memórias na fumaça”. Jornal do Brasil


(Caderno B). Rio de Janeiro: 13 jun 1973.

A
obra literária de Franz Kafka não é as das mais adaptadas
CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São
para o cinema. Errado. Além dos formidáveis O Proces-
Paulo: Cosac Naify, 2014.
so (Le Procès, 1962) de Orson Welles e Relações de Classe
(Klassenverhältnisse, 1984) de Jean-Marie Straub e Da-
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópo-
nièle Huillet, os cineastas da Europa Central de todas as épocas
lis: Vozes, 2009.
não param de se debruçarem sobre o seu trabalho. Muitos outros
diretores, anglo-saxônicos e nórdicos, russos e sul-americanos
MATTOS, Carlos Alberto. Maurice Capovilla: A imagem crítica. São
são também inspirados pelo genial autor tcheco e fazem seus o
Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
mundo sufocante e absurdo pleno de questões sobre o indivíduo,
RAGO, Margareth. “Rir das origens”. In: SILVEIRA, Rosa Maria Hes- a justiça, a lei e a culpabilidade. Suas adaptações ficam para serem
sel [org.]. Cultura, poder e educação: um debate sobre estudos cul- descobertas. Enquanto aguardamos, vamos revisitar algumas ilus-
turais em educação. Canoas: Ed. ULBRA, 2005. tres adaptações de cineastas que têm introduzido em seus filmes
textos do nosso autor, ou mesmo filmado o próprio escritor ou
alguém muito próximo a ele.

Filmar Kafka

O Processo de Orson Welles.

De todas as adaptações cinematográficas das obras de Kafka, O


Processo de Orson Welles permanece a mais célebre e fiel ao espí-
rito do livro que o originou. Que conta o romance? A história da
angústia que um ser alimenta, preza, provoca, permanecendo até
a autoculpabilidade mental. Esse desenvolvimento somente leva a
um processo fatal que o indivíduo provoca em si mesmo. Joseph K.
1 Este texto foi publicado originalmente em BAX, Dominique. Théâtres au cinéma
n. 8 – Milos Forman, Franz Kafka. Collection Magic Cinéma 1997. Todos os direitos
reservados. Republicado com permissão dos detentores dos direitos autorais.

26 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 27


é a pura inteligência dilacerada entre a culpabilidade que ela se faz de Orsay a Zagrebe, o cenário denota sistematicamente um espaço
e a inocência que ela mesma procura provar. Alguém que se faz a que não é preenchido, e não é por acaso que está sempre comple-
cada vez seu próprio juiz e advogado, duplo que se torna cada vez tamente vazio (só a sala do tribunal será um “lugar cheio”, mas
mais arrepiante e monstruoso, pois, amando sua angústia como totalmente desiquilibrada). Onde nos espantamos com as cenas
ele faz, K. não pode mais e nem quer mais, provar sua inocência. finais entre Orson Welles e Perkins até o apagar da lanterna mági-
ca. Permanece somente a grande tela vazia que chega a ser mais
Como diz o advogado, “Os acusados são atraídos”. Em outras pa- preenchida. Essa noção de vazio atrai a personagem e o obriga a
lavras, a personagem aqui é vítima do fenômeno da atração para se perder. O Processo é a encenação de uma perdição pelo vazio.
a culpabilidade e angústia. O filme de Welles será antes de tudo K. vai em direção ao seu próprio vazio, a busca, a alimentação e a
a análise clínica da paranoia que segue tal situação. A paranoia é concretização para mergulhar de corpo e alma. Como sempre em
projetar sua angústia sobre o mundo para provar finalmente que Welles, o vazio e o desvario são também sonoros. As personagens
é o mundo que está enfermo e não si mesmo. Assim, o primeiro nunca param de falar, são verdadeiros “moinhos de palavras”, pro-
plano do filme mostra como o mundo é visto pelo olho do pacien- vocando um tipo de desvario sonoro que leva K. em direção a sua
te. Este será o desafio do filme: como o paciente vai criar uma perda. Homem de rádio, Welles trabalha bastante a diferenciação
objetividade para a sua doença e como vai procurar para provar de voz, das sonoridades das cordas vocais e implantando um jogo
que realmente é o mundo, o universo que está realmente doente e de interação entre as vozes que se sucedem e se sobrepõem, se
não ele. O Processo se desenrola nesse discurso mental doentio de entrelaçam até perturbar e distorcer os pontos da percepção da
um ser que se sente culpado e fabrica em seu espírito acusações e ação (não sabemos mais quem fala)2.
contra-acusações. O desenvolvimento mental de seu pensamento
o faz culpar-se sempre um pouco mais, até que seja totalmente Welles encontra também um equivalente cinematográfico ao des-
dominado, sugado, por essa culpabilidade que ele criou. O Processo locamento espacial Kafkiano utilizando metodicamente a focal
mergulha em um espaço mental que se alimenta de sua própria curta que alonga as perspectivas e dá a impressão que o fundo do
angústia e prova de uma necessidade vital de alimentar-se desse plano é muito mais distante do que é realmente. Em O Processo
medo. Inevitavelmente, esse espaço cerebral não pode ser preen- quando uma personagem vem do fundo, nos dá a sensação dela
chido permanentemente, pelo movimento até a angústia, é preci- vir muito mais rápido que o normal uma vez que ela absorve toda
so esvaziar toda possibilidade de estabilidade de reintroduzir per- distância ótica que a focal curta revela. Assim, temos a impressão
manentemente a inquietude pelo vazio e pelo desvario. A direção da velocidade acelerada a cada deslocamento das protagonistas,
de Welles nunca trabalha com o espaço pleno, não há sensação a sensação de distorção permanente do espaço. Como todos os
de plenitude, ao contrário, permanentemente o espaço está vazio. grandes cineastas, o procedimento técnico é para acentuar e re-
O estilo de Welles, na sua própria maneira de interpretar, Cidadão forçar o tema do filme (a sensação psicológica): traçando a impos-
Kane (Citizen Kane, 1941) até A Marca da Maldade (Touch of Evil, sibilidade de estar de qualquer maneira que seja estável. O espaço
1958), geralmente “embaralha o espaço”. Ao escolher o magro e está permanentemente entrecortado.
elegante Anthony Perkins para interpretar Joseph K. e a manei-
ra que ele ocupa o plano/quadro dá repentinamente a impressão O cineasta, desse modo, traduz espacialmente as consequências
de um espaço que está constantemente vazio, de uma superfície da doença mental e das angústias (agorafobia e claustrofobia) de
que nunca chega a ser preenchida. Tal é a sensação trabalhada no
2 Invenção sonora que será repetida e retrabalhada mais tarde por Godard, ci-
filme: A impossibilidade de ter um espaço ocupado. O Processo é
neasta moderno que costuma quebrar os marcadores comuns dos espaços visuais
para Orson Welles o filme da perda do espaço. Do hall da estação e sonoros.

28 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 29


K. Onde quer que vá, Joseph se sente aprisionado e procura esca- mos menos luz, tão exposto e vulnerável. Pois a luz revela as pes-
par deste aprisionamento através de um movimento incessante. soas, as fazem sair da sombra, as colocam em posição de se expor
Daí a extrema mobilidade do filme e a descontinuidade resultante e daí perdem o poder. No início do filme, K. está totalmente na
da narrativa. O filme funciona como uma viagem, e cada sequên- sombra, ele tem o poder de imaginar que se coloca em atividade
cia é tratada como uma etapa dessa viagem. Não esqueçamos que e deslancha o fenômeno da culpabilização. À medida que o filme
o puzzle, presente desde Cidadão Kane, é o recurso principal da avança, Perkins vai saindo da sombra, se expondo cada vez mais,
construção dos filmes de Welles que não trabalha a história conti- pois dominado pelas forças das sombras e seu poder. Welles apre-
nuamente, mas, rompe-a constantemente. Welles é o cineasta da senta a paranoia de K. até no seu sistema expressionista. Se toda
continuidade quebrada, da ruptura dentro da continuidade. angústia projetar outra nova, todo poder, toda sombra projeta luz
e outro poder que vem destruí-los. Assim, o fim do filme será do
Influenciado principalmente pelo expressionismo, o seu sistema modo contrário ao início, fazendo K. passar da sombra para a luz.
também é baseado no tratamento particular de luz e sombra. Para Tudo é invertido, mesmo o comportamento da personagem é mu-
o autor de Mr. Arkadin (1955), a sombra é a zona onde reside o espa- dado, o pijama negro, agora dá lugar a uma camisa branca...
ço do poder. Toda pessoa que deseja o poder, coloca-se na sombra
e lá permanece. Assim, o cineasta liga a noção de poder com aque- Quando o filme começa, Joseph K. tem o poder, ele esconde sua
le mau. O poder, a sombra em Welles, antes de tudo é o dinheiro angústia e sua culpabilidade. Ele desencadeia a narrativa. Assim K.
(como em Balzac) sempre obscuro e escondido. Lembremos em prepara o primeiro policial, os três colegas de escritório... No fim,
Cidadão Kane a cena chave das memórias do banqueiro Thatcher ele vai esconder um sistema, mesmo que mental, que vai estar
que nos mergulha em um tipo de fortificação com entrada subter- preso no poder desta paranoia e totalmente dominado, absorvido
rânea onde o que se esconde são lembranças financeiras, como por ela. Pode-se dizer que a primeira parte, subjetiva, do Proces-
chega o dinheiro, se faz e o fabrica. Essa ideia do dinheiro ligado so nos mostra K. amando sua angústia, tendo prazer em ter uma
ao poder é o coração de toda a obra de Welles, baseada na noção profunda emoção sobre seu próprio caso e que a segunda parte é
de corrupção e de deterioração do poder. O Processo não foge a a objetivação desse medo. De um só golpe, esse mundo secreta-
esta fascinação de decrepitude na cena muito bonita com Suzanne mente existe e ele não passa de uma engrenagem desse sistema.
Flon, que interpreta a mulher que carrega a mala. Aqui é retomada Nesse momento a música cessa, aliás, deixa de ser uma melodia
a atração de Welles por tudo o que é degradação corporal sempre xaroposa para tornar-se completamente dramática. Esta encena-
associado, por ele, a perda do poder (A Marca da Maldade) onde ção da paranoia será, também, reforçada por todo um trabalho
o constante trabalho do autor-ator sobre a deformidade física, a de oposição entre os diferentes olhares das personagens do filme.
desgraça física se opõe a tudo o que é sedutor. Entre os olhares quase icônicos, fixos daqueles que o julgam, e o
de Perkins, agudo, inquieto e retrocedente, rápido em relação aos
Mas, retornemos a essa vontade de poder que anima a todos os olhos fixos das garotas. Tudo se passa como se fosse espionado
personagens de Welles e trair fazendo sua impotência profunda. permanentemente e não pudesse escapar desses olhares que lhe
Pois, a encenação do poder implica outro tanto da impotência. O fitam.
imaginário do nosso autor, se baseia na lógica dialética da oposi-
ção permanente entre poder e impotência como entre o negro e O Processo se desenrola como um diálogo interior, que mostra um
o branco. O poder projeta a impotência assim como o negro pro- ser que faz e responde questões, juiz e advogado. O filme é somen-
jeta o branco. De onde o combate no final do filme entre Welles e te a encenação de uma projeção abstrata que uma personagem
Perkins, aqui será mais da sombra em relação à Fautre. Aqui tere- faz sobre o mundo, e nos faz entrar no sistema onde o principio da

