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Universidade Federal de Minas Gerais

Instituto de Geociências

Adriana Ferreira de Melo

Sertões do mundo,
uma epistemologia
volume 1

Belo Horizonte
2011
Adriana Ferreira de Melo

Sertões do mundo,
uma epistemologia
volume 1

Primeiro volume de tese apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Geografia,
Doutorado, do Instituto de Geociências
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Geografia.
Linha de Pesquisa: Teoria, Métodos e
Linguagens em Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Cássio Eduardo
Viana Hissa.

Belo Horizonte
2011

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Agradecimentos

a cinco grandes mestres sobas


sages poetas seresteiros

presentes

nas múltiplas paisagens

passagens
de sertão e neblina

Cássio Hissa, orientador, chef d’orquestre, maestro,


com quem aprendo ciências sociais como uma epistemologia da existência. Como a arte é
imprescindível à vida, na epistemologia da existência, está incluída a arte e, portanto, a liberdade.
Essencialmente da forma, que é aquilo que se diz com liberdade.

Sônia Queiroz,
com quem aprendo desde tempos incontáveis a voz e a letra: a vida.

Maria Teresa Franco Ribeiro,


com quem aprendo a intensidade da força das utopias, dos sonhos, das realidades, seu brilho, sua
luz, materiais e imateriais.

Yollah Venites,
acendedora de sonhos, ou seja, de realidades.

Virgilina de Melo,
ponte no infinito
entre caos e cosmos

À equipe de editores do Pi Laboratório Editorial,


solidários na travessia final, traduzida no cuidado desta Edição.

Aos amigos que trazem brisa fresca, vinho e água.


Num círculo, o centro é naturalmente imóvel; mas, se a
circunferência também o fosse, não seria ela senão um centro imenso.

Plotino
Resumo

A ideia de sertão é bastante difundida nas imagens do senso comum, dos saberes populares, das
ciências, das artes verbais, da literatura, do cinema, das artes plásticas, da música, dentre muitos
outros saberes. O conceito de sertão, entretanto, salvo do ponto de vista físico, é pouco estudado.
As imagens do sertão, dispersas nos mais diversos saberes, nos convidam a observar a
multiplicidade de significações que compõem o conceito. Essa multiplicidade nos estimula a
ampliar o conceito de sertão e a ler e compreender os contemporâneos movimentos do espaço a
partir das imagens desse conceito. Para além das significações construídas nos mais de quinhentos
anos de história do Brasil, o velho sertão não apenas permanece, como também se inscreve no
mundo contemporâneo em múltiplos espaços, surgindo em novas configurações. O espaço é
complexo: múltiplo, heterogêneo, esgarçado, indivisível: rugoso. O sertão se prolifera nos mais
diversos lugares, experimentando e condensando também todas essas características do espaço em
sua totalidade, ao qual chamamos mundo. Como traduziu Guimarães Rosa, o sertão está em toda
parte. Coexiste nos lugares que permanecem intocados pelos processos de modernização e nos
espaços hipermodernizados. Resiste no nome do sertão bravo e surge em lugares nunca antes
denominados sertões. Se na sua origem a palavra sertão foi preenchida por significações do tipo
lugar longínquo, desconhecido, desabitado, isolado, selvagem, bárbaro, incivilizado, a maioria dessas
significações continuam sendo inscritas, na contemporaneidade, não apenas nos diversos lugares
do mundo em que os processos de modernização não chegaram, mas também nos interiores dos
lugares hipermodernizados, como, por exemplo, as favelas das metrópoles e das megalópoles. Para
quem o sertão é o longínquo, o bárbaro, o selvagem, o incivilizado? Do sertão de que tempo-espaço
se fala? Como foi e é construída a ideia de sertão? Quais significações constituem as múltiplas faces
dos espaços que podem ser denominados sertão ou lugares-sertão? A partir do que se denomina
uma cosmologia do sertão, exercício de reflexão teórica sobre o conceito, que se faz no contato com
as imagens de sertão dispersas nos saberes literários, não-literários, nas artes verbais, elabora-se um
exercício teórico, epistemológico, de reflexão sobre alternativas de abordagem das questões
socioespaciais. Essas alternativas consistem em estudar o sertão no âmbito da ciência, neste caso a
geografia, no contato com as representações de todos esses saberes. Investe-se em outro tipo de
ciência, diferente da moderna. Uma ciência que se reinventa e se fortalece a partir da prática de
uma ecologia de saberes, do diálogo que se pode se construir nos diversos espaços de fronteiras entre
saberes: científicos, artísticos, populares, do senso comum etc. Abordam-se, também, os conceitos
de lugar e território, essenciais à argumentação da tese, uma vez que ela se fundamenta na
compreensão do sertão como um lugar-cosmo que, ao emergir em diversas partes, nos permite
refletir sobre territórios de sertões do mundo. Esses territórios, sertões do mundo, são ainda
apresentados como uma alternativa epistemológica para a reflexão dos diversos mundos do
chamado Sul Sociológico, que emergem nas mais diversas escalas, em toda parte.

