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Instituto de Geociências
Sertões do mundo,
uma epistemologia
volume 1
Belo Horizonte
2011
Adriana Ferreira de Melo
Sertões do mundo,
uma epistemologia
volume 1
Belo Horizonte
2011
Agradecimentos
presentes
passagens
de sertão e neblina
Sônia Queiroz,
com quem aprendo desde tempos incontáveis a voz e a letra: a vida.
Yollah Venites,
acendedora de sonhos, ou seja, de realidades.
Virgilina de Melo,
ponte no infinito
entre caos e cosmos
Plotino
Resumo
A ideia de sertão é bastante difundida nas imagens do senso comum, dos saberes populares, das
ciências, das artes verbais, da literatura, do cinema, das artes plásticas, da música, dentre muitos
outros saberes. O conceito de sertão, entretanto, salvo do ponto de vista físico, é pouco estudado.
As imagens do sertão, dispersas nos mais diversos saberes, nos convidam a observar a
multiplicidade de significações que compõem o conceito. Essa multiplicidade nos estimula a
ampliar o conceito de sertão e a ler e compreender os contemporâneos movimentos do espaço a
partir das imagens desse conceito. Para além das significações construídas nos mais de quinhentos
anos de história do Brasil, o velho sertão não apenas permanece, como também se inscreve no
mundo contemporâneo em múltiplos espaços, surgindo em novas configurações. O espaço é
complexo: múltiplo, heterogêneo, esgarçado, indivisível: rugoso. O sertão se prolifera nos mais
diversos lugares, experimentando e condensando também todas essas características do espaço em
sua totalidade, ao qual chamamos mundo. Como traduziu Guimarães Rosa, o sertão está em toda
parte. Coexiste nos lugares que permanecem intocados pelos processos de modernização e nos
espaços hipermodernizados. Resiste no nome do sertão bravo e surge em lugares nunca antes
denominados sertões. Se na sua origem a palavra sertão foi preenchida por significações do tipo
lugar longínquo, desconhecido, desabitado, isolado, selvagem, bárbaro, incivilizado, a maioria dessas
significações continuam sendo inscritas, na contemporaneidade, não apenas nos diversos lugares
do mundo em que os processos de modernização não chegaram, mas também nos interiores dos
lugares hipermodernizados, como, por exemplo, as favelas das metrópoles e das megalópoles. Para
quem o sertão é o longínquo, o bárbaro, o selvagem, o incivilizado? Do sertão de que tempo-espaço
se fala? Como foi e é construída a ideia de sertão? Quais significações constituem as múltiplas faces
dos espaços que podem ser denominados sertão ou lugares-sertão? A partir do que se denomina
uma cosmologia do sertão, exercício de reflexão teórica sobre o conceito, que se faz no contato com
as imagens de sertão dispersas nos saberes literários, não-literários, nas artes verbais, elabora-se um
exercício teórico, epistemológico, de reflexão sobre alternativas de abordagem das questões
socioespaciais. Essas alternativas consistem em estudar o sertão no âmbito da ciência, neste caso a
geografia, no contato com as representações de todos esses saberes. Investe-se em outro tipo de
ciência, diferente da moderna. Uma ciência que se reinventa e se fortalece a partir da prática de
uma ecologia de saberes, do diálogo que se pode se construir nos diversos espaços de fronteiras entre
saberes: científicos, artísticos, populares, do senso comum etc. Abordam-se, também, os conceitos
de lugar e território, essenciais à argumentação da tese, uma vez que ela se fundamenta na
compreensão do sertão como um lugar-cosmo que, ao emergir em diversas partes, nos permite
refletir sobre territórios de sertões do mundo. Esses territórios, sertões do mundo, são ainda
apresentados como uma alternativa epistemológica para a reflexão dos diversos mundos do
chamado Sul Sociológico, que emergem nas mais diversas escalas, em toda parte.
L’idée de sertão est bien connu dans le domaine de l’imaginaire du sens commun, des savoirs du
peuple, des sciences, des arts verbaux, de la littérature, du cinéma, des arts plastique, de la
musique, entre autres domaines aussi. Le concept de sertão, toutefois, sauf du point de vue
phisique, n’est pas beaucoup recherché. Les images du sertão, dispersées dans les divers savoirs,
nous invite à observer la multiplicité que nous attire à agrandir ce concept et nous invite aussi à lire
et à comprendre les mouvements contemporains de l’espace à partir des images du sertão. Au
delà de signifiants construits pendant environ 500 ans d’histoire du Brésil, le vieux sertão reste et
aussi se produit dans le monde contemporain en multiples espaces, en faisant des nouvelles
configurations. L’espace est complexe : multiple, hétérogène, déchiré, indivisible: ridé. Le sertão se
prolifère dans les lieux les plus diversifiés, en essayant ainsi que condensant toutes ces
caractéristiques de l’espace en sa totalité, auquel on appelle monde. Le sertão est partout, a dit-il
Guimarães Rosa. Le sertão coexiste dans des divers lieux intangibles par le processus de
modernisation ainsi que les endroits hyper modernisés. Il résiste sur le nom sertão brave et il
surgit dans des endroits n’ayant jamais été nommés sertão avant. Si à l’origine le mot sertão a été
pourvu de signifiants tels que lieu, lointain, inconnu, inhabité, isolé, sauvage, barbare, incivil, la
majorité de ces signifiants continue à s’inscrire, dans la contemporain, dans les plus divers lieux
du monde où le processus de modernisation ne sont pas encore arrivés, ainsi que dans les lieux
hyper modernisé, comme cas de figure les bidonvilles des métropoles et des mégalopoles. A qui le
sertão est le lointain, le barbare, le sauvage, l’incivil ? À propos du sertão de quel temps-espace
parle-t-on ? Comment a été construite cette idée de sertão et comment on la construit ? Quelles
sont les significations qui constituent les multiples faces des espaces qui peuvent être nommés
sertão ou lieux-sertão ? A partir de ce qu’on nomme une cosmologie du sertão, l’exercice de réflexion
théorique sur ce concept, que se fait a partir de contact des images du sertão disperses dans des
savoirs littéraires, non-littéraires, dans les arts verbaux, on produit alors un exercice théorique,
épistémologique, de réflexion sur les possibilités d’abordage des questions socio spacieux. Ces
possibilités alternatives consistent à étudier le sertão dans l’ambitus de la science, dans ce cas la
géographie, en ayant un contact avec toutes les représentations de ces savoirs. On se tourne vers
autre type de science qui est différente de la science moderne. Une science que se réinvente et se
fortifie à partir de la pratique d’une écologie des savoirs, du dialogue que peut se faire dans les
divers espaces de frontières entre les savoirs : scientifiques, artistiques, populaires, du sens commun,
etc. On parle aussi sur le concept de lieu et territoire, qui sont essentiels à l’argumentation de la
thèse, vu qu’elle se basée sur la compréhension du sertão comme un lieu-cosmo que au fur et à
mesure qu’il entre dans divers lieux, nous permet de réfléchir sur les territoires de sertões. Ces
territoires, sertões du monde sont encore présentés comme une alternative épistémologique pour la
réflexion des divers mondes de l’appelé Sud Sociologique qui émerge dans les plus variés échelles,
partout.
The idea of sertão is widely popularized through images of common knowledge, verbal arts,
literature, cinema, plastic arts and music, etc. The concept of sertão, however, except of the point
de view physic, hasn’t been rigorously studied. The images of sertão, constructed within
numerous ways of knowing, require us to observe a multiplicity of meanings of which it is
comprised. This multiplicity stimulates us to widen the accepted concept of sertão and to read
and comprehend the contemporaneous uses of space through the impressions that this concept
brings. The nature of the old sertão remains, not only beyond the meanings which have been
constructed during 500 years of Brazilian history, but also manifested in the contemporaneous
world in multiple spaces, presenting itself in new configurations. The space is complex: multiple,
heterogeneous, strained, indivisible and rugged. The sertão is multiplied on the most different
places, exhibiting and condensing all these characteristics of space in its totality, which we call
world. In Guimarães Rosa’s words, “the sertão is everywhere”. It coexists in places which remain
untouched by modernization and in hypermodern spaces. It persists in the name of sertão bravo
and it comes out in places that were never before called sertões. From the very beginning the word
sertão was imbued with meanings such as faraway, unknown, uninhabited, isolated, savage,
barbarian and uncivilized, and most of these meanings remain today, not only when referring to
places of the world in which modernity hasn’t reached, but also inside hypermodern places, such
as, for instance, the favelas in metropolises and megalopolises. For who is the sertão is faraway,
barbarian and uncivilized? What is the sertão’s space-time that is referred to here? How was, and
is, the idea of sertão constructed? What meanings constitute the multiple faces of spaces which
can be termed sertão? From what is denominated a cosmology of sertão, which is an exercise of
conceptual and epistemological thinking, made through contact with the images of sertão found
within literary, non literary and verbal arts, in alternative approaches to socio-spatial issues. These
alternatives consist of studying the concept of sertão from within the domain of science, in this
case, geography, contacting with representations of all these ways of knowing. We invest in
another type of science, different from modern science. A science that reinvents itself and
becomes stronger through the practice of an ecology of knowing, from the dialogue that can be
built from the various frontier spaces between ways of knowing, such as, scientific, artistic,
popular and common sense. Concepts of place and territory are also studied, which are essential
to this thesis’ argument, which is founded in the comprehension of sertão as a place-cosmos,
which, when emerging in several locations, allows us to reflect on the idea of sertão territories of
the world. These territories, sertões of the world, are still presented as epistemological alternatives
to the reflection of several worlds of what is called Sociologic South, which emerge on the most
diverse scales, everywhere.