30 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 31


lógica é se autodestruir. No centro do sistema, do modo de pensar, de Kafka ao seu trabalho: “É preciso mostrar as coisas como estra-
de uma inteligência doente que adora sua angústia e tem necessi- nhas”. Fazer as coisas à sua estranheza, ir em direção à atribuição
dade dessa angústia destrutiva para existir. É aqui que o filme res- e a dissonância em vez do acordo perfeito onde persiste a nos dizer
titui de maneira única, o imaginário de Kafka, nesta encenação de que é harmonioso e natural, ao mesmo tempo em que caracteriza
um processo mental que esconde o medo, o apreço, e o alimenta o materialismo dos Straub e de Kafka. Estranho, definitivamen-
permanentemente até que ela o leve à ruína. te, é o mundo que Karl Rossmann, jovem alemão de boa família,
encontra chegando a América. E não são somente os seus olhos,
Relações de Classe de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet ainda mais estranhamente, os habitantes dessa América industrial
do começo do século se ofuscando da selvageria das relações de
Com os Straub e a adaptação de Amérique, rebatizado Relações de poder. E é somente pelo olhar de Rossmann e também, por aquele
Classe, um novo horizonte se desenha quanto à maneira de com- que o Outro leva sobre ele, que se revela, em sua verdadeira luz,
preender a obra de Kafka. Para ver o filme (filme singular dentro a monstruosidade desse mundo. Rossmann é um corpo exposto
de sua obra, sem ser um produto, no entanto, fundamentalmen- e tomado como refém, submisso a todos os desejos e abusos aos
te estranha a ela) diremos que não é aqui uma questão de uma corpos estranhos que vêm cristalizar todas as paixões humanas.
boa ou ruim adaptação ou de uma boa ou ruim leitura de Kafka, Tomado, alternadamente, no funcionamento de um hotel e sob
mas de uma intimidade maior entre os dois autores, um acordo o jugo de uma mulher auxiliada por dois bandidos, sua consciên-
mais profundo, tanto de tema como de escrita. E as adaptações cia triunfante de intelectual acaba mal, até o inconsciente (como
são tão belas quanto ao do escritor original, essa proximidade es- na bela cena onde Rossmann mora, preso na varanda) pouco a
sencial pode-se dar o nome de ressonância estética. Ela existe em pouco dá lugar a uma serena lucidez do desastre. Poderíamos nos
Bresson e Bernanos ou Mizoguchi e Dostoievski, aqui ela se impõe estender sobre o título do filme. Por que os Straub substituíram o
com evidência entre Straub e Kafka. É de tal modo evidente, que título do romance para Relações de Classe? Ainda que as confron-
pensamos que os cineastas mais próximos a Kafka (apesar da boa tações de classes não sejam estranhas ao mundo de Kafka – cada
vontade dos autores) são quase, apesar deles mesmos, por ata- um afirma exclusivamente sua posição sobre o problema social,
vismo. Portanto, O Processo de Orson Welles (também poderoso) e todo ato é, antes de tudo, uma maneira de reivindicação – esta
não constitui o melhor filme e nem a melhor adaptação de Kafka. focalização dos Straub rever diretamente a ideia que eles fazem de
Se não for para ser ressonância estética, na obra dele, isso é em cinema: no cinema não se trapaceia. O julgamento não pode ser
Shakespeare, do qual fez seus melhores filmes, salvo Mr. Arkadin colocado em suspenso porque um plano é imediatamente político,
e A Marca da Maldade. Welles tem certeza de um demiurgo amar- imediatamente um assunto distante. E essa distância ao qual co-
rado à mesma ideia do labirinto, a mesma noção de absurdo que locamos o sujeito é inexoravelmente um ângulo de ataque pessoal
Kafka, mas permanece, contudo, como um ogro que abraça toda em relação à obra de Kafka. Discursar, para os Straub, da condição
a desordem do mundo. Ele é o castelo, por si só, um castelo ainda humana não é suficiente, há montagem mais perversa entre o ho-
muito habitado para ser unicamente Kafkiano, mesmo em relação mem e aquele que o produz (que já escapou) a justiça em O Pro-
à arquitetura. O imaginário de Kafka e de Welles encontrou as leis cesso ou o capitalismo aqui, mais abstrato, mas as consequências
geométricas similares para exprimir estados ainda distintos (o to- bem concretas: As relações de classes. E os Straub as fazem existir.
talmente cheio reúne-se ao vazio, e Deus a Marx). Os Straub, ao
contrário desse mágico, tomam Kafka pela outra extremidade. Eles Une villa aux environs de New York de Benoît Jacquot
não mistificam, ao contrário, desmistificam, e encontram Kafka
onde ele está, na matéria. Eles têm uma expressão que é adaptada Cineasta da angústia visceral e íntima, Benoît Jacquot se confronta

32 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 33


à América. Seu episódio da série “Télévision de chambre”, Une villa filme para a América do romance) personagens transportados ao
aux environs de New York (1983), filmado em 1982, é a adaptação fiel longo de uma viagem inicial. Fellini, desse modo, justapõe tempo e
do terceiro capítulo do romance de Kafka. Com base na exploração ação, testemunha de um cinema do passado do qual ele é um dos
de um local, a “vila” do título, o filme desenrola toda a narrativa últimos representantes.
labiríntica onde Karl Rossman (Nicolas Baby) se perde nos longos
corredores do lugar, corredores escuros, pouco claros, em inúme- Milena de Véra Belmont e Kafka de Steven Soderbergh
ros quartos e salas contíguas...
As adaptações ou citações colocadas à parte, alguns cineastas ti-
Precisa, a direção de Jacquot estuda minuciosamente, como um veram a ideia de trabalhar as personagens reais próximos ao escri-
microscópio, os sinais e pistas da angústia que gradativamente tor. Assim, Véra Belmont se lança em 1990 na direção arriscada e
cresce resultante de divagações e desregramentos do jovem em perigosa sobre a vida de Milena Jesenska e saindo-se muito bem.
um lugar misterioso e pouco a pouco maléfico (o tratamento O filme nos leva na Europa central do início do século e toma parti-
espacial e labiríntico da vila já evoca o estabelecimento no qual do, conseguindo sucesso da seguinte forma: mostrar Milena como
evoluirá alguns anos mais tarde em La Fille Seule (1995). A direção uma mulher simples e uma personagem normal de ficção para fora
despojada, apurada ao máximo, e sua exploração inquieta e an- de toda consideração literária e mitológica. Comunista, feminista,
gustiante desse lugar que parece sem limites, faz nascer pouco a resistente clandestina na ocupação nazista, Véra Belmont poderia
pouco e sem “efeitos” um tipo de fantástico inédito que pinta toda ter feito facilmente de Milena uma figura histórica exemplar. Mas,
a adaptação literária do texto de Kafka de um onirismo frio e seco não. Crítica, tradutora, confidente e depois amante de Kafka, en-
próprio do estilo de Jacquot. volvida em escândalos por ser usuária de drogas e seus costumes,
teria sido muito fácil criar uma lenda artística e sentimental. Mas,
Entrevista de Federico Fellini a cineasta não caiu nem nas armadilhas da reconstrução histórica
e nem na mitologia literária. O sucesso de Milena (1991) detém, a
Ainda se trata de América em Entrevista (Intervista, 1987) de Federi- sua maneira, de acabar em cena uma história banal de amor e sua
co Fellini. O mestre italiano se prepara para filmar uma adaptação aventura física sem se preocupar com a figura central de Lettres à
do romance de Kafka que ele não escolheu por acaso: Entrevista re- Milena de Franz Kafka.
toma a crítica kafkiana ao capitalismo americano e o aplica ao de-
clínio fatal do cinema. Fellini faz assim uma viagem nostálgica nas O escritor e sua musa nos parecem assim surpreendentemente au-
antigas mitologias do grande cinema que se passava alegremente tênticos e liberados do fardo do destino literário que pesam sobre
da América (aqui nos grandes estúdios italianos, o planeta cinecit- eles. O filme não ignora a história para tanto, e evoca fielmente
tà) longe do caos sem graça do audiovisual ocidental. Ele relata a o espírito da época, as conversas entre intelectuais tchecos eslo-
um canal de televisão japonês que chega ao set de filmagem, o que vacos e austríacos. É necessário tomar o filme de Véra Belmont
era o cinema, e o que era o imaginário coletivo que ele divulgava. como o retrato de um ser e de sua personalidade, uma tentativa
bem sucedida de fazer viver plenamente uma personagem que não
A narrativa de Entrevista apresenta também, várias analogias com existe somente em relação a outro (“mulher de...”). Assim, Milena
aquelas de América: mesma construção em capítulos sem ligações escapa aos arquétipos e convenções de uma biografia santificada.
lógicas, alternância de cenas fantásticas e oníricas com outras re-
alistas e descritivas, bifurcações repentinas em direção ao imagi- Não se pode dizer, infelizmente, muito de Kafka (1991) de Steven
nário e a digressão permanente, viagem no espaço (do estúdio do Soderbergh. Nem biográfico, nem filme de gênero, o filme, for-

34 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 35


çado a hesitar entre as duas opções, os mistura curiosamente em
uma só: mergulha Kafka em um thriller-catálogo de seus temas
KAFKA NA TELA:
mais evidentes (o sufocamento, as alucinações, a perda da luci-
dez...). Assim, o escritor sofre uma série de aventuras em um uni-
TRANSDUÇÕES
verso de pesadelo que inunda sob os pés de numerosas referên-
cias cinéfilas do cineasta, de Welles a Murnau, do expressionismo
CINEMATOGRÁFICAS 1
ao cinema fantástico. Steven Soderbergh não traz assim grande Hernán Ulm
coisa para o conhecimento do autor do qual ele guarda somente
a imagem oficial e reduzida. Seu Kafka e seus numerosos efeitos
(mistura cor e preto e branco, clichés expressionistas, piruetas no
roteiro) propõem somente ao espectador, como um guia turístico, A distância inacessível

T
“um pequeno mundo kafkiano”, um antiquado que nunca passa
do imaginário convencional. alvez uns dos rasgos mais notados pelos críticos de Kafka
seja o caráter inconcluso da “obra” (mas há uma “obra”
© Cédric Anger, Janeiro de 1997 kafkiana ou, na verdade, o trabalho de Kafka impugna pre-
cisamente esse conceito?). Ao longo de breves relatos, afo-
Tradução: João Ulisses de Melo Filho rismos, correspondências e romances inacabados, o escritor checo
parece afirmar, em cada momento, o caráter peremptoriamente
incompleto da literatura. Mas também, rabiscada no umbral do
que somos, esse trabalho afirmaria – em sua insistência não con-
clusiva – o caráter radicalmente fragmentário da experiência de
nossa contemporaneidade: a recusa da totalidade não seria, na
verdade, o índice da impotência de escrita, mas a única possibili-
dade que cabe a quem quer escrever. Desse modo, a incompletude
não assinalaria tanto para a incapacidade da literatura para fazer
um mundo fechado (como almejava a velha teoria romântica das
artes), mas para a revelação de um mundo que tem explodido e do
qual apenas ficam cacos. A escrita kafkiana vem a oferecer o tes-
temunho do limite no qual a narração esbarra contra ela mesma
e, assim, seria a constatação de que a unidade das coisas tem se
quebrado: os fragmentos não seriam já as “partes” de uma “tota-
1 O conceito de “transdução” foi criado por Gilbert Simondon como um modo de
pensar a evolução dos objetos técnicos. Segundo o filósofo francês tais objetos,
para além da oposição entre continuidade e descontinuidade, evoluem segundo
um processo pelo qual parte de um objeto passa a funcionar num outro modi-
ficando-o e permitindo a criação de novas funções que não estavam pensadas
no objeto anterior. As relações entre literatura e cinema poderiam desse modo
compreender-se como transduções: alguma coisa da literatura é apropriada pelo
cinema e configurada numa lógica que não é já a literária.

