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O HOMEM DOS LOBOS: FRAGMENTOS PARA UM DIÁLOGO

ENTRE FREUD E NIETZSCHE


Catarina Veiga Fernandes

2014
Resumo

É já conhecida a influência de Nietzsche sobre o trabalho iniciado por Freud no


desenvolvimento da Psicanálise. Freud e Nietzsche foram contemporâneos do pensamento
do século XIX. Ambos se interessaram pelas civilizações antigas, em particular pela cultura
grega, incluindo a Tragédia. Foi ainda dedicada uma atenção especial pelos dois autores à
figura mítica do Édipo. O desejo de compreender e desvendar o ‘segredo’ por detrás da
humanidade, assente na herança filogenética ancestral que a liga à animalidade - a relação
entre o instinto e a razão, o consciente e o inconsciente, o racional e o irracional, a aparência
e a realidade, a superfície e a profundidade, foram questões que lhes renderam um papel
pioneiro na história do pensamento do Homem. Neste trabalho realçamos o importante lugar
do Mito na compreensão dos processos psíquicos, como entidade simbólica que fornece uma
espécie de significação para o modo de ser e funcionar do mundo, através dos seus heróis e
lugares sagrados. O exercício a que nos propusemos foi o de confrontar a abordagem
filosófica com a abordagem psicanalítica, através da análise e interpretação de um dos casos
mais emblemáticos de Freud – O Homem dos Lobos. Aí descobrimos as diferentes
disposições dos dois autores e introduzimos a qualidade da sensibilidade estética
nietzscheana, no sentido de uma maior abrangência da leitura e interpretação dos processos
psíquicos envolvidos no caso apresentado.

Palavras-chave: Nietzsche, Freud, Fantasia, Mito, Castração (angústia de).

Abstract

Nietzsche’s influence on Freud’s development of psychoanalysis is already


acknowledged. Freud and Nietzsche were contemporary of the nineteenth century thinking.
Both were interested in ancient civilizations, particularly Greek culture, including Tragedy.
They have dedicated special attention to Oedipus mythic figure. The desire to understand and
unveil the ‘secret’ hiding behind humanity, based upon ancient phylogenetic heritage
connected to animalism – the relationship between instinct and reason, conscious and
unconscious, rational and irrational, appearance and reality, surface and depth, were issues
that earned them a pioneering role in the history of thinking about mankind. In this work it is
addressed the important role Myth plays in the understanding of the psychological processes,
conceived as a symbolic feature that provides meaning to the world’s view, through its
heroes and sacred places. This study is an attempt to confront Nietzsche’s philosophical
approach with Freud’s psychoanalytical view over the analysis and interpretation of one of
the most emblematic of Freud’s clinical study cases – The Wolfman. There, we find the
different dispositions of both authors and we introduce the aesthetic quality of nietzschean
sensibility to widen the comprehension about the psychological processes involved in the
present clinical case.

Key-words: Nietzsche, Freud, Fantasy (imagination), Myth, Castration anxiety.

  II  
Índice

Introdução ....................................................................................................................... 1

Análise Comparativa do caso Homem dos Lobos .......................................................... 7

Pulsão e Vontade de Poder ................................................................... 11


Apolo e Dioniso – conflito entre a criação e a destruição .................... 15
O imperativo do Presente ...................................................................... 19
O Mito de Édipo .................................................................................... 27
A fantasia – do drama inconsciente à narrativa ..................................... 38

Conclusão ....................................................................................................................... 46

Referências Bibliográficas ............................................................................................. 51

  III  
Introdução

A proposta para este estudo é, a partir de uma ilustração clínica, realizar um exercício
de comparação entre a perspectiva de análise freudiana e a linha de pensamento filosófico de
Nietzsche, aplicada ao mesmo caso clínico.
O Homem dos Lobos é o caso mais trabalhado de Freud e por muitos considerado o
mais importante (Meltzer, 1978, pp. 89-101). Aí é abordada pela primeira vez a importância
das fantasias associadas à cena primitiva e do seu impacto sobre a estrutura mental. O que aí
está em evidência é o processo de reconhecimento de si próprio através do acesso à origem
mesma de si, ou seja, a explicação da vida enquanto tal e, num segundo momento, do sentido
da vida. Além disso, este é o primeiro caso utilizado por Freud para demonstrar a validade da
Psicanálise. Foi o primeiro caso clínico detalhado, não autobiográfico, que lhe permitiu
reunir aspectos importantes relacionados com o inconsciente, a sexualidade e a interpretação
de sonhos que haviam sido abordados em obras suas anteriores como os Estudos sobre a
Histeria (1895), A Interpretação de Sonhos (1900) e os Três Ensaios sobre a Teoria da
Sexualidade.
Será feito um pequeno exercício de comparação analítica, contrapondo as duas
perspectivas.
De um lado temos a análise própria de um caso – O Homem dos Lobos - realizada
por Freud, e, do outro, uma abordagem filosófica, uma proposta de articulação efectuada
segundo princípios da filosofia nietzscheana, de forma a ampliar a discussão e reflexão em
torno da técnica e da teoria psicanalítica.
Considera-se que muitas das ideias que deram origem à Psicanálise se encontravam já
expressas na obra de Nietzsche:
-­‐ a sexualidade na origem do desenvolvimento psicológico – a consciência e a razão
são “deformações” dos impulsos e actuam através da dissimulação, da hipocrisia e da
astúcia - prelúdio para a teoria sobre as fantasias infantis acerca da origem da vida e
da diferença entre os sexos;
-­‐ a necessidade do conflito para esse desenvolvimento, um conflito entre o ego e as
pulsões – Apolo e Dioniso como figuras que simbolizam o processo de criação e
destruição, concretizando a existência de uma função primária e uma função
secundária;

1
-­‐ a sublimação de instintos – o ponto de vista económico que compreende a descarga e
a transferência de um impulso para outro está presente na obra de Nietzsche;
-­‐ a importância do Sonho para a compreensão do psiquismo – o sonho contem um
significado escondido;
-­‐ a noção de inconsciente – o termo id foi empregue por Nietzsche;
-­‐ a vontade de poder – presente em Adler, por exemplo, embora este tenha sido um
conceito alvo de diversos equívocos;
-­‐ a noção de recalcamento – era designada de inibição por Nietzsche;
-­‐ a concepção de um super-ego e do sentimento de culpa – na obra de Nietzsche
através dos termos ressentimento, má consciência e falsa moralidade.
 
Algumas destas ideias encontram o seu reforço na obra Nietzsche’s Presence in
Freud’s Life and Thought – On the Origins of a Psychology of Dynamic Unconscious Mental
Functioning (1995), do psicanalista Ronald Lehrer.
No caso escolhido, estas questões surgem encadeadas no quadro do desenvolvimento
de uma psicopatologia, com início na idade infantil.
A nossa análise do caso inicia-se com a descrição de alguns conceitos-chave da
psicanálise, acompanhando a explanação feita por Freud, como a sublimação, as lembranças
encobridoras, os sonhos, a inversão no oposto, as fantasias e a sedução infantil – aspectos
que nos vão permitir aceder ao inconsciente do paciente e ao desenvolvimento da sua
organização psico-sexual. Estes aspectos, presentes na obra de Nietzsche, evidenciam o
processo de construção do psiquismo, no modo como o conflito pulsional tem expressão
através das diferentes manifestações que acedem à consciência e do sintoma.
Sugere-se em seguida, um percurso analítico do caso assente em cinco temas: Pulsão
e Vontade de Poder, Apolo e Dioniso – conflito entre a criação e a destruição, O imperativo
do Presente, O Mito de Édipo e A fantasia – do drama inconsciente à narrativa.
Estes temas pretendem ser o reflexo do cruzamento das duas perspectivas dos autores
em estudo, isto é, os pontos de maior convergência.
Na exploração do primeiro tema procurámos criar uma base para a compreensão do
modo como as diferentes pulsões em conflito se organizam e comprometem o
desenvolvimento psico-sexual do paciente. Aí, é feita uma descrição do conceito
nietzscheano de Vontade de Poder que nos permitirá alargar a leitura da ambivalência
registada no carácter do Homem dos Lobos.

2
O segundo tema – Apolo e Dioniso – conflito entre a criação e a destruição, justifica
a necessidade do sonho, da fantasia e da imaginação, para lidar com o poder destruidor das
pulsões instintuais que impelem o paciente à realização de desejos socialmente interditos. As
figuras míticas utilizadas por Nietzsche ajudam-nos a compreender o compromisso que é
necessário estabelecer entre um processo primário e um processo secundário no
desenvolvimento psicológico do sujeito.
No terceiro ponto – O imperativo do Presente – pretende-se demonstrar que a
instalação da psicopatologia encerra o sujeito em possibilidades reduzidas de contacto com o
mundo. É feita um reflexão filosófica sobre a dificuldade do homem em lidar com a angústia
de morte e da forma como, no seu percurso individual, o sujeito encontra obstáculos à
superação da mesma; tal como no caso em estudo a angústia de castração remete para a
dificuldade do paciente em construir a sua identidade como um ser autónomo e separado,
individual. E de como as fantasias jogam um papel fundamental, neste caso, para a
manutenção da angústia. Neste ponto é também realçado o interesse da perspectiva trágica
sobre o sofrimento humano, que nos ensina a valorizar o presente e a superar as dicotomias
próprias da existência.
No quarto tema – O Mito de Édipo, é feita uma pequena incursão pelo universo da
mitologia e da Tragédia, desde as questões centrais da Hybris (arrogância humana), Moira
(destino) e Hamartia (falta, erro) até à concepção aristotélica do Mito. Estas questões
permitem-nos enquadrar aquilo que virá a ser uma leitura do drama individual do Homem
dos Lobos. É também introduzido o contributo de Lacan na explicação da proibição do
incesto – tema central da Tragédia de Édipo.
Finalmente, no quinto tema – A fantasia – do drama inconsciente à narrativa – é
traçado um paralelo entre as dificuldades presentes no Homem dos Lobos e o percurso
trágico de Édipo. É aqui descrito o conceito de posterioridade em Freud, que nos demonstra
a reactualização de um trauma vivido anteriormente, tal como em Édipo o choque com a
verdade no final da trama reactualiza o trauma da primeira rejeição pelos pais. Concluímos
esta primeira parte com a metáfora do arrancar de olhos do Édipo, chave para a aceitação da
problemática da castração.
Este exercício comparativo permitir-nos-á, por um lado, verificar os pontos
convergentes e reforçar a importância da filosofia nietzscheana para o aparecimento da
psicanálise e, por outro, alargar a proposta de Freud integrando aspectos heurísticos da ideia
nietzscheana com o seu contributo eventual para a análise clínica da psicopatologia.

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Alguns aspectos da Filosofia de Nietzsche serão realçados com o intuito de trazer
uma nova sensibilidade à reflexão sobre a prática da psicanálise, como teoria explicativa dos
processos do desenvolvimento mental – nomeadamente a teoria estética de Nietzsche sobre a
compreensão da natureza humana e da existência em si mesma.
Convém ainda referir que o objectivo deste trabalho não é o de fornecer uma leitura
actualizada do caso, à luz dos progressos da psicanálise, mas o de evidenciar a relação entre
a perspectiva filosófica de Nietzsche e a teoria psicanalítica de Freud, tendo por base a
ilustração clínica do caso do Homem dos Lobos. A partir da aplicação teórica a um caso
clínico, pretende-se manipular e testar a pertinência e adequabilidade dos constructos à
realidade da clínica e da psicopatologia, assim como ampliar o campo de reflexão e
compreensão dos processos psíquicos envolvidos.
 
 
 
RESUMO  DO  CASO  
 
O Homem dos Lobos – História de uma neurose infantil

Sergei Konstantinovitch Pankejeff, é um homem de origem russa de 23 anos à data da


análise com Freud. O seu tio paterno havia sido internado num asilo com diagnóstico de
Paranóia. A irmã suicida-se aos 21 anos, quando Serguei tinha 10 anos.
Vem a casar-se com uma senhora que se suicida, após o suicídio da sua filha.
O início da análise com Freud dá-se em 1910. Tratado por diversos psiquiatras, foi
diagnosticado como maníaco-depressivo. Freud no seu diagnóstico considerava que se
tratava de uma neurose grave, com sequelas ao nível de uma neurose obsessiva.
Quando iniciou o tratamento estava inteiramente incapacitado e dependente de outras
pessoas, fruto de uma gonorreia infecciosa. Nos 10 anos que precederam a doença levou uma
vida mais ou menos normal, tendo cumprido os estudos secundários sem problemas.
Os primeiros anos de vida do Homem dos Lobos foram dominados por um grave
distúrbio neurótico que começou imediatamente antes do seu 4º aniversário. Uma histeria de
angústia (na forma de uma fobia animal) transformou-se depois numa neurose obsessiva de
conteúdo religioso e que perdurou nas suas manifestações até aos 10 anos.
A análise com Freud dura cerca de 4 anos, sem resultados aparentes durante muito
tempo, pelo que Freud (1918, p. 2839) refere: “O paciente a que me refiro aqui permaneceu
muito tempo inexpugnavelmente entrincheirado por trás de uma atitude de amável apatia.

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Escutava, compreendia e permanecia inabordável”. Freud procurou então fixar um termo
para a cura, o que trouxe um progresso significativo. A longo prazo, no entanto, uma vez que
o paciente recorrera novamente à análise com Freud e mais tarde com Ruth Mack
Brumswick, Freud repensou este método.
 
Cronologia:

1 ano e 6m – data em que presumivelmente terá testemunhado a cena primitiva; neste


período o paciente relata que estava doente com malária e que os picos da febre ocorriam
sempre por volta das 17h, altura em que terá acordado e presenciado a cena no quarto dos
pais.

2 anos e 6m – pais e irmã vão de férias e o paciente fica com a ama (recordação-ecrã); cena
com Grusha – o menino urinou enquanto olhava para a moça, de joelhos, esfregando o chão,
tendo sido repreendido por esse acto - 1ª ameaça de castração.

3 anos e 3m – sedução da irmã; masturbação; ameaça de ferida (castração); abandona a


masturbação; visualiza a irmã e uma amiga a urinar e rejeita a ideia da castração, com a qual
a ama o ameaçara, adoptando a ideia de que o que vira correspondia ao “traseiro frontal” das
meninas. Outra recordação é a da história de um lobo que queria ir pescar no Inverno e usou
a sua própria cauda como isco, tendo congelado a cauda que se partiu em bocados. Também
recorda a ama a cortar um doce aos pedaços associando-o a uma cobra que o pai matou no
quintal despedaçando-a em vários bocados.

3 anos e 5m – no Verão seguinte fica aos cuidados de uma governanta inglesa, tendo dessa
época duas recordações-ecrã: 1) a governanta ia à frente das crianças, dizendo-lhes “olhem o
meu rabinho”; 2) num passeio “o chapéu dela voa e as crianças riem-se” (alusão à
problemática da castração). Quando os pais regressam despedem a governanta devido às
alterações de comportamento do paciente;
É por esta altura que sofre uma alteração de carácter (até esta idade era uma criança tranquila
e de boa índole, passando a irrequieto, irascível e violento), descrevendo esta época como
um “tempo de maldade”;
Medo do lobo em gravura (livro da irmã); fantasias (O herdeiro do trono e Meninos
agredidos);

5
Incontinência intestinal.

4 anos – sonho (véspera de Natal) relacionado com a cena primitiva. Sintomas de ansiedade
à fobia animal à neurose fóbica.

4 anos e 6m – iniciação religiosa; sintomas obsessivos (religião); desaparece a ansiedade


(a neurose obsessiva ocorre entre os 4 anos e meio e os 10 anos).

5 anos – vendem a quinta e mudam-se para a cidade; alucinação da perda de um dedo.

6 anos – ritual de expiração sempre que via mendigos; visita ao pai.

8-10 anos – desapareceram os sintomas de desobediência.

Puberdade – tentativa de aproximação íntima com a irmã.

17 anos – contrai gonorreia.

23 anos – início do tratamento com Freud.