9 Sertões do mundo
11 Uma cosmologia do sertão: sertões do mundo, uma epistemologia
Relevo de palavras
O palimpsesto espacial
64 O lugar-sertão em Rosa
88 Grafias e rasuras do sertão
96 Atopia, utopia
107 Referências
DIÁRIO DE VIAGEM AOS SERTÕES DO MUNDO
9
Sertões do mundo
Para além da luta pela terra, o que aproximaria imagens espacialmente distantes,
como, por exemplo, as dos movimentos realizados pelo MST, pelos quilombolas e
indígenas do Brasil e da América Latina, com as imagens dos refugiados afegãos no Irã?
As imagens dos palestinos em confronto com o Estado de Israel ou das populações
rurais e urbanas de qualquer lugar do planeta, expulsas sempre para mais além?
O estudo do conceito de sertão, lugar assim nominado pelos portugueses,
considerado essencialmente brasileiro, suscita essas e inúmeras outras questões. Termo
recorrente no imaginário da sociedade brasileira, utilizado no "Brasil" desde a chegada
dos portugueses, sertão continua presente no ideário do País, assumindo tamanha
amplitude de significações e espacialidades que recusa conceituações homogeneizantes
e delimitações espaciais precisas. São diversos os sertões construídos, desconstruídos e
transcriados ao longo do tempo, do norte ao sul do País, através dos mais diversos tipos
de representação: discursos da historiografia, da iconografia, da literatura, da arte
verbal,1 do senso comum, do cinema, da música, da cartografia brasileiras. Tais
discursos constituem fértil matéria para o estudo das significações pelas quais a ideia de
sertão vai sendo preenchida ao longo do tempo e evidenciam o seu perfil espacial
migrante e polissêmico.
A ideia de sertão é bastante difundida. O conceito, entretanto, é muito estudado
apenas do ponto de vista físico-biológico, um sertão originário de classificações
fisiográficas nas quais são incluídos alguns domínios morfoclimáticos brasileiros. Há
uma tradição de estudos2 que concebe convencionalmente o sertão como região
1
JAKOBSON. Lingüística e comunicação.
2
Dos mais antigos aos mais recentes, para citar apenas alguns: SAINT-HILAIRE. Viagem pelas províncias do Rio de
Janeiro e Minas Gerais (1818). ABREU. Capítulos de história colonial (1907); IBGE. Tipos e aspectos do Brasil (1966);
IBGE. Geografia do Brasil (1967); VIGGIANO. Itinerário de Riobaldo Tatarana (1974); RIBEIRO. História
10
ecológica do sertão mineiro e a formação do patrimônio cultural sertanejo (2000); RIBEIRO. Florestas anãs do sertão:
o cerrado na cultura de Minas Gerais (2005); RIBEIRO. Lugar desertado: o cerrado na cultura de Minas Gerais
(2006); GARCIA. O sertão e a cidade: o sertão de Guimarães Rosa 50 anos depois (2007); MELO. Evolução das
veredas sob impactos ambientais nos geossistemas planaltos de buritizeiro/MG (Tese de doutorado, 2008); Sertão de
Minas. Disponível em: <www.sertoes.art.br>. Acesso em: 13 fev. 2011.
3
MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: A Terra; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: O Homem I: do pré-homem à
revolta; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: O Homem II: da revolta ao trans-homem; MARTINEZ CORRÊA. Os
Sertões: A Luta: primeira parte – 1a, 2a. e 3a expedições + Rua do Ouvidor; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: A
Luta: segunda parte – O desmassacre.
11
4
ROSA. Grande sertão: veredas.
5
Optei pelo uso do termo espaço, no lugar de espaço geográfico, por considerar que o conceito de espaço, físico-social,
abrange o campo da geografia e o ultrapassa.
12
6
SANTOS. Para uma sociologia das ausências e para uma sociologia das emergências.
7
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade; HISSA (Org.). Saberes
ambientais: desafios para o conhecimento disciplinar; HISSA (Org.). Conversações: de artes e de ciências.
13
a relação dialética entre os conceitos de lugar e mundo assume também no texto uma
dimensão fundamental para o debate.
O primeiro capítulo da tese, Relevo de palavras, em três ensaios iniciais, tem o
objetivo de refletir sobre alternativas de abordagem das questões socioespaciais. Essas
alternativas consistem na incorporação de discursos ficcionais como parte do corpus
argumentativo do trabalho. Para isso, as relações entre ciência e arte, geografia e
literatura são estudadas tomando como base o exercício da ecologia de saberes8 e os
espaços de fronteira entre conhecimentos e saberes e entre saberes.9 Ambos os conceitos
pressupõem contatos, traduções, transcriações entre saberes científicos e, também, entre
saberes científicos e não-científicos.
No segundo capítulo, abordam-se brevemente os conceitos de paisagem, lugar e
território em três ensaios reunidos sob o título O palimpsesto espacial. Para tratar dos
processos de transformação do espaço-mundo, toma-se o espaço como um palimpsesto
cujo corpo se faz de camadas diversas de grafias, compreendidas tanto como as
alterações físico-sociais experimentadas por ele, espaço, quanto pelos discursos diversos,
das diversas literaturas e artes verbais, das ciências e do senso comum que representam
essas alterações. Assim como são inscritas num determinado momento, tais grafias são
continuamente expostas a rasuras, ou seja, são invariavelmente raspadas para dar lugar a
novas grafias na superfície-espaço. No palimpsesto, entretanto, a sobreposição das
diversas e distintas grafias, em tempos diversos, não representa a supressão completa da
grafia anterior, pois o processo de “raspagem”, rasura das superfícies, não é absoluto.
As camadas de grafias que compõem o palimpsesto espacial são esgarçadas como
resultado da heterogeneidade típica do espaço. O esgarçamento dessas camadas permite
a coexistência e o contato de superfícies mais antigas com as mais contemporâneas. Na
8
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
9
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade; HISSA (Org.). Saberes
ambientais: desafios para o conhecimento disciplinar; HISSA (Org.). Conversações: de artes e de ciências.
14
mais recente superfície, emergem sempre traços diversos das escritas anteriores, grafias
que resistem ao processo de raspagem, transcriando-se em diferentes temporalidades.
Não há superfícies imunes aos esgarçamentos, que deixem de pôr à mostra as diferentes
memórias e grafias dos sujeitos ao longo do tempo, da história. Mesmo nos trechos em
que a raspagem é completa, resta na memória dos lugares (nos sujeitos) imagens que já
não estão na superfície mais recente. As mais recentes superfícies constituem, desse
modo, um todo heterogêneo, um mosaico de formas, funções e fluxos de diferentes
tempos e espécies que permitem tanto a permanência de velhos sertões quanto o
surgimento de novos lugares-sertão.
O terceiro capítulo, o último, trata do que se denomina uma Cosmologia do
sertão, que consiste no estudo do conceito de sertão, partindo das imagens do romance
Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956. Imagens, dentre
tantas outras, de tantos outros sistemas semióticos (artes verbais, cinema, música etc),
motivadoras da pesquisa de um conceito de sertão e especialmente da proposta de sua
ampliação. Trata-se do estudo de um conceito que se faz no contato com as
representações da ciência, da arte verbal, do senso comum e das literaturas de diversos
países sobre um sertão nomeado e um sertão não nomeado que este trabalho procura
nomear. Do primeiro grupo fazem parte textos de escritores, como, por exemplo,
Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Jotacê Freitas. Dos
sertões não nomeados fazem parte textos de poetas, contistas e romancistas
contemporâneos brasileiros, palestinos, afegãos e africanos, como, por exemplo,
Manoel de Barros, Cândido Rolim, Rubem Fonseca, Mahmoud Darwish, Atiq Rahimi
e Mia Couto, dentre muitos outros. Todos presentes no caderno Uma cosmologia do
sertão, segundo volume da tese. A partir da leitura dessas imagens, propõe-se a
ampliação do conceito de sertão para além das significações construídas ao longo da
história do País, contemplando paisagens específicas dos lugares-sertão dispersos em
várias partes do mundo.