36 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 37


lidade” perdida ou de uma “totalidade por vir” (e que o livro viria a câmera produz uma visibilidade impossível, estranhamento das
a restituir). Os fragmentos não são as “partes” de uma unidade organizações das sequências por uma montagem que tende a se
quebrada, mas a afirmação de que já não pertencemos a unidade contrapor à intensidade do drama. Tudo isso faz com que se apa-
nenhuma. Eminência dos fragmentos que constituem a condição guem as referências que organizariam os espaços que percorrem
do que somos e do que temos que confrontar. Já não há “partes” as personagens: estamos sempre no meio de um labirinto cujas
(já não “fazemos parte”: não se trata da “partilha” do sensível e portas não param de se abrir para locais inesperados.
dos que não “fazem parte” dessa partilha): se há fragmentação é
porque cada pedaço do que experimentamos se apresenta isolado Essa ausência de referência, essa desorganização dos espaços é
e incongruente; sem relação com os outros, afirmando sua “in- também parte central do filme de Haneke, na procura de um mun-
-comunidade”. E, por isso, entre fragmento e fragmento tem se do em que a distância tem se feito distância pura: se o Agrimensor
aberto uma distância irreversível, irrevogável, não ultrapassável. não tem o que medir, não é apenas por falta dos instrumentos
Distância pela qual os fragmentos, por mais próximos que eles pu- necessários para executar a tarefa, mas porque ele não tem um
dessem estar, aparecem sempre na forma de uma exterioridade ra- espaço de referência com o qual se confrontar (não há visão pos-
dical. Voltados para um Exterior que não é possível já interiorizar, sível do Castelo, mas também não há visão possível do vilarejo,
um Exterior sem intimidade, esses fragmentos se instalam numa nem das casas que o compõem, nem dos interiores das casas, nem
distância sem medidas, sem mesura (nem jurídica, nem territorial, dos objetos que fazem parte das casas. Não tendo espaço de refe-
nem moral, nem afetiva): Distância Pura e Inacessível na que o rência, o filme se desenvolve ao redor da não comunicabilidade
mundo agora torna-se o Desmesurado. dos espaços, de sua não presença comum, de sua recíproca não
proporcionalidade (os espaços, sem medida comum, não podem
Esse mundo desmesurado e fragmentário, esse mundo sem unida- se comparar e, assim, cada um deles se fecha sobre si mesmo can-
de, parece ser o alvo das transduções cinematográficas da escrita celando também a oposição entre interior e exterior): inútil o ir
kafkiana nos filmes de Orson Welles (O Processo, 1962) e Michael e vir do mensageiro, inúteis as comunicações telefônicas, inútil
Haneke (O Castelo, 1997). Esses realizadores, por meios nem sem- as pesquisas entre a multidão dos expedientes. E até os corpos,
pre semelhantes, teriam feito dessa distância inacessível o objeto na proximidade de uma intimidade iminente, parecem se afastar
de suas apresentações. sempre que alguma coisa ameaça atingi-los. Nesse mundo da in-
comunicabilidade, não há como desenhar um plano desse territó-
No caso de Welles, o caráter desmesurado das distâncias fica in- rio despido de uma marca unificadora. Assim, na ausência de uma
dicado pelas desproporções das relações. Tudo parece ficar fora imagem que outorgue consistência à entidade mágica que regula-
das medidas certas. As portas, as chaves, os casacos, os ambien- menta nossas vidas, se faz impossível toda e qualquer identidade
tes no escritório e no departamento e nas ruas, mas também os dos espaços. Desse modo, ora estamos no interior de um estábu-
afetos, os amores, os desejos repentinos e também os esforços lo, ora atravessamos uma paisagem invernal; ora assistimos uma
por levar um baú, por alcançar a uma mulher, por encontrar um festa no interior de uma taverna, ora estamos na sala de aulas da
expediente... Nada parece ter uma “boa medida”. Mas também há escola. Espaços todos que são utilizados de modos diversos e não
a desproporção dos meios cinematográficos que acrescentam a acabam de dar unidade ao frio drama do Agrimensor. Este, por sua
distância entre o olho e o que a imagem dá a ver: desmesura da vez, perambula entre esses espaços sem encontrar nunca a pas-
profundidade de campo que alonga os planos de referência desde sagem que o conduza às portas de O Castelo ou, no mínimo, ante
onde e para onde as personagens se afundam na procura do que a porta que permita que ele finalmente consiga estabelecer uma
não podem encontrar, excentricidade dos pontos de vista pelo qual ligação com Aquele. Tudo, a escola, a casa do prefeito, a taverna,

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tudo está numa relação de desconexão. Tudo tem se desligado. quebrando a continuidade das ações das personagens).
Nessa solidão, nessa não ligadura, a imagem cinematográfica se
deixa desligar ela também da história do protagonista. Nesse mundo feito de distâncias inacessíveis não adianta querer
fugir. Não há onde voltar (O Castelo); não há para onde ir (O Pro-
A mesma ausência de imagem percorre O Processo de Welles: no cesso). Aos poucos, os filmes vão descobrindo que tanto faz correr
filme, não temos nunca a possibilidade de organizar a unidade dos como ficar aguardando num lugar: os movimentos, as corridas, as
espaços que K tem que atravessar na procura de uma chave que tentativas conduzem sempre à mesma ausência de centro. Talvez
o absolva de uma acusação que ignora. E, assim, na ausência de por isso não nos surpreenda que tanto no filme de Haneke como
uma imagem que ajude a dar ideia totalizante do espaço, de cena no de Welles, nos deparamos com personagens que parecem es-
em cena se elabora uma lógica que, se alguns críticos interpretam tar numa perpétua espera. Eles estão lá aguardando. Só isso. Uma
como a figuração de um espaço onírico, bem poderia se interpre- sentença, uma absolvição, alguma coisa que eles mesmos já nem
tar como a inquietação desse mundo alucinado onde não temos sabem: não importa o que poderiam fazer; sempre estarão na es-
referências para nos encontrarmos. Assim, a decisão sobre os acu- pera de alguma coisa que não vai acontecer. O quanto se espera?
sados é perpetuamente adiada porque o espaço no qual transi- Ninguém sabe: o tempo já não é o “número do movimento” por-
tamos está perpetuamente deslocado: o estrado judicial conduz que todos os movimentos, por mais esforçados que eles sejam,
para a casa do advogado que, por sua vez conduz para o ateliê do conduzem-nos a uma repetição infinita do sempre já feito. O tem-
pintor que, por sua vez conduz para o estrado. Por sua vez, o edifí- po da espera: “faz muito tempo”. Tempo que só permite envelhe-
cio de oficinas tem um quarto para punir alguns oficiais de justiça cer e, na maior das liberdades, morrer.
sobre os quais não há acusação concreta nenhuma. Mais uma vez,
os espaços são desmesurados pela ausência de um lugar comum: Por isso, nesse mundo de distância pura, de puro Exterior, a úni-
eles resultam incomparáveis porque cada um deles se apresenta ca coisa que acontece é a extrema banalidade. Mundo niilista e
afastado dos demais e sem comunicação (ou numa relação na qual sem crença. Mundo no qual não importam os fatos que se suce-
toda comunicação fracassa ou é inventada). Essa incongruência dem. Em O Castelo, essa banalidade se apresenta como indiferença
espacial provoca a sensação de que, na verdade, tudo é um grande diante dos fatos, marcado pela persistência da fria dramaticidade
erro, tudo é uma grande errância: mas isso é assim porque o pró- que rodeia todo o filme (do clima, da atmosfera, dos relaciona-
prio espaço tem se constituído como errância: errar não é um aca- mentos, da ambiência): nem nós, nem a câmera, nem os persona-
so, senão a condição da vida na era da fragmentação cinematográ- gens nos encontramos concernidos pelos acontecimentos que se
fica. Mais uma vez, teremos que perambular (nós, os personagens, desenvolvem nas imagens: nem o amor, nem a amizade, nem os
a câmera) por entre um espaço descontínuo e fragmentário que, ódios parecem nos atingir (a voz em off que acompanha o desen-
para além de toda lógica administrativa, para além de toda causa- volvimento da trama parece acrescentar ainda mais esse efeito).
lidade, se parece bem mais com os corredores dispersos de uma Banalidade do processo que ficará adiado infinitamente no filme
toca: espaço não euclidiano da exclusão contemporânea que não de Orson Welles e que só acabará como morte indiferente da per-
permite a conclusão dos processos e segundo a qual todos somos sonagem: a este já nem cabe a honra de uma morte sacrificial,
culpados. Essa descontinuidade dos espaços, essa continuidade pessoal, direta: os carrascos são tão indiferentes como o próprio K
ilógica, garante, no final das contas, a impossibilidade de conec- perante o final imediato. Até a morte foi atingida pela banalidade
tar, de aproximar o crime da punição, a falta da culpa, o afeto do do cotidiano inacessível. Nessa extrema banalidade, todas as coi-
amor, a amizade da traição (disjunção que é acrescentada no filme sas parecem ter perdido a noção de justiça. Num mundo feito de
do Haneke pelos cortes entre as cenas que desligam as relações cinza e escuridão, a luz nos coloca sob suspeita.