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Análise Comparativa do Caso Homem dos Lobos
 
Freud (1918, p. 2838) inicia a descrição do caso reflectindo sobre o papel das forças
libidinais rejeitadas na neurose e a impossibilidade de sublimar esse material através de
“aspirações no sentido de objectivos culturais”.
Logo aqui neste início podemos trazer para a reflexão ideias expressas na obra
Humano, Demasiado Humano de Nietzsche, que traduzem o processo inerente à sublimação,
ou seja, o modo como o psiquismo se organiza na sua humanização. Nietzsche (1878, p. 21,
§ 17) refere que as melhores coisas nascem das coisas mais vis e desprezíveis e que a história
do pensamento evidencia um desprezo pelas questões da origem e dos princípios. Assim,
Nietzsche sugere que estes aspectos ditos desprezíveis são abafados pela consciência que
procura estabelecer categorias de opostos nas quais as experiências sensoriais são arrumadas,
esquecendo o elemento que deu origem a essa categorização. Mas refere, simultaneamente,
que este elemento é susceptível de ser descoberto, “até que se façam observações mais
subtis”. Deste modo, para Nietzsche não existe nem conduta altruísta nem contemplação
inteiramente desinteressada pois estas são apenas sublimações (Ibidem, p. 11).
Freud (1918, p. 2839), identificou no paciente uma clivagem entre inteligência e
afecto e resistências ao aprofundamento da terapia. No histórico do paciente realça alguns
aspectos da sua infância – tipos contraditórios de atitude em relação aos animais: medo e
crueldade; hábitos religiosos contrastam com blasfémias
Verificamos então que, através da patologia, podemos analisar com maior acuidade
como são produzidos os mecanismos mentais e quais as suas funções, ou seja, os processos
que antecedem a forma final que adquirem as manifestações psíquicas. Nietzsche (1878, p.
69, § 107) considerava que “as boas acções são más acções sublimadas” e que “as más
acções, são boas acções grosseira e nesciamente realizadas”. Na origem destas acções,
Nietzsche coloca o desejo do gozo de si mesmo unido ao temor de que seja frustrado –
aquilo que viria a ser a teoria do narcisismo primário em psicanálise?
Nietzsche revela que o organizador dos modos de satisfação deste desejo do gozo de
si mesmo (vingança, vaidade, interesse, prazer) corresponde a um certo tipo de inteligência:
“os graus de raciocínio decidem em que direcção se deixará arrastar cada um por este
desejo” (Ibidem). Neste sentido, para Nietzsche, se o homem se deixasse guiar pela lógica
até às últimas consequências teria de enfrentar verdades dolorosas e insuportáveis, pelo que o
recurso ao erro e à ilusão se torna mais reconfortante e apaziguador. No caso do Homem dos
Lobos, esta função de erro de lógica (que equivaleria ao recalcamento) está comprometida,

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pelo que o paciente se vê confrontado com a psicopatologia, que se manifesta através dos
comportamentos obsessivos e das fobias (com o retorno do recalcado).
Freud considerava que o enigma para os problemas desenvolvidos pelo paciente se
encontrava nos seus primeiros 8 anos. Aí seria possível descobrir a origem da súbita
mudança do carácter do paciente, o significado da fobia e das suas perversidades, o caminho
para a devoção obsessiva e a relação entre os fenómenos. Freud salienta que o pedido actual
da psicoterapia se referia a uma neurose subsequente e recente e que seria necessário fazer
uma passagem pelo período “pré-histórico” da infância.
Em Nietzsche encontramos esta mesma ideia mas expressa de modo inverso. Para
Nietzsche, é necessário “matar” pai e mãe, renunciar à herança, passar do modo reprodutivo
para o modo criativo, da repetição para a inovação, encontrar a força expressiva e motriz que
conduza à especificidade e à individualidade1.
No Capítulo III do Homem dos Lobos, Freud (1918, p. 2844) aborda a questão das
lembranças encobridoras (recordação-écran), a partir de associações do paciente a propósito
dos seus sintomas. Uma das justificações dadas pelo paciente para a sua mudança de
comportamento – de dócil para agressivo – foi a da mudança de ama. Este é um exemplo
daquilo a que Freud designou de lembrança encobridora. Na sequência desta justificação,
Freud arrisca uma interpretação, a partir dos dados relatados, que associa essa mudança de
comportamento a uma reacção à sedução de que teria sido alvo por parte da ama e da sua
irmã. Mais uma vez, encontramos aqui uma evidência de que a mente humana se serve de
artefactos para renunciar ao contacto directo com as emoções mais primitivas. No entanto,
através dos sonhos, é possível reconstituir o material interditado pelo trabalho da
consciência. De facto, aquela interpretação de Freud deu origem a uma série de sonhos que
permitiram o acesso às fantasias e construções imaginárias sobre o impacto de tais
experiências sexuais2. O paciente relatou uma série de sonhos nos quais adoptava posições
                                                                                                               
1  “Estás
a caminho para a tua grandeza, o teu supremo refúgio é agora o que foi até hoje o teu maior perigo. /
Segues o caminho para a tua grandeza; a tua melhor coragem será que atrás de ti não existam mais caminhos! /
Segues o caminho da tua grandeza: e ninguém se arrasta atrás de ti! Atrás de ti os teus passos apagaram o seu
rasto, nesse caminho está escrita a palavra: Impossível. / E se mais adiante te faltarem todas as escadas, será
preciso aprender a trepar sobre a tua própria cabeça; como poderias fazer de outra maneira?” (Nietzsche, 1883-
1885, III, O viajante, p. 178). Trata-se de uma renúncia a todas as formas enfraquecedoras da vontade, da força
que se manifesta em potencial em determinado momento, como sejam os hábitos e comportamentos herdados
geracionalmente ou as projecções que se esfumam em vãos desejos de fuga à angústia do presente.
 
2
Uma nota sobre a ideia de que a sexualidade está na origem do psiquismo. Nietzsche traz-nos a consciência
de um contraste na vida psíquica que põe em confronto um conjunto de forças vitais inconscientes e a
vontade/necessidade de domá-las: “(...) nós próprios somos uma espécie de caos -: o "espírito", como já disse,
acaba por descobrir nisto a sua vantagem. Devido à nossa semibarbárie no corpo e nos desejos, temos acessos
secretos a todas as partes, acessos que uma época aristocrática nunca possuiu, sobretudo os acessos ao labirinto

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agressivas sobre a sua irmã e sobre a sua ama, terminando essas situações com cenas de
castigo e reprovações por causa dessas acções.
Nietzsche (1878, p. 17, § 12) refere que, no sonho, nos assemelhamos aos selvagens,
ao modo de pensar dos selvagens: cedência aos caprichos próprios, confusão de memórias;
depois de um pequeno esforço de memória, o selvagem começa a vacilar num processo de
deterioração da mesma a ponto de daí resultarem mentiras e absurdos. No sonho dá-se o
reconhecimento imperfeito e uma assimilação errónea dos dados da realidade, numa
contradição com o funcionamento da lógica. No estado de vigília, a lógica confronta-nos
com uma sensação de medo de nós próprios por ocultarmos tanta loucura nas produções
oníricas. Nietzsche considera que o estado de crença absoluta nos acontecimentos do sonho,
durante o sonho, se assemelha aos estados da humanidade primitiva, nos quais a alucinação
era frequente e dominava a comunidade e os povos com autoridade de lei. Desta forma, para
Nietzsche, compreender os sonhos era também compreender o modo de funcionar das
comunidades primitivas que antecederam a modernidade3.
No caso do Homem dos Lobos, Freud (1918, p. 2844) interpreta o relato dos sonhos
do paciente como fantasias construídas pelo próprio na sua infância para explicar os
acontecimentos e sensações vivenciadas, que retornavam à consciência de um modo
encriptado. A explicação das fantasias surge com as lembranças da época nas quais o
paciente se viu envolvido em jogos sexuais com a sua irmã (mostrar o rabo no banho, a irmã
pegou-lhe no pénis contando histórias sobre a ama). Para Freud, estas fantasias destinavam-
se a apagar a lembrança de um outro evento ofensivo à sua auto-estima masculina. Freud
denuncia, neste ponto, um processo de inversão imaginária e desejável no lugar da verdade

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     
da civilização imperfeita e de toda a semibarbárie que tomaram existência sobre a Terra e como a parte mais
considerável da civilização humana se resume numa semibarbárie” (1882, p. 138, § 224). Outro exemplo: “Por
debaixo de cada pensamento esconde-se um afecto.”. (Nietzsche, 1885-1889, p. 53, § 1 [61]).
Ou ainda este, no qual este aspecto é exacerbado: “(...) a vida verdadeira como sobrevivência colectiva
mediante a procriação, mediante os mistérios da sexualidade. Por isso o símbolo sexual era para os gregos o
signo venerável por excelência, e assumiu um sentido profundo em toda a piedade antiga. Cada um dos detalhes
do acto da procriação, da gravidez, do nascimento, despertava os sentimentos mais elevados e solenes. Na
doutrina dos mistérios a dor é sagrada: as “dores do parto” santificam a dor enquanto tal, - todo o devir e
crescer, tudo o que é uma garantia de futuro, implica dor... Para que exista o prazer de criar, para que a vontade
de vida se afirme eternamente a si mesma, tem de existir também eternamente o “tormento da parturiente”...
(...) Só o cristianismo, que se baseia no ressentimento contra a vida, fez da sexualidade algo impuro:
conspurcou o começo, o pressuposto da nossa vida... (...) A psicologia do orgíaco entendido como um
transbordante sentimento de vida e de força, dentro do qual a própria dor actua como estimulante, deu-me a
chave para entender o conceito de sentimento trágico (...)”. (Nietzsche, 1889, p. 136, § 4 e 5).

3  "Podemoscalcular quão apropriada é a asserção de Nietzsche de que, nos sonhos, ‘acha-se em acção alguma
primitiva relíquia da humanidade que agora já mal podemos alcançar por via directa’; e podemos esperar que a
análise dos sonhos nos conduza a um conhecimento da herança arcaica do homem, daquilo que lhe é
psiquicamente inato." (Freud, 1900, p. 977).  

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histórica. De acordo com essas fantasias, não era o paciente que desempenhava o papel
passivo em relação à irmã, mas, pelo contrário, é ele que domina a situação e sofre as
consequências dessa atitude: rejeição e punição. Segundo Freud, é por essa razão que se dá a
sua mudança de comportamento para a cólera. Aqui é feito um paralelo com as lendas nas
quais nações, que anteriormente eram insignificantes e fracassadas, tentam esconder esse
facto através do orgulho da sua recém adquirida grandiosidade. Esta analogia vem
demonstrar que a manifestação de um comportamento excessivo esconde geralmente um
complexo que aponta na direcção oposta. No caso, a cólera e a agressividade escondem a
tristeza e a ferida narcísica provocada pela inversão de papéis – de activo (masculino) para
passivo (feminino).
A este propósito, Pedro Luzes (2004) refere que quando estamos em presença de
determinada emoção ou sentimento no consciente devemos sempre supor o seu contrário ao
nível do inconsciente, onde as emoções não sofrem um controle racional. Quando estamos
em presença da independência ou dependência excessivas, devemos admitir a presença do
seu contrário no inconsciente. O máximo amor é vizinho do máximo ódio. O sentimento de
omnipotência tem como companheiro o seu oposto de impotência ou desamparo. A
idealização de uma pessoa supõe uma imagem persecutória da mesma pessoa, ou de outra
sobre a qual foi feito um deslocamento. A depressão está vizinha da mania. Assim, podemos
concluir que o desejo constitui sempre uma influência deformadora do real.
Há um outro efeito sobre os mitos e as lendas que Nietzsche (1872, p. 95, § 10)
aponta e que nos permite estabelecer um novo paralelo com a vida psíquica. Nietzsche refere
que quando o mito é encarado com pretensões históricas como tratando-se de um facto real,
o sentimento do mito morre. O mesmo podíamos dizer relativamente às fantasias que são
construídas no inconsciente. Neste sentido, se no contexto psicoterapêutico as fantasias são
encaradas como realidade, perde-se a possibilidade de interpretar a fantasia com nova e mais
profunda significação4.
Voltando ao caso, como resultado da sedução da irmã, o paciente transfere a sua
hostilidade para a ama, pelo que encontra a oportunidade de expressar abertamente a aversão
que desenvolveu contra a irmã. A aversão contra a irmã reveste-se naturalmente do
sentimento de inveja, já que o paciente encontrou na irmã um competidor inconveniente
relativamente ao amor dos seus pais. Neste momento, Freud apresenta uma ideia de Adler,
                                                                                                               
4
Aqui, podemos introduzir o sentido estético do trágico evidenciado por Nietzsche, que nos demonstra a via de
acesso a essa plurissignificância do mito: “O mito atinge, na tragédia, o seu alcance mais profundo, a sua mais
expressiva forma; levanta-se uma vez mais, como o herói ferido, e, no seu olhar fulgurante, brilha ainda a
última expressão de energia com a clarividência da morte.”. (Nietzsche, 1872, § 10)

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com base seguramente em leituras de Nietzsche, de que a conduta sexual humana, assim
como tudo o mais, está subordinada a forças que se originam da vontade de poder do instinto
auto-afirmativo do indivíduo. Freud considera a este propósito que a vontade de poder (neste
caso o rebaixamento do outro) serviu apenas como causa contribuinte e como uma
racionalização, para a escolha do objecto libidinal. Para Freud, a verdadeira determinação
subjacente a essa escolha relaciona-se essencialmente e em primeiro lugar com desígnios
psico-sexuais, nomeadamente com a problemática da castração. Neste ponto, é importante
registar que esta questão surge articulada com as fantasias que as crianças constroem acerca
da origem da vida e da diferença entre sexos, no fundo, a criação de uma teoria que explique
a sucessão de gerações e o problema da reprodução e, em última análise, da morte em si.
Estas fantasias vão determinar irremediavelmente uma organização libidinal de relação com
o mundo.

Pulsão e Vontade de Poder

Tratando-se de um tema longa e originalmente abordado por Nietzsche, será


importante fazer agora um pequeno desvio à narrativa do caso clínico em estudo para
posteriormente e com mais propriedade a ele retornar. Na acepção de Nietzsche todo o facto
no mundo orgânico, tal como subjugar e dominar, equivale a uma interpretação sucessiva, a
uma acomodação de coisas a novos fins. Deste modo, para Nietzsche, não existem
fenómenos morais, apenas interpretações. Os fenómenos são compreendidos como metáforas
ou aparições estéticas. O estado estético é o resultado da forma como o homem lida com a
sua finitude. Este modo permite ao homem lidar com a sua angústia e transformar condições
fisiológicas e animais (instintos e pulsões) em sistemas simbólicos, a que faz corresponder a
criação de valores.
Compreender o estado estético tem por base condições fisiológicas como a
sexualidade, a embriaguez e a crueldade. A única medida para este estado é o gosto, último
fundamento da moral. A forma vale pelo fundo, trata-se de um estilo que deve ser sentido,
percebido, percepcionável pelos sentidos. É uma produção criativa, mais que uma crença.
Num certo sentido, um narcisismo refinado, matizado e inteligente.
A vontade de poder é hermenêutica, interpretativa. A vontade de poder é aquilo que
quer, não aquilo que pode (força). A vontade de poder não equivale, assim, a uma força, mas
a uma interpretação, a uma avaliação de uma luta de forças entre si; esta luta exprime-se num

11
tipo de relação de dominação entre duas forças: uma é dominante e a outra é dominada.
Interpretar é identificar a força que atribui um sentido à coisa.
Neste contexto, o trabalho do psicanalista pode ser comparado ao da genealogia que
procura descobrir o elemento diferencial na luta interna que é estabelecida entre impulsos e
que permite ser-se capaz de sentir e de pensar as qualidades das relações e não esquecer a
sua origem. É considerado reactivo tudo o que separa uma força; é reactivo o estado de uma
força separada daquilo que ela pode. E é activa uma força que atinge o limite das suas
potencialidades. “Aquilo que quer” na vontade de poder é um elemento genético e
diferencial, não procura nem deseja atingir fim específico algum. É apenas um dado de
sentido e de valor, não pretende, não tem intenções. Toda a intenção é sinónima de um
aumento de força, nada mais.
A unidade da vontade de poder sustenta-se, assim, na sua multiplicidade, na
possibilidade de expressão diversificada, o que a aproxima do acaso e da não
predictibilidade.
Freud, embora não desenvolva uma reflexão em torno deste conceito, elabora
algumas questões que têm a ver com aquilo que está na origem do conflito interno das
pulsões entre si. Não está muito interessado na destrinça entre o poder da sexualidade e o da
auto-preservação: “Em minha opinião não é (...) de muita importância para a psicanálise
saber até onde levamos a diferença, indubitavelmente acertada, entre os instintos sexuais e os
de auto-preservação. (1916, p. 2800). Adler, ao sobrevalorizar a componente de egoísmo, de
domínio, como distinta da força libidinal, antes uma força que provém dos instintos
agressivos – aquilo a que Freud viria a denominar de pulsão de morte – ignora a componente
fundamental da vontade de poder descrita por Nietzsche. A vontade de poder vai além da
auto-preservação, ela vive no risco. A vontade de poder, neste sentido, tal como foi dito,
integra a sexualidade, a embriaguez e a crueldade.
Freud (ibidem), reconhece esta mesma qualidade da vontade de poder, sem lhe
atribuir este nome, ao afirmar que a sexualidade é a única função do organismo vivo que se
estende além do indivíduo e se refere à relação deste com a sua espécie. Por conseguinte,
assume simultaneamente, esta componente de perigo essencial ao conceito de vontade de
poder: “́É facto inequívoco que ela [a sexualidade] nem sempre, como as demais funções do
organismo individualizado, lhe traz vantagens, mas, em compensação por um grau
extraordinariamente elevado de prazer, ocasiona perigos que ameaçam a vida do indivíduo e,
amiúde, a destroem.”.
Em resumo, vontade de poder não corresponde aos instintos de auto-preservação, a

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que Freud (ibidem, p. 2801) denominou ‘interesse’ para distingui-los das catexias de energia
que o ego dirige aos objectos dos seus desejos sexuais, ou seja a ‘libido’.
Relativamente ao nosso caso, estamos de acordo com Freud quando considera que a
escolha objectal do nosso paciente está muito mais fortemente relacionada com uma
componente psico-sexual do que com um instinto de auto-preservação ou instalada num tipo
de relação de domínio sobre o outro. Através de Nietzsche, compreendemos que o que
resulta da difícil escolha do paciente é uma interpretação inconsciente das diferentes forças
de que dispõe em acção, estas sim em luta umas com as outras5, donde resulta uma síntese
desse mesmo tipo de relação entre as forças, das quais, naturalmente uma sairá vencedora.
Como vemos pela análise do caso por Freud, esta luta manifesta-se, à vez, com diferentes
‘vencedores’, seja a vertente genital, seja a regressão à fase sádico-anal, que se vão impondo
por critérios de conveniência e circunstanciais. Realçamos aqui, novamente, o facto trazido
pela explicitação do conceito de vontade de poder, da multiplicidade subjacente à unidade da
interpretação de um determinado estado psicológico. Deste modo, podemos dizer que as
supostas paixões singulares (por exemplo, o homem é cruel) são apenas unidades fictícias
que entram na consciência como algo homogéneo e imaginariamente unificado de modo
sintético num ser.
  Nesta linha de análise, o que Freud verifica é que há uma regressão da fase genital
para uma organização pré-genital, na fase em que o paciente apresenta um sintoma da sua
patologia – a alteração do seu comportamento, de dócil para um menino irritável,
atormentador que se gratificava às custas de animais e de seres humanos. A supressão da
masturbação conduziu-o a uma organização anal-sádica, cujo principal objecto era a ama, na
qual se vingava da sua recusa em partilhar os seus jogos sexuais, assim como gratificava a
sua lascívia sexual na forma que correspondia à sua presente fase regressiva: começou a
mostrar-se cruel com os animais e a adoptar procedimentos activos e sádicos que lhe
provinham de impulsos anais.
Freud revela que uma nova corrente se instala e que conduz o paciente a transformar
o sadismo em masoquismo: o sadismo é convertido em fantasia contra si mesmo e
transformado em masoquismo em virtude do sentimento de culpa relacionado com a
masturbação.
A propósito do masoquismo, Nietzsche refere este processo na Genealogia da Moral,
explicitando-o: “(...) os antigos instintos não haviam renunciado de vez às suas exigências.
                                                                                                               
5
Tal como é demonstrado por Freud na ambivalência do paciente entre a tendência masculina (activa) e a
tendência feminina (passiva).