Palavras-chaves: sertão, lugar, território, sertões contemporâneos, epistemologias, ciências, artes.


Résumé

L’idée de sertão est bien connu dans le domaine de l’imaginaire du sens commun, des savoirs du
peuple, des sciences, des arts verbaux, de la littérature, du cinéma, des arts plastique, de la
musique, entre autres domaines aussi. Le concept de sertão, toutefois, sauf du point de vue
phisique, n’est pas beaucoup recherché. Les images du sertão, dispersées dans les divers savoirs,
nous invite à observer la multiplicité que nous attire à agrandir ce concept et nous invite aussi à lire
et à comprendre les mouvements contemporains de l’espace à partir des images du sertão. Au
delà de signifiants construits pendant environ 500 ans d’histoire du Brésil, le vieux sertão reste et
aussi se produit dans le monde contemporain en multiples espaces, en faisant des nouvelles
configurations. L’espace est complexe : multiple, hétérogène, déchiré, indivisible: ridé. Le sertão se
prolifère dans les lieux les plus diversifiés, en essayant ainsi que condensant toutes ces
caractéristiques de l’espace en sa totalité, auquel on appelle monde. Le sertão est partout, a dit-il
Guimarães Rosa. Le sertão coexiste dans des divers lieux intangibles par le processus de
modernisation ainsi que les endroits hyper modernisés. Il résiste sur le nom sertão brave et il
surgit dans des endroits n’ayant jamais été nommés sertão avant. Si à l’origine le mot sertão a été
pourvu de signifiants tels que lieu, lointain, inconnu, inhabité, isolé, sauvage, barbare, incivil, la
majorité de ces signifiants continue à s’inscrire, dans la contemporain, dans les plus divers lieux
du monde où le processus de modernisation ne sont pas encore arrivés, ainsi que dans les lieux
hyper modernisé, comme cas de figure les bidonvilles des métropoles et des mégalopoles. A qui le
sertão est le lointain, le barbare, le sauvage, l’incivil ? À propos du sertão de quel temps-espace
parle-t-on ? Comment a été construite cette idée de sertão et comment on la construit ? Quelles
sont les significations qui constituent les multiples faces des espaces qui peuvent être nommés
sertão ou lieux-sertão ? A partir de ce qu’on nomme une cosmologie du sertão, l’exercice de réflexion
théorique sur ce concept, que se fait a partir de contact des images du sertão disperses dans des
savoirs littéraires, non-littéraires, dans les arts verbaux, on produit alors un exercice théorique,
épistémologique, de réflexion sur les possibilités d’abordage des questions socio spacieux. Ces
possibilités alternatives consistent à étudier le sertão dans l’ambitus de la science, dans ce cas la
géographie, en ayant un contact avec toutes les représentations de ces savoirs. On se tourne vers
autre type de science qui est différente de la science moderne. Une science que se réinvente et se
fortifie à partir de la pratique d’une écologie des savoirs, du dialogue que peut se faire dans les
divers espaces de frontières entre les savoirs : scientifiques, artistiques, populaires, du sens commun,
etc. On parle aussi sur le concept de lieu et territoire, qui sont essentiels à l’argumentation de la
thèse, vu qu’elle se basée sur la compréhension du sertão comme un lieu-cosmo que au fur et à
mesure qu’il entre dans divers lieux, nous permet de réfléchir sur les territoires de sertões. Ces
territoires, sertões du monde sont encore présentés comme une alternative épistémologique pour la
réflexion des divers mondes de l’appelé Sud Sociologique qui émerge dans les plus variés échelles,
partout.