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********
FRANZ KAFKA E O
Há alguma coisa mais fragmentária que a experiência cinemato-
gráfica? Não são os filmes o resultado dessa fragmentação pela CINEMA: O TESOURO
qual a obra é sempre adiada na montagem e, aí, sempre dissolvida
em outras montagens? Não são os filmes a recusa da totalidade? REVELADO
Luiz Soares Júnior
Diante da tela, como diante da lei, estamos aí, na espera disso que
foi nos destinado e que nos recusa (nas cenas que antecedem o
final de O Processo K, frente as imagens de “Ante a lei” que abriu

A
o filme, é interrogado pelo juiz e acossado pelo advogado – o pró- obra de Franz Kafka e o cinema em suas origens tem em
prio Welles –, mas K. já não pode nem sequer ingressar nesse comum a assombração recíproca entre o realismo e o ex-
reino de luzes cinematograficamente preparado – toda a cena, se pressionismo; no caso do cinema, essa conflagração irre-
parece com um estudo de cinema que vira catedral quando K. foge conciliada se manifesta na oposição, nunca inteiramente
dele: eis o mistério do cinema para Welles, sua incongruência, sua resolvida, entre o “olhar ontológico”, dito documental, dos irmãos
banalidade: se converter num estranho lugar de culto onde nada Lumière e o cinema artificial, efeito de prestidigitações (truques
acontece? Quanto mais nos aproximamos da imagem, mas ela nos de câmera, montagem) de Georges Méliès. O expressionismo foi
afasta delas próprias. Quanto mais nos aprofundamos em sua luz, um movimento que deu, nos primórdios dessa arte, as cartas de
mais ficamos fora do visível que ela dá a ver. Distância inacessível nobreza a um mágico “de feira” como Méliès, por suas referências
ante a lei. Distância pura do inacessível ante a imagem do cine- pictóricas e literárias evidenciadas na forma do filme, seu verniz
ma. Nem a câmera pode ultrapassar essa distância feita de luz. decadentista de “arte pela arte”,e essas talvez sejam paradoxal-
E, pelo contrário, tudo indica que ele mesmo (que o cinema) cria mente as razões do movimento passar hoje a impressão de ser
essa distância entre nós e as imagens. Assim, o cinema de Welles uma arte “fanada”, excessivamente calculada, cuidadosa de seus
e Haneke (se compondo na transdução kafkiana) teria nos dito: efeitos.
“ante as imagens vocês não entrarão” “vocês ficarão sempre fora
das imagens”. E, talvez: “essas imagens foram feitas para vocês, e Kafka, à sua maneira, foi um intérprete do expressionismo: a im-
agora elas se apagarão”. portância do Gesto, a iconicidade de suas imagens, devedora se-
gundo Panofsky dos alto-relevos das catedrais medievais; o stacat-
to do encadeamento das sequências, que cristaliza as durações em
imagens fulminantes; mas também um credor do realismo, em-
bora seja necessário encarecer ambas as expressões com o devido
cuidado, pois um grande artista como esse não se deixa facilmente
aprisionar em categorias a priori ou horizontes de significação de-
limitados de antemão. O realismo de Kafka, chamado por Gunther
Anders de “cara de pau”, aparece nas situações cotidianas (devi-
damente destacadas por um excesso de burocratismo, levado ao
pé da letra, o que lhes dá uma aura de unheimlich freudiano), no
uso taquigráfico da linguagem e na forma como os personagens

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tentam excessivamente se explicar, se justificar perante uma im- vocação, digamos, erótica, na medida em que o seu materialismo
possível Lei que os acabrunha. Tais injunções de poder nunca re- de princípio é ativado retrospectivamente por uma relação com o
velam diretamente os princípios de seu funcionamento, deixando invisível do fora de campo, engendrando assim um jogo de desve-
portanto as tentativas de subtração e refutação a elas, empreendi- lamento e ocultação que é característico, na visão de Barthes, da
dos pelos personagens, adquirirem um ar espectral, surrealista (no “fresta cintilante” da mise en scène erótica, na qual tudo o que nos
sentido de supra-realista, para além do realismo): se a Lei contra a aparece se encontra situado em um Todo que se oculta, e tão mais
qual me oponho a rigor não existe, não possui uma res (afinal, saio atraente se nos afigura justamente na medida em que oblitera ou
e entro em casa todos os dias sem sequer dar por isto; vou a jan- vela partes de um Organismo maior, que jamais vai se revelar intei-
tares e bibliotecas e ninguém me impede), agir sob seus vaticínios ramente, imantando de Eros por essa precisa razão à superfície do
ou opor-se a ela, que não possui nenhuma substância ou poder que vem à luz. Como a literatura de Kafka, portanto, os acidentes
objetivo de coerção, é o cúmulo do absurdo. de percurso da carne e da luz, manifestos no plano cinematográfi-
co, nada seriam sem as anfractuosidades do imaginário e da som-
Mas a base de seu “trabalho” é realista: um realismo expressionis- bra, os declives do não-ser, da potência ou do virtual, recolhidos na
ta, um realismo eivado de detalhes, de ícones, de rubricas expres- camara obscura do Desejo do leitor e do espectador; as parábolas
sionistas. Mas de um expressionismo que se libertou da retórica alegóricas de Kafka tem no leitor um parceiro essencial, rabino
extremamente codificada, simbolista, do expressionismo originá- oculto cuja função é decodificar o sentido críptico de seus itinerá-
rio, e adquiriu diapasão cartorialmente moderno. É nesse sentido rios, traduzindo o alegórico para o existencial, convertendo a letra
que o cinema pode abordar Kafka: na medida em que é uma arte para o espírito, precisamente como em um teorema espiritual, no
eminentemente materialista, com um fundo realista “de base” de- qual substituímos devidamente as letras por números que irão ilu-
vido aos seus meios fotográficos de apreensão do mundo, o cine- minar significativamente o que antes se comprazia no hermetis-
ma se serve do realismo de Kafka como de um dado infra-estrutu- mo de seus imbróglios secretos, tesouro a que enfim é oferecida a
ral sobre o fundo do qual é possível enfileirar seus personagens e dádiva da Revelação.
situações metafóricos sem perverter as características ontológicas
dessa arte: realismo e artifício em Kafka não se opõem, pois as A colônia penal (Raul Ruiz, La Colonia Penal, 1970) e Relações de
figuras de retórica de que se serve se situam em um cenário rea- classe (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Klassenverhältnisse,
lista rigorosamente detalhado. Nesse sentido, a adaptação de seus 1985) trabalham, o primeiro segundo uma forma ludicamente per-
textos para o cinema se torna um paradigma do uso do fora de formática, o segundo sob um prisma “expressionista-classicista”,
quadro e do fora de campo (memória, imaginação), por exemplo, esse dualismo, tão fecundo para o cinema e a obra de Kafka, entre
na medida em que reivindicam uma posição ativa por parte do quadro e fora de quadro, campo e fora de campo, Matéria e Ima-
espectador, que deve ser o encarregado de traduzir em sua tela ginário, Significante e Significado. São velhas querelas metafísicas
mental as potentes metáforas estruturantes da maquinaria kafkia- que no grande cinema são destinadas a se encarnar em inflexões
na: qual grande cinema não vive da utilização do fora de quadro, de gestos, posições e contraposições de corpos, embates entre a
e sobretudo do fora de campo para a emissão de significação ci- luz e a sombra; mas o que nos importa é designar a forma como
nematográfica específica? A literatura de Kafka também exige esse esses dualismos, de que o cinema como o teatro e a pintura são
domínio, por parte do decifrador de seus encadeamentos causais herdeiros, em ambos os filmes se manifesta e se vela de maneira
nonsense, do fora de campo do imaginário. Esse é um rincão parti- absolutamente idiossincrática, servindo ambos como ilustrações
cularmente apto a suscitar a invenção fantasista cinematográfica, excelentemente demonstrativas de como a obra de Kafka, por se
pois o cinema é uma arte que se destina exemplarmente a uma centrar justamente nesse flexível jogo entre “revelação e oculta-

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mento”, pode inspirar no cinema obras tão diversas quanto essen- metáforas coercitivas, nó górdio da frase- de que algo de mal se
ciais, em matéria de gênio cognitivo, visual e fantasmático. engendra nas caves do plano e do país, e esse mal vai progressi-
vamente infectando o olhar da viajante, emergindo à superfície,
A colônia penal: A sombria ludicidade da viagem como em um processo químico a que só o tempo do plano sequ-
ência pode deflagrar devidamente; o país visitado ainda vive sob
Raul Ruiz a princípio naturaliza Kafka, apresentando-nos o que os auspícios de sua função de prisão, o seu fantasma institucional
parece ser um documentário de montagem acidentada sobre um fascista: o passado ainda se presentifica como um corpus de regras
país de terceiro mundo; mas à medida em que a metáfora vai se e de práxis vigentes na “República liberal” que o país atualmen-
clarificando- e percebemos que se trata de uma alegoria mini- te promulga existir em seus domínios; e o passado é Brincadeira,
malista sobre o Chile conflagrado de Allende-, a clareza da linha Jogo, Significante, mortíferos embora: as mises en scènes fantasis-
diretiva documental vai sendo nublada pelo humor sombrio que tas dos “porões”. É a ficção que se encarrega de manifestar o ver-
é o ponto de vista do carrasco, e que alitera o filme em perfor- dadeiro sentido do que se passa ali, pois Ruiz nos apresenta o fac-
mances mortificadas, intromissões duramente nevrálgicas do te- tício e o irreal (o discurso oficial de que o país “é” uma República
atro da tortura na transparência do documento. Ruiz, em muitos democrática) com o realismo do aparente documentário: voz off
pontos de sua carreira e de sua reflexão sobre arte em geral, é um das entrevistas, câmera na mão. E reserva a encenação fantasmá-
humorista- e por que não ver aí um ponto de contato com Swift tica para traduzir a Verdade subterrânea do país (o lugar ainda “é”
e Kafka, para quem a condição humana, traduzida em metáforas uma colônia penal, embora se diga república democrática); assim
sub e supra-humanas, sempre apresentou-se singularmente como como é jogando que a criança se liberta das agruras da existência
um exercício do patético? A colônia penal pega aquela que talvez deficitária a que é condenada pelas limitações da linguagem, e ad-
seja uma das novelas mais sombriamente góticas do escrevente quire Ser e Nada ricamente significativos, é ao encenar os informes
de Praga- em todo caso, o marco através do qual as fantasmago- relatoriais e os interrogatórios seviciantes dos porões que Ruiz nos
rias ligadas ao Pai vão se institucionalizando, se objetivando em dá a ver a Colônia penal sob a República democrática, o id sob o
um sistema de mundo- e a devolve com um olhar macerado pelo ego como a mise en scène sob o filme documental- e quem disse
zeitgeist corrupto e dolorido dos golpes que assolavam a América que a Verdade não está sempre sob o invólucro do Significante,
latina à época, apresentando uma cartografia do Chile que estru- como o verme sob o fruto no dito de Jesus, filho de Sirach? À ima-
tura o psiquismo daquele estado de coisas, objetivando-o (como gem do psiquismo freudiano, um estágio ou estrato se funda sobre
a novela original) em um palimpsesto no qual se estratificam o outro mais antigo (mítico, arquetípico), que estrutura seus pro-
ego da evidência documental com o submundo “id” das câmaras longamentos como o Mesmo dos dialetas às suas circunvoluções
de tortura e delação, chanchada sinistra onde a Verdade incons- diferenciais, que carregam a cicatriz de sua origem onipresente.
ciente da nação e a presciência do artista (estamos em 1970, e o
horror só viria a eclodir atualmente em 73) se aliam em um cristal Mas para Ruiz e Kafka, ao contrário da tendência presente nos
de ressonâncias furtivas e rimas intimidantes: o longa complexifi- primórdios realistas do cinema, é a ficção que suscita a Verdade:
ca, com seu imbroglio de fake documentário e alegoria realista, os a encenação, o jogo, o traço são o mesmo, e o documento veros-
princípios dados em Militarismo e tortura (Raul Ruiz, Militarismo símil seu prolongamento exterior, a “verdade superficial para um
y tortura, 1969). outro”, que antes mascara que revela, acoberta que expõe. Nesse
sentido, A colônia penal é uma lição, pois nos habilita a ver sob a
A performance “marcial”no filme de Ruiz, severamente codificada superfície superfluida do olhar documental o núcleo irredutível de
por um plano fixo inquisitorial, é o révelateur- como em Kafka as uma essência que, paradoxalmente, só se mostra sob os auspícios