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Mas era difícil e amiúde impossível satisfazê-las; era preciso procurar satisfações novas e
subterrâneas. Os instintos sob a enorme força repressiva, volvem para dentro” (Nietzsche,
1887, 2o Ensaio, § XVI, p. 76).
No caso do Homem dos Lobos, Freud identifica que as tendências passivas apareciam
ao mesmo tempo que surgiam as sádico-activas. Esta constante ambivalência do paciente foi
evidenciada no desenvolvimento uniforme dos pares de instintos contrários: nenhuma
posição da libido que fora antes estabelecida era completamente substituída por uma
posterior. Era deixada em co-existência com todas as outras, o que permitia ao paciente
manter uma vacilação incessante, que se mostrou incompatível com a aquisição de um
carácter estável.
Neste ponto, as fantasias construídas pelo paciente dão conta de problemas na
diferenciação entre os sexos, impedindo-o de tomar uma das posições e de estruturar-se de
acordo com esse posicionamento. O evento precipitante da sua alteração de comportamento e
da fobia dos lobos, foi um sonho do qual acordou em estado de ansiedade. A explicação de
Freud da fobia está em harmonia com a característica principal apresentada pela neurose – o
seu medo do pai era o motivo mais forte para estar doente e a sua atitude ambivalente em
relação a todo o representante paterno foi o aspecto dominante da sua vida. O lobo representa
o medo infantil do pai, ao mesmo tempo que características do pai na interacção com o
paciente, que Freud denominou “ameaças afectuosas”, completam o quadro dessa
ambivalência.
Freud (1918, p. 2853) refere também que as lembranças do paciente associadas à
criação de ovelhas da família constituíam uma espécie de oportunidade de pesquisa por parte
do paciente sobre evidências da castração (a partir da observação do seu comportamento
sexual), mas que o facto de ter havido uma epidemia que matou a maioria das ovelhas,
trouxe alusões a um medo da morte. Novamente, salientamos aqui o papel das fantasias na
forma como estas permitem ao sujeito organizar-se internamente para lidar com o problema
da finitude.
Numa outra referência da psicanálise, Diatkine (1981) aborda o tema da fantasia.
Refere que a capacidade de diminuir o desprazer ligado à não-realização imediata do desejo
e de suportar sem depressão o adiamento da satisfação é conseguida através da fantasia. A
representação mental pode ser reconhecida como produzida pelo sujeito, mas é
suficientemente investida para constituir a ‘realidade psíquica’ e uma fonte de prazer
autêntica, apesar de secundária. Refere ainda que o excesso de investimento destas
actividades mentais pode resultar na renúncia do objectivo pulsional inicial – caso de certas

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neuroses e eventualmente do caso em estudo. Pelo contrário, a debilidade da elaboração
secundária deixa o desejo primitivo de forma abrupta, na medida em que nada vem a
compensar o desprazer, na impossibilidade da satisfação, impossibilidade inscrita na própria
natureza do desejo.

Apolo e Dioniso – conflito entre a criação e a destruição


 
De um ponto de vista filosófico, para Nietzsche (1878, Secção Quatro: Da alma dos
artistas e dos escritores, § 160, p. 103), a concepção do homem real é qualquer coisa de
completamente necessário (mesmo nas suas contradições), mas esta necessidade nem sempre
é reconhecida enquanto necessidade.
Na obra A Origem da Tragédia, Nietzsche incide o seu pensamento sobre o valor da
existência. Como forma de arte, a Tragédia expõe os horrores e a fatalidade do destino dos
homens. Nietzsche reconhece nesta obra a existência do homem através de uma ilusão – a
ilusão da individualidade. Uma concepção apoiada nas ideias de Schopenhauer, que encerra
em si uma evidência destruidora: as vidas individuais não fazem sentido. A Tragédia Grega
oferece-nos uma oportunidade de analisar a condição humana à luz desta evidência.
Influenciado pela leitura de Schopenhauer, Nietzsche apropria-se da ideia do
principium individuationis e fá-la corresponder à acção do deus Apolo da mitologia grega.
Apolo simboliza a alegria da aparência e também o poder de avaliação da realidade através
de índices estéticos, da beleza. Dir-se-ia que Nietzsche considera, já nesta altura, o
conhecimento como ilusório. Sabedoria, beleza e ilusão conjugam-se, através de uma figura
mítica, para representar uma condição incontornável do homem, que é a relação desigual
entre sujeito e objecto; o carácter substancial da matéria é intransponível pelo sujeito e aquilo
que é apreendido pelo sujeito é-o apenas de forma intermitente. Através da ilusão apolínea, é
possível conceber uma divisão entre mundo real e mundo aparente. Tomando a aparência
como realidade, a presença de Apolo divide o cosmos e os homens entre si.
Para ilustrar esta concepção da existência Nietzsche serve-se das designações do
“espírito apolíneo” e do “espírito dionisíaco” dos gregos, e parece estabelecer inicialmente
uma correlação entre Apolo e aparência e Dioniso e essência. Se Apolo sustenta a ilusão da
individualidade, o poder de Dioniso revela a falência do princípio de individuação.
Apolo e Dioniso representam, para Nietzsche, oposições de estilo artístico,
caracterizadas pelos estados fisiológicos do sonho e da embriaguez. O sonho deve ser

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reconhecido enquanto tal, enquanto aparência e ilusão, e não confundido com a realidade.
Quando a aparência é tomada pela realidade estamos perante o engano. O artista apolíneo é
aquele que respeita e conhece os limites que separam a aparência das “agitações mais
selvagens” (Nietzsche, 1870, p. 7). Mesmo na expressão da agressividade e da violência
paira sobre a arte apolínea o dom da tranquilidade, da serenidade.
O estado de embriaguez implica o rompimento com os limites outrora respeitados no
estado do sonho. Não é já um homem que existe, que sonha, que vive, mas a própria
natureza; o homem não é parte de, mas a própria totalidade das coisas. Mas o carácter
artístico dionisíaco não diz apenas respeito a este estado, necessita ao mesmo tempo de ser
conjugado com a lucidez apolínea.
Constituindo-se em oposição, como duas forças contrárias e inconciliáveis, o
dionisíaco e o apolíneo permitem uma leitura dualista da realidade. A consciência, tal como
Nietzsche aponta, é uma força produtiva do estado socialmente progressista. Neste sentido,
só através da influência de Dioniso é possível trazer a imagem real da decadência.
Por detrás da aparência, da medida e do sonho de Apolo, Dioniso emerge do fundo
do abismo revelando a verdade da contradição espontânea da natureza. Este confronto
implica necessariamente uma reflexão sobre o sofrimento. Esta contradição é aquela que
opõe sujeito e objecto, finitude e infinitude, e que subjaz à necessidade humana de justificar
a sua existência
De acordo com o mito de Dioniso, o deus foi desmembrado ainda criança por dois
Titãs enquanto se olhava ao espelho. Antes de ser concebido, a sua mãe, Perséfone, teceu um
manto com o desenho do universo. Nietzsche traz-nos a imagem de uma figura que se
manifesta apenas sob a influência de Apolo, ou seja, do princípio de individuação. A
sabedoria de Dioniso diz-nos então que o auto-conhecimento não é possível, ou que é uma
ilusão; o dilaceramento pode também significar que essa procura só pode dar-se mediante
um sofrimento insuportável. Quando é feita essa tentativa de olhar para o espelho dá-se o
reconhecimento dessa impossibilidade, da inutilidade e absurdo da existência individual.
Alegoricamente, poderíamos sugerir que ao paciente psicótico lhe falta a estrutura apolínea
que lhe delimitasse a personalidade e lhe possibilitasse organizar as diferentes manifestações
dionisíacas num todo coerente. Uma acção que permite estabilizar o mundo e através da
crença sustentar aparências em realidades.
Poderíamos ainda relacionar esta capacidade apolínea com o “sentimento estético
primário” do psicanalista Donald Meltzer (citado por Bégoin, 2005, p. 86) que se constitui
como o testemunho da beleza do encontro entre a mãe e o bebé. O que Nietzsche antecipou

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relativamente à teoria psicanalítica foi a necessidade da beleza para a manutenção e
continuidade da vida. Bégoin refere: “a beleza do encontro intersubjectivo recíproco é
necessária para confirmar o bebé na continuidade do seu sentimento de existência, porque só
ela é capaz de tecer o continente psíquico que deve ser criado para compensar a perda que,
se não fosse assim, seria catastrófica, da função continente do corpo materno, aquando do
nascimento filogeneticamente prematuro do filho do homem.” (Bégoin, 2005, p. 119).
Outro aspecto importante desta teoria e que está expresso na filosofia de Nietzsche é
a relação entre o investimento estético e a alegria de viver. O nascimento da vida psíquica
decorre da confiança que é possível estabelecer através da beleza que permite ao sujeito
viver com o seu “defeito fundamental”. Trata-se, portanto, de poder desenvolver um
investimento de si em relação com o outro para fundar a fé no valor da vida, caso contrário
ocorre a agonia psíquica. Realçamos aqui o carácter ilusório, mais uma vez, da existência,
que vem intrincadamente relacionado com o poder apolíneo, sem o qual não é possível a vida
humana. Analogamente, quando a força de Dioniso é muito grande instala-se o sofrimento
de não se poder desenvolver que dá origem a um núcleo de desespero, mais ou menos
escondido, mas permanente, subsistindo no fundo do ser. A luta contra esse núcleo de
desespero está também ela ligada a formas de violência.
A arte, como a psicanálise, permitem ao homem conviver com e assumir o absurdo
da existência nas suas manifestações despóticas e amorais.
A psicanálise explica-nos precisamente que aquilo por que sofremos uma vida inteira
reside em representações psíquicas, ainda que inconscientes, que não correspondem
exactamente à realidade, mas a uma construção sobre os acontecimentos. Um estado
dionisíaco, um id, que tem como possibilidade de expressão um ego resistente e frágil,
demarcado por fronteiras apolíneas. Quando Apolo não intervém adequadamente, a vida
individual não é possível (como no caso já referido dos psicóticos).
Pelo seu carácter reparador e salutar, através da consciência e da ponderação sobre as
emoções mais violentas, Nietzsche sugere que é então o carácter apolíneo que torna possível
e dignifica a vida humana. Também na Tragédia, sem a intervenção do deus Apolo, o drama
destruiria – desmembraria – o seu espectador psicologicamente, ou seja, sem a possibilidade
de traduzir em imagens e formas delimitadas (através dos actores e das palavras, da
narrativa) as emoções suscitadas sobretudo pela música (arte sem forma) e pela acção,
instalar-se-ia no espectador um estado de transe incontrolável, abandonado ao poder do
“inominável”, irracional.
Tal como Nietzsche afirma, é necessário recorrer à ilusão para sobreviver no

17
processo de desenvolvimento, mas após a desilusão, procurar formas sempre renovadas de
tornar a iludir-nos, formas mais complexas e mais abertas à mudança. Assim, para o sujeito
psicanalítico é necessário conservar um objecto interno satisfatório, uma imagem
inconsciente, que seja o Apolo da saúde mental. Já nos diz a mitologia que Apolo é o deus da
Cura das doenças, mas também da sua propagação. Isto quer dizer que as representações
recalcadas, que ficam cristalizadas na mente dos indivíduos, bloqueando o acesso das
pulsões instintivas, provocam a doença e a dificuldade de viver de forma flexível e adequada
ao fluir dos acontecimentos.
No caso do Homem dos Lobos, o paciente encontra-se preso a um impasse relativo à
sua identificação, sendo incapaz de sair dele; a sua luta interna, sem vencedores, enfraquece
o poder de vitalidade que poderia advir de uma melhor compreensão dos seus movimentos
pulsionais. Freud (1918, p. 2854) explicita este processo: “O que sabemos do seu
desenvolvimento sexual antes do sonho possibilita preencher as lacunas e explicar a
transformação da sua satisfação em ansiedade.”. Segundo Freud, dos desejos envolvidos no
sonho - desejo de satisfação sexual que aspirava obter do pai (esquecido na sua memória) e o
impulso narcísico que lhe traz uma imagem completa de si – resultou um sentimento de
terror, de horror da realização do desejo. A fantasia subjacente a este quadro de acções
nocturnas do seu desejo sexual é a da convicção da realidade da existência da castração. O
medo da castração tornou-se então na força motivadora para a transformação do afecto
(satisfação em ansiedade). Assim, o sonho dos lobos revela o desejo de obter do pai
satisfação sexual e a compreensão de que a castração seria uma condição necessária para
isso, o que o levou a temer o pai.
Freud conclui que o factor decisivo na construção deste tipo de fantasias foi a
observação de uma cena de cópula entre os pais. O efeito patogénico da cena primária fez-se
sentir na fragmentação da vida sexual do paciente. Neste caso, as fantasias incestuosas e as
fantasias acerca da castração bloquearam a livre circulação das energias pulsionais,
provocando a doença e os sintomas fóbicos.
Freud salienta um outro aspecto importante que é o facto de o sonho trazer uma
activação dessa cena, com o mesmo efeito que teria uma experiência recente. Não perdera
nada da sua novidade, os circuitos internos mantêm-se bloqueados, obrigados a circularem
pelos mesmos caminhos, com a mesma motivação.

18
O imperativo do Presente
   
Neste ponto impõe-se, no quadro comparativo que temos vindo a desenvolver, trazer
para a reflexão a concepção nietzscheana do fluir histórico e da inscrição do indivíduo no
presente. No caso em estudo, descrito por Freud, verifica-se a importância do impacto de
uma experiência traumática, que governa a vida interna do indivíduo, impedindo-o de se
adaptar aos acontecimentos actualizando a sua experiência e a ela acomodando-se.
Segundo a perspectiva de Nietzsche, a vida não corresponde a um acto da vontade e a
vontade de poder significa antes um processo, pois ela não está determinada, ela flui num
continuum. Aceder à instância do presente é aceder ao acontecimento tal como ele se
apresenta. O sentido estético, segundo Nietzsche é aquele que melhor compreende esta
capacidade. O enigma do aparecimento, no fenómeno estético, desvenda-se na capacidade de
entrega ao fluir do devir, ao poder de existir aqui e agora. Esta atitude implica renunciar ao
ressentimento do passado e ao lirismo do futuro.
No entanto, o presente fere, o presente aflige. Tentamos escondê-lo. Depois da
revolta contra o seu criador, a criatura abre-se perante o nada (em Freud seria: após a
constatação da realidade da castração). Desestabilizada, está condenada à oscilação perpétua,
sem jamais encontrar o seu lugar de repouso. Em analogia com o Homem dos Lobos,
poderíamos sugerir que, subjacente à sua ansiedade e às suas dificuldades identificatórias,
está uma dificuldade em equacionar o enigma da morte, no inconsciente, para este paciente.
O seu inconsciente poderia fazer a seguinte pergunta: “Se sou como o meu pai, mas quero
ser como a minha mãe, e para isso tenho de passar por uma prova terrível, qual o meu lugar
neste mundo? Como poderei responder à necessidade de me manter vivo através das
gerações, manter vivo o meu traço filogenético e assegurar a minha marca?”. Neste caso, o
presente fere ao indivíduo porque o convoca para uma tomada de posição que é impossível,
que não lhe permite assegurar a sua continuidade e que, por isso, o confronta directamente
com o fim último da sua morte.
Retomando o sentido atrás introduzido a propósito da individuação, subjacente ao
princípio da individuação está a ideia de que os seres individuais não têm existência a não ser
através da relação que os une uns aos outros e ainda através da referência primeira: o corpo
ancestral originário, o cosmos, e com ele a invenção da morte; se existe um corpo maior, um
ser maior que permanece e persiste para além da destruição e da morte, a vida individual só
faz sentido com a crença na existência da morte, porque o ser primordial, esse, permanece
impassível e imperturbável – a eternidade.