15
10
ROSA. Grande sertão: veredas.
11
HISSA. Territórios de diálogos possíveis.
RELEVO DE PALAVRAS
17
12
CALVINO. Todas as cosmicômicas.
18
13
BARROS. Retrato do artista como coisa. Toda poesia é feita da desconstrução, sobretudo, da linguagem. Em toda a
obra de Manoel de Barros, entretanto, a construção da poesia e do pensamento pelo -des ganha um estatuto especial.
14
CÍCERO. Guardar e outros poemas, p. 23.
19
É preciso que o sujeito abrigue de beleza a palavra para ouvir sua linguagem de
fonte, seu grito de eureca,15 sua voz compartilhável, sua potência de fazer, construir.
Abrigar de beleza a palavra, longe de edificar-lhe uma morada, de fechá-la em um
lugar-texto ou campo de conhecimento específico, é cuidar para que ela se faça
pertencer de poesia. Deixar que a palavra pertença, confinada à ficção ou à ciência,
como se houvesse mesmo, necessariamente, uma palavra da arte e uma palavra da
ciência, é abrigá-la de abandono, de incomunicabilidade. Por que não poderia ser o
belo verdadeiro? O que é o verdadeiro senão as imagens que diariamente fazemos
desfilar aos nossos olhos, do modo múltiplo como as percebemos, lemos,
interpretamos, traduzimos, transcriamos?
A ciência moderna, especialmente no século XIX, quando se desdobra em campos
disciplinares específicos, elide o sujeito do objeto sob estudo, em nome de uma suposta
verdade isenta de parcialidade, a partir da qual ela se define e se afirma como ciência. O
cientista seria, desse modo, o sujeito capaz de controlar a sua posição social, cultural,
política. Como se fosse possível extrair o sujeito e a subjetividade da linguagem e da
língua, através das quais se fazem, necessariamente, também, as ciências.
Da mentalidade fortemente cientificista do século XIX, não escaparam nem
mesmo as artes plásticas e a literatura, com sua Escola Realista de ler o mundo. Com
15
TAVARES; HISSA. De arte e de ciência: o golpe decisivo com a mão esquerda. Entrenotas.
20
16
Princípio que se manifesta, de modo geral, na incorporação, cooptação, assimilação, destruição física, material,
cultural e humana. Utilizo esse termo, criado por Boaventura de Sousa Santos (Para além do pensamento abissal: das
linhas globais a uma ecologia dos saberes), como alternativa ao termo colonialismo, por considerar que o seu sentido
abrange tanto as relações coloniais do passado, quanto as contemporâneas, estendendo-se ainda para além delas.
21
A consciência de que não nos conhecemos, ao mesmo tempo em que nos assujeita,
confirma em nós a condição de sujeitos inalienáveis, certamente múltiplos, representados e
revelados pela linguagem em sua condição eminentemente simbólica. O que dispensaria a
mediação da linguagem? Ao erigir para si uma torre pretensamente refratária à
subjetividade, à parcialidade, à proximidade e ao contato, a ciência moderna criou
também uma língua distinta da língua das artes e de todos os demais saberes, por isso não
participou do debate sobre o mundo sob representação. Línguas intraduzíveis, torre de
babel. Em contrapartida, neste tempo em que assistimos à radicalização da modernidade,
assistimos também finalmente à emergência de uma transição paradigmática.18
Na contramão da racionalidade imposta pelo pensamento da ciência moderna,
seria a liberdade da criação, da criatividade, da imaginação19 a ponte a transpor o
abismo dos limites pretensamente racionalizantes do texto, a transformá-los em
fronteiras, lugares de contato.
Nos ensaios que compõem este trabalho serão utilizados os conceitos de limites
e de fronteiras na acepção concebida por Cássio Hissa. Para o geógrafo, enquanto o
limite separa, a fronteira, contendo o limite, é abertura, extensão do limite, espaço
potencial de atravessamentos, transitividades, travessias:
17
KEHL. O tempo e o cão, p. 21.
18
Ao afirmar que estamos no fim de um ciclo de uma ordem científica hegemônica, Boaventura de Sousa Santos
caracteriza essa ordem, traça os sinais da crise de sua hegemonia e, ainda, o perfil de uma nova ordem científica
emergente (SANTOS. Um discurso sobre as ciências).
19
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade.
22
20
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 35-36.
21
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 134.
22
PERRONE-MOISÉS. Flores da escrivaninha: ensaios, p. 13.
23
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio.
23
24
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio.
25
Um dos feudos da dinastia Zhou (1100-221 a. C), que mudou de nome para reino de Wei, um dos Três Reinos
(N. do T.).
24
26
CAPARELLI; SCHMALTZ. O uso das metáforas, p. 133.
25
Traduções, transcriações,
transculturações do espaço
27
BARTHES. Oral/escrito, p. 38.
28
SANTAELLA; NÖTH. Imagem: cognição, semiótica, mídia, p. 15.
26
29
SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 80.
30
ORTEGA Y GASSET. Meditações do Quixote, p. 68.
27
Eu não acho que seja pelo olho que entram as coisas minhas. Elas não
entram. Elas vêm. Elas aparecem de dentro. Não entram pelo olho. O
olho vê, a lembrança revê as coisas, e é a imaginação que transvê, que
transfigura o mundo, que faz outro mundo para o poeta, para o artista
de um modo geral. A transfiguração é que é a coisa mais importante
para o artista.33
O espelho: metáfora do olhar, das imagens que cada sujeito se dispõe, se propõe
ou se dá a ver e a partir daí, a dizer, a enunciar, a ler, a interpretar, a traduzir. Italo
Calvino nos lembra que Perseu vence a temerosa figura da Medusa, contemplando-a
em seu escudo de bronze,34 ou seja, através do espelho: “[...] é sempre na recusa da
visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de
monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e
assume como um fardo pessoal.”35 Em um outro momento da narrativa, podemos ver
o herói levando consigo, oculta dentro de um saco, a cabeça da Medusa, da qual
frequentemente lança mão como arma no embate com os outros que encontra ao longo
31
AUMONT. A imagem, p. 18.
32
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 42.
33
JANELA da alma.
34
Escudo que lhe fora dado por Athena, deusa da sabedoria.
35
Seis propostas para o próximo milênio, p. 17.
28
36
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos.
37
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 97.
29
discurso, o modo como o narrador traduz para si a diferença entre "o seu mundo" e o
mundo outro, que se propõe a narrar:
38
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 229.
39
PAZ. Tradução: Literatura e literalidade, p. 9.
30
40
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 230.
41
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 232.
42
BENJAMIM. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 201.
31
43
Conceito elaborado por Haroldo de Campos (Transluciferação mefistofáustica) para se referir à tradução criativa,
aquela que não se submete servilmente ao conteúdo, mas, antes, o trata como bastidor semântico da coreografia,
ocupando-se, especialmente, da forma significante.
44
PAZ. Tradução: Literatura e literalidade, p. 9.
45
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos.
32
46
JAKOBSON. Lingüística e comunicação.
47
Toda a obra de Milton Santos, Paulo Freire, Edgar Morin, Boaventura de Sousa Santos, Cássio Hissa, Carlos
Walter Porto-Gonçalves, Walter Mignolo, dentre muitos outros.
48
MORIN. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 90.
33
49
MORIN. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 91-92.
50
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 285.
51
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 285.
52
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 288-289.
34
53
SANTOS. A universidade do século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade, p. 76.
54
A sociologia das ausências opera identificando experiências sociais produzidas como ausentes, de modo a promover
movimentos que as torne presentes, possíveis, emergentes.
55
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 124-125.
35
56
SANTOS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
57
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, p. 61.
58
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 72.
36
Epistemologias de fronteira
59
SANTOS. Por uma geografia nova: da crítica à geografia a uma geografia crítica, p. 126.
60
MORIN. Ciência com consciência.
61
NOVAES. O homem máquina: a ciência manipula o corpo; NOVAES. Mutações: ensaios sobre as novas
configurações do mundo; NOVAES. A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações;
NOVAES. Mutações: a experiência do pensamento.
62
OLIVEIRA. O que Poincaré sussurrou a Valéry, p. 390.
37
63
HISSA. Saberes ambientais: a prevalência da abertura, p. 47.
64
SANTOS. A Gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 107.
65
SANTOS; MENESES. Prefácio, p. 11.
38
66
Metáfora muito utilizada por diversos pesquisadores, como, por exemplo, Milton Santos, na elaboração do
conceito de paisagem (Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia), David
Harvey, na compreensão da cidade contemporânea (Espaços urbanos na aldeia global: reflexões sobre a condição
urbana no capitalismo do final do século XX), Gérard Genette, na elaboração do conceito de transtextualidade
(Palimpsestos).