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daquilo que na metafísica ocidental era o opróbrio da falsidade do um abalo sísmico em sua monumentalidade clássica; alguma
ou da ilusão: o simulacro. É no teatrinho dos porões que a colônia diferença irredutível se instalou aqui, e aquele mundo senhorial
penal (sob a República) ainda vige, e aparece enquanto tal; é a este e cartográfico dos pais substitutos (o Tio, a senhoria) e dos bu-
fora de campo, encarnado na simulação primordial, que o docu- rocratas inflexíveis não será mais o mesmo: o final de Relações de
mental se submete como o invisível, o ocluso, o recalcado a que classe transcorre em uma paisagem totalmente outra (a natura),
todo visível, demasiado visível, terá de prestar contas como sendo com outro corpus comunitário (os artistas) e regrado pelo diapa-
o âmago de sua radical veracidade. são de um silêncio primordial entre Karl e o jovem groom, que
talvez demarque enfim o espaço de uma possível reconciliação,
Relações de classe: o gesto cindido com o mundo e pelo outro.

Em algum momento de Relações de Classe, o jovem exilado Karl Relações de classe é, aqui como em Kafka, um romance de forma-
Rossmann tem a boca tapada pelo servo Delamarche, em adver- ção (Bildungsroman) clássico pervertido por sinais de pontuação
tência e admoestação para que se cale, mas este gesto violento modernistas e raccords transgressores (pelo menos nos momen-
é a estrutura atômica em torno do qual se organizam os contra- tos decisivos com personagens “privilegiados”, que determinam
campos do filme, súbita invocação do gesto como cisão ou fra- uma evolução ou inserem uma dissidência na maneira com que
tura irremediável que exprime formalmente a comunhão entre a Karl se relaciona com seu meio, modulando o Eu de acordo com a
démarche materialista straubiana e a expressionista de Kafka: ir- melodia do mundo: o tio, a senhoria,Thèrese).O Whilhelm Meister
reconciliação. Esse gesto que cinde o campo e o contracampo é de Goethe, romance de formação paradigmático do romantismo,
a transposição, em uma arte de princípio materialista e “a pos- e portanto de nossa representação subjetivista, também se encer-
teriori” imaginária, da iconicidade estatuária do gesto em Kafka, rava com a integração do jovem no mundo artístico, um espaço de
sempre detalhado com um tal rigor de insert compositivo na cena aprendizado menos sequioso da letra que do espírito, mais herme-
que nos chama a atenção para o seu caráter não apenas expositivo nêutico que ontológico: o teatro de Oklahoma aqui é uma citação
mas nuclear, essencial à pregnância da mesma. Os Straub concen- do livro de Goethe, e a forma peremptória com que Straub filma o
tram no contracampo repentino, onde o gesto se imprime (tanto cartaz do anúncio - plano fixo avidamente atencioso na decifração
mais repentino se pensarmos que a maior parte do filme se funda de sua inscrição em letra senhorial, música barroca de parada - nos
sobre linhas retas e raccords diretivos antes clássicos),o conjunto mostra que chegamos ao porto da linguagem, lugar de onde pelo
metódico de descrições kafkianas, Summa instantânea onde tudo menos se pode ascender ao promontório de vidência da mediação,
converge para o cristal imagético. e adquirir sobre a vida um ponto de vista mais distanciado que é
tudo o que teremos para nomeá-la: o teatro de Oklahoma é o co-
O gesto é um elemento de choque que reconfigura o classicismo meço da vida adulta para Karl, e é por isto que ele anuncia o fim do
do filme sob o signo da ruptura, infiltrando portanto a violência filme, com a bem-aventurada conquista do silêncio reconciliado.
das “relações de classe” – e em um sentido maior, sociais e de
enunciação: tomar a palavra do outro, falar em nome do outro, Se a cena Mutual Comedy1 da perseguição do policial suprassumia
como acontece com frequência com Karl e com o foguista, no iní- cem anos de comédia física em um par de campos e contracam-
cio- no espaço intersticial de significação do cinema: o inter-pla- pos eriçados pelas arestas do Gestus brechtiano, é porque o ge-
nos. O contracampo, demarcado em sua distância de significante nealogista Straub viu no cinema humorístico primitivo a oportu-
pelo gesto, é no filme dos Straub uma intrusão de rubrica moder-
1 Nota dos editores: Mutual Comedy é uma referência a produtora responsável
nista na clareza e distinção cartesianas do campo, mas sobretu- por alguns curtas-metragens de Charles Chaplin.

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nidade de uma síntese primorosa: os encontros que perfazem o
itinerário “Bildungsroman” de Karl não constituem exatamente ABECEDÁRIO
um aprendizado, mas um movimento desarrazoado, feito de di-
ferenças, desacordes de tom e de dicção, como se Kafka estivesse KAFKIANO SEGUNDO
interessado em uma paródia do romance de aprendizado, na qual
não assistimos uma evolução (um movimento ascendente em di- KUNDERA 1
reção ao conhecimento de si mesmo), mas as agruras de um “ser Milan Kundera
lançado” (Geworfenheit), objeto para forças contraditórias que o
jogam para cá e para lá, sem jamais assinalar um rumo ou estágio
“superior”; o Karl de Kafka, ao contrário do modelo clássico, não A. Autonomia
se altera/alteriza por intercessão dos encontros com o outro, não
sai do lugar: ele é meramente o plano de front contra o qual se O encontro do universo real dos estados totalitários e do “poema”
projetam as relações de força (de classe, de enunciação, de poder de Kafka manteve sempre algo de misterioso, e demonstrou que o
simplesmente) que os personagem protagonizam, contracampo ato do poeta, pela sua própria essência, é incalculável e paradoxal;
com a boca tapada, os olhos cativos ou a ausculta apassivadora do a enorme porta social, política, “profética” dos romances de Kafka
discurso. O tom monocórdico e a impassibilidade keatoniana do consistem justamente em seu “não-engajamento”, isso quer di-
“modelo” Christian Heinisch mostram-no justamente como este zer na sua total autonomia no que se refere a todos os programas
móbil “situado”,cadenciado por percussões de ser que não são as políticos, conceitos, ideologias, prognósticos futurológicos. Se eu
suas, que jamais serão suas; é por isto que o final parece nos deixar me ater calorosamente ao legado de Kafka, se eu o defendo como
entrever o começo de uma reconciliação consigo mesmo, diferida meu legado pessoal, não é porque creio ser imitar o inimitável (e
ao longo de sua trajetória abortada de aprendizado, na medida em de descobrir mais uma vez o kafkiano), mas por causa desse mara-
que o personagem finalmente conhece o luxo de assenhorar-se de vilhoso exemplo de autonomia radical do romance (da poesia que
uma paisagem e do próprio silêncio. Todo um mundo parece enfim é o romance). Através dele, Franz Kafka disse sobre nossa condição
solevar-se sob o influxo deste silêncio, que Straub distribui ao lon- humana (como ela se revela em nosso século) o que nenhuma re-
go da paisagem conquistada por Karl: a natura revelada, como o flexão sociológica ou política não poderá nos dizer.
campo pelo fora de campo, a música pelo silêncio e o menino pelo
homem (Wordsworth). Kafka, em Ruiz e em Straub, encontrou no B. Bobeira
cinema um lócus de manifestação privilegiado para seus fantas-
mas, ditos como oclusos. Segundo Kafka, encoberto por uma manta de mistério, a bobei-
ra adquire ares de uma parábola metafísica. Ela intimida. Em suas
ações, em suas palavras ininteligíveis, Joseph K. se esforçou a
todo custo a decifrar um sentido. Pois se é terrível ser condenado
à morte, é absolutamente insuportável ser condenado por nada,
como um mártir do nonsense. K, logo, consentirá sua culpa e bus-
cará sua falha. No último capítulo, ele protegerá seus carrascos
1 Este texto foi publicado originalmente em BAX, Dominique. Théâtres au cinéma
n. 8 – Milos Forman, Franz Kafka. Collection Magic Cinéma 1997. Todos os direitos
reservados. Republicado com permissão dos detentores dos direitos autorais.

50 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 51


contra o olhar da polícia municipal (que poderiam tê-lo salvado) Mas mesmo que seus romances não tivessem nada profético, eles
e, segundos antes de sua morte, ele se culpará de não ter forças o não perderiam o seu valor, porque eles inserem uma possibilidade
suficiente para se matar e lhes poupar o trabalho sujo. de existência (possibilidade do homem e de seu mundo) e nos fa-
zem assim ver o que somos e do que somos capazes.
C. Cômico
F. Fantástico
Quando Kafka leu para seus amigos o primeiro capítulo de O Pro-
cesso, todos riram, inclusive o autor. Eles simplesmente riram: o Graças ao fantástico que ele soube perceber no mundo burocráti-
cômico é inseparável da própria essência do Kafkiano. No mundo co, Kafka conseguiu o que pareceria impensável antes dele: trans-
Kafkiano, o cômico não apresenta um contraponto ao trágico (o formar uma matéria profundamente antipoética, a da sociedade
tragi-cômico) como é o caso em Shakespare; ele não está lá para burocratizada ao extremo, em grande poesia de romance; trans-
fazer o trágico mais suportável graças a leveza do tom; ele não formar uma história extremamente banal, a de um homem que
acompanha o trágico, não, ele destrói pela raiz privando as vítimas não pode obter o cargo prometido (que é realmente a história de O
do único consolo que ainda podem ter esperança: aquilo se encon- Castelo), em mito, epopeia, em beleza jamais vista.
tra na grandeza (verdadeira ou suposta) da tragédia. O engenheiro
perdeu sua pátria e todos no auditório riram. H. Vergonha (honte)