19
De onde viria então o sofrimento? De que se reveste a contradição humana? A
hipótese filosófica, psicológica e fisiológica é que o nascimento implica um processo de
separação que não acontece sem consequências fundamentais para o sentimento de
existência humano, desde então confrontado com a possibilidade de morte individual. A
justificação para a morte não pode ela própria deixar de estar relacionada com a
culpabilidade de se tornar responsável por si próprio. Porque existe a morte, uma tão pesada
pena? Foi porque “eu” fiz qualquer coisa que não devia ter feito: Separar-me daquilo que me
gerou...
Mas, a culpa não existe. O mal não existe. O mal existe na dependência da moral
humana. O que é sugerido n’A Origem da Tragédia, de Nietzsche, é que o sentimento de
culpa é uma convicção-limite que permite lidar com a ideia de infinitude. Apolo exige a
medida e o conhecimento de si próprio como fórmula de pacificação, no fundo, o
preenchimento da forma com uma alma actuante e responsável por si própria. Ser
responsável pela sua própria vida é um acto de arrogância perante a natureza (transbordante e
cíclica) e corresponde a uma ilusão. Paga-se esta arrogância com uma vida ilusória de
aprisionamento. Arrogância que é ao mesmo tempo aquilo que impede de ver as coisas como
elas são e que impede o reconhecimento da ilusão como ilusão6.
A culpa por existir, simultaneamente justificação para a existência, torna-se
ressentimento e pessimismo perante a vida. Conhecer a verdade é deixar-se engolir por ela,
voltar à condição de animal. Orgulhoso, o homem acalma o seu desejo, e permanece iludido
do e no seu poder, pagando essa ilusão com o tropeçar na realidade. A realidade psicológica
do homem diz: o Eu é tudo o que existe. Se existe sofrimento, se aquilo que o Eu
percepciona é vivido como atroz, então, como forma de o suportar, a sua sensibilidade
responde com o sentimento de culpa: Eu vi mais do que devia e como não aguento aquilo
que vi, sinto culpa, porque tudo o que existe sou eu. Para a culpa ser minha é porque aquilo
que existe e que eu não suporto depende de mim, bem como é da minha responsabilidade, eu
posso controlar... Mas ela apenas subsiste enquanto sensação mediada por Apolo, pela ilusão
da individualidade. Não há culpa porque não há eu. Só há culpa porque há eu. Ver as coisas

                                                                                                               
6
Prometeu deu o fogo aos homens, não como uma dádiva da natureza, mas como um dever, invertendo a
hierarquia: os sujeitos passam a ser capazes de criar, de sair do ciclo vida e morte, para almejar a imortalidade –
“ser o Atlas de todas as individualidades”, “ser ele próprio a única essência do universo” (Nietzsche, 1872, § 9,
p. 92 e 91). Mas isso é uma impossibilidade, então, perante a decepção, a forma de lidar com o injustificado é
sujeitá-lo aos limites da sua capacidade e autoria – “faz seu o conflito primordial escondido nas coisas, torna-se
criminoso e expia” (ibidem, p. 91)

20
como elas são contraria a natureza artificial (cultural) do homem – “demasiado sensível”7.
A justificação do sofrimento é assim mascarada pela culpa, pela invenção de um
crime, que mais não é do que uma audácia de querer romper os limites da individuação, “de
querer ser ele próprio a única essência do universo” (Nietzsche, 1872, § 9, p. 91); isto é, o
choque e o conflito entre o mundo divino e o mundo humano.
A incapacidade de tolerar a tortura psicológica do sujeito encontra a sua suavização
no retorno a uma pretensa origem com a qual atenua o peso da responsabilidade pela sua
finitude.
O próprio Freud reflecte sobre esta questão, trazendo-a no contexto do presente caso
em estudo: “Tudo o que encontramos na pré-história das neuroses é que a criança lança mão
dessa experiência filogenética quando a sua própria experiência lhe falha. Ela preenche as
lacunas da verdade individual com a verdade pré-histórica; substitui as ocorrências da sua
própria vida por ocorrências na vida dos seus ancestrais.”. E aprofunda a análise,
especificando o nível ontológico de tais implicações. Freud refere a certa altura (1918, p.
2891) uma das queixas do paciente: “O mundo, disse ele, estava oculto dele por um véu”.
Acrescentando a isto, o paciente relata que o véu só foi rasgado em resultado de uma
evacuação intestinal; a este véu foram associados sentimentos de ‘crepúsculo’ e ‘trevas’.
Mais tarde, perto da conclusão do tratamento, o paciente recorda um facto que lhe haviam
relatado sobre o seu nascimento – nascera com um âmnio. A esse facto o paciente atribuiu
uma significação de protecção divina, até que adoeceu. Freud interpreta que o choque com a
realidade de que não constituía um ser especial e diferente dos demais mortais constituiu um
duro golpe ao seu narcisismo, de forma semelhante ao que aconteceu com a decepção
relativamente à castração. Aliás, Freud considera mesmo que o mecanismo colocado em
acção é uma repetição, justificando o aparecimento da fobia dos lobos devido à fantasia da
realidade da castração.
Eis a interpretação de Freud (1918, p. 2891) relativamente ao véu: “o âmnio era o véu
que o escondia do mundo e que escondia o mundo dele. A queixa que fez era, na realidade,
uma fantasia, plena de desejos, realizada: mostrava-o outra vez de volta ao útero e era, na
                                                                                                               
7
Nietzsche, em carta a Rohde em 1882 (Marques, 1996, p. 89), explicando-se perante as acusações de
excentricidade nos seus textos filosóficos, sugere que é necessário desenvolver uma segunda consciência sobre
uma primeira que estaria subjugada e oprimida, conforme a padrões de aceitação moral e social, e portanto mais
suceptível de soçobrar perante a culpa, o ressentimento e a má consciência: “eu tenho uma segunda natureza,
mas não para aniquilar a primeira, mas para a suportar. Com a minha primeira natureza ter-me-ia afundado –
quase que me afundei. O que tu me dizes acerca da decisão excêntrica é, de resto, absolutamente verdade.
Poderia indicar o lugar e o dia em que isso aconteceu. Mas quem é que terá decidido? Certamente, meu querido
amigo, foi a primeira natureza: ela queria ‘viver’”.

21
verdade, uma fantasia plena de desejos de fugir do mundo. Pode traduzir-se assim: ‘A vida
torna-me tão infeliz! Tenho que voltar para dentro do útero!’”.
Freud invoca a concepção de Jung sobre a fantasia do renascimento, a qual era
considerada por Jung como fundamental para compreender a vida imaginativa dos
neuróticos. Neste ponto, Freud considera que a fantasia do renascimento do nosso paciente
se encontrava estreitamente ligada à condição necessária de obter de um homem satisfação
sexual. Uma vez que uma das fantasias mais correntes nas crianças é a de que os bebés
nascem do ânus e de que os excrementos podem simbolizar bebés, no caso, tinha sido
administrado um clister ao paciente por um homem, ao que Freud fez corresponder a
identificação do paciente a sua mãe, numa repetição do acto da cópula, como fruto da qual
nasceria um bebé (excremento), ao qual simultaneamente ele se identifica.
Freud vai mais longe, e coloca na origem desta fantasia do renascimento
fundamentos psico-sexuais. Sugere que duas outras fantasias completam o quadro
explicativo do desejo de retorno ao útero da mãe: desejo de estar dentro do útero para tomar
o lugar da mãe em relação com o pai; e o desejo de uma relação incestuosa com a mãe (na
qual o homem se identifica com o próprio pénis). Resumindo, na origem, as ‘teorias’ têm que
ver com a ligação primordial aos progenitores, através do desejo de relacionamento sexual,
que é a linguagem de que o ser humano dispõe, para desenvolver o seu psiquismo. Mais uma
vez, reforçamos o enquadramento filosófico anteriormente descrito, unindo a concepção
freudiana à concepção nietzschiana, como complementares uma da outra: se por um lado a
angústia da individuação se relaciona com um conflito essencial entre o subjectivo e o
objectivo, entre o finito e o infinito; por outro, esta angústia ganha expressão através dos
meios de construção do nosso psiquismo que têm a sua base fundamental na organicidade e
no método primevo de relação com o mundo – a experiência sexual – que reúne não apenas o
nível ontogenético como o filogenético, o que corresponde à condição natural do homem
sujeito e do homem como espécie, humanidade.
A este respeito resgatamos, novamente, o interesse de Nietzsche pelos gregos e mais
especialmente pela Tragédia, que nos oferece uma oportunidade de análise da condição
humana à luz da sabedoria antiga. O sentido trágico do sofrimento, tal como nos é dado por
Serra (2006, p. 342), está enraizado no mais profundo da condição humana, relacionado com
a fragilidade e os limites dos mortais, e não deixa, por isso mesmo, de representar a face
escondida do outro pólo da existência, que não diríamos oposto, mas que o sustenta – a
alegria. No exercício de compreensão da existência, o terreno da experiência do sofrimento
permite aceder a um universo de conhecimento e inteligibilidade da natureza humana que

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não é comparável com qualquer outro. Daqui decorre a necessidade da aparência, da
transfiguração da experiência dolorosa em apresentação estética do sofrimento. Um
compromisso entre o subjectivo e o objectivo, o limite e a possibilidade. O trágico é assim
um princípio cósmico. Vida e morte, ascensão e decadência, formam um todo. Mas o
sentimento trágico da vida não é recusa, é aceitação do devir, adesão à morte e ao declínio.
Não significa decadência ou destruição, mas um regresso ao momento primordial da vida do
qual surgiram as coisas individualizadas.
De acordo com esta perspectiva, encontramos um ponto de convergência entre as
possibilidades da psicanálise e a concepção nietzscheana da existência: a de que a resolução
da vida não se dá pela interiorização da dor, mas pela sua afirmação no elemento da sua
exterioridade. Ou seja, não se pretende minimizar o efeito da dor, neutralizando-a, mas
afirmá-la, aprová-la, aproveitando o seu potencial de energia e de revitalização.
Na perspectiva de Nietzsche, o presente é acessível à ‘vontade’. No entanto, é através
da ‘vontade artística’ que a possibilidade do presente se abre à vivência, porque é ela a única
capaz de admitir a falsidade das suas descobertas e é simultaneamente menos susceptível ao
ressentimento e mais resistente ao sofrimento. É esta vontade que faz aparecer o presente, a
partir da criação de novos valores – estéticos e não morais. Valores que realçam e
diversificam as nuances do aparente. Valores que unificam a percepção dispersa dos
diferentes receptores sensitivos. Neste sentido, o sujeito tem a plasticidade que lhe permite
acompanhar o movimento do fluir dos acontecimentos através de uma metamorfose
constante.
Deleuze (1962, p. 88) clarifica esta perspectiva através da analogia com Dioniso:
“(...) a essência é sempre o sentido e o valor. Então, a questão que subjaz a todas as coisas e
sobre todas as coisas é Quem? – que forças, que vontade? É a questão trágica. Ao nível mais
profundo, plenamente, ela tende para Dioniso, porque Dioniso é o deus que se esconde e que
se manifesta. (...) Dioniso é o deus das metamorfoses, o uno do múltiplo, o uno que afirma o
múltiplo e se afirma do múltiplo. (...) É por isso que Dioniso se cala sedutoramente: o tempo
de se esconder, de tomar outra forma e de mudar de forças. (...) a questão pluralista e a
afirmação dionisíaca ou trágica.”.
Darriulat refere-se do seguinte modo a este processo nietzscheano: “A vida forja-se a
‘golpes de martelo’, nela é produzido o milagre da metamorfose pela transgressão trágica dos
seus próprios limites.” (Darriulat, 2007). Isto significa, no contexto psicanalítico, que o
processo desenvolvido deverá fornecer as pistas para um resgate da força vital que move o
indivíduo e que se encontra bloqueada e enfraquecida em formas repetitivas e atrofiadas,

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muitas vezes irremediavelmente. Neste sentido, a psicopatologia cristaliza o sentido de
identidade, o “eu”, levando o sujeito a viver apenas uma narrativa que a cada encontro com a
realidade apenas procura confirmá-la, afastando-o da vida na sua componente de criação e
destruição e portanto, de transgressão dos próprios limites impostos, impedindo a renovação
das forças vitais, mergulhando-as num mar de águas paradas, onde não há entradas nem
saídas, enfim, numa morte em vida.
Nietzsche acrescenta que não é senão pelo risco do êxtase e do sofrimento provocado
pela metamorfose que se dá o acréscimo de vida, o enriquecimento da sua avaliação –
avaliação em termos de beleza do mundo. Arriscar a viver é entender o recalcado, é
fortalecer-se pelas feridas, já não em precipitação sobre o objecto de desejo, mas tacteando o
terreno, auscultando o ritmo da avaliação, já não o martelo destruidor e sim o martelo
apreciador (Fernandes, 2012, p. 76).
Já atrás abordámos a questão do sofrimento e da culpa que originam sentimentos
nihilistas perante a existência. O nihilismo é uma ferramenta importante quando se trata de
auscultar o valor da vida. Pois que ser humano e ter a capacidade de pensar, imaginar e criar
formas sobre o mundo afasta-nos, simultaneamente, dos acontecimentos. Estamos e não
estamos presentes. Mas este nihilismo, embora constitua uma forma de emancipação de si
mesmo, constitui também uma forma de negação, pessimista, da vida. O homem que
ultrapassou o nihilismo sabe que a vida é desprovida de sentido e, abstendo-se da velha
moralidade, sabe-se condicionado à relação entre moral (a capacidade de interpretação) e
vida, relação esta que é falsa, mas por isso mesmo também um campo aberto à criação: “Nós
que somos diferentes, nós os imoralistas, temos aberto, pelo contrário, o nosso coração a toda
a espécie de intelecção, compreensão, aprovação. Não se nos afigura fácil negar, procuramos
a nossa honra em sermos afirmativos. Vão-se-nos abrindo cada vez mais os olhos para ver
aquela economia que necessita e sabe aproveitar ainda tudo aquilo que é recusado pelo santo
desatino do sacerdote, pela razão enferma do sacerdote, do virtuoso, – que proveito? – Mas
nós próprios, os imoralistas, somos aqui a resposta...” (Nietzsche, 1889, A moral como
contra-natureza, § 6, p. 49).
Em psicanálise, o processo de lidar com o sofrimento, tal como foi descrito por
Melanie Klein, sucede a uma fase de confusão de sentimentos na qual bem e mal se
confundem e o sentimento de existir é marcado por uma sensação de responsabilidade sobre
os ‘actos’ cometidos durante essa fase e com a fantasia de se ter prejudicado um Outro, o
objecto de amor. Na sequência deste sentimento emerge uma outra posição, a que Klein
denominou Depressiva, que corresponderia ao nihilismo da filosofia. A ‘compreensão’ de

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que estes actos de destruição colocam o indivíduo numa forma negativa da existência, podem
levá-lo a um descrédito na continuidade das suas relações. Mas o contacto com uma
realidade presente e segura que lhe devolva as possibilidades criativas que lhe são
constituintes, assegura uma capacidade plástica de se ir moldando aos acontecimentos a
partir da reparação, isto é, um processo de contínua destruição e criação. Além disso,
compreende-se que estar triste e ser capaz de lidar com o próprio sofrimento são coisas
distintas, mesmo que entristecer constitua a primeira parte do processo de revitalização, pois
é aquele que traz a auto-consciência e a capacidade introspectiva.
Verificamos no Homem dos Lobos, a repressão da força vital, o que provoca um
estado de paralisia, de torpor e uma desagregação da vontade. Segundo Nietzsche
(Nietzsche, 1885-1889, 14 [117], pp. 555-556), a “decadência” está relacionada com a
contradição e coordenação deficiente dos impulsos internos e significa um declínio da força
organizadora da ‘vontade’. Relembrando, o estado de ansiedade do Homem dos Lobos foi
devido a um repúdio do desejo de obter do pai satisfação sexual, que Freud afirma ter sido o
móbil do sonho: o medo de ser devorado pelo lobo foi uma deslocação de sentido
(regressiva) do desejo de copular com o pai, isto é, de obter satisfação do mesmo modo que a
sua mãe; o seu último objectivo sexual, a atitude passiva em relação ao pai sucumbiu ao
recalcamento e no seu lugar apareceu o medo ao pai, sob a forma de uma fobia ao lobo. A
força impulsionadora desse recalcamento, tal como Freud a descreve, foi a da libido genital
narcísica, o interesse pelo órgão masculino, que então luta contra uma satisfação que para ser
conseguida obrigá-lo-ia à renúncia daquele órgão. Com o seu narcisismo ameaçado o
paciente luta internamente entre uma tendência para a masculinidade e uma atitude passiva
em relação ao pai.
Ainda explicitando o estado de confusão dos impulsos internos do paciente, durante o
sonho, aos 4 anos, foi atingida uma nova fase da sua organização sexual. Até então, para si
havia adquirido a noção de que os opostos sexuais se qualificavam através de duas atitudes –
activa e passiva. Desde a sedução por parte da irmã e da ama que a sua postura se inclinava
para a passividade com fantasias de ser tocado nos genitais, mas a sua organização sexual
sofreu uma transformação através da regressão a um estádio mais primitivo – anal-sádico –
com o propósito masoquista de ser espancado ou castigado. Verificava-se então, uma
desconsideração pela diferença entre os sexos, visível na passagem da ama para o pai
(desejara que seu pénis fosse tocado pela ama e tentara provocar o pai para que este lhe
batesse). Com a activação da cena primária através do sonho é retomada a organização
genital: o paciente descobre a vagina e o significado biológico de masculino e feminino, e a

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associação esclarecedora de que activo significa masculino e passivo feminino. Freud (1918,
p. 2859) demonstra esta mudança: “o seu objectivo sexual passivo foi transformado em
feminino expressando-se como ‘ser copulado pelo pai’ em vez de ‘ser por ele espancado nos
genitais ou no traseiro’”. Esse objectivo feminino foi alvo de recalcamento mas surge à
consciência sendo substituído pelo medo do lobo, num claro protesto da parte da sua
masculinidade.
Em defesa da importância da infância na estruturação do psiquismo e da
personalidade, Freud (1918, p. 2860) conclui, neste momento da análise do caso do Homem
dos Lobos, que as cenas da primitiva infância são, na neurose, produtos da imaginação,
servindo-se de estímulos da vida para constituir representações simbólicas dos verdadeiros
desejos e interesses e devem a sua origem a uma tendência regressiva – a uma fuga das
incumbências do presente. Assim, os neuróticos são dotados da característica prejudicial de
desviar o seu interesse do presente e de vinculá-lo a esses substitutos regressivos, os
produtos da sua imaginação. O trabalho do psicanalista será o de, em reforço com o que tem
sido trazido à discussão, seguir a trilha destes produtos da imaginação, dotar de uma nova
lucidez o sujeito através do acesso ao seu inconsciente e, desta forma, dirigi-lo para o
presente. Aqui, reconhecemos o sentido nietzscheano trazido no início desta análise de que a
‘lógica’ levaria o sujeito a descobertas insuportáveis, o mesmo que Nietzsche viria a dizer de
Édipo, a ser explorado um pouco mais à frente.
Freud procura assim descortinar as ligações entre as fantasias e as tarefas quotidianas
das quais os sujeitos se afastam. Aí está preparado o terreno para se iniciar uma segunda
etapa do tratamento voltada para a vida real do paciente. A não ser que essas fantasias se
tornem conscientes para o paciente no seu significado mais pleno, ele não pode conseguir o
domínio do interesse que está ligado a elas. Se a sua atenção é desviada das fantasias está-se
a contribuir com o trabalho do recalcamento, graças ao qual as fantasias foram postas longe
do alcance do paciente, apesar de todo o seu sofrimento.
Introduzindo aqui, novamente, o contexto da estética nietzscheana, a transformação
passa pela evolução da negação em afirmação, da passividade da renúncia na actividade de
criação, na qual o sujeito da contemplação não fica reduzido a ser o mero espelho do mundo,
mas é ele próprio quem seduz os fenómenos na sua aparência para atingir a intensificação
dos valores e, com ela, a intensificação da sua vontade, do querer. O fenómeno surge, assim,
como resultado de uma vontade avaliadora e criadora.

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O Mito de Édipo
 
Em analogia com as dificuldades acima descritas que se impõem no caminho da
neurose, iremos abordar algumas leituras do mito de Édipo na perspectiva de Nietzsche,
articulando-as com o processo psicanalítico em geral e com o caso em estudo.
O mito questiona a nossa identidade através de uma misteriosa tríade dos destinos de
Édipo, transformando-nos em assassino do pai, marido da mãe e decifrador do enigma da
esfinge.
Nietzsche afirma: “Pois, como será possível forçar a natureza a desvendar os seus
segredos, senão por processos violentos, quer dizer, por acções anti-naturais? Nesta horrível
tríade dos destinos de Édipo reconheço a marca evidente desta verdade: aquele que decifrar o
enigma da natureza, que é a esfinge híbrida, há-de também, como assassino do pai e marido
da mãe, desrespeitar as sagradas leis da moral. (...) quem, pela sua ciência, precipitar a
natureza no abismo do não-ser, há-de esperar o momento de experimentar também os efeitos
da desintegração.” (Nietzsche, 1872, § 9).
O segredo da natureza é que os nossos instintos instigam-nos a realizar acções que
contrariam o estado civilizacional que, por sua vez, proíbe a execução do nosso lado animal:
o parricídio e o incesto. Os meios artificiais, humanos portanto, são a linguagem, a
simbolização, a fantasia – mecanismos psíquicos que contrariam essa mesma natureza bestial
e selvagem, através da educação e da sociabilização e que permitem a substituição da acção
pelo símbolo. O animal tende para a sobrevivência, para a substituição das hierarquias por
meio da força, para a reprodução e propagação dos seus genes, sem olhar a meios, sem
moral, sem critérios de regulação social, sem consequências, sem julgamento, vai para a luta
e ganha ou perde, sendo que perder significa perder também as possibilidades de quem
ganha.
Nietzsche, em 1872 n’A Origem da Tragédia, havia já colocado o incesto como
aspecto central para a compreensão do mito, assim como reconhecido a ‘verdade’ dos
desejos expressos no sonho (objectivação de Dioniso) relacionados com o mito de Édipo.
Isto significa que o acesso ao inconsciente confirma no homem a sua origem animal.
A tradução em imagens e desejos inibe o homem de agir, pode substituir a acção pelo desejo
(fantasia). O que Nietzsche nos explica sobre o Édipo , através da sabedoria antiga, é que o
homem constrói a sua civilização contrariando as leis da natureza. Estas permanecem
imperiosas, mas a humanidade resulta da sua adulteração.
Uma das principais questões da Tragédia gira em torno do Poder, na forma como este

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se impõe e atravessa as múltiplas relações nos diversos níveis da realidade (homem/mulher,
senhor/escravo, grego/bárbaro, mortal/imortal, ...): se incide no direito e na suave persuasão
ou na violência e na força bruta.
A dimensão civilizadora da organização das sociedades supõe a vitória da persuasão
sobre a força bruta. A persuasão é o sinal da união pacífica entre a mesmidade e a alteridade.
Subjacente a este universo está um poder e o exercício desse poder, legislado em direitos e
deveres, segundo uma moral instituída, de modo a que o exercício desse poder seja baseado
no consentimento e não na violência. O comportamento violento introduz a guerra e traz a
desordem para o lugar da união integradora da diferença, antes em harmoniosa tensão.
A tragicidade é revelada não apenas em função de um dilema e de uma decisão
pessoais, mas da delimitação do crime e da culpa atribuídas às personagens. O traço
fundamental a identificar situa-se, então, na ambiguidade, na ambivalência e duplicidade
com que culpa e inocência, carrasco e vítima, se misturam. O primeiro sinal desta
ambiguidade encontra-se, desde logo, no aspecto exterior e no modo como se manifestam as
personagens. Frequentemente, os sinais dissonantes denunciam este carácter de ambiguidade
e de suspeição. Os elementos contrários estão sempre representados, há uma face cuidadora e
outra que procura o perigo; um lado que conhece e outro que desconhece.
Édipo ao cometer parricídio e incesto ultrapassa a medida humana. Ele é acometido
pela Hybris, a arrogância da realização de um acto que ultrapassa a medida humana, seja em
direcção à dimensão ilimitada de um deus, seja em direcção à dimensão irreflectida de um
animal. A Hybris constitui uma actuação que se revela rude e insultuosa na brutalidade do
gesto, através de um retrato inequívoco do desrespeito boçal e de violência arbitrária, que
torna indubitável a grandeza do crime em que incorre (Serra, 2008, p. 364).
A arrogância (Hybris) é prenúncio de Tragédia e consequentemente de sentimento de
culpa, porque identifica uma impotência humana, sublinha a fragilidade, a impiedade.
Perante as leis do desconhecido, desenha-se uma culpa pelo desrespeito de um antigo destino
marcado pelos deuses. A ousadia contrasta com a humildade e a desobediência ao destino
será confrontada com uma extraordinária força. Pela vulnerabilidade da sua condição
humana, o humano está sujeito à “intervenção de um deus enganador” (Serra, 2006, p. 375),
exposto a poderes que os mortais de modo algum dominam. De nada vale o esforço, os
méritos ou as esperanças. O homem lança-se à vida sob o risco da miséria, dor, fome e medo.
Vulnerável também à irracionalidade e à loucura, perante o acaso e o inexplicável, constitui-
se autor de actos ímpios e de desgraças.
O engano humano tem subjacente um acto de arrogância, insolência, ousadia e

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imaturidade. A “perniciosa divindade de pés delicados, que caminha sobre a cabeça dos
mortais” (Serra, 2006, p. 376) tem primazia sobre a Hybris, nela se forjando e aí encontrando
a sua origem.
Que um mortal tenha pensamentos acima da sua condição, que esqueça a
vulnerabilidade da sua condição, constitui o crime da Hybris. O homem trágico será então
aquele que “heroicamente, entre os deuses, o destino e a sorte, tenta encontrar, interferindo
nela, a morada humana que é a sua”. (Serra, 2006, p. 393).
Neste sentido, os actos de Édipo são marcados por um puro desconhecimento, mas
simultaneamente pelo orgulho e prepotência desde a sua saída de Corinto que o levam, até ao
final da trama, a procurar o assassino do rei. Ao fugir das previsões do oráculo é aí operada
uma prepotência que desconsidera a força do oráculo, imaginando-se acima das injunções do
destino humano e imune às circunstâncias capazes de produzir desgraça e infortúnio como se
não habitasse neste mundo, feito de surpresas e acasos inesperados.
No fim, ao aperceber-se da ‘cegueira’ de que foi alvo no seu caminho até ali, cega-se
de facto e, na escuridão, deverá ser capaz de ver o mundo invisível das forças que até então
havia ignorado – aquele que existe por trás do mundo das formas visíveis e que os gregos
denominam de Moira (destino).
O homem trágico sabe que a agressividade, o ódio, o ciúme e a inveja fazem parte de
um lado escuro da alma. Reconhece que ceder a certos impulsos vitais, sob a possessão de
um deus, o leva a transgredir os seus próprios limites e que provoca a ocorrência de
desgraças. Também sabe que esses mesmos impulsos, quando bem dirigidos são forças
importantes de criação e de auto-preservação. Aqui há um respeito integral pelas forças vivas
nos trágicos. As acções não estão centradas em egos particulares, mas num universo múltiplo
e polivalente. Os crimes, por conseguinte, têm origem na desmesura, em actos que ficam
àquem ou além da medida, dos limites da condição humana; actos que esquecem as forças
misteriosas que os dominam. Nesses estados ficam à mercê dessas forças, fora de si, cegos,
advindo daí acções com consequências imprevisíveis (Hamartia – erro). Quando os homens
se colocam no centro do mundo, no puro esquecimento das forças do destino, invisíveis,
misteriosas e transcendentes, daí só podem advir consequências nefastas.
A Tragédia, através do drama e da música, evidencia o lugar do humano naquilo que
é a sua luta contra a brutalidade do destino (contra a animalidade e contra a morte). Ao
deslocar a Hybris e os acontecimentos nefastos que dela decorrem para a vida do herói, cria
um distanciamento estético. Este distanciamento permite evitar a perigosa destrutividade
implicada no reconhecimento da impotência humana para controlar o destino das coisas e

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mantém, simultaneamente, essas forças actuantes e visíveis. E assim torna possível a
superação da auto-acusação, da autoflagelação, do sentimento de culpa. Mesmo diante de
todos os castigos e sofrendo inúmeras dores, o homem trágico liberta-se da pior das dores.
A Tragédia é uma imagem criada, uma objectivação do conflito a que estamos
sujeitos enquanto humanos. Assim, em vez de ser atravessado pelo conflito de forma
descontrolada, o homem grego podia presenciar o herói nessa condição e aprender através
das suas desgraças. Se quisermos, em linguagem psicanalítica, a Tragédia é uma projecção
dos conflitos internos.
Voltando ao poder do Mito, abordado no início deste trabalho, verificamos que
através da encenação e da narrativa da acção humana, o homem dispõe de um meio poderoso
de análise e descoberta de si próprio. Este é o lugar da criação do Mito. Através do mito, há
espaço para integrar o não-dito na linguagem, ou seja o desconhecido.
Reconhecemos que, se no princípio era o Verbo, o mundo do homem é o mundo da
linguagem. Aquilo que não é dito não existe e aquilo que existe é linguagem. No Evangelho
de João vemos o Logos opor-se ao Caos, uma concepção presente desde os gregos, que
evidencia a pretensão ordenar o mundo através do pensamento.
Mas, na verdade, o verbo diz a acção. Através do verbo afirma-se a existência de uma
acção, um estado ou uma qualidade que é atribuída ao sujeito. Neste esforço de organização
dos dados do mundo, a acção e o gesto do homem codificam uma significação, uma
orientação, uma direcção. O sentido desta praxis não é, no entanto, imediato. É
plurissignificativo, condensando em si formas enigmáticas e misteriosas que interferem com
o seu entendimento.
Podemos afirmar que aquilo que define o Mito é uma forma de pensamento que tem
por base o Drama, a acção. Segundo Aristóteles (2008), o mito está inscrito numa
narratividade, num enredo. O enredo implica uma organização da história em intriga. Mas
nesta, os acontecimentos que envolvem o drama, devem responder a dois princípios:
necessidade e verosimilhança – sem os quais o efeito dramático não se produz no espectador,
impedido que fica de se projectar e reconhecer na trama apresentada. Além disso, Aristóteles
(ibidem) acrescenta que, num enredo complexo, deve ocorrer a peripécia, que consiste na
mudança dos acontecimentos para o seu reverso, sempre respeitando os dois princípios
enunciados.
Encontramos neste esboço de definição do Mito, aspectos que nos conectam a
características específicas do trabalho analítico em psicanálise. Trata-se do desenrolar de
uma narrativa que não é escutada a partir da palavra e de uma organização determinada de

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pensamento (de uma descrição), mas de uma sucessão de gestos e acções que permitem
entrever aspectos que passam desapercebidos ao sujeito da acção, mas não totalmente ao
espectador. Este último, fica não só em estado de alerta, como experiencia os mesmos
sentimentos que se jogam em palco. Aí, espectador é também actor, projecta-se; ao projectar-
se é obrigado a reconhecer em si a contradição das suas próprias emoções quando, no
momento, o acto dramático se transforma radicalmente no seu oposto. O reconhecimento é a
passagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou para o ódio, entre aqueles
que estão destinados à felicidade ou à infelicidade (no mito). Isto é, saber se a pessoa fez ou
não fez certa coisa que suscita compaixão ou temor, daí depende o ser feliz ou infeliz
(Aristóteles, 2008, p. 57). Poderia dizer-se que, na relação terapêutica, o analista acompanha
o movimento do analisando, projectando-se, mas mantendo a distância do espectador que lhe
permite ver e devolver o retrato, a imagem em segunda mão; permitindo ao sujeito aceitar a
contradição entre o que diz e o que sente, criando um novo canal de comunicação e novas
formas de acomodar aquilo que também é.
Assim, podemos situar o pensamento em relação ao Mito no lugar que Aristóteles
(ibidem) lhe atribuiu: o terceiro. Primeiro vem o enredo, ou seja, a acção, o drama – “a
Tragédia é a imitação de uma acção”, importa mais a acção que o actor; em segundo lugar os
caracteres, o herói, o actor, o sujeito; finalmente, o pensamento, que consiste em ser-se capaz
de exprimir o que é possível e apropriado.
Nesta hierarquia, o facto de o pensamento vir em terceiro lugar, por ordem de
prioridade, permite, por exemplo, que a Teogonia seja simultaneamente mítica e erudita,
poética e abstracta, narrativa e sistemática, tradicional e pessoal (Vernant, in Hésiode, 1993,
p. 8). É aquilo que confere ao Mito a sua especificidade e que o distancia da Ciência, porque
permite sempre a introdução de novos elementos não percebidos anteriormente. Um mito é
um ‘ser vivo’.
Reforçamos que esta posição relativa do pensamento, não retira a sua
indispensabilidade na construção do mito, nem o seu poder enquanto organizador do caos,
como nos fizeram crer os gregos. Pelo contrário, Grimal (1953, pp. 113 e 114) assinala que a
criação do mito resume toda uma teologia longamente elaborada pela reflexão sacerdotal que
responde a exigências profundas do humano, como sejam a crença na imortalidade (a
negação da morte) e o tabu do incesto (a necessidade de comprometer a existência do pai).
Retomando o mito de Édipo, Nietzsche evidencia que, por trás da humanização, a
animalidade impele o homem para o incesto e que o enigma decifrado por Édipo é o do
reconhecimento do poder dos instintos sobre a sua própria construção como homem.

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Nietzsche refere que o destino de Édipo envolve uma quebra na separação entre presente e
futuro, ou seja, deparar-se com o aspecto intemporal das fantasias inconscientes nas quais o
filho possui a mãe e elimina a diferença temporal entre eles. Envolve também a quebra da lei
fixa da individuação, o que quer dizer que, psicologicamente, o Eu do sujeito não existe
enquanto entidade autónoma e separada, mas unido com a sua mãe – o que na linguagem de
Freud corresponderia ao desejo edipiano, pela eliminação do terceiro:

“O homem nobre não peca (...) A sua acção pode derrubar todas as leis, a ordem natural e até
o próprio mundo moral; (...) as ruínas do velho mundo em derrocada acabam por constituir
um mundo novo. (...) neste estado de pura passividade, atinge o mais alto grau da sua
actividade (...) a tal imagem luminosa que nos é dada pela natureza compassiva depois de
termos olhado para o abismo. Édipo que mata o pai, Édipo que casa com a mãe, Édipo que
vence a Esfinge! Que significa para nós a tríade misteriosa destas acções fatais? Segundo
uma antiquíssima crença popular, de origem persa, o adivinho ou mago só pode nascer de um
incesto. Em relação a Édipo, que decifrou o enigma e que possui a mãe, podemos apresentar
esta interpretação: quando por uma força mágica e fatídica, se rasga o véu do futuro, se
espezinha a lei de individuação, se faz violência ao mistério da natureza, há-de ser a causa
qualquer monstruosidade anti-natural, como o incesto. (...) «A lança da sabedoria volta-se
contra o sábio; a sabedoria é um crime contra a natureza», eis o que o mito nos clama com as
suas palavras terríveis (Nietzsche, 1872, § 9).

A conclusão nietzscheana do mito de Édipo, precursora da teoria psicanalítica, é que


a saúde mental e a própria civilização dependem da recusa do incesto, ou seja, da resistência
aos instintos animais primários. O preço da civilização é o artifício, é a renegação da
natureza em si. É por isso que Nietzsche diz que a sabedoria é “um crime contra a natureza”,
porque ser homem é superar a vida instintual e substituí-la pela vida psicológica.
A concepção lacaniana sobre a proibição do incesto é esclarecedora a este nível.
Lacan (citado por Matz, R., s. d.) concebe a proibição do incesto como uma função
simbólica, uma lei inconsciente da organização da cultura. Toda a subjectividade é
determinada por uma pertença a uma ordem simbólica. A proibição do incesto é associada a
uma metáfora paterna, cuja função simbólica é a de lei. Neste processo está implícita a
capacidade de lidar com a ausência da mãe que dará lugar ao simbólico, no lugar do real, da
presença; a aquisição de substitutos simbólicos para essa ausência. Ao mesmo tempo que
aceita deixar de ser o único objecto de desejo da mãe, o objecto que preenche a falta – o falo.
É também esta renúncia que transforma a qualidade da acção do sujeito, de passivo para
activo – uma vez que o seu desejo, como desejo de sujeito, se dirige para objectos substitutos
do objecto perdido. O acesso ao simbólico é assim permitido através da metáfora paterna que
é sustentada pelo recalcamento originário. O recalcamento originário é estruturante,
correspondendo a uma metaforização. É a simbolização primordial da lei, efectuada através
da substituição do significante fálico pelo significante Nome-do-Pai. A criança substitui a

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posição de ser o único objecto do desejo da mãe – o falo – e passa da dialéctica do ser para a
dimensão do ter. Assim, tornar-se sujeito implica a realização desta operação inaugural da
linguagem: o esforço simbólico implica o recalcamento do significante fálico (ser ela própria
o falo da mãe) e a sua substituição pelo Nome-do-Pai. Neste sentido, o sujeito, para ser
sujeito necessita de deixar de ser objecto (de desejo). No lugar do objecto, a partir de um
significante que o nomeia, nasce o sujeito (é o pai que o empurra a ser sujeito que se vai ligar
a outros, então objectos do seu próprio desejo).
A relação incestuosa mantém-se, no caso do Homem dos Lobos, por um
deslocamento da relação dual com a mãe para o pai. Não há triangulação, mas um
deslocamento onde é repetida com o pai a experiência que foi vivida com a mãe. O que
permanece é a relação dual, daí a pouca importância dada à diferenciação entre os sexos.
O nosso Homem dos Lobos não deixou de ser objecto, nas operações mentais que
desenvolveu. Perante a evidência da castração, uma forma de não renunciar ao falo seria
manter-se objecto, já não da mãe mas do pai. Desta forma, o paciente não opera a
substituição do falo pela inscrição do Nome-do-Pai e mantém-se no domínio do ser falo,
neste caso, fantasmaticamente castrado, caindo num ritual de busca permanente desse falo
perdido, objectivado nos desejos de satisfação sexual pelo pai. É uma forma de manter-se
como objecto de desejo, renunciando sim às incumbências do ser sujeito desejante. A função
simbólica, neste caso, não funciona através do complexo processo da metaforização, mas da
comparação – ser como. Tal como é afirmado por Emília Marques (2002), a solução edipiana
que tem subjacente a problemática da identificação não é “ser como”, mas “ser com”.
Ser como a mãe permite recuperar o falo perdido. A metáfora implica o
recalcamento, a comparação permite manter os dois termos em concomitância. O eu não
renuncia a ser o objecto de desejo (como no recalcamento), mas também não ocupa o lugar
do desejo da mãe. Para não deixar de ser o ‘falo’ da mãe, em vez de substituir essa
circunstância pelo símbolo do pai a ela renunciando, o Homem dos Lobos faz antes uma
renúncia ao seu próprio falo. Assim, imaginariamente, permite-se continuar a ser objecto de
desejo da mãe, por intermédio do pai. Com esta renúncia, recusa, simultaneamente, a sua
condição de sujeito desejante, visível por exemplo no estado de errância a que a sua vida
adulta é votada. Freud (1918, p. 2874) refere: “A repressão do seu superpoderoso
homossexualismo, consumada durante o sonho de ansiedade, reservou esse importante
impulso para o inconsciente, manteve-o dirigido para o objetivo original e retirou-o de todas
as sublimações às quais é suscetível, em outras circunstâncias. Por esse motivo o paciente era
destituído de todos os interesses sociais que dão à vida um conteúdo.”. E acrescenta:

33
“Somente quando, durante o tratamento analítico, se tornou possível liberar seu
homossexualismo agrilhoado, é que esse estado de coisas mostrou alguma melhora; e foi
uma experiência das mais notáveis verificar como (sem qualquer conselho direto do médico)
cada fragmento da libido homossexual que era libertado procurava alguma aplicação na vida,
alguma ligação com os grandes interesses da humanidade.”. Isto significa que, recuperar a
força instintiva que liga libidinalmente o paciente ao Outro, poderá vir a permitir essa
passagem da literalidade para a metaforização. Ou seja, inscrever o Nome do Pai, ou do
interdito, na sua estrutura mental e, a partir daí, poder enfim começar a desejar, deixar de ser
apenas o objecto de desejo. O desejo corresponderia assim, à forma simbólica de lidar com a
ausência, encontrando dessa forma substitutos para ela. Pode-se dizer então, que até chegar
ao verdadeiro símbolo (substituto), o homem não quer nada, não deseja. Os ditos desejos
freudianos, não são assim desejos (do homem que deseja), mas pulsões instintivas, que
pressionam o indivíduo à consumação da sua animalidade, mas não ainda da sua
subjectividade. As fantasias inconscientes, por conseguinte, dentro deste quadro, também
elas estão ao serviço do “tipo instintivo”. Como se todas as armas humanas estivessem
subjugadas ante uma força maior. Algo que Freud diz também:
“Se se considera o comportamento do menino de quatro anos em relação à cena primária reativada, ou
mesmo se se pensa nas reações muito mais simples da criança de um ano e meio, quando a cena foi
realmente vivida, é difícil descartar a opinião de que algum tipo de conhecimento, dificilmente
definível, algo, fosse o que fosse, preparatório para uma compreensão, estivesse agindo na criança, na
época. Não podemos formar um conceito sobre aquilo em que poderia ter consistido esse
conhecimento; nada temos à nossa disposição, a não ser uma única analogia - e ela é excelente -, a do
extenso conhecimento instintivo dos animais.

Se os seres humanos possuíssem também um dom instintivo como este, não seria surpresa se fosse
muito particularmente ligado aos processos da vida sexual, mesmo que não pudesse ser de forma
alguma confinado a eles. Esse fator instintivo seria então o núcleo do inconsciente, um tipo primitivo
de atividade mental, que seria depois destronado e encoberto pela razão humana, quando essa
faculdade viesse a ser adquirida; mas que, em algumas pessoas, talvez em todas, mantivesse o poder de
atrair para si os processos mentais mais elevados. A repressão seria o retorno a esse estádio instintivo,
e o homem estaria, assim, pagando pela nova aquisição com a sua sujeição à neurose, e estaria
testemunhando, pela possibilidade das neuroses, a existência desses estádios preliminares, de tipo
instintivo. A significação dos traumas da primitiva infância estaria no material que transmitiriam ao
inconsciente, que não permitiria que fosse exaurido pelo curso subseqüente do desenvolvimento.”
(Freud, 1918, p. 2903).

Freud considera que o Complexo de Édipo corresponde a um resíduo da história da


civilização humana – um ‘esquema’ filogeneticamente herdado (tendência para o incesto e
para o parricídio). É suposto que as experiências contrariem essa herança e que, ao invés de
corroborarem essa linha instintiva, elas sejam remodeladas através da imaginação. Freud
(1918, p. 2903) afirma que “muitas vezes conseguimos ver o esquema triunfar sobre a
experiência do indivíduo, como quando, no presente caso, o pai do menino tornou-se o

34
castrador e a ameaça à sua sexualidade infantil”. Assim, as contradições entre o esquema
filogenético e a experiência parecem fornecer o material para o estabelecimento dos conflitos
da infância. O Complexo de Édipo e a sua resolução têm, desta forma, como função
organizar as impressões originadas a partir da experiência real.
Sabemos, em psicanálise, que quando o conflito é rejeitado ou evitado, se instala a
patologia. É o reconhecimento da incompletude que apela para a diferença na resolução do
conflito. Se, na luta contra esta diferença, os psicóticos encontram um espaço des-realizado
(fora do real), a falha neurótica dos obsessivos acentua por outro lado a angústia de castração
num registo regressivo.
Pedro Luzes (2004) define o inconsciente precisamente através de características que
relevam da indiferenciação: não há contradição mútua, não há negação, não há dimensão
temporal, há uma substituição da realidade externa pela realidade interna, em obediência ao
princípio do prazer, através do deslocamento e da condensação; não há incompatibilidades e
as emoções formam conjuntos infinitos nos quais reina a simetria.
Se substituirmos o lugar do conflito e da tensão pelo da idealização, suprimimos a
possibilidade de sair do imutável e do fixo. Daí que a solução estética acima apresentada
constitua em si mesma também uma ilusão que não cobre a totalidade da realidade. Pois que
a vida se revela a partir de forças que agem em contradição. É no conflito e na procura da sua
resolução que a existência humana disponibiliza as suas diferentes formas de organização ao
serviço da relação com a vida. Caso contrário, estas vias serão comprometidas e restringidas
drasticamente no seu uso. Por esta razão, o peso da compulsão à repetição vem associado à
pulsão de morte.
O incesto tem como resultado uma aberração e uma anormalidade que é
acompanhada pela destruição e pela catástrofe, já que configura a transgressão de uma lei
universal humana. Onde não há desarmonia está Tanathos, a morte, o sombrio e o infértil.
Nada de novo se introduz, não existe espaço para a alteridade nem para a diferença. A
expressão do desejo de forma inaceitável implica uma punição, nenhuma falta fica sem
castigo.
As Erínias aparecem na Tragédia com a função de acorrentar as mentes e cumprir o
seu destino. Tendo sido desonradas e desprezadas, elas procuram manter a memória, de
forma implacável, do crime passado até que o castigo se cumpra. Enquanto símbolo do
acometimento irracional, as Erínias invocam o estado-fronteira entre a experiência primária e
a actividade simbólica, a atribuição de significado à experiência, que a cristaliza em
memória. Nesse momento, o sentimento de culpa e o desejo de vingança lutam entre si, até

35
que a vítima criminosa, através da decisão e da acção, possa, enfim, restabelecer o equilíbrio.
Esta acção é apadrinhada por Apolo, deus da ciência, que defende que todo o crime requer
expiação, de onde se torna evidente o papel central da consciência e da necessidade de a
manter “limpa” ou “leve”, para que o sujeito não seja devorado pela culpa ou pela inveja e
sucumba à loucura.
O símbolo e a função do presságio no mito consiste em trazer-nos a confluência entre
passado, presente e futuro, clarificando a dimensão trágica do homem. Isto implica o
reconhecimento do homem enquanto ser humano e das suas possibilidades de matar, de se
manter animal. Daí o surgimento dos rituais de sacrifício animal que reafirmam a sua
inocência e o seu respeito pela vida; os humanos sacrificadores distanciam-se da
possibilidade de cometer um crime, ao mesmo tempo reconhecendo esta possibilidade como
pertencendo à sua condição de homens. É o símbolo no lugar da acção.
Quando Édipo decifra o enigma da esfinge, não é apenas a passagem para Tebas que
lhe é permitida a partir de então, mas também a consciência de que aquela conquista o situa
simultaneamente na fronteira entre o divino e o humano, e que as suas capacidades racionais,
outrora totalizantes, se revelam, desde então, impotentes para explicar, compreender e
orientar a existência. Ousar saber mais, ir além dos seus limites implica consequências
trágicas – o reconhecimento da fragilidade e do sofrimento perante uma vida humana
arbitrária e sem razão de ser. O reconhecimento, enfim, da sua condição de parcialidade, de
ser incompleto, a quem falta um sentido. Sentido que será preenchido pela sua capacidade de
sonhar, de imaginar, de criar. O ser partido (fracturado), substitui o estado de ligação ao
infinito e imutável pelo efémero e pela metamorfose.
Este estado implica a capacidade de aceitar não ser um, nem dois, mas de reconciliar-
se com a noção de falta e incompletude. Personificada por Prometeu 8 , esta raiva da
incompletude ganha forma através de um crime que instiga a culpa, uma expiação para o
sofrimento, para a impotência, para a incapacidade, para a insignificância.
Na Tragédia, o conflito dá-se porque o cumprimento de qualquer uma das partes em
causa implica necessariamente a destruição da outra. É um conflito irreconciliável e de
contrariedade e os dois pólos opostos impõem-se com igual legitimidade, intensidade e
autoridade. Assim acontece também na vida psíquica, é preciso optar, e a forma como se dá
resolução do conflito interno irá ditar modos de funcionamento em maior ou menor abertura
à vida e ao real.

                                                                                                               
8
Referido na página 18.

36
Apesar das suas possibilidades, a acção humana permanece um mistério. Não há
caminho sem culpa, sem crime, sem dor. É a dúvida, a consciência de um terrível fardo e da
possibilidade de cometer um crime ímpio e horrendo que é fonte de hesitação e de paralisia
porque reveladora de uma insolúvel e imponderável dupla possibilidade; é a reflexão que
provoca a angústia e dá ressonância à voz contraditória, ao mesmo tempo que enfraquece a
vontade. Segundo Serra (2006, p. 293), a consciência é aquela característica humana
fundadora da moral que se constitui como a base para a libertação, na medida em que
introduz uma fractura no devir contínuo da vida. A libertação surge aqui como possibilidade
de sair do movimento mecânico e contínuo presente na ordem que rege as leis da natureza; é
o que introduz a escolha, ainda que baseada numa ilusão de fuga, ou dissimulação da morte.
A consciência, como terceiro elemento entre o sujeito e o objecto, representa o poder
simbólico do conhecimento, assim como na tríade psíquica o 3º elemento, o pai, desempenha
as mesmas funções.
Consciente da sua limitação, o homem, na Tragédia, reconhece a relação de
subordinação ao poder divino, ao qual se submete através do temor, culto e obediência.
Apesar do aumento da autonomia do homem devido à evolução da sua racionalidade
(relativamente a períodos anteriores na História do homem), da sua capacidade de pensar, de
criar e de alcançar progressivamente novas formas de fazer, é possível manter uma
continuidade entre o plano divino e o plano humano. Esta mesma racionalidade, que
assegura a passagem de uma mentalidade mítica para uma mentalidade baseada em preceitos
racionais, é aquela que vai dotar a espiritualidade do homem com uma capacidade de pensar
o universal e a ordem cósmica – conciliação entre a natureza e a cultura, através da
linguagem. Mas estaríamos longe de compreender a Tragédia se aceitássemos que a
linguagem é o tradutor mais fiel da ordem do real, ou seja, da sua natureza, ou ainda, se
quisermos, da sua origem. Serra (2006, p. 284) refere, a propósito da resolução do conflito de
Orestes, na última parte da trilogia Oresteia, de Ésquilo, que a solução não é possível a partir
do plano argumentativo e horizontal e que “só uma intervenção exterior, que fracture essa
lógica especulativa (...) permite a resolução do conflito. (...) Atena, deusa da inteligência
guerreira, corta verticalmente a aporia, impondo um novo regime. (...) A conciliação exige
uma metamorfose que compreenda e integre as forças em disputa.”. Assim, aquilo que nos é
dado pela Tragédia, é, novamente, a possibilidade de reconciliar o homem animal individual
com a ordem cósmica total de que é parte. Esta metamorfose, referida por Serra, corresponde
enfim à capacidade de aceitar a insignificância da existência, ainda que através da atribuição

37
de um novo significado, sempre mutável. Em linguagem nietzscheana, significa o Sim à
vida, ao devir, à força e à vontade.
No entanto, não se procura a verdade. A verdade, mesmo na Tragédia, mantém-se
velada. A sabedoria do conhecimento trágico reconhece a impotência e a parcialidade do
homem, a quem é permitido brincar, simular e fingir a completude, mas jamais alcançá-la.