Mots-clés : sertão, lieu, territoire, sertões contemporains, épistémologies, sciences, arts.


Abstract

The idea of sertão is widely popularized through images of common knowledge, verbal arts,
literature, cinema, plastic arts and music, etc. The concept of sertão, however, except of the point
de view physic, hasn’t been rigorously studied. The images of sertão, constructed within
numerous ways of knowing, require us to observe a multiplicity of meanings of which it is
comprised. This multiplicity stimulates us to widen the accepted concept of sertão and to read
and comprehend the contemporaneous uses of space through the impressions that this concept
brings. The nature of the old sertão remains, not only beyond the meanings which have been
constructed during 500 years of Brazilian history, but also manifested in the contemporaneous
world in multiple spaces, presenting itself in new configurations. The space is complex: multiple,
heterogeneous, strained, indivisible and rugged. The sertão is multiplied on the most different
places, exhibiting and condensing all these characteristics of space in its totality, which we call
world. In Guimarães Rosa’s words, “the sertão is everywhere”. It coexists in places which remain
untouched by modernization and in hypermodern spaces. It persists in the name of sertão bravo
and it comes out in places that were never before called sertões. From the very beginning the word
sertão was imbued with meanings such as faraway, unknown, uninhabited, isolated, savage,
barbarian and uncivilized, and most of these meanings remain today, not only when referring to
places of the world in which modernity hasn’t reached, but also inside hypermodern places, such
as, for instance, the favelas in metropolises and megalopolises. For who is the sertão is faraway,
barbarian and uncivilized? What is the sertão’s space-time that is referred to here? How was, and
is, the idea of sertão constructed? What meanings constitute the multiple faces of spaces which
can be termed sertão? From what is denominated a cosmology of sertão, which is an exercise of
conceptual and epistemological thinking, made through contact with the images of sertão found
within literary, non literary and verbal arts, in alternative approaches to socio-spatial issues. These
alternatives consist of studying the concept of sertão from within the domain of science, in this
case, geography, contacting with representations of all these ways of knowing. We invest in
another type of science, different from modern science. A science that reinvents itself and
becomes stronger through the practice of an ecology of knowing, from the dialogue that can be
built from the various frontier spaces between ways of knowing, such as, scientific, artistic,
popular and common sense. Concepts of place and territory are also studied, which are essential
to this thesis’ argument, which is founded in the comprehension of sertão as a place-cosmos,
which, when emerging in several locations, allows us to reflect on the idea of sertão territories of
the world. These territories, sertões of the world, are still presented as epistemological alternatives
to the reflection of several worlds of what is called Sociologic South, which emerge on the most
diverse scales, everywhere.

Keywords: sertão, place, territory, contemporaneous sertões, epistemologies, sciences, arts.