D. Densidade O último substantivo de O Processo: a vergonha. Sua última ima-


gem: rostos estranhos, perto de seu rosto, quase se tocando, obser-
É bastante difícil de descrever, definir, de nomear este tipo de ima- vando o estado mais íntimo de K., sua agonia. No último substan-
ginação com a qual Kafka nos envolve. Fusão de sonho e realidade, tivo, na última imagem, a situação fundamental de todo romance
esta fórmula que Kafka, com certeza, não conheceu me parece ilu- é condensado: ser, a qualquer momento, acessível em seu quarto
minadora. Da mesma forma que outra frase cara aos surrealistas, a deitar; tomar o café da manhã; estar disponível, dia e noite, para
aquela de Lautréamont sobre a beleza do encontro fortuito de um ser chamado à intimação; se ver confiscar as cortinas que cobrem
guarda-chuva e uma máquina de costura: quanto mais as coisas a janela; não poder frequentar o que se quer; não mais pertencer
são estranhas entre elas, mais mágica é a luz que se encarrega de a si mesmo; perder o status de indivíduo. Sobre esta transforma-
promover o seu contato. Eu gostaria de falar de uma poética da ção de um homem de sujeito em objeto, é possível experimentá-la
surpresa; ou da beleza como um assombro perpétuo. Ou então como uma vergonha.
utilizar como critério de valor a noção de densidade, densidade da
imaginação, densidade dos encontros inesperados. I. Imaginação

E. Existência A imaginação kafkiana, revelada por esta “velocidade metódica”,


curta como um rio, rio onírico que encontra pausa apenas no fi-
Segundo Kafka, tudo é claro: o mundo Kafkiano não se parece com nal de um capítulo. Este longo suspiro de imaginação se reflete
nenhuma realidade conhecida, é uma possibilidade extrema e não na característica da sintaxe: nos romances de Kafka, existe uma
realizada do mundo humano. É verdade que essa possibilidade se quase-ausência de dois pontos (exceto quando de rotina para in-
espelha atrás do nosso mundo real e parece prefigurar nosso futu- troduzir o diálogo) e uma presença excepcionalmente modesta de
ro. É por isso que estamos a falar da dimensão profética de Kafka. ponto e vírgula.

52 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 53


J. Joia tamente, Kafka não gostava era o lirismo da prosa romanesca. A
imaginação metafórica de Kafka não era menos rica que a de Ver-
A joia erótica de América é Brunelda. Ela fascinou Federico Fellini. laine ou de Rilke, mas não era lírica, a saber: ela era animada ex-
Desde muito tempo, ele sonha em fazer de América um filme, e clusivamente pelo desejo de decifrar, de compreender, de colocar
em Intervista ele nos fez ver a cena de seleção do elenco para esse o sentido da ação dos personagens, o sentido das situações onde
filme-sonho: produzem-se várias candidatas incríveis para o papel eles se encontram.
de Brunelda, escolhidas por Fellini com este prazer exuberante que
nós conhecemos. (Mas insisto: este prazer exuberante, também foi N. Nome
aquele de Kafka. Porque Kafka não sofreu por nós. Ele se divertiu
por nós!) K. no texto de O Castelo não é nunca nada além do que K. No diálo-
go os outros podem o chamar de “o agrimensor”, e talvez mesmo
K. Kafka de outra forma ainda, mas o próprio Kafka, o narrador, nunca de-
signou K por palavras: estrangeiro, recém-chegado, jovem homem
Que ele se chame Joseph K., Rohan, Samsa, o Agrimensor, Bende- ou não sei o que. K é apenas K. E não só ele, mas todos os persona-
mann, Josefina - a cantora, o andarilho ou o Trapezista, o herói gens de Kafka, sempre tem apenas um nome, uma só designação.
dos livros não é outro senão o próprio Kafka. A biografia é a chave
principal para a compreensão do sentido da obra. Pior: o único O. Sombras (ombres)
sentido da obra é de ser uma chave para compreender a biografia.
No mundo Kafkiano o arquivo se parece com a ideia platônica.
L. Labirinto Representa a verdadeira realidade, enquanto que a existência física
do homem é apenas um reflexo projetado sobre a tela das ilusões.
O engenheiro é confrontado com o poder que tem o caráter de um Na verdade, o agrimensor e o engenheiro de Praga são apenas as
labirinto a perder de vista. Ele nunca chegará ao fim de seus corre- sombras de seus registros. E eles são ainda muito menos que isso:
dores infinitos e não conseguirá jamais encontrar quem formulou eles são as sombras de um erro em um dossiê, isto é, as sombras
a sentença fatal. Portanto, se encontra na mesma situação que não tendo mesmo o direito a sua existência enquanto sombra. Mas
Joseph K. diante da tribunal ou o agrimensor K. diante do caste- se a vida do homem é apenas uma sobra e se a verdadeira reali-
lo. Estão todos no meio de um mundo que é apenas um só, uma dade se encontra inacessível em outro lugar, no inhumano e no
imensa instituição labiríntica à qual não podem escapar e não po- sobre-humano, entramos instantaneamente pela teologia.
dem compreender.
P. Privado – Público
M. Metáfora
Nos perguntamos às vezes se os romances de Kafka são a projeção
É preciso corrigir a ideia afirmando que Kafka não gostava de me- dos conflitos mais pessoais e privados do autor, bem descrito como
táforas, ele não gostava de metáforas de um certo gênero, mas foi a “máquina social” objetiva. O Kafkiano não se limita nem à esfera
um dos grandes criadores da metáfora que qualifico de existencial íntima, nem à esfera pública; ele engloba ambas. O público é o es-
ou fenomenológica. Quando Verlaine disse: “a esperança brilha pelho do privado, o privado reflete o público.
como uma palha no estábulo”, é uma imaginação lírica soberba.
Ela é no entanto impensável na prosa de Kafka. Pois, o que, cer-

54 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 55


R. Real/Sonho redito em uma só noite, sem interrupção, ou seja, em uma veloci-
dade extraordinária, deixando-se levar por uma imaginação quase
A imaginação adormecida do século XIX foi subitamente acordada incontrolada. A velocidade que se tornou mais tarde para os surre-
por Frankz Kafka, que conseguiu o que os surrealistas postularam alistas o método programático (escritura automática), permitin-
depois dele sem verdadeiramente realizar: a fusão de sonho e real. do liberar o subconsciente do monitoramento da razão e fazendo
Essa grande descoberta é menos o encerramento de uma grande explodir a imaginação, teve mais ou menos um papel semelhante
evolução do que uma abertura inesperada que dá a saber que o ro- em Kafka.
mance é o lugar onde a imaginação pode explodir como um sonho
e que o romance pode se libertar do imperativo aparentemente Tradução: Lucas Murari
inevitável da verossimilhança.
Revisão de tradução: Leonardo Esteves
S. Sexualidade

Nas primeiras décadas do século XX, a sexualidade veio das névoas


da paixão romântica. Kafka foi um dos primeiros (assim como Joy-
ce, certamente) a tê-la descoberto em seus textos. Ele não revela a
sexualidade como um terreno de jogo destinado aos pequenos cír-
culos de libertinagem (à maneira do século XVII), mas como uma
realidade por sua vez banal e fundamental da vida de cada um. Ka-
fka apresenta os aspectos existenciais da sexualidade: sexualidade
se opondo ao amor; a estranheza do outro como condição, como
exigência da sexualidade; a ambiguidade da sexualidade: seus as-
pectos excitantes que ao mesmo tempo causam repugnância; sua
terrível insignificância que não diminui o seu poder assustador,
etc.

T. Tribunal

O tribunal: não se trata da instituição jurídica destinada a punir


aqueles que transgrediram as leis de um Estado; o tribunal no sen-
tido dado por Kafka é uma força que julga, e que julga porque é
força; é essa força e nada mais que confere legitimidade ao tribu-
nal; quando ele vê os dois intrusos entrarem em seu quarto, K. re-
conhece essa força desde o primeiro momento e se submete a ela.

V. Veredito/Velocidade

Pelas suas próprias palavras, Kafka escreveu sua longa novela O Ve-

56 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 57


BIOGRAFIAS
Cédric Anger
é cineasta e roteirista francês. Colaborou com a revista Cahiers du bonne Nouvelle - Paris 3 (bolsa CAPES), mestre em Comunicação
Cinéma entre 1993 e 2001. pela UFF (2012). Desenvolve atualmente pesquisa sobre reemprego
de imagens no cinema experimental, é um dos idealizadores do
projeto “Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos”
Hernán Ulm (2013-2014), realizado pela UFF e a Secretaria Nacional dos Direitos
é professor e mestre em Filosofia pela Universidade Nacional de Humanos, do projeto “Experimentar o cinema” (UFF/Faperj, 2012-
Salta, Argentina e Doutor em Literatura pela Universidade Federal 2013). Membro do núcleo de cinema experimental Risco Cinema.
Fluminense de Rio de Janeiro. É professor de Estética e História
das Artes. Publicou os livros “Cuestión de imagen” e “Historia éti-
ca y actualidad em Michel Foucault” e vários artigos sobre temas Luiz Soares Júnior
relativos às relações entre estética e política no pensamento con- nascido em Recife em 1976. Formado em Filosofia pela Universi-
temporâneo. É coordenador da Área de Experimentação em Arte e dade Federal de Pernambuco em 2004; mestrado com a tese “O
Cultura da Universidade Nacional de Salta. advento da Verdade na obra de arte heideggeriana”. Escreve na re-
vista eletrônica Cinética e no site português À pala de Walsh; tem
textos publicados no site da revista Lumière. Mantém um blog de
Lucas Murari tradução de crítica francesa de cinema, o Dicionários de cinema
pesquisador, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Co- (http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/).
municação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mestre em Comunicação pela mesma instituição. Atua como pro-
gramador e curador de cinema. Membro do núcleo de cinema ex- Maria Cristina Franco Ferraz
perimental Risco Cinema. é professora titular de Teoria da Comunicação da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, doutora em Filosofia pela Sorbonne, com
três estágios de pesquisa pós-doutoral em Berlim. Pesquisadora do
Luís Alberto Rocha Melo CNPq, foi professora visitante nas universidades de Paris 8-Saint-
é cineasta, pesquisador e professor adjunto do Curso de Cinema e -Denis e Perpignan (França), Richmond (EUA), Nova de Lisboa (Por-
Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e tugal) e Saint Andrews (Escócia).
Linguagens no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal
de Juiz de Fora (MG), onde desenvolve pesquisas sobre História
do Cinema Brasileiro. É produtor, diretor, roteirista e montador de Milan Kundera
filmes independentes. é um dos maiores escritores do pós-guerra. Nascido em Brno, na
região da Morávia, antiga Tchecoslováquia (hoje República Tche-
ca). Refugiou-se em Paris em 1975, onde lecionou a disciplina arte
Luiz Garcia do romance na École des Hautes Études en Sciences Sociales. É
é pesquisador, doutorando do Programa de Pós-graduação da Uni- autor de “A Brincadeira” (1967), “Risíveis Amores” (1970), “A Insus-
versidade Federal Fluminense, com doutorado sanduíche na Sor- tentável Leveza do Ser” (1984), entre outros.

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FILMES
A METAMORFOSE
DO SR. SAMSA
The Metamorphosis of Mr. Samsa
Canadá/Estados Unidos, cor, 1978, 10 min
Formato original: 35mm

Sinopse: animação baseada no conto A Metamorfose.

AS
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de

RT
CU
sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama
metamorfoseado num inseto monstruoso.

Direção e Roteiro: Caroline Leaf


Som: Michel Descombes, Normand Roger
Animação: Caroline Leaf

60 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 61


A PONTE CHACAIS E
Brasil, cor, 2014, 7min
Formato original: Animação em digital 3D
ÁRABES
Schakale und Araber
Suíça, cor, 2011, 11min
Formato original: Vídeo
Sinopse: curta-metragem de animação baseado no
conto A Ponte, do escritor tcheco Franz Kafka. O
CU

AS
filme é um tributo pessoal ao autor, concebido a Sinopse: Curta-metragem baseado em trecho de
RT

RT
partir de uma interpretação imagética e literal da conto homônimo de Franz Kafka.
AS

CU
obra.
Direção: Jean-Marie Straub
Direção: Claudinei Morais Fotografia: Christophe Clavert
Roteiro/animação/edição/Som: Claudinei Morais Elenco: Giorgio Passerone, Barbara Ulrich, Jean-
Marie Straub (voz)

62 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 63


LAGARTIJA NIKA
Brasil, P&B, 2004, 21min
METAMORFOSE
Metamorfosis
Sinopse: um filme preto e branco que se aproxima de um Espanha, P&B, 2004, 20 min
mundo misterioso por meio dos pesadelos e experiências Formato original: Vídeo
de uma mulher no banheiro. “E como não pintar monstros
se o sono da razão gera-os e com eles preenche o mundo”
Giulio Carlo Argan. Sinopse: curta-metragem inspirado no conto A
Metamorfose, de Franz Kafka.
CU

AS
RT

RT
Direção e Roteiro: Ebbëto
Direção e Roteiro: Fran Estévez
AS

CU
Produção: Ebbëto
Montagem: Cláudio Dillitzer Perricelli – PIMENTA STUDIO Produção: Casimiro Estévez; Fernando Marcote;
Fotografia: Ebbëto Manuel Pena
Assistente de Direção: Antônio Paschoalique Música: Fran Estévez
Assistente de Produção: Sidnei Amaral Fotografia: David Hernández
Animação 3D: Renato Sbardelotto Montagem: Fran Estévez
Editor de Som e compositor: Celio Barros – PCM Studios Direção de arte: Hugo Gonzalez
Música: Celio Barros com STRANGE MEETINGS Elenco: Nacho Castaño; Cristal Álvarez
Produtor Executivo: Elim Dutra
Elenco: Nathalie Fari

64 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 65


NA COLÔNIA PENAL O HOMEM QUE
In the Penal Colony
Canadá, cor, 2006, 24 min
Formato original: Vídeo
ESPERA
L’homme qui attendait/The Man Who Waited
Canadá, cor/P&B, 2006, 7 min
Sinopse: uma mulher é convidada para uma colônia penal Formato original: Digital (sugerindo técnica da lineogravura)
para investigar o sistema de justiça, onde o condenado é
executado sem qualquer defesa.
CU

AS
Sinopse: por toda sua vida, um homem esperou do lado de
Direção e Roteiro: Sibel Som: Steven Budd; Shari Cain;
RT

RT
fora de uma porta. O que está por trás? Ele busca a verdade ou
Guvenc Sarah Clark; Alan Code; Steve
AS

CU
Produção: Hartley Gorenstein; Dranitsaris outra porta?
Murat Guvenc; Sibel Guvenc; Efeitos especiais: Nathan
Francesco Mozzone Ouwehand Direção: Theodore Ushev
Música: Sibel Guvenc; Sevgi Música: Magdalena Balint; Roteiro: Chloé Cinq-Mars
Karacasulu Ludger Bockenhoff; Sevgi Produção: Marc Bertrand; Susan Fuda; Robert Bruce Johnson
Fotografia: Tico Poulakakis Karacasulu Animação: Theodore Ushev
Montagem: Sibel Guvenc Elenco: Steve Rankine, Elenco: Pierre Lebeau (narrador); Tony Robinow (narrador)
Direção de arte: Tamara Rachelle Benzce, Eran
Rushlow Schwartz, Balazs Hollosy,
Assistente de Direção: Mark Ilayda Sezer, Umit Eseryel, Ege
Wilson; Anthony Wong Eseryel, Lukazs Orwinski

66 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 67


OS CAMARADAS UM MÉDICO RURAL
Die Genossen A Country Doctor/Inaka Isha
Brasil/Alemanha, cor, 1997, 15min Japão, cor, 2007, 21min
Formato original: 35mm Formato original: Animação em digital 2D

Sinopse: São Paulo, 1969. Um rapaz leva um frango assado para um Sinopse: adaptação do conto “Um Médico Rural”, de Franz Kafka.
colega. Lá encontra dois homens que fazem perguntas que ele não Narra a história de um médico que, numa fria noite de inverno,
pode responder. recebe um chamado para socorrer um garoto do outro lado da
aldeia. É nesse ambiente que ele é levado a pensar sobre os mais
CU

AS
Direção e Roteiro: Bruno de André Assistência de câmera: Cristiano diversos aspectos de sua profissão, de seu paciente e da sociedade
RT

RT
Produção: Carla Kohn Sprinz; Conceição local. A história, contada totalmente do ponto de vista do médico,
AS

CU
Selda Honda Trucagens: Rudi Böhm; Wanderlei
Direção de Produção: Michael Gomes
introduz elementos surrealistas para melhor descrever como o
Ruman Mixagem e montagem de Som: homem vê o mundo e as pessoas ao seu redor.
Produção executiva: Bruno de José Luiz Sasso
André Operador de microfone: Gabriela Direção e Roteiro: Koji Yamamura
Montagem: Bruno de André Cunha Produção: Mariko Seto; Fumi Teranishi
Direção de arte e cenografia: Arranjos musicais: José Augusto Distribuidora: Shochiku
Antonio de Freitas Mannis Música: Hitomi Shimizu
Figurinos: Alexandre Cunha Música: Peter Roloff
Montagem: Koji Yamamura
Story-board: José Marcio Nicolosi Elenco: Roberto Bonfim (O gordo),
Direção de fotografia e câmera: André Guerreiro Lopes (Carlos Som: Koji Kasamatsu
Adrian Cooper Pereira), Jesse James (Garcia) Elenco (vozes): Sensaku Shigeyama; Shigeru Shigeyama; Doji
Shigeyama

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AMERIKA A AUDIÊNCIA
República Checa, cor, 1994, 87 min L’Udienza
Formato original: 35mm Itália/França, cor, 1971, 110 min
Formato original: 35mm
Sinopse: Karl Rossmann, jovem emigrante europeu de 16
anos, é forçado a emigrar para Nova York para escapar do Sinopse: homem religioso vai para o Vaticano na tentativa
escândalo de sua sedução por uma empregada doméstica. de um encontro particular com papa para lhe fazer uma
Quando o navio chega à América, ele se torna amigo do pergunta. A partir daí ele é constantemente impedido pela
LO

funcionário responsável por alimentar o fogo das caldeiras burocracia e pela hierarquia da igreja.

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NG

NG
de máquina a vapor, que está prestes a ser demitido.
Direção: Marco Ferreri
AS

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Baseado em um romance inacabado de Franz Kafka.
Argumento: Rafael Azcona; Marco Ferreri
Roteiro: Dante Matelli; Marco Ferreri
Direção e Roteiro: Vladimír Michálek
Produtor: Franco Cristaldi
Produtor: Jaroslav Boucek Música: Teo Usuelli
Fotografia: Martin Duba; Pavel Brynych Fotografia: Mario Vulpiani
Montagem: Jirí Brozek Câmera: Mario Bagnato; Filippo Neroni
Figurino: Petra Jachimová; Vera Linhartova; Ivana Rezacova Montagem: Giuliana Trippa
Direção de arte: Jaroslav Róna Assistente de Direção: Verena D’Alessandro; Michele Guidugli
Música: Michael Dvorak; David Koller; Radim Hladík Jr. Arte: Paolo Zacchia
Som: Carlo Diotallevi; Adriano Taloni
Elenco: Olga Charvatova; Martin Dejdar; Oldrich Kaiser;
Elenco: Enzo Jannacci; Claudia Cardinale; Ugo Tognazzi; Michel
Katerina Kozakova Piccoli; Vittorio Gassman; Alain Cuny; Daniele Dublino

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DEPOIS DE HORAS ERASERHEAD
After Hours Estados Unidos, P&B, 1977, 89 min
Estados Unidos, cor, 1985, 97 min Formato original: 35mm
Formato original: 35mm
Sinopse: Henry Spencer tenta sobreviver da indústria
Sinopse: Paul, um operador de computador, conhece e sai com uma
de vírus, de sua raivosa namorada e dos gritos de seu
garota estranha, que mora no bairro do Soho, em Nova York. Após o
encontro, ele passa por uma série de imprevistos e situações que o filho, um bebê mutante.
impedem de voltar para casa.
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Direção e Roteiro: David Lynch
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Direção: Martin Scorsese Produção executiva: Fred Baker
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Roteiro: Joseph Minion Fotografia: Herbert Cardwell, Frederick Elmes
Produção: Robert F. Colesberry; Griffin Dunne; Amy Robinson; Assistente de câmera: Catherine E. Coulson
Fotografia: Michael Ballhaus
Assistente de Direção: Catherine E. Coulson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Direção de arte: Stephen J. Lineweaver Montagem: David Lynch
Assistente de Direção: Sarah M. Brim; Christopher Griffin; Stephen Direção de arte: David Lynch
Lim; Tomaz Remec; Jeffrey Townsend Música: David Lynch
Música: Howard Shore Efeitos especiais: Frederick Elmes; David Lynch
Som: Michael Berenbaum; Louis Bertini; Marko A. Costanzo; Tom Elenco: Jack Nance, Charlotte Stewart, Allen Joseph,
Fleischman; Jeanne Bates, Laurel Near, Jack Fisk, Jean Lange, Darwin
Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Tommy
Joston
Chong, Linda Fiorentino, Teri Garr, John Heard, Cheech Marin,
Catherine O’Hara, Dick Miller

72 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 73


KAFKA O ANJO
Estados Unidos/França, P&B, 1991, 98 min L’ange
Formato original: 35mm França, cor, 1982, 64 min
Formato original: 35mm
Sinopse: Praga, 1919. Num castelo que pende para a cidade, numerosas
experiências efetuadas em cobaias humanas inspiram o terror. Kafka, Sinopse: a escalada de uma imensa escadaria composta pelos
um modesto funcionário do estado de dia e escritor à noite, leva uma
mais variados degraus. Cenas simbólicas ocorrem em diferentes
vida monótona até que seu colega e amigo Eduard Raban some e ele
níveis em que personagens parecem ser prisioneiros de seus atos
decide investigar o que está por trás desse desaparecimento.
e de suas próprias insensatezes. Ataques, explosões maníacas
LO