67
BOSI. Memória e sociedade: lembranças de velhos.
40
68
A palavra é utilizada aqui no sentido de traços, sinais, fragmentos de letras obliteradas.
69
HISSA; MELO. O lugar e a cidade: conceitos do mundo contemporâneo, p. 297.
70
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
71
HISSA. As cidades das cidades.
41
demais conceitos que buscam compreender o homem e sua vida. Todos os conceitos
são dinâmicos, processuais, da ordem do movimento, da mutação, já que o espaço é
dinâmico, assim como a vida.
Muito se discutiu a respeito da velocidade das transformações tecnocientíficas e,
por extensão, econômicas e culturais da contemporaneidade que, ao promoverem com
seus fluxos de alcance mundial o encurtamento das distâncias através da
instantaneidade das informações, seriam capazes de comprimir tempo e espaço.
Coberto por uma película que se impõe como global, o mundo emergiria por meio de
processos contemporâneos associados à transnacionalização da economia. Decorrem
daí, por um lado, interpretações que procuram compreender os lugares, os territórios,
as regiões, as paisagens como subordinados ao processo de homogeneização: a
uniformização de valores e comportamentos conduzindo ao pensamento único72
ameaçaria as identidades das culturas local, regional, nacional, decretando a morte da
tradição. Por outro lado, as transformações experimentadas pelo mundo dos lugares e
dos territórios são enaltecidas por um discurso hegemônico como extraordinárias,
porque capazes, entre muitas proezas, de suprimir os limites do tempo e do espaço.
Diante da comunicação verbo-visual em “tempo real,” a aproximação dos lugares, dos
indivíduos, das populações e, hipoteticamente, a elevação do padrão de vida pela
facilidade de acesso aos produtos, criou-se a imagem da globalização total a partir,
apenas, da globalização econômica, que se manifesta, de fato, como
transnacionalização do capital financeiro. Como se o mundo pudesse se tornar acessível
a todos.
Tal discurso constrói a ideia de mundo como fábula,73 como nos mostra Milton
Santos, ocultando a perversidade da globalização tal qual ela se apresenta de fato, que
72
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
73
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
42
74
SANTOS. A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção, p. 203.
43
O mundo inteiro poderá mesmo ser visto como uma ficção. Mas isso
também valerá para a cidade inteira, o lugar inteiro, o território inteiro.
Há recortes de mundo no interior do corpo do mundo. Do mesmo
modo, há recortes de lugar, de cidades, assim como recortes de território
no interior do corpo do território.76
75
SANTOS; HARAZIM. O mundo não existe.
76
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 37.
77
As cartografias omissas não são constituídas de lugares omissos, mas sim, por lugares que foram omitidos, obliterados,
rasurados, em parte, por territórios hegemônicos. Os territórios hegemônicos produzem as cartografias mais visíveis
do que chamamos mundo.
78
A atopia será tratada no próximo capítulo.
44
79
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
45
80
SANTOS. O retorno do território, p. 19-20.
81
SANTOS. Os processos da globalização, p. 74.
82
SANTOS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
83
“Uma das armadilhas da globalização neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinção entre o local e o
global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia [...]. Ao nível dos processos
transnacionais da economia à cultura, o local e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda [...]”
(SANTOS. Os processos da globalização, p. 73)
46
84
SANTOS. Prefácio, p. 13.
85
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
47
Cartografias omissas
Mapas omissos
86
DEBORD. A sociedade do espetáculo.
48
constituindo rugosidades. As favelas que emergem dos interiores das valorizadas (do
ponto de vista do mercado) zonas-sul das grandes cidades são uma caricatura, um
detalhe dessa cartografia. Essas rugosidades representam limites às tradicionais clivagens
ideológicas dicotômicas, arquétipos espaciais do subdesenvolvimento,87 tais como, centro e
periferia, cidade e campo, Norte e Sul. Ao se inscreverem ao longo dos mapas imperiais
transnacionais do capital financeiro, ainda que invisibilizadas por esses mapas, as
cartografias omissas representam também a crise ou a necessidade de transformação dos
ideais de vida impostos pela modernidade, na contemporaneidade, radicalizada.
O cenário de radicalização da modernidade se faz sentir de forma cada vez mais
intensa através da consolidação da lógica capitalista mundial alimentada pela
transnacionalização da economia e pela implementação em larga escala da política
neoliberal. Prática que reafirma a livre iniciativa, promove, sob o signo do
desenvolvimento e suas metas suspeitas, a apologia do mercado, e impõe o embuste do
Estado mínimo. Os Estados Nacionais reduzem a sua regulação, as suas funções sociais,
para se aliar às agências de fomento do capital financeiro internacional, como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, no fortalecimento desse capital. Grandes
empresas a serviço do capital financeiro “exercem” cada vez mais a regulação social no
lugar do Estado. Privatiza-se gradativamente a vida privada, com o domínio de serviços
básicos, como, por exemplo, a saúde, nas mãos de pequenos grupos de grandes
empresários. Como resultado de toda essa política, se vê uma mundialização
intensamente desigual do mercado, com a crescente submissão dos países mais pobres
às exigências do capital financeiro, a injusta distribuição dos benefícios da tecnologia e
da produção e divulgação do conhecimento. E, ainda, a ampliação das desigualdades
sociais e da degradação ambiental, o surgimento e a valorização de um imaginário
social consumista e individualista e a mercantilização das relações sociais, esses dois
87
MUSSSET. De Lênin a Lacoste: os arquétipos espaciais do subdesenvolvimento.
49
últimos muito bem distribuídos entre os mais diversos grupos sociais. O mercado
atravessa todos os tipos de lugares, produzindo e estimulando o consumo em toda
parte: mesmo os lugares pouco conectados às redes transnacionais de mercado
experimentam explicitamente transformações radicais em suas paisagens. Os modos de
vida, em geral, são compreendidos e exercitados como modos de ter. A informação e o
consumo se transnacionalizam, produtores e produtos da unicidade da técnica, do tempo
e do motor da vida econômica e social,88 bases materiais do pensamento único imposto
pela globalização econômica.
Mas, tal como nos mostra Milton Santos,89 apesar da perversidade a partir da
qual se distribuem no mundo os avanços da técnica e da ciência, parte desses avanços
chega inadvertidamente aos grupos sociais menos favorecidos, fornecendo-lhes bases
para a criação de territórios de cidadania fundados em outras racionalidades. Ao
atravessar diferentes lugares e territórios, o mundo do mercado distribui seus produtos
por toda parte. A informação e o consumo não são mais privilégio de um único grupo
social. Emergem pelo mundo movimentos contrários ao globaritarismo,90
instrumentalizados pela próprias novas formas de produção e consumo. As músicas de
protesto dos rappers, divulgadas em clipes, DVDs e CDs de produção doméstica, a sua
ocupação de espaços urbanos, através do movimento hip-hop, são apenas alguns
exemplos de possibilidades de construção de territórios de afirmação política e
econômica de grupos sociais menos favorecidos. Territórios alternativos àqueles que se
impõem como únicos, globais, hegemônicos, nas mais diversas escalas. Cria-se, assim,
uma tensão permanente de valores de produção da vida entre os lugares
hiperglobalizados economicamente e aqueles menos “globalizados,” constituindo
88
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
89
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
90
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
50
Nas atuais condições da globalização, a metáfora proposta por Pascal parece ter
ganho realidade: o universo visto como uma esfera infinita, cujo centro está em
toda parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes
repetida, segundo a qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia... Como
nos lembra Michel Serres, “[...] nossa relação com o mundo mudou. Antes, ela
era local-local; agora é local-global [...] Recorda esse filósofo, utilizando um
argumento aproximativamente geográfico, que “hoje, temos uma nova relação
com o mundo, porque o vemos por inteiro. Através dos satélites, temos imagens
da Terra absolutamente inteira.”
Milton Santos
Todo conceito é datado pela história da cultura. O objetivo neste estudo não é
traçar uma historiografia dos conceitos de paisagem, lugar e território, recuperando as
várias significações que lhe foram atribuídas ao longo do tempo, mas refletir sobre eles
a partir de pensadores contemporâneos, como, por exemplo, Milton Santos. Este
estudo também não pretende apresentar definições dos referidos conceitos (que até
mesmo podem se rivalizar), fornecendo-lhes contornos precisos, mas apenas discuti-los
91
CAPEL. Filosofia y ciencia en la geografía contemporánea: una introducción a la geografía.
92
MELO. Paisagem e simbolismo, p. 30-31.
53
a partir de uma outra ótica, a das suas relações, de modo a construir algumas
referências a partir das quais se aborda a temática central desta pesquisa.