SUMÁRIO

Diário de viagem aos sertões do mundo

9 Sertões do mundo
11 Uma cosmologia do sertão: sertões do mundo, uma epistemologia

Relevo de palavras

17 Ciência, arte e metáfora


25 Traduções, transcriações, transculturações do espaço
36 Epistemologias de fronteira

O palimpsesto espacial

39 Grafias, rasuras e rugosidades


47 Cartografias omissas
51 Paisagens, lugares e territórios

Uma cosmologia do sertão

64 O lugar-sertão em Rosa
88 Grafias e rasuras do sertão
96 Atopia, utopia

103 Sertões do mundo: considerações finais

107 Referências
DIÁRIO DE VIAGEM AOS SERTÕES DO MUNDO
9

Sertões do mundo

Para além da luta pela terra, o que aproximaria imagens espacialmente distantes,
como, por exemplo, as dos movimentos realizados pelo MST, pelos quilombolas e
indígenas do Brasil e da América Latina, com as imagens dos refugiados afegãos no Irã?
As imagens dos palestinos em confronto com o Estado de Israel ou das populações
rurais e urbanas de qualquer lugar do planeta, expulsas sempre para mais além?
O estudo do conceito de sertão, lugar assim nominado pelos portugueses,
considerado essencialmente brasileiro, suscita essas e inúmeras outras questões. Termo
recorrente no imaginário da sociedade brasileira, utilizado no "Brasil" desde a chegada
dos portugueses, sertão continua presente no ideário do País, assumindo tamanha
amplitude de significações e espacialidades que recusa conceituações homogeneizantes
e delimitações espaciais precisas. São diversos os sertões construídos, desconstruídos e
transcriados ao longo do tempo, do norte ao sul do País, através dos mais diversos tipos
de representação: discursos da historiografia, da iconografia, da literatura, da arte
verbal,1 do senso comum, do cinema, da música, da cartografia brasileiras. Tais
discursos constituem fértil matéria para o estudo das significações pelas quais a ideia de
sertão vai sendo preenchida ao longo do tempo e evidenciam o seu perfil espacial
migrante e polissêmico.
A ideia de sertão é bastante difundida. O conceito, entretanto, é muito estudado
apenas do ponto de vista físico-biológico, um sertão originário de classificações
fisiográficas nas quais são incluídos alguns domínios morfoclimáticos brasileiros. Há
uma tradição de estudos2 que concebe convencionalmente o sertão como região

1
JAKOBSON. Lingüística e comunicação.
2
Dos mais antigos aos mais recentes, para citar apenas alguns: SAINT-HILAIRE. Viagem pelas províncias do Rio de
Janeiro e Minas Gerais (1818). ABREU. Capítulos de história colonial (1907); IBGE. Tipos e aspectos do Brasil (1966);
IBGE. Geografia do Brasil (1967); VIGGIANO. Itinerário de Riobaldo Tatarana (1974); RIBEIRO. História
10

geográfica com características específicas: o sertão do cerrado, da caatinga, do agreste,


do nordeste, do norte de Minas. Ainda que tomem Guimarães Rosa como referência,
diversos estudos científicos tendem a demarcar certo sertão fisiográfico de Rosa como
paradigma, recuperando rotas e memórias perdidas. São também diversos os estudos de
natureza sociológica que se ocupam do homem do sertão. Tais estudos se propõem a
mostrar bem mais o homem no sertão do que o sertão no homem. Exceção a essa
tradição de estudos é o belíssimo trabalho de transcriação poético-político-filosófica
d’Os Sertões de Euclides da Cunha realizado pelo teatro de José Celso Martinez
Corrêa.3 Todos trazem contribuições fundamentais para a interpretação/elaboração de
um conceito de sertão. É o homem no sertão que nos ajuda a compreender o sertão no
homem. Entretanto, a referência epistemológica da qual se serve a presente pesquisa
privilegia a reflexão do mundo do sertão, em nós, universo que não se restringe a um
único espaço físico material: estende-se nas mais diversas escalas por toda parte,
simultaneamente fora e dentro de nós.
As imagens do sertão, dispersas nos mais diversos saberes, nos convidam a
observar a multiplicidade de significações que podem compor o conceito. Essa
multiplicidade nos estimula a ampliar o conceito de sertão e a ler e compreender os
contemporâneos movimentos do espaço a partir das imagens desse conceito, lugar-
cosmo que emerge em toda parte. Para além das significações construídas nos mais de
quinhentos anos de história oficial do Brasil, o velho sertão não apenas permanece,

ecológica do sertão mineiro e a formação do patrimônio cultural sertanejo (2000); RIBEIRO. Florestas anãs do sertão:
o cerrado na cultura de Minas Gerais (2005); RIBEIRO. Lugar desertado: o cerrado na cultura de Minas Gerais
(2006); GARCIA. O sertão e a cidade: o sertão de Guimarães Rosa 50 anos depois (2007); MELO. Evolução das
veredas sob impactos ambientais nos geossistemas planaltos de buritizeiro/MG (Tese de doutorado, 2008); Sertão de
Minas. Disponível em: <www.sertoes.art.br>. Acesso em: 13 fev. 2011.
3
MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: A Terra; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: O Homem I: do pré-homem à
revolta; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: O Homem II: da revolta ao trans-homem; MARTINEZ CORRÊA. Os
Sertões: A Luta: primeira parte – 1a, 2a. e 3a expedições + Rua do Ouvidor; MARTINEZ CORRÊA. Os Sertões: A
Luta: segunda parte – O desmassacre.
11

como também se inscreve no mundo contemporâneo em múltiplos espaços, surgindo


em novas configurações. O espaço é complexo: múltiplo, heterogêneo, esgarçado,
indivisível: rugoso. Como traduziu Guimarães Rosa,4 o sertão se prolifera por toda a
parte, experimentando e condensando também todas essas características do espaço5 ao
qual chamamos mundo. Coexiste nos lugares que permanecem intocados pelos
processos de modernização e nos espaços hipermodernizados, resiste no nome do sertão
bravo e surge em lugares nunca antes denominados sertões. Significações do tipo lugar
longínquo, desconhecido, estranho, selvagem, atrasado, fora da lei, presentes na origem da
palavra, continuam sendo inscritas na contemporaneidade, não apenas nos diversos
lugares do mundo em que os processos de modernização não chegaram, mas também
nos interiores dos espaços hipermodernizados. As favelas das metrópoles e das
megalópoles são apenas um exemplo em grande escala da permanência dessas
significações. Para quem o sertão é o desconhecido, o estranho, o atrasado, o selvagem?
Do sertão de que tempo-espaço se fala? Como foi e é construída a ideia de sertão? Quais
significações constituem as múltiplas faces dos espaços que podem ser denominados
sertão ou lugares-sertão, territórios de sertões?

Uma cosmologia do sertão:


sertões do mundo, uma epistemologia

A tese é apresentada em dois volumes, em que um caderno, Uma cosmologia do


sertão, pretende dialogar com o outro, Sertões do mundo, uma epistemologia, ambos
complementando-se através da tradução, compreendida como procedimento que
permite criar inteligibilidade recíproca entre dois domínios que podem se abrir em

4
ROSA. Grande sertão: veredas.
5
Optei pelo uso do termo espaço, no lugar de espaço geográfico, por considerar que o conceito de espaço, físico-social,
abrange o campo da geografia e o ultrapassa.
12

fronteira. Ponte que viabiliza o contato, o trânsito, o transporte, incessante movimento


de mão-dupla, transcriação, transculturação. O caderno Sertões do mundo, uma
epistemologia é composto por três capítulos, cada um deles contendo um conjunto de
três ensaios, enquanto que o caderno intitulado Uma cosmologia do sertão apresenta
imagens verbais do sertão dispersas em textos de gêneros diversos, representações dos
saberes das literaturas, das artes verbais, dos textos não-literários e do senso comum,
além de breves anotações minhas e uma pequena série de imagens visuais. Juntos, os
dois cadernos têm o propósito de elaborar um exercício teórico, epistemológico, de
reflexão sobre alternativas de abordagem das questões socioespaciais. Essas alternativas
consistem em estudar o sertão no âmbito da ciência, neste caso a geografