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Aniquilacionismo:

Uma doutrina grega e pagã


Os adventistas costumam alegar que a doutrina da
imortalidade da alma é uma doutrina originada na filosofia
grega, portanto pagã.

Mas a questão colocada nestes termos além de ser simplória, é


enganosa. Estamos falando de qual filosofia grega, afinal?

Antes de aparecer a filosofia, a religião grega apresentava


duas expressões de crença: uma pública e outra privada.
1) A religião pública – baseada nos poemas de Homero – cuja
antropologia era naturalista e acreditava na mortalidade do
homem, é um exemplo de que os gregos nem sempre foram
favoráveis à ideia da imortalidade inata da alma.
Afirma certo estudioso no assunto que: “Nos poemas
homéricos (c. séc. VIII a.C.), os usos do termo psyché (ψυχή)
podem ser reduzidos a basicamente dois: sombra (σκιά)
e força vital, que se extingue com a morte e é aplicável
somente aos humanos.” (ROBINSON, T. As Origens da Alma: os
Gregos e o Conceito de Alma de Homero a Aristóteles. Anna
Blume Editora, São Paulo, 2010., pp. 17–18)
2) A religião dos mistérios – “Orfismo” – que fazia separação
entre alma e corpo. Era o fundamento da religião privada. O
Orfismo acreditava na sobrevivência da alma e na
reencarnação. É ela que irá influenciar posteriormente muitos
filósofos gregos.
Filosofia

Na filosofia não era diferente, já que havia partidários das


duas crenças:
3) A filosofia pré-socrática e clássica – com ênfase na
imortalidade da alma. Essa de fato acreditava numa
imortalidade inerente à alma. Essa doutrina foi melhor
desenvolvida por Platão.

Mas a filosofia grega não se resumia apenas à filosofia de


Platão. O que os adventistas não revelam é que a crença
aniquilacionista também tem seus pés fincados na filosofia
grega dos materialistas epicureus e estoicos.
4) Filosofia holística e materialista – escolas filosóficas que
rejeitavam a imortalidade da alma. Entre elas estavam os seus
maiores representantes: Epicureus e Estoicos que
influenciaram bastante a filosofia.
O que criam os Estoicos?

Os Estoicos, apesar de acreditarem em um tipo de alma


corporal, ensinavam que, no final de tudo, ela seria extinta.
Vejamos melhor essa crença nas palavras de certo estudioso:
“Pelo fato mesmo de não terem a natureza da alma, os
estoicos antigos não são claros quanto à imortalidade da alma.
Afirmam que não é espírito inato, que é corpórea, que é
corruptível, mas permanece depois da morte […] Cleanto
afirma que todos permanecem até “o incêndio do mundo”,
mas Crisipo acha que subsistem só as almas dos sábios”
(LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres.
Tradução de Mário da Gama Kury. UNB, 1977. LAÊRTIOS,
Diôgenes. Ibidem, VII, 107)
O que criam os seguidores de Epicuro?
“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada,
visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a
morte é justamente a privação das sensações. A consciência
clara de que a morte não significa nada para nós proporciona
a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
infinito e eliminando o desejo de imortalidade […] A
morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para
os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que
estes não estão mais aqui.” (Epicuro – Carta a Meneceu –
destaque meu)
O epicurista romano, Titus Lucretius Carus, em sua De Rerum
Natura foi além e afirmou que a alma é de natureza corpórea e
está sujeita à morte. A alma do homem consiste em átomos
diminutos que se dissolvem com o húmus quando este morre,
dando, posteriormente forma às rochas, lagos ou flores.
“[…] ora, não vamos acreditar que as almas fogem do
Aqueronte ou que espectros voejam entre vivos, ou que
alguma coisa de nós pode ficar depois da morte, visto que
o corpo e a substância da alma, aniquilados ao mesmo
tempo, se dispersam nos seus elementos respectivos.”
(LUCRÉCIO. Da natureza IV, 40-45– destaque meu)
E mais: “Assim, a substância do espírito não pode surgir
sozinha sem o corpo nem pode estar afastada dos nervos e do
sangue. Se, efetivamente, o pudesse, muito antes a própria
força da alma poderia residir na cabeça ou nos ombros ou nas
extremidades dos calcanhares e nascer em qualquer parte do
corpo, visto que no fim ficaria no mesmo homem e no mesmo
vaso. Ora, como parece haver no nosso corpo um lugar certo e
determinado onde podem residir e crescer por si o espírito e a
alma, é esta mais uma razão para negar que possam viver
fora do corpo e duma forma viva, quer nas friáveis glebas
da terra, quer no fogo do sol, quer na água, quer nas altas
regiões do ar. Todos estes corpos não contêm qualquer
sensibilidade divina, visto que nem sequer podem ser
animados por uma alma.” (LUCRÉCIO. Da natureza V, 127-
145– destaque meu)
Uma teologia condicionalista no épico sumeriano de
Gilgamesh
Neste épico os deuses são os que detêm a
imortalidade. Gilgamesh implora para que a imortalidade lhe
seja concedida pelos deuses, mas Utnapishtim (o Noé da
epopeia), o único humano que a possui, esclarece
a Gilgamesh o seguinte:
Ó Gilgamesh, foi-te dada a realeza segundo o teu destino.
A vida eterna não era teu destino.
Quando os deuses criaram o homem
deram-lhe como atributo a Morte,
mas a Vida, a Vida Eterna, essa, só ficou para eles.
Ao contrário dos gregos que postulavam uma imortalidade
inata da alma, aqui a imortalidade é condicionada à
benevolência dos deuses. No caso, Utnapishtim a possuía, mas
a Gilgamesh, foi-lhe negada. Resguardada as devidas
proporções, esse conto pagão parece muito com a ideia
condicionalista.
Influência da Filosofia Grega no ateísmo moderno

A crença aniquilacionista da filosofia grega sobre a alma


influenciou diretamente um grande pensador ocidental
moderno e suas ideias ateístas.

Mas lá pelo século II d.C, Tertuliano já denunciava alguns


cristãos influenciados pelas ideias gregas aniquilacionistas
dos epicureus:

“E se há os que afirmam que a alma é mortal, é porque


o aprenderam dos epicureus; se há os que
negam a ressurreição do corpo, é porque o tomaram de t
odas as escolas
filosóficas reunidas; se a matéria é equiparada a Deus, é
porque tal é a doutrina de Zênon; e, quando se fala de u
m Deus de fogo, isto se deve a Heráclito. Hereges e filósofos
soem tratar dos mesmos assuntos.
Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia co
m a Igreja? Ou os hereges com os
cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, qu
e nos ensina a buscar o Senhor na
simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiser
em, um cristianismo de tipo estoico, platônico e dialético!
Quanto a nós, não temos necessidade de indagações
depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do
Evangelho.” (De Praescriptione Haereticorum, c.7)

A filosofia materialista de Epicuro também influenciou um


jovem alemão por nome Marx, que viria ser um dos maiores
ícones do ateísmo moderno do século XX.

O ateísmo de Marx foi em parte influenciado pela filosofia de


Epicuro. A tese de doutorado de Marx teve como título “A
diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e
Epicuro.”

Mas outro autor muito influente no ateísmo de Marx foi o


filósofo alemão materialista Ludwig Andreas Feuerbach. O
primeiro livro de Feuerbach teve como título “Pensamentos
sobre Morte e Imortalidade”. Nesse trabalho ele ataca a ideia
da imortalidade, sustentando que, após a morte, as qualidades
humanas são absorvidas pela natureza, semelhante ao que
disse Lucrécio.
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Prof. Paulo Cristiano da Silva

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