Milton Santos propõe que se pense o espaço como “um conjunto indissociável
de sistemas de objetos e de sistemas de ações”93, ou como um sistema de fixos e fluxos.94
Os objetos são compreendidos como o resultado das interferências e realizações
materiais do homem e das sociedades no espaço ao qual se costuma designar
“natureza,”95 ou seja, as interferências produzidas pelo trabalho, a partir do
desenvolvimento da técnica. São os instrumentos de trabalho e as forças produtivas, os
fixos, ou seja (num determinado momento histórico), pontes, portos, edifícios,
rodovias, fábricas, hospitais, indústrias etc. O sistema de ações (ou de fluxos) pode ser
pensado como a diversidade de relações que os homens estabelecem entre si, os
eventos,96 mediados pelo sistema de objetos. Os dois sistemas, o de fixos e o de fluxos,
encontram-se permanentemente em interação: a existência de um implica a do outro; o
fortalecimento de um implica o do outro. Ambos dizem respeito ao espaço que se
produz e que, utilizado pelas sociedades, concede existência aos territórios habitados.97
O espaço pode ser compreendido como uma espécie de categoria-matriz,98
simultaneamente continente e conteúdo, uma vez que contém as demais categorias e ao
mesmo tempo é contido por elas. Do espaço, podem-se derivar a paisagem, o lugar, o
território, a região, que se concebem numa relação sistêmica, o que não significa que
essas categorias não possam receber abordagens específicas. É certo que se pode, para
determinadas finalidades interpretativas, abordar isoladamente cada uma delas. Essa
93
A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 21.
94
Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 77.
95
Através dos processos de mercantilização do mundo, cujo marco inaugural é a modernidade ocidental do século
XVI, exteriorizamos progressivamente de nós a natureza a fim de mercantilizá-la, mercantilizando-nos. Na
modernidade radicalizada, esses processos se intensificam a partir da transnacionalização do capital financeiro.
96
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 86.
97
SANTOS. O retorno do território.
98
HISSA. Categorias geográficas: reflexões sobre sua natureza.
54
iniciativa é realizada com frequência, e o mais rotineiro é que assim se faça. Mas, como
observa Milton Santos,99 todas essas categorias se referem a um convergente universo
teórico e tal situação merece ser considerada: é o que interessa ao presente estudo.
Todos os lugares têm as suas paisagens, referem-se a determinados territórios,
estão inseridos em regiões. Todas essas categorias derivam de processos históricos,
culturais, políticos, econômicos, e, também, biológicos, físico-químicos que se
atravessam, constituindo mundos de caráter complexo. Feitos da mesma “matéria” – o
espaço – tanto a paisagem, quanto o lugar, o território e a região constituem-se de
formas, funções e fluxos em permanente processo de mutação. Os objetos (elementos
artificiais) produzidos pelos homens, assim como os elementos naturais, são dotados de
formas e funções, continuamente metamorfoseadas pelo desenvolvimento do sistema
técnico ao longo do tempo, pela ação dos fluxos e suas lógicas de produção do espaço,
pela cultura e suas subjetividades. Desempenham funções capazes de criar novas
formas, enquanto outras permanecem, com novas funções ou não.
Refletindo sobre a paisagem, Milton Santos escreve:
99
Território e sociedade: entrevista com Milton Santos.
100
SANTOS. Pensando o espaço do homem, p. 53-54.
55
Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem.
Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista
abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores,
movimentos, odores, sons etc.101
Para que possamos ver, entretanto, a paisagem como algo aparentemente fora de
nós, vemos com os nossos olhos, feitos da nossa história e da nossa subjetividade que,
por sua vez, estão inseridas no mundo das histórias e das subjetividades coletivas. A
paisagem está fora e, simultaneamente, dentro de nós (imagens históricas, interiores),
tais como as percebemos pelos sentidos. Fernando Pessoa102 complementa:
101
SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 61.
102
Esses apontamentos sobre a paisagem, embora não tenham sido assinados, foram atribuídos a Fernando Pessoa, e
publicados pela primeira vez na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa.
56
uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva − e,
também a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma − é de
todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na
ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim.103
103
PESSOA. O eu profundo e outros eus: seleção poética.
57
O palimpsesto: não apenas a paisagem, mas todo o espaço pode ser lido a partir
dessa imagem. Milton Santos complementa:
104
SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 66.
105
SANTOS. Pensando o espaço do homem, p. 54.
106
SANTOS. O retorno do território.
58
107
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 67.
59
domínio da natureza. O mesmo, invertido, pode ser dito sobre o ambiente na cidade, à
física dos olhares desatentos frequentemente esvaziado de natureza.
A mais recente camada do palimpsesto espacial é predominantemente mundial e
citadina. “Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos,”108 a
metrópole atrai e acolhe os sujeitos expulsos do campo e das cidades médias, pela
modernização da agricultura e dos serviços. A diversidade socioespacial produzida por
esses fluxos no contato com os já presentes evidencia a diversidade de lugares e
territórios que se produzem em todo o tecido urbano que constitui a metrópole.
Para Milton Santos, há lugares globais simples e lugares globais complexos.109 Os
primeiros acolhem parte dos vetores das forças hegemônicas globais sem oferecer
resistência, enquanto os segundos, que coincidiriam com as metrópoles, representam
simultaneamente forças acolhedoras e refratárias às lógicas unívocas de pensamento,
economia e comportamento que se impõem como hegemônicas.
Nesses termos, a metrópole assume, com seus múltiplos lugares, com sua
diversidade cultural, a condição de “o mais significativo dos lugares,”110 já que produz
em seu corpo lugares e territórios dos mais diversificados tipos e temporalidades:
condições de realização do espaço banal, espaço de todos os objetos e de todas as ações,
em que “todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organização
social podem aí se instalar, conviver, prosperar.”111
Na metrópole, são mais numerosos os pobres, homens lentos,112 sujeitos a quem
certa mobilidade mercantil foi negada, levados por isso mesmo a transcriar o seu
cotidiano, fabricando territórios alternativos de economia e de vida, cujos “parâmetros
são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização
108
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 323.
109
SA NTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
110
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 322.
111
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 322.
112
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 325.
60
113
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 339.
114
SANTOS. O retorno do território, p. 139.
61
Assim, o papel do território dos homens lentos ou dos homens do Sul ou, ainda,
o papel dos sertões do mundo assume uma dimensão fundamental na reflexão sobre os
processos contemporâneos associados às possibilidades de transformação social. Sertões,
mundos do sul, mundo dos homens lentos, esses mundos, no confronto com o corpo
mercantil de mundo, do qual também fazem parte, mostram-se frequentemente,
entretanto, capazes, na diversidade e na adversidade, de produzir novas possibilidades
de utilização do território ou manter algumas tradicionais adaptadas ou não. Esses
mundos criam, portanto, férteis territórios de utopias:
115
RIBEIRO; MILANI. Compreendendo a complexidade socioespacial contemporânea: o território como categoria de
diálogo interdisciplinar, p. 26.
116
SANTOS. O retorno do território, p. 137.
62
117
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 326.
118
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, p. 114.
119
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, p. 114.
120
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
UMA COSMOLOGIA DO SERTÃO
64
O lugar-sertão em Rosa
121
Manoel Tavares de Sá, Francisco Leobas de França Antunes, João Brandão, Antônio Dó, Horácio de Matos e
Rotílio da Manduca, segundo Wille Bolle (grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 105-106).
122
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 82.
123
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 70.
65
recria o sertão a partir da mistura de uma geografia, uma história e uma língua “reais” e
ficcionais.
É claro que é possível dizer que a história relatada por Riobaldo se passa
aproximadamente entre o fim do século dezenove e o início do século vinte, já que o
seu relato retrata o apogeu e a decadência da jagunçagem. Também é possível afirmar
que o espaço abordado no romance abrange os estados de Minas Gerais (eixo centro-
norte), Goiás e Bahia. Há algumas marcas desse tempo-espaço no texto. Muitos
autores fizeram cuidadosos estudos desse espaço,124 inclusive representando-o através
de mapas. Entretanto, neste trabalho, defende-se a ideia de que a “camuflagem” do
tempo-espaço,125 realizada por Guimarães Rosa, através do personagem-protagonista
Riobaldo, é mais uma estratégia do romancista para traduzir a ideia, presente em todo
o texto, de que o sertão não é passível de mapeamento, de localização exata, precisa.
Sua complexa natureza não pode ser apreendida por cartografias convencionais.
Já na página de abertura do romance, surge a ideia da controversa localização do
sertão:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado
sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,
124
VIGGIANO. Itinerário de Riobaldo Tatarana; BOLLE. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil.
125
Riobaldo não faz referências à cronologia de suas deambulações a não ser a partir de pequenas indicações, às vezes
vagas, como, por exemplo, ao se referir à certidão de nascimento do personagem Diadorim, quando diz que consta do
documento “[...] um 11 de setembro da era de 1800 e tantos...”(ROSA. Grande sertão: veredas, p. 535). Encontra um
velho que falava “[...] no tempo do Bom imperador.” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 458). Entretanto, era
homem “[...] no sistema de quase-doido [...]”(ROSA. Grande sertão: veredas, p. 458). Refere-se à construção de uma
estrada de ferro que passaria no Curralinho, atual Corinto, “[...] em breves tempos [...]” (ROSA. Grande sertão:
veredas, p. 106). Waldemar Barbosa (Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais) nos informa que a Estrada de
Ferro Central do Brasil foi inaugurada em Corinto em 20 de março de 1906. Em dois momentos, Riobaldo se refere
mais claramente ao fim do século XIX, quando relata a tomada de todos os portos de Januária e Carinhanha “[...] nas
eras do ano de 79” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 94), chefiada pelo Neco, Manoel Tavares de Sá, figura histórica
que atacou essas cidades em 1879 (BOLLE. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 105); e quando
menciona o ataque à cidade de São Francisco “nas eras de 96 [...]” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 143) chefiado
por Andalécio e Antônio Dó. Esse último também personagem histórico, segundo Wili Bolle (grandesertão.br: o
romance de formação do Brasil, p. 106).
66
126
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 61.
127
Acepções pesquisadas por Nilce Sant’Anna Martins (O léxico de Guimarães Rosa, p. 172) ao estudar a linguagem e
o vocabulário do romance Grande sertão: veredas.
128
MARTINS. O léxico de Guimarães Rosa, p. 23.
67
Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa [...].”129 De
modo específico, como parte do todo nominado como sertão: “Joaquim Beiju,
rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente [...].”130 Como paisagem/lugar
comum a determinados estados: “Como contam também que nos Gerais goianos se
salga o de comer com suor de cavalo...”131. Como espaço de paisagem desértica, tanto
no sentido de lugar desabitado, quanto árido, e que revela a pobreza:
Paisagem marcada por rios, água em abundância: “[...] eu era Riobaldo, com
meus homens, trazendo glória e justiça em território dos Gerais de todos esses grandes
rios que do poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto Deus
dura!”133 Águas subterrâneas: “O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando
o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra.
O senhor dorme sobre um rio?”134 Águas de chuva: “[...] eles sabem como o Gerais é
espaçoso; como no Gerais tem disso: que, passando noite tão serena, desse de manhã o
desabe de repente daquela chuva...”135 Paisagem de belezas: “Esses Gerais em serras
planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino.”136 Gerais é
também paisagem em que se depara com aquilo que é feio. No Gerais, tudo cabe: “E
129
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 120.
130
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 279.
131
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 438.
132
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 410-411.
133
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 389.
134
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 255.
135
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 496.
136
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 276.
68
por fim viemos esbarrar num lugar feio, como feio não se vê. – Tudo é Gerais... – eu
pensei, por consolo.”137
Francis Utéza assim resume a potencialidade assumida pela imagem dos Gerais
no romance:
137
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 352.
138
UTÉZA. Metafísica do grande sertão, p. 66.
139
Em suas viagens pelos sertões, no contato com sertanejos, à maneira do “senhor”, interlocutor do sertanejo
Riobaldo, Guimarães Rosa anotava, em suas cadernetas, a linguagem, os costumes, as paisagens, enfim tudo que o lhe
despertava interesse na cultura sertaneja. Eram “[...] causos, cantigas, estórias, nomes de pássaros, rios, vegetação”,
conforme nos conta Manuelzão, “Seu” Manuel Nardy, vaqueiro e contador de histórias, entrevistado por Marli
Fantini (Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens, p. 25), que fez uma viagem de condução de boiada com
Guimarães Rosa em 1952.
69
140
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
141
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 344.
142
Outra imagem da imprecisão do sertão, bastante recorrente no texto. Para o norte/noroeste avançou o processo de
urbanização brasileira, no século XIX, rasurando muitos espaços compreendidos como sertões à época.
143
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 94.
144
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 403.
70
Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes
noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se
armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar
comercial de todo valor. Seu Assis Wababa engordava concordando,
trouxe canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei – na
iluzãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o
progresso moderno: e que me representava ali rico, estabelecido.
Mesmo vi como seria bom se fosse verdade.145
145
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 105-106.
146
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 333.
147
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 32.
71
Conclui que o mundo quer ficar sem sertão, quando se lembra de um lugar que
não existe mais, como a Guararavacã do Guaicuí148 que se transformou em
Caixeirópolis. Entretanto, a despeito da “[...] boa estrada rodageira, de Pirapora a
Paracatu, por aí...”,149 que o Governo mandava abrir à época em que Riobaldo contava
a sua história, da presença dos trilhos do trem, dos “bandos bons de valentões que
repartiram seu fim”,150 dos costumes que “demudaram”, da presença da cidade que
“[...] acaba com o sertão [...] Acaba?”,151 muitos lugares permaneciam quase intactos,
indiferentes ao ideal progressista republicano:
Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se
podia ver um carro-de-bois parado, os bois mastigavam com escassa
baba indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto
trabalho, ainda, por causa de uns metros de água mansinha, só por
falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias,
para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é
assim, por borco.”152
148
Segundo Heloisa Starling, “A rigor são múltiplas as referências que entrelaçam Barra do Guaicuí à narrativa de
Grande Sertão: veredas. De pronto, por sua localização geográfica e pelo papel econômico que desempenhou na
margem direita do São Francisco, este vilarejo parece erguer-se sobre as ruínas da Guararavacã do Guaicuí, o lugar
mítico onde Riobaldo aprendeu que o privado não é só privatividade e também comporta uma dimensão única de
felicidade. Além disso, da mesma maneira como a Guararavacã desapareceu, devastada por febres e enchentes, Barra
do Guaicuí cedeu vez à Pirapora, em virtude de sua fama de lugar insalubre, assolado pela maleita, cercado de
alagadiços e sujeito a inundações. Nesse caso, o entrecruzamento com a ficção parece indicar a existência do duplo
espetáculo de ruínas, antigas e, de agora, míticas e históricas, resíduo de lembrança.”(STARLING. Lembranças do
Brasil: teoria política, história e ficção em Grande Sertão: veredas, p. 30).
149
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 18.
150
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
151
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 144.
152
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 85.
153
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 111.
72
154
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 456.
155
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 479.
156
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 165.
157
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 296.
73
coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe,”158 que fala do sertão
ao homem “culto e instruído” da cidade, que, em sua caderneta, anota as palavras do
jagunço: “o sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas
o sertão de repente se estremece dentro da gente...”159
É por conhecer o caráter instável, escorregadio, “[...] grande ocultado
demais...”160 do sertão, por entender que “sertão, – se diz –, o senhor querendo
procurar, nunca não encontra [...]”, e que “de repente, por si, quando a gente não
espera, o sertão vem,”161 conhecimento adquirido sobretudo no contato com
sertanejos, que Guimarães Rosa opta por apresentá-lo “embaiado” através da narrativa
de Riobaldo. Para o professor Willi Bolle:
158
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 70.
159
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 461.
160
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 446.
161
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 335.
162
BOLLE. Grandesertãobr: o romance de formação do Brasil, p. 71.
74
norte. Desde o depois, o do poente mesmo. Com foras e auroras, estávamos outra vez
no público do campo.”163
Rumo ao noroeste, para onde costumam migrar os sertões, como se fugissem do
processo de urbanização iniciado no sudeste, seguem Riobaldo e seu bando de
jagunços, dobrando léguas e léguas:
[...] em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas. As nove. Com
mais dez, até a Lagoa do Amargoso. E sete, para chegar numa
cachoeira Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e
Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor
empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos
lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos.
Subimos. Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras,
agradáveis. As muitas águas.164
163
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 325.
164
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
165
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 134.
166
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
167
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 39.
168
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 40.
75
faltava.”169 Lugar de veredas, “[...] com seus buritis altos e a água ida lambida, donzela
de branca, sem um celamim de barro. Diz-se que lá se pesca, e gordas piabas.”170
Riobaldo é um sertanejo marcado por vários dilemas, como, por exemplo, ser
ou não ser pactuário, amar ou não amar outro homem (que se revela mulher só depois
de morto), matar e não matar, ser jagunço ou fazendeiro. É o lugar em que ele vive, o
sertão, que lhe ensina que as coisas são relativas, dialéticas, que o “[...] mundo é muito
misturado...”171 Sabedoria que ele vai nos mostrando ao longo de sua narrativa: “o
senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz,
sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!”172
Sabedoria que advém da experiência do olhar, da vivência do lugar:
169
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 19.
170
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 483.
171
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 192.
172
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 5.
173
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 4.