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e a busca desesperada; objetos que se movem independentes:
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Direção: Steven Soderbergh Casting: Susie Figgis
Roteiro: Lem Dobbs Efeitos especiais: Philip Elton; paredes, pisos e tetos se formam e dispersam. A escadaria
AS

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Produção: Harry Benn; Stuart Terry Glass; Jirí Matolín; Ian íngreme leva pouco a pouco para as zonas da grande luz, onde
Cornfeld Wingrove seres humanos e não-humanos se encontram.
Produção executiva: Mark Efeitos visuais: Mike Heaviside;
Johnson; Barry Levinson; Paul Brian Orris; Charles Staffell Direção: Patrick Bokanowski
Rassam Direção de arte: Leslie Tomkins Produção: Jean-Daniel Yver; Claude Nessi; Christian Daninos; Guy
Direção de Fotografia: Walt Lloyd Música: Cliff Martinez Coda; Patrick Bokanowski
Montagem: Steven Soderbergh Elenco: Jeremy Irons, Theresa Assistente de Direção: Jacques Faure; Michel Monteaux
Assistente de Direção: Lee Cleary; Russell, Joel Grey, Ian Holm, Fotografia e Montagem: Patrick Bokanowski
Steve Harding; Zbynek Honzík; Jeroen Krabbé, Armin Mueller- Música: Michèle Bokanowski
Nick Laws; Mirek Lux; Jirí Ostry; Stahl, Alec Guinness, Brian Glover, Elenco: Maurice Baquet, Jean-Marie Bon, Martine Couture,
Alice Ronovska; Guy Travers Keith Allen, Simon McBurney Jacques Faure, Mario Gonzáles, René Patrignani, Rita Renoir

74 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 75


O CASTELO O PROCESSO
Das Schloß Le Procès
Alemanha/Áustria, cor, 1997, 123 min França, Itália e Rep. Federal da Alemanha, P&B, 1962, 118 min
Formato original: 35mm Formato original: 35mm

Sinopse: K. é um agrimensor enviado a um vilarejo, a Sinopse: numa certa manhã, Josef K. é acusado de um crime
trabalho. Lá, descobre a existência de um castelo misterioso, que, supostamente, sequer sabe que cometeu. Porém luta
ao qual apenas alguns privilegiados têm acesso. Ele decide para se defender.
LO

conhecer o lugar a todo custo, mas logo percebe que a tarefa

AS
Direção: Orson Welles Assistente de Direção: Marc
NG

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não será fácil. Adaptação: Pierre Cholot Maurette; Sophie Becker; Paul
AS

LO
Roteiro: Orson Welles Seban
Direção e Roteiro: Michael Haneke Produção: Robert Florat; Arte: Jean Bourlier; Jacques
Produção: Veit Heiduschka; Christina Undritz Alexander Salkind; Michael Brizzio; Madame Brunet; Jean
Fotografia: Jirí Stibr Salkind Charpentier
Montagem: Andreas Prochaska Música: Jean Ledrut Som: Jacques Lebreton; Guy
Casting: Sabine Schroth Direção de Fotografia: Edmond Villette; Julien Coutelier; Urbain
Assistente de Direção: Hanus Polak Jr. Richard Loiseau; Guy Maillet
Arte: Peter Ecker; Hans Wagner Operador de câmera: Adolphe Efeitos especiais: Denise Baby
Charlet Elenco: Anthony Perkins, Arnoldo
Som: Hannes Eder; Hubert Henle; Hans-Walter Kramski; Marc
Montagem: Yvonne Martin; Foà, Jess Hahn, Billy Kearns,
Parisotto; Andreas Schneider; Max Vornehm
Frederick Muller; Orson Welles Madeleine Robinson, Jeanne
Elenco: Ulrich Mühe, Susanne Lothar, Frank Giering, Felix (não creditado) Moreau, Maurice Teynac, Romy
Eitner, Nikolaus Paryla Direção de arte: Jean Mandaroux Schneider, Orson Welles
76 KAFKA E O CINEMA KAFKA E O CINEMA 77
O PROFETA DA FOME QUEM É BETA?
Brasil, P&B, 1969, 93 min Brasil/França, cor, 1972, 85 min
Formato original: 35mm Formato original: 35mm
Sinopse: a história de um faquir que trabalha em um circo paupérrimo
do interior. Quando o circo pega fogo ele inicia com sua mulher uma Sinopse: um casal vive uma estranha e indecifrável aventura,
longa caminhada acompanhado pelo domador do circo, um homem mesclado de drama e comédia, em lugar e época indeterminados,
violento e mau. Ao chegar em uma cidade em festa ele apresenta um após uma catástrofe que modificou o estado natural do mundo e
número sensacional: o de um crucificado vivo. Ele atrai muita gente destruiu até o último vestígio a sociedade humana.
LO

com o espetáculo mas é preso, e na prisão descobre a chave do sucesso:

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o jejum. Direção e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
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Argumento: Gerald Levy-Clerc; Nelson Pereira dos Santos
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Direção: Maurice Capovilla Direção de Produção: Carlos Alberto Diniz
Argumento e Roteiro: Maurice Capovilla; Fernando Peixoto Produção executiva: Ariane Lopez Huici
Direção de Produção: Hamilton de Almeida Assistência de Direção: Pierre-Henry Deleau; Luiz Carlos Lacerda de
Produtor associado: Odécio Lopes dos Santos
Freitas
Assist. de Produção: Roman Stulbach; Jan Koudela; Alexandre Solnick
Direção de Fotografia: Dib Lutfi
Assistência de Direção: Hermano Penna
Direção de Fotografia: Jorge Bodanzky Assistência de câmera: Antônio Luiz Soares
Câmera: Jorge Bodanzky Técnico de Som: Nelson Ribeiro
Montagem: Sylvio Renoldi Sonoplastia: Geraldo José
Técnico de Som: Julio Peres Cabalar Montagem: André Delage
Figurinos e Cenografia: Flávio Império Elenco: Frédéric de Pasquale, Sylvie Fennec, Regina Rosemburgo,
Elenco: José Mojica Marins, Maurício do Valle, Júlia Miranda, Sérgio Jean-Dominique Ruhle, Noelle Adam, Manfredo Colasanti, Arduíno
Hingst, Jofre Soares, Flávio Império, Silvio Evangelista, Fuxico. Colasanti

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QUEM FOI KAFKA? RELAÇÕES DE CLASSE
Wer War Kafka? Klassenverhältnisse
Suíça / França, cor, 2006, 96 min República Federal da Alemanha/França, P&B, 1984, 130 min
Formato original: 35mm Formato original: 35mm

Sinopse: documentário sobre Franz Kafka narrado por alguns de Sinopse: baseado em O Desaparecido ou Amerika, obra inacabada de Franz
seus melhores amigos, usando atores para interpretar pessoas Kafka, trata das relações de classe e da sociedade criada pelo capitalismo
que o conheciam, incluindo Max Brod, Milena, Felice Bauer, — cruel, caprichosa e absurda. Um burguês alemão é forçado a sair de
Gustav Janouch, entre outros. sua terra após um escândalo, mudando-se para a Amerika. No entanto,
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é incapaz de se adaptar à realidade do trabalho, no novo continente
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alegórico construído por Kafka.
Direção e Roteiro: Richard Dindo
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Produtora: Lea Produktion GmbH, Les Films d’Ici, Schweizer Radio und
Direção: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Fernsehen, ARTE France – Unité de Programmes Documentaires
Argumento baseado em “O Desaparecido ou Amerika”, de Franz Kafka
Produção executiva: Richard Dindo, Serge Lalou
Montagem: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Fotografia: René Baumann
Assistência de Direção: Klaus Feddermann; Alf Olbrisch; Berthold
Montagem: Anne Lecour; René Zumbühl
Schweiz; Manfred Sommer
Som: Martin Witz; Dieter Meyer; Florian Eidenbenz;
Câmera: Caroline Champetier; William Lubtchansky; Christophe Pollock
Música: Maurice Ravel
Som: Manfred Blank; Louis Hochet; Georges Vaglio
Casting: Corinna Glaus
Elenco: Christian Heinisch, Nazzareno Bianconi, Mario Adorf, Laura
Elenco: Alexander Wachholz (Max Brod), Carl Achleitner (Gustav
Betti, Harun Farocki, Manfred Blank, Reinald Schnell, Anna Schnell, Klaus
Janouch), Irene Kugler (Felice Bauer), Peter Kaghanovitch (Max Pulver),
Traube
Hana Militká (Milena Jesenská), Renata Stachowicz (Dora Diamant)

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CRÉDITOS

Realização Tradução dos textos


Insensatez Audiovisual João Ulisses de Melo Filho
Luzes da Cidade – Grupo de Leonardo Esteves
Cinéfilos e Produtores Culturais Lucas Murari

Curadoria Revisão de Textos


Lucas Murari Lucas Murari
Luiz Garcia Agradecimentos Maria Chiaretti
Alex Sandro Martoni Mariana Marques
Tradução e Legendagem dos Filmes
Coordenação de Produção Amandine Claude Marine Goulois
Felipe Gonçalves
Aleques Eiterer Amélie Rayroles Mark Johnson
Marília Lima Amy Solan Massimo Cristaldi
Projeto Gráfico, Web Designer e
Pedro Nogueira Antonio Laurindo Mateus Araújo Silva
Vinheta
Arndt Röskens Renato Bissa
Inhamis Studio
Produção de Cópias Barbara Ulrich Vanda Eiterer
Raquel Rocha Bernard Payen Zeudi Araya Cristaldi
Assessoria de Imprensa
Christian Caselli
Isabelle Lindote
Editoração do Catálogo Daniel Pérez e os cineastas com filmes presentes
Lucas Murari Diana na mostra e todas outras pessoas
Redes Sociais e e Assistência de
Luiz Garcia Dominique Bax que nos ajudaram neste projeto
Produção
Eleni Gioti
Fausto Junior
Textos Eliška Kaplicky Fuchsova
Cédric Anger Éric Séguin
Registro Fotográfico e Videográfico
Hernán Ulm Fabricio Felice
Louise Ralola
Luís Alberto Rocha Melo Flávio Pougy
Pedro Nogueira
Luiz Soares Júnior Francesca Tripodi
Maria Cristina Franco Ferraz Guelfo Ascanelli
Projecionista
Milan Kundera Hernani Heffner
Luiz Guilherme Richard
Juliana Azzouz
Mesa de debates Karen Lima
Fotografias
Hernani Heffner Louise Ralola
Divulgação
Lucas Murari Marcia Pereira dos Santos
Maria Cristina Franco Ferraz Margot Rossi

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Cuide da natureza. Recicle!
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.

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