A fantasia – do drama inconsciente à narrativa

Atentemos agora ao papel das fantasias. Em analogia com o mito de Édipo, o


caminho para a subjectividade percorre as questões essenciais que se colocam ao homem na
sua procura de compreender a origem. São elas as perguntas do mito: Quem sou eu? De onde
vim? Para onde vou?
Tal como Édipo, o filho rejeitado, o Homem dos Lobos é também o filho rejeitado,
ambos lutam contra essa rejeição. Mas essa rejeição está inscrita pela sua própria condição
de homens, pelo percurso que devem fazer rumo à conquista da subjectividade. A renúncia
aos instintos, o adiamento da descarga, a sublimação que a canaliza para a criação de
produtos humanos está a cargo de um ritual de passagem. Esta é a resposta à pergunta quem
sou Eu? – que condensa em si as outras duas.
A tragédia do Homem dos Lobos refere-se à narrativa que é criada inconscientemente
e que tem como função situá-lo neste caminho de identidade e identificação perante a
existência. Que, como verificámos, não é completamente atingido, sendo interrompido pela
psicopatologia.
A partir da mise en scéne inconsciente do Homem dos Lobos poderíamos ensaiar uma
fórmula narrativa nos seguintes termos, tendo por base uma concepção freudiana para a fase
em que a criança tem 4 anos, após a ocorrência do sonho, tendo mantido em co-existência
duas posições do seu desenvolvimento sexual – genital e anal-sádica:
Quem sou eu?
Eu sou um menino e descobri que, para além de mim, os meus pais podem ter outros
bebés. Para isso, as mulheres têm de ser castradas, pois os bebés têm origem na relação
sexual entre quem conseguiu manter o pénis e quem foi castrado. O dono do pénis tem um
papel activo e o castrado um papel passivo. Um dá e o outro recebe. Um é conteúdo para o
continente do outro. Eu tenho uma pilinha, mas estou ameaçado, com provas convincentes,
de que serei castrado, inevitavelmente, em virtude das minhas más acções. Se assim é, então

38
eu quero que o meu pai me dê a gratificação sexual que me permitirá ser eu a dar à luz esses
bebés, ocupando o lugar da minha mãe. Eu sei que os bebés nascem do ânus, eu também
posso ter bebés através dos meus excrementos. E dessa maneira, não tenho de substituir a
minha falha, porque não me falta nada.
Apesar desta tentativa de reconstrução imaginária, reconhecemos que se trata de um
processo mais complexo e que a uma presumível forma original de traduzir impulsos sexuais
em símbolos e representações (na criança) se juntam outras inúmeras formas com o objectivo
de a distorcerem ou dificultarem o acesso às mesmas, pois estas configuram alguma espécie
de perigo. Tal como já havia sido referido, Freud chamara a atenção para a existência de
inversões imaginárias (transformação no oposto) com o objectivo de encobrir as
‘verdadeiras’ inclinações, como o caso dos sonhos do paciente em que se colocava a si
mesmo no papel activo do protagonista de cenas sexuais com a sua irmã e com a ama, pelas
quais era castigado, de modo a lidar com a humilhação narcísica que proveio da experiência
de sedução a que foi sujeito. Desta forma, assumimos que, tal como Nietzsche enuncia, o
homem recorre à fantasia e ao sonho (Apolo) para encobrir e ocultar a si mesmo a sua
origem desumanizada (Dioniso).
Este tipo de fantasias primárias tem por base os conhecidos mecanismos de defesa
também primários, como a omnipotência, a negação ou a projecção. No esboço acima
proposto está patente a negação da castração (por poder manter imaginariamente o falo
através do pai), a crença do seu poder omnipotente de determinar os acontecimentos da
realidade e a projecção da ideia de bebés associados aos excrementos. Assim, nesta fase (4
anos), a primeira atitude adoptada pelo paciente foi rejeitar a castração (com a regressão à
fase anal), apegando-se à teoria da relação sexual pelo ânus e fazendo co-existir contradições
– se por um lado abomina a ideia da castração, por outro, aceitava a castração consolando-se
com a sua feminilidade como compensação; ao mesmo tempo que não reconhece a realidade
da castração. Freud refere que esta co-existência é devida ao mecanismo da clivagem. O
objectivo último dos mecanismos de defesa é sempre o da protecção do Ego contra uma
ameaça.
Não quer isto dizer que o paciente não tenha desenvolvido outros mecanismos de
defesa mais elaborados e que estes tenham dado origem a outras fantasias, também elas mais
elaboradas no sentido da ocultação da sua origem, tais como a formação reactiva, o
isolamento ou a sublimação.
O melhor exemplo do modo como funcionam os mecanismos psíquicos nesta
ocultação/revelação das formas primitivas, é o sonho dos lobos. Freud está convencido que

39
este sonho continha de forma dissimulada pelo trabalho do sonho (processo de transformação
do sentido latente do sonho, em sentido manifesto, em que se usam os mecanismos de defesa
e tornam acessíveis à consciência os conteúdos latentes, sem renegar o conteúdo inicial), as
causas da sua neurose infantil. Concordando com isso, o paciente sempre deu relevância a
três aspectos do sonho: a calma e a imobilidade completa dos lobos; a atenção tensa com que
todos eles o olhavam; e o sentimento de efectiva realidade que permaneceu depois do sonho.
Freud (1918, p. 2896) sugere que é por altura do quarto aniversário, quando se dá a
reactivação do trauma, que o seu desenvolvimento intelectual já lhe permitia uma
acomodação mais elaborada, com a ajuda da sua actividade simbólica, neste caso, “a fim de
satisfazer os desejos que a realidade não satisfaz” (Freud, 1913, p. 2173). No sonho, o
recalcamento do desejo de satisfação sexual por parte do pai, fez vir à tona uma rejeição da
genitalidade, que então adquirira, para regredir à organização sádico-anal na forma de uma
fobia animal. Freud conclui que o que foi recalcado foi a atitude homossexual compreendida
no sentido genital, mas que esta atitude é mantida no inconsciente e instituída como um
estrato dissociado. O facto de poder haver uma reactivação do trauma leva-nos ao conceito
de Posterioridade, que nos explica que o acontecimento traumático é guardado para depois
ser elaborado dentro de outro contexto. Isso foi o que aconteceu com o Homem dos Lobos na
medida em que o acontecimento ocorre com um ano e meio, mas este só vem a ser elaborado
aos quatro anos e meio. O efeito de posterioridade refere-se ao acesso de cada um à
simbólica da castração. A primeira ameaça sobre o pénis só pode operar psiquicamente
depois de um período de recusa mais ou menos longo: “a ameaça revive a lembrança da
percepção que até então fora considerada como inofensiva, encontrando nessa lembrança
uma confirmação temível.” (Freud, 1940, p. 3958). Assim, a cena imaginada produz os seus
efeitos apenas na fase do desenvolvimento da atitude própria em relação ao mundo que
Freud descreve em Totem e Tabu (ensaio IV – retorno ao totemismo), através de fantasias
retrospectivas em datas posteriores, isto é, o paciente substitui uma impressão aos 4 anos por
um trauma imaginário ao 1 ano.
Além disso, já tínhamos visto com Nietzsche que, inconscientemente, as disposições
internas são alvo de uma “interpretação”9 que determina a escolha da preponderância de uma

                                                                                                               
9
Relembrando: “Nenhum pensamento, nenhum sentimento, nenhuma vontade nasce de um impulso
determinado, senão como um estado global, uma superfície total de toda a consciência e resultam da fixação de
poder nesse instante de todos os impulsos que nos constituem, ou seja, tanto dos impulsos que dominam nesse
momento como dos que obedecem ou resistem. O pensamento seguinte é um signo de como se deslocou
entretanto a situação de poder do seu conjunto.” (Nietzsche, 1885-1889, p. 53, § 1 [61]).

40
sobre as outras. Neste caso, de acordo com o grau de desenvolvimento permitido pelo órgão
do pensamento e das relações que podem, a partir desse desenvolvimento, ser estabelecidas.
A tragédia do Homem dos Lobos configura-se então como uma fuga a à determinação
inconsciente original porque ela atenta contra o seu narcisismo, contra a evidência consciente
que lhe é trazida pela sua anatomia de rapaz. Uma fuga para o centro da sua problemática.
Assim como Édipo, convencido da sua procura obstinada da verdade (para fugir aos
presságios) mais se lhe é revelado o equívoco; também o Homem dos Lobos, na procura de
investir a sua masculinidade (para fugir aos seus impulsos vitais de tendência homossexual),
é colocado inevitavelmente ao encontro da sua tendência feminina. Freud descreve que as
suas tendências sexuais haviam sido divididas: no inconsciente atingiu-se o estádio de
organização genital e estabelecera-se o homossexualismo; e no consciente persistia a
corrente sádica e a masoquista.
Tal como Édipo sai de Corinto para se proteger de um perigo, também o Homem dos
Lobos, ao desenvolver a fobia aos lobos, através da ansiedade estava a proteger-se de um
perigo – a satisfação homossexual. Mas o processo de recalcamento deixou um vestígio – o
objecto teve de ser substituído na consciência – o que se tornou consciente foi o medo do
lobo, não do pai. Assim também Édipo é confrontado com indícios de que as suas escolhas
anunciam desgraças.
Outros episódios de fobia, como a fobia da borboleta (cf. p. 2899, Freud, 1918)
confirmam a repetição do mecanismo que produziu a fobia do lobo no sonho – trata-se de
uma experiência antiga que é activada, no caso, a ameaça de castração. A ansiedade nas
fobias era devida ao medo da castração. A ansiedade não se gerou a partir do recalcamento
da libido homossexual. Freud explica que o medo da castração e o recalcamento referem-se
ao mesmo processo: a retirada da libido do impulso ansioso homossexual, pelo Ego, converte
a libido em ansiedade livre e ligada a fobias.
O caminho do inconsciente, dominado pelos impulsos, encontra a sua maneira de se
manifestar, apropriando-se das ferramentas humanas (a inteligência, a actividade simbólica,
através das fantasias) e fazendo-se presente por formas alheias à lógica racional e à
consciência. Isto acontece porque estas formas resultam, naturalmente, do conflito que se
estabelece entre as pulsões instintuais e um ego que tem de responder a exigências sociais e
de adaptação à realidade humana.
A psicopatologia instala-se quando a tradução dos elementos primários em elementos
secundários (de substituição e sublimação) é perturbada ou não acontece. Ou seja, quando
esta passagem da animalidade para a subjectividade está comprometida. O que é curioso é

41
que, no homem, esta animalidade acumula, para além das formas instintuais próprias
(nutrição, sexualidade e agressividade) expressas e explícitas na acção e comunicação entre
os indivíduos, formas especificamente humanas de se manifestar, como sejam as fantasias
que se formam a partir dos representantes dos afectos, de carácter eminentemente implícito,
oculto e inacessível (inconsciente). Assim, no Homem dos Lobos, a fantasia de satisfazer a
libido homossexual com o seu pai, é uma fantasia (atributo humano), mas permanece na sua
forma bruta – ela é incestuosa, instintual - mantendo os seus objetivos de realização, não
sendo passível de transformação, uma transformação que atesta a já referida passagem do
objecto para o sujeito.
Freud (1918, p. 2901) refere, aliás, que durante o seu período de neurose obsessiva
(entre os 4 e os 10 anos) a corrente mental que o impeliu a transformar os homens em
objecto sexual e que devia ter sido sublimada pela religião já não estava livre. Uma parte
dela foi excluída no recalcamento e, dessa forma, afastada da possibilidade de sublimação e
vinculada ao seu objectivo sexual de origem. A parte recalcada exercia pressão sobre a parte
sublimada consubstanciando-se nas primeiras ruminações em torno da figura de Cristo, que
envolviam a questão de saber se esse filho sublime também podia cumprir o relacionamento
sexual com o Pai, relação que o sujeito conservara no inconsciente. O único resultado do seu
repúdio desses esforços foi de ter gerado pensamentos obsessivos, aparentemente blasfemos,
nos quais a sua afeição física por Deus se afirmava na forma de um aviltamento. Um
violento esforço defensivo levou-o a uma exacerbação obsessiva para dar expressão à
piedade e ao puro amor por Deus. Conclui-se então que os seus fundamentos instintuais
mostraram ser incomparavelmente mais fortes do que a durabilidade dos produtos da sua
sublimação.
Na Tragédia de Édipo, o caminho que se apresenta a partir daquilo que lhe é acessível
– a profecia, o encontro com o inimigo, a decifração do enigma – mostra-se insuficiente e
enganador para compreender a essência daquilo que motivou a sua “missão”. Neste sentido,
a fuga aos instintos constitui um pré-requisito para a instalação da patologia. Pois que
recalcar significa atribuir um lugar próprio, o da humanidade, e fugir significa negar,
idealizar, num jogo permanente de auto-convencimento em circuito fechado. No Homem dos
Lobos, efectivamente, as fantasias são utilizadas na qualidade de substitutos de acções não
realizadas mas desejadas, que invocam uma tendência regressiva e que implicam o recuo
diante da vida e um retorno ao passado. Édipo faz esse détour circular, como se nunca
tivesse saído da sua cidade-natal.

42
Em psicanálise, é o acesso à consciência dessas mesmas fantasias que permitirá ao
paciente adquirir o seu domínio, mantendo a força vital que delas emana através de novos
canais para a sua expressão humanizada (civilizada, subjectivizada). Muitas vezes são
distorções da verdade, intercaladas de elementos imaginários, lembranças encobridoras que
são preservadas espontaneamente; cenas que são pressentidas, construídas gradativa e
laboriosamente a partir de um conjunto de indicações. Por outro lado, na comunicação, o
paciente dá preferência ao material já conhecido ou àquele que pode mais facilmente ser
relacionado com esse material. O que é deixado de lado, no entanto, e rejeitado como falso, é
precisamente o que é novo em Psicanálise (Freud, 1918, p. 2863).
A lição do Édipo é que este processo não pode ser feito a partir daquilo que é
evidente10, que está acessível aos olhos. A consciência moral e a racionalidade, apenas nos
desviam das verdadeiras motivações e inclinações naturais. Assim, ser sujeito não é ter
apenas aceitado renunciar aos seus instintos mais primitivos, mas fazer uma viagem interna
de acomodação e sofrimento para compreender finalmente que “as ruínas do velho mundo
em derrocada acabam por constituir um mundo novo” (Nietzsche, 1872, § 9). Isto é, de
conciliação entre aquilo que provoca dor (pelo confronto com o social) e aquilo que
exponencia as capacidades de agir e criar. Num processo contínuo de destruição e criação.
No Homem dos Lobos assistimos a uma corrente da libido que se retrai diante da vida
e que conduz a uma regressão à infância. O indivíduo deixou de poder dominar os
verdadeiros problemas da vida devido ao papel decisivo da influência da infância e da
significação poderosa do factor infantil que permanece. A fobia foi sucedida por um
cerimonial obsessivo e por actos e ideias obsessivos, sintomas que reenviam para impulsos
instintuais que a criança não consegue satisfazer, não tendo idade suficiente para dominá-los
e também às fontes das quais se originam esses impulsos. A decifração do enigma mostra-
nos que o desenvolvimento da identidade - resposta à pergunta Quem sou eu? - passa por
uma evolução que vai dos quatro apoios (animal, bebé) para os dois apoios, a transição
evolutiva do animal para o homem, a passagem para a posição erecta e para a
disponibilização dos membros superiores que lhe permite a realização de tarefas mais
complexas, e que representa simultaneamente a passagem da infância para a fase adulta.
Segundo Freud, o Homem dos Lobos, em adulto, conservou as mulheres como
objecto sexual, mas manteve uma inclinação que se tornou totalmente inconsciente para os
homens, na qual se uniam todas as forças das fases anteriores do seu desenvolvimento. No
                                                                                                               
10
E aqui poderíamos levantar uma objecção sobre a vertente cognitivo-comportamental da Psicologia, baseada
nas evidências e no “poder” da consciência.