174
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
76
visto duas vezes, o Liso do Suçuarão, revela-se, num primeiro momento, “[...] o raso,
pior havente, [...] um escampo dos infernos [...] onde se forma calor de morte [...]”175
Um lugar em que a paisagem só revela o deserto, o ermo, o extremo, o estéril, onde a
ausência de excrementos denuncia a impossibilidade da vida: vazio, chão desvestido,
homogêneo, em que “não se tem onde acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve.”176
Lugar sem água e sem vegetação, em que a excessiva luz assassina, e o céu, “[...] sem o
simples de passarinhos faltantes,”177 tonteia. Síntese do deserto, na primeira tentativa
de travessia, que se revela frustrada, o Liso do Suçuarão se mostra, posteriormente,
como síntese do sertão, com sua multiplicidade de lugares, paisagens, territórios e
significações paradoxais. O que se mostrou, num primeiro momento, como apenas o
escasso, o estéril, o vazio, passa a ser, simultaneamente, o escasso e o farto, o estéril e o
fértil, o vazio e o cheio.
Na primeira tentativa de travessia, os jagunços sobreviventes só não acabaram
“[...] sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas.”178 Na paisagem
monocrômica, homogênea e indiferenciada do deserto, labirinto aberto, cujos
horizontes dizem inesgotavelmente as mesmas linhas, só é possível guiar-se pelas
estrelas. Há que se aprender a linguagem delas. Nessa travessia “[...] nada campiou
viável,”[...] os homens tramavam zuretados de fome [...]”179 Então retornaram,
fustigados pelo poder do lugar:
175
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 25.
176
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 275.
177
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 39.
178
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
179
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
77
Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente
pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo
180
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 38- 42.
181
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
78
sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro
indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é homem, é sua,
dele obediência? Isso, não pensei – mas meu coração pensava.182
182
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
183
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 36
184
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
185
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
79
186
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 448-450.
187
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 432.
80
deserto, já que essa literatura se ocupou sobretudo dos sertões nordestinos. Assim, as
noções de aridez, esterilidade, deserto, ausentes na origem da palavra sertão, foram
sendo, gradualmente, incorporadas, somadas às noções de interior, distante da costa,
sempre presentes nas representações do sertão.188
O sertão se estende para muito além do espaço infértil, pobre, árido e áspero do
deserto. Lugar onde cabem a pobreza, a miséria e a resistência de homens que
sobrevivem “[...] só por paciência de remendar coisas que nem conheciam [...],”189
homens “[...] reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros
dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas [...],”190 “[...] cacundeiros simplórios
desse Norte pobre, [...]”191 o sertão apresenta-se, também, como lugar da riqueza e da
fartura:
188
Essas significações serão tratadas no próximo texto.
189
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 341.
190
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 337.
191
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 127.
192
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
193
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 270.
81
Siruiz”, uma toada tão antiga quanto a povoação e que atravessa toda a narrativa de
Riobaldo, reavivando a sua memória afetiva:
194
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 101.
195
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 253.
82
Recordar a cantiga (a partir da qual passou a fazer versos), ainda durante as suas
deambulações, significava para Riobaldo reviver as díspares sensações que o denso e
também díspar universo sertanejo é capaz de despertar em quem o vivencia: o medo e a
coragem, o amor e o ódio, a delicadeza e a rispidez, a ternura e a vingança, a fantasia e
a “realidade”, a vida e a morte. Um sertão em que “[...] morrer em combate é coisa
trivial [...],”197 pois o sertão “[...] é o penal, criminal [...]198 “O grande sertão é a forte
arma.”199 Sertão de tocaia e de violência, em que homem rasteja feito bicho, por entre
as moitas, “o punhal atravessado na boca,”200 o peito roçando espinhos, “[...] e vem
pular nas costas da gente, relampeando faca.“201 Sertão que exige cautela, pois
Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado
em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao inimigo. Pior são os
que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar –
dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil
demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se
esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de
fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso.202
Sertão de feios lugares: “[...] fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugar feio,
com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo desse vau, a gente pega
uma chapadinha − a Chapada-da-Seriema-Correndo.”203 E também sertão de bonitos
196
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 103.
197
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 241.
198
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 92.
199
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 300.
200
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 178.
201
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 173.
202
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 178.
203
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 218.
83
lugares, e onde não há perigo ao redor: “Mas tem horas em que me pergunto: se
melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não
tinha perigos em vista [...]”204
Sertão de encruzilhadas e escuridão de noites sem estrela, “talentos de lua
escondida,”205 “o surro dos ramos”206 que suscitam a imaginação e a fantasia, criando
deuses e demônios, num sem fim de narrativas orais que povoam, na mesma medida
de importância que o homem, o universo do sertanejo: “o diabo na rua no meio do
redemunho”. Subtítulo do livro e espécie de refrão que atravessa toda a narrativa, todo
o grande sertão, condensando, na imagem do demo, toda a sorte de criaturas
sobrenaturais que povoam os territórios de sertão. Sertão também da pobreza e da
miséria de homens “quase que cada um era escuro de tanto comer só polpa de buriti
[...]”207 e que
[...] viviam tapados de Deus, assim nos ocos [...] Mas por ali deviam
ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas
levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas,
beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas
rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal [...] Como era que
podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam
preparo de pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas,
manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que
estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às
vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e
matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme
podiam viver?208
204
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
205
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 369.
206
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 370.
207
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 337.
208
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 338.
84
Sertão da aprazível “música” dos cavalos que andavam “ao assaz,”209 levantando
poeira e exalando os cheiros do sertão:
209
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 217.
210
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 99.
211
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 122.
212
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 122
213
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 101.
214
Atual Conselheiro Lafaiete (MG), famosa, desde o século XVIII, pela produção de violas (GOULART. Tropas e
tropeiros na formação do Brasil).
215
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 463.
85
adiante, da varanda de ver nuvens.”216 Dos povoados dos negros “[...] que ainda sabem
cantar gabos em sua língua da Costa.”217 Das vendinhas onde se encontra licor de
banana e de pequi. No batente da porta, quase sempre se pode ver uma velha trançando
peneiras e pitando cachimbo218 ou “picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com
muita demora.”219 Sertão de homens lentos, “em tudo, eles gostam de alguma demora.”220
Isolado, ermo, “o sertão nunca dá notícia.”221 Não importa de que espaço-tempo seja o
sertão. “O sertão é uma espera enorme.”222
É por reunir tantas espacialidades, lugares, paisagens e significações distintas que se
pode dizer que “o sertão é do tamanho do mundo.”223 Um lugar migrante, transescalar,
descontínuo, que não se localiza em um único ponto, mas em toda parte, por isso “o
sertão é sem lugar.”224
Sem lugar também por emergir em diversos lugares. Um lugar que apresenta
singularidades − o sertão − mas que por reunir uma diversidade de paisagens, lugares,
territórios e significações, condensa a imagem do mundo, repleta de contrastes,
ambiguidades, paradoxos: “e nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo.”225
Nas belas palavras de Antonio Candido:
216
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 151.
217
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 23.
218
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 204.
219
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 141.
220
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 227.
221
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 267.
222
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 509.
223
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 60.
224
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 310.
225
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 300.
86
sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a
cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade
o Sertão é o Mundo.226
226
CANDIDO. O homem dos avessos.
227
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 83.
228
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 376-377.
229
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 383.
230
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 270.
231
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 527.
87
O sertão não se apreende por objetividades e exatidões. É lugar que não se pode
mapear, definir. É o mundo do subjetivo, do inexato, do cambiante, daquilo que não se
sabe ao certo. O infindável, o interminável, o perigoso, o desconhecido, não apenas no
que diz respeito aos territórios físico-sociais, mas também nos mais recônditos territórios
interiores dos homens: o inconsciente, o eterno devir, aquilo que está continuamente em
elaboração, os territórios da vida, da existência: “viver − não é? − muito perigoso. Porque
ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”232 Sertão é o ∞.233
Infinito: “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas − mas que elas vão sempre mudando.”234
Não se pode saber o que não tem fim, o que está, permanentemente, em
elaboração. Não se sabe o infinito, o interminável do viver, da existência, não se sabe o
infinito do sertão: “sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota,
esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar
remedindo a alegria e as misérias todas...”235
Sertão é fronteira, limite e abertura, espaço do encontro e do confronto de
alteridades diversas e seus territórios. Passagem, transição, transformação. Lugar da
mestiçagem, da mistura, da transculturação: nem Deus, nem Diabo, ambos: “homem
humano”236 em sua infinita e enigmática travessia, a da existência. “As coisas assim a gente
mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite.”237 Não se localiza o sertão,
não se mapeia, não se apreende ao exato, preciso. Antes, se divulga. “Absolutas estrelas!”238
“No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.”239
232
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 517-518.
233
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
234
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 15.
235
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 508.
236
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
237
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 372.
238
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 372.
239
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 531.
88
Canto à cidade
auê
aqui onde foi mato alto senguê
aqui onde foi mina e mato mendê
hoje tudo é cidade onbaro ô sanguê
auê ê ere rê
240
MELO. Canto à cidade.
241
CUNHA. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, p. 718.
242
NASCENTES. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p. 725, citando Maximiliano Maciel e Afrânio
Peixoto; MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p. 187, citando alguns autores.
243
SILVA. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado, p. 693; CARVALHO. Dicionário Prático da Língua Nacional,
p. 98; FONTINHA. Novo Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, p. 1632; CUNHA. Dicionário Etimológico
Nova Fronteira da Língua Portuguesa, p. 718.
244
BARROSO. Vida e história da palavra sertão, p. 12.
245
Diccionario da Lingua Bunda ou Angolense. Nessa obra, na página 235, encontra-se o vocábulo certão definido
como locus mediterraneus. Disponível em: <http://purl.pt/13927/1/>. Acesso em: 17 maio 2011.
89
A palavra sertão já nasce sob o signo da ambiguidade: o mato, para os povos que
habitavam o que seria o continente africano a partir da expansão da Europa Ocidental
ao Novo Mundo, apresenta significado certamente bem distinto daquele atribuído pelo
colonizador europeu. Para os primeiros, é, antes de qualquer coisa, o interior do espaço
em que viviam de acordo com as suas mais diversificadas culturas tribais, o lugar onde,
inclusive, cultivavam à sua maneira a terra. Já ao olhar do colonizador europeu do
século XVI, o mato representa, num primeiro momento, o vazio de humanidade e,
portanto, de cultura, o espaço de terras a serem cultivadas e de seres a civilizar. Forjada
na diferença cultural entre os mundos “africano” e europeu do século XVI, a palavra
vai se constituindo, agregando significados, transmutada inclusive em sua grafia, a
partir do ponto de vista do colonizador português e da violência com que ele fabrica,
com seus pares, esse novo mundo.
O “mundo novo”, espaço desconhecido cuja diferença é traduzida pelo mundo
europeu ocidental do século XVI como negação do mundo humano, constitui-se, desse
modo, como o outro, estranho, não-europeu e, por isso, antípoda, inferior, inculto,
bárbaro e selvagem. Como testemunham, por exemplo, as vastas historiografias e as
literaturas denominadas coloniais, que ainda espalharam seus ecos até meados do
246
BARROSO. Vida e história da palavra sertão, p. 11-12.
90
247
Para citar apenas alguns exemplos, Alfredo de Sarmento, Sertões d’África (1880), Pero de Magalhães Gândavo,
Tratado da Terra do Brasil (1570), Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogo das grandezas do Brasil (1618), Francisco
Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil (1854), Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627), Jean de
Léry, Viagem à Terra do Brasil (1578), Visconde de Taunay, História das bandeiras paulistas (1951). O historiador
Victor Leonardi, em Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, faz um estudo minucioso de
vários desses autores.
248
BARROSO. Vida e história da palavra sertão.
249
SARMENTO. Sertões d’África.
250
BARROSO. Vida e história da palavra sertão.
251
Toda a obra de Spix e Martius, Saint-Hilaire, Richard Burton, Wilhelm L. Von Eschewge, Johann B. Emanuel
Pohl, dentre muitos outros.
91
252
Da povoação, fundada pelos jesuítas, que deu origem à cidade de São Paulo, partiram as primeiras bandeiras em
busca do ouro e do apresamento de índios, rumo à “rica”, “perigosa” e “desconhecida” região das “minas”,
considerada sertão à época.
92
parte de seus habitantes quanto por “olhares de fora”, como sertões. A historiadora
Janaína Amado registrou vários sentidos para a palavra:
253
AMADO. Sertão, nação, região, p. 145.
254
Salvo na poesia da chamada terceira geração romântica a qual pertencem escritores como Castro Alves.
255
ARRUDA. Cidades e sertões, p. 19.
93
por uma oligarquia rural da qual se constituiu a chamada República Velha, essas
políticas viam nesses espaços inexplorados por elas e em seus habitantes, indígenas,256
negros, sertanejos, um obstáculo ao avanço da modernidade, da “civilização”. Os
discursos que legitimaram tais políticas apoiaram-se na ideia positivista de progresso da
qual os territórios denominados sertões representavam a antítese.
A socióloga Lúcia Lippi Oliveira sintetiza as concepções de sertão na literatura
brasileira romântica e realista:
256
Criados para registrar a memória, compondo a história da ideia de nação que surgia, os Institutos Históricos e
Geográficos, contraditoriamente, excluíram os indígenas e africanos da desejada nação forjada por eles (ARRUDA.
Cidades e sertões).
257
OLIVEIRA. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos, p. 71.
94
lugar migra para mais adiante, forjado sempre como um outro, estranho, antípoda,
atrasado e fora da lei.
Os diferentes momentos dos processos de industrialização em nível mundial
fazem nascer uma sociedade urbana que, para muito além desses processos, ganha cada
vez mais complexidade, culminando na urbanização completa da sociedade, prenunciada
por Henri Lefebvre: “o momento em que a problemática urbana prevalecerá
decisivamente; em que a busca das soluções e das modalidades próprias à sociedade
urbana passará ao primeiro plano.”258 A cidade moderna contemporânea se estende
através de diversos canais, sendo visível não apenas na sua tessitura que atravessa
espaços diversos, como, também, nos modos de vida que se misturam às tradições.259
Organiza-se em redes de lugares, territórios que atravessam física e virtualmente
espaços nacionais, conectando-os e integrando-os a redes mundiais. Ao longo dessas
redes transnacionais de cidades, de lugares, inscrevem-se, entretanto, "outras cidades",
outros lugares, não diretamente conectados a essas redes, transcriados pelo cotidiano de
sujeitos a quem continuamente é negado o direito à instituição cidade. Lugares onde o
Estado não chega, associados ainda apenas à selvageria e ao atraso a despeito da
diversidade de vida que apresentam. A urbanização completa da sociedade, tal como
anuncia Lefebvre, é, desse modo, em contrapartida, mais uma das múltiplas
possibilidades de extensão do sertão, visível, mutante, nos interiores do urbano, da
cidade, da metrópole.
De mata exuberante a deserto, tanto no sentido de área desabitada quanto árida,
de cerrado à caatinga, do campo à cidade, a palavra sertão nomeou e nomeia paisagens e
lugares distintos, assumindo uma diversidade de imagens e significações. Não aponta
para um lugar único quando se pensa no lugar apenas como um ponto físico do
258
LEFEBVRE. A revolução urbana, p. 19.
259
LEFEBVRE. A revolução urbana.
95
Atopia, utopia
260
Princípio que se manifesta, de modo geral, na incorporação, cooptação, assimilação, destruição física, material,
cultural e humana.
261
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes.
97
262
Caso, por exemplo, do Saara Ocidental, dominado pelo Marrocos.
98
263
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, p. 31-32.
264
Expressão cunhada por Marc Augé para designar, na supermodernidade, os espaços de passagem, como, por
exemplo, aeroportos, estações de metrô, salas de espera, supermercados e vias expressas.
99
só pode se constituir em lugar através da reinvenção da vida que se faria de fora, através
do movimento de outros sujeitos, de outros grupos sociais na construção de territórios
fundados em um outro pensamento, um pensamento pós-abissal, nos termos de
Boaventura de Sousa Santos.265
Onde houve e há atopia, há também resistência. Nos territórios imperiais, os
quilombos, instituições africanas de origem angolana, constituíram organizados
territórios (políticos, culturais, econômicos) de resistência à atopia imposta pelo modo
de produção escravista. Muitos outros territórios de resistência africana se
manifestaram em outras escalas nos territórios escravistas:
265
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes.
266
NASCIMENTO. O conceito de quilombo e a resistência cultural afro-brasileira, p. 142.
100
267
O cotidiano dessas comunidades permite a prática de uma economia também à base de trocas.
268
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
101
269
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
102
Milton Santos
270
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 9.
104
271
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, 84.
272
Como, por exemplo, os países da Europa do Norte, onde não se veem, na contemporaneidade, relações sociais
fundadas no paradigma da apropriação/violência.
105
Kristeva nos mostra que ao longo da história o estranho em nós é deslocado para
a figura do estrangeiro, o outro, o exterior, desumanizado: aquilo que desejamos
eliminar e que se representa e se apresenta, desse modo, na figura do estrangeiro a ser
socialmente eliminado:
273
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 109.
274
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 160.
106
275
SANTOS. Entrevista, p. 37.
276
SANTOS. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência.
107
Referências
Filmes
DEUS e o diabo na terra do sol [filme]. Direção: Glauber Rocha. Produção: Luis
Augusto Mendes. Intérpretes: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Mauricio do Valle,
Othon Bastos e outros. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. Rio de Janeiro:
Copacabana Filmes, 1964. (115 min), son., p&b.
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