43
entanto, esta inclinação afastava-o constantemente dos seus objectos femininos e compelia-o
a exagerar a sua dependência das mulheres. Assim, a partir do drama interno do paciente,
isto é, dos fragmentos que constituem a trama de acções que compõem, de forma
desordenada e confusa, os elementos de uma identidade, vai-se revelando ao analista uma
narrativa que vai permitir caracterizar a qualidade das relações estabelecidas entre os desejos
inconscientes e os seus destinos – estabelecem-se, enfim, ligações pertinentes entre as
diferentes fantasias que respondem a esses impulsos e necessidades vitais.
Para Freud, a narrativa criada para este caso assenta na descoberta de uma identidade
francamente perturbada ao nível do seu narcisismo. Concluiu que a doença do paciente se
deveu a uma “frustração” narcísica. Refere que a força excessiva do seu narcisismo explica
os indícios de um desenvolvimento sexual inibido: muito poucas das suas tendências
psíquicas se alinhavam na sua escolha de objecto heterossexual, apesar de todos os esforços.
A partir desta clarificação, o analista serve de espelho ao paciente, que deste modo
tem acesso ao circuito interno por si desenhado ao longo da sua história cronológica. E
assim, transformado em herói de tragédia, pode, fora de si, compreender o próprio fatum, e
permitir-se re-escrever o guião. A quebra da “maldição” acontece no desfecho da Tragédia,
quando o herói é alvo de um momento de lucidez, a partir do qual está preparado para
abandonar o seu próprio passado e aquela que fora a sua morada até ali. Recuperamos
Nietzsche, a propósito da superação de si mesmo: “a tua melhor coragem será que atrás de ti
não existam mais caminhos! / Segues o caminho da tua grandeza: e ninguém se arrasta atrás
de ti! Atrás de ti os teus passos apagaram o seu rasto, nesse caminho está escrita a palavra:
Impossível. / E se mais adiante te faltarem todas as escadas, será preciso aprender a trepar
sobre a tua própria cabeça; como poderias fazer de outra maneira?” (Nietzsche, 1883-1885,
III, O viajante, p. 178).
Freud, mais comedido, refere “quando se apresentam perturbações como estas, o
tratamento psicanalítico não pode trazer uma revolução instantânea ou colocar as coisas num
nível de desenvolvimento normal: pode tão-somente livrar-se dos obstáculos e clarear o
caminho, de modo que as influências da vida possam conseguir desenvolver-se em linhas
melhores.” (Freud, 1918, p. 2902).
Seja como for, o paciente de Freud consegue estabelecer um compromisso com a
vida suficiente para não ter de ser isolado do contexto social, mantendo a actividade
produtiva até à idade expectável. Deste modo, neste caso, não há propriamente uma reescrita,
mas uma minimização de danos. Podemos extrapolar um pouco e propor a leitura de que esta

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tragédia individual não teve o seu culminar, tendo o protagonista interrompido o curso do
espectáculo na fase de errância e procura do seu destino, sem nunca encontrá-lo.
Aliás, Freud reconhece alguns aspectos característicos da personalidade do paciente,
tal como a tenacidade de fixação, a propensão à ambivalência e a constituição arcaica (que
lhe permite manter simultaneamente as mais variadas e contraditórias catexias libidinais,
todas elas capazes de funcionar lado a lado), que bloqueavam o caminho para a recuperação
e o progresso. Esta oscilação constante era, pois, uma característica que pertencia ao carácter
geral do seu inconsciente e que persistira nos processos que se tornaram conscientes; o que
demonstra o desequilíbrio e a força com que o processo primário invade a consciência e os
processos secundarizados. Freud salienta o aspecto curioso e impressionante da habilidade
peculiar do paciente, na sua inteligência, em revelar contradições e incoerências no discurso;
algo de que é incapaz no plano inconsciente.
O arrancar de olhos, no Édipo, simboliza, finalmente, a capacidade de encarar a
problemática da castração, na medida em que o enfim sujeito consegue renunciar à sua
omnipotência e assumir o seu papel relativo na ordem hierarquizada e organizada da
sociedade. Capaz então de substituir a coisa pelo símbolo, transformando um lugar de
diminuição no lugar de um ganho. Algo que o Homem dos Lobos não chega a atingir, e que
determina a manutenção da psicopatologia ao longo da sua vida.

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Conclusão

(Chega a hora da Morte, o narrador repete o início: “E havendo o


cordeiro aberto o Sétimo Selo, fez-se silêncio no Céu, quase por meia
hora. E, vi os sete Anjos, que estavam diante de Deus... e foram-lhes
dadas sete trombetas” – prenuncia-se a destruição e ouvem-se súplicas.
O malabarista vê, ouve, a última caminhada e fala para a mulher)11

– E a severa e suprema Morte convida-os para dançar. Ela quer que


segurem nas mãos uns dos outros e dancem em fila. À frente vai a
suprema Morte com a sua gadanha e a sua ampulheta, mas o Skat vai
atrás com a sua lira. Eles afastam-se a dançar, afastam-se do nascer do
sol numa dança solene, afastam-se em direcção a terras escuras,
enquanto a chuva lhes lava as faces, lhes limpa as lágrimas salgadas...

(Mulher do malabarista)

– Tu, os teus sonhos e as tuas visões...

O título desta dissertação - O Homem dos Lobos: Fragmentos para um Diálogo entre
Freud e Nietzsche – reenvia-nos para uma tentativa de exploração clínica na qual
procurámos enquadrar aspectos teóricos e abrir uma discussão em torno do papel das
fantasias primitivas e da actividade simbólica. As fantasias primitivas serviram como base
para descobrir dificuldades e perturbações no desenvolvimento do psiquismo e do seu
congénere desenvolvimento sexual, a partir do caso clínico apresentado.
Na primeira parte deste trabalho, verificámos e definimos a qualidade das pulsões no
Homem dos Lobos, tendo sido realizada uma abertura filosófica na compreensão da sua
organização estrutural, através do conceito nietzscheano de Vontade de Poder, explicitando o
modo de actuar subjacente a este processo, que mais não é que o da realização de uma
síntese das forças envolvidas e que culmina, no caso, com o aparecimento do sintoma.
Expusemos a analogia de Nietzsche, baseada nas figuras míticas – Apolo e Dioniso -
salientando o poder de comunicação da linguagem do mito para explicar o processo de
criação e destruição, como aspectos indissociáveis do desenvolvimento psíquico e da própria
existência das coisas em si. Foi feita uma leitura específica do caso do Homem dos Lobos, na
qual se evidencia a preponderância do processo primário sobre o processo secundário: o
Homem dos Lobos não é capaz de dar vazão às suas manifestações ‘dionisíacas’, rechaçando-
as através de mecanismos que não lhe permitem, efectivamente, defender-se delas, pelo que
a influência ‘apolínea’ acaba por ser deficitária e os desejos ficam por satisfazer, sem

                                                                                                               
11  Extracto do filme O Sétimo Selo (1956) de Ingmar Bergman.  

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sublimação. O horror não encontra suavização e a história do doente é a história da fuga a
esse horror. O poder destruidor, porque transbordante, de Dioniso impõe-se numa eterna
vontade de geração, de fecundidade, de retorno ao uno primordial, impedindo o indivíduo de
se organizar internamente e de estruturar-se numa personalidade estabilizada e bem
delimitada. É necessária a intervenção de Apolo para quebrar a vontade do descomunal, do
múltiplo, do incerto, do assustador, através de uma vontade de medida, de simplicidade, de
ordenação, de regra e de conceito. Nem a beleza, nem a lógica são adquiridas de forma
imediata, elas são uma conquista, são desejos de humanidade, e resultam de um combate, de
uma luta interna12. Rilke é esclarecedor, a estética é uma conquista humana, ela define a
capacidade de transformar o horrível em algo de aceitável, é o sublime. Neste sentido, a
busca dos homens é uma permanente tentativa de serem essas criaturas sublimes, em virtude
de uma sensibilidade estranhamente inquietante.
Verificámos como o Homem dos Lobos interrompe a sua evolução e o
desenvolvimento da sua sexualidade e de como isso tem implicações sobre a sua capacidade
de viver aqui e agora. Explicitámos a perspectiva estética de Nietzsche que releva da
capacidade de estar disponível para a experiência do presente e de abertura ao novo.
Compreendemos que essa capacidade implica uma integração do sentimento de angústia de
morte e que o preenchimento das lacunas é feito através de uma herança filogenética, que
dota o homem de conhecimentos instintivos ancestrais (cf. pág. 33). O choque com a
integração no social, cumpriria o potencial de humanidade inscrito nessa herança. Essa
transição é posta em causa quando há falhas neste processo de transformação e é aí que se
instala a psicopatologia.
Foi interessante verificar que os instrumentos da psicopatologia são os mesmos que
aqueles que são utilizados no curso normal do desenvolvimento – a imaginação, a lógica
(inconsciente) e a criação de fantasias. Eles são apropriados, indevidamente, por um
inconsciente indomado. Desta forma, o sentido de identidade é tomado e tiranizado pelos
circuitos inconscientes, coartando a liberdade e a capacidade de se adaptar à realidade. É
então aí sugerido que, pelo poder de encantamento, atracção e rigidez instalados, o indivíduo
vive a sua própria tragédia, incapaz de viver a vida, sendo todos os esforços desenvolvidos
para sair dela apenas uma confirmação do destino de desgraça – o karma ou a ‘pulsão de

                                                                                                               
12Rilke, n’As Elegias de Duíno define a beleza do seguinte modo: “(...) Pois o belo apenas é / o começo do
terrível, que só a custo podemos suportar, / e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha /
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível. / Por isso me contenho e engulo o apelo / deste soluço obscuro” (Rilke,
1922, p. 39).

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morte’. Desde então existiria apenas uma narrativa. O que podemos concluir é que o poder
de Dioniso (do inconsciente), embora responsável pela contaminação, é também ele
enfraquecido, sem a sua componente apolínea. É que apesar da desorganização e
desestruturação do “eu”, a rigidez do circuito instalada, impede “a transgressão desses
limites da patologia, impedindo a renovação das forças vitais, mergulhando-as num mar de
águas paradas, onde não há entradas nem saídas, enfim, numa morte em vida” (cf. pag. 23).
Nietzsche salienta que o excesso de vida e a sobreexcitabilidade, quando não
encontram o caminho da sua descarga, criam um excedente. Quando esse excedente não é
utilizado, transformado, sublimado, transfigurado, volta-se para si mesmo e cessa de ser
agido, mantendo-se enquanto matéria bruta, não trabalhada, desperdiçada (Deleuze, 1962, p.
128). As consequências deste excedente não investido são uma duplicação do esforço, pois
continua a manter o seu grau de excitabilidade sem que haja uma canalização adequada da
energia, impedindo a criação de outras formas de reagir à estimulação externa e a renovação
na forma de sentir com impacto sobre a organização do próprio pensamento. Processo
condenado ao embaraço e à turvação da percepção desgastada em sofrimentos derivados de
falsos ataques, tal como acontece com o nosso paciente. A apreciação é substituída pela
depreciação. Pensar nunca é o exercício natural de uma faculdade. (Deleuze, 1962, p. 123).
Pensar é uma conquista e depende do jogo de forças do qual resulta o exercício do pensar.
Foi salientado que o papel da psicanálise seria o de possibilitar este confronto e de
suavizar o sofrimento provocado pela evidência da necessidade de transformação e de
abandono de formas identitárias às quais o indivíduo se agarra com medo que essa
mudança/perda possa ser fatal para a sua sobrevivência psíquica. Pois que a experiência de
abandonar é também a de ser abandonado.
Concluímos também que na base das fantasias construídas está o modo de ligação
primordial (com os progenitores) que se faz essencialmente através do desejo de
relacionamento sexual. Este tipo de relacionamento configura-se como uma espécie de
linguagem que permite ao indivíduo comunicar e construir o seu psiquismo. Além disso, foi
evidenciado que esta ligação primordial sustenta uma outra problemática, essencial para o
amadurecimento dos processos psíquicos e para a construção da subjectividade individual – a
da castração ou a da proibição do incesto.
Por outro lado, servimo-nos, novamente, da linguagem dos mitos para melhor
compreender o significado dos conflitos internos expostos no caso do Homem dos Lobos.
Assim, foi feito um paralelo entre o mito de Édipo e o caso do Homem dos Lobos. O mito foi
utilizado para ilustrar as dificuldades da suposta neurose implícita na psicopatologia do

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paciente. Tratando-se essencialmente, de uma problemática narcísica, tal como vem descrito
por Freud, a Tragédia demonstra que quando os homens se colocam no centro do mundo, no
puro esquecimento das forças do destino, invisíveis, misteriosas e transcendentes, daí só
podem advir consequências nefastas.
Esta marca do narcisismo denuncia então uma clara dificuldade em aceder à
triangulação, uma impossibilidade de figurar o terceiro. O que é patente no caso, é que a
tentativa do paciente resulta num Édipo invertido, numa recusa da castração com
consequências ao nível da sua organização psico-sexual, e a preponderância de estados pré-
edipianos a dominarem a qualidade das relações que estabelece com os outros. Isto significa
que, apesar de haver um recalcamento inicial necessário, o retorno do recalcado revela não
terem havido quaisquer transformações que permitissem renunciar ao ‘lugar do rei’.
Foi proposto que o setting analítico pudesse funcionar como um palco onde seria
possível ensaiar, através de fragmentos, o drama histórico do paciente. Salienta-se o
poderoso efeito do distanciamento estético da sua história, pela possibilidade de projecção da
mesma (que é espelhada pelo psicanalista e devolvida ao paciente), que permite assim evitar
a perigosa destrutividade implicada no reconhecimento da impotência do paciente para
controlar o seu processo interno; ao mesmo tempo que mantém essas forças actuantes e
visíveis.
Esses fragmentos, seriam sujeitos a uma espécie de composição/encenação que
propiciaria o aparecimento de uma narrativa, através das ligações estabelecidas entre si. Tal
como no drama trágico de Édipo, esta narrativa corresponderia às respostas às perguntas do
mito: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Desta forma, o mito que o paciente vive é
mais do que o mito pessoal ou a “mentira que se conta a si próprio”, visto que ele encerra em
si mesmo o enigma que representa o mito do paciente para o analista. Sendo que, em resumo,
a experiência trazida pelo paciente é o produto das respostas a estas questões: Eu sou aquilo
que fui capaz de construir para responder a estas perguntas.
O que é certo também, é que mesmo a resolução do enigma por ambos, paciente e
analista, corresponde a uma ficção. Mas só esta compreensão por parte do paciente é já uma
grande oportunidade de liberdade. Pois que com isso mantém em aberto todas as
possibilidades de relação com os outros e com o mundo. Não esquecendo que um mito é
sempre uma alegoria e que o problema surge quando ele deixa de ser tomado como alegoria
e passa a ser confundido com a própria realidade, no seu sentido literal. Já Adorno (1970, p.
100) nos dizia que “a barbárie é o literal”.

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Para finalizar, diríamos que um dos grandes contributos de Nietzsche em relação à
perspectiva freudiana do processo analítico, é a conclusão de que o mito (a ficção, o erro e as
construções fantasiosas) está ligado ao sentido do belo. Que a beleza corresponde a uma
sublimação dos instintos de sobrevivência, a uma síntese de forças em relação entre si. Que a
hipótese estética da criação e da existência implica a ‘morte do Eu’13 e a superação da
necessidade humana de identidade. Neste sentido, evidenciamos uma perspectiva contrária
ao determinismo freudiano encerrado no segredo da infância e numa certa cristalização do
processo de identidade pré-determinado.
O trabalho analítico corresponderia assim a uma possibilidade de resgatar o potencial
criador, a partir da destruição, da transformação da dor e do terrível, num processo
permanente de ‘tornar-se’, um ‘vir a ser’ permanente. Na crítica, avaliação e interpretação
nietzscheanas não se trata de justificar mas de utilizar uma outra forma de sensibilidade,
mais lúcida, menos susceptível de ceder ao ressentimento. Aquele que reconhece em si a
potência do excesso de vitalidade, aquele cuja moral consiste na glorificação de si próprio e
se reconhece detentor de uma riqueza desejante, é o homem trágico, “capaz de dizer sim à
vida mesmo nos seus problemas mais estranhos e árduos” (Nietzsche, 1889, O que eu devo
aos antigos, § 5, p. 137).
O processo enganador a que o nosso paciente sucumbe, em recusa da castração,
encerra-o, tragicamente, em estratégias de repetição, tornando permanente e vazio o lugar da
falta que então nega. Esta é também uma falta universal, que nos deixa a impressão de que a
fronteira entre a normalidade e a psicopatologia não tem uma medida própria. Trata-se, em
última análise, de preencher essa falta com “os teus sonhos e as tuas visões...”, através de
uma alegre e corajosa sabedoria. Mantém-se o engano mas já não a fuga nem o medo de
existir.
Ao introduzir a componente estética no processo analítico, estamos a reconhecer e a
integrar o erro como possibilidade, a necessidade da fantasia, da invenção, que afirma a
única manipulação possível – a das aparências. Isto é operar também uma recuperação do
corpo que quer arriscar, lutar, conquistar.

                                                                                                               
13
Daqui vem também a conhecida asserção de Nietzsche de que ‘Deus morreu’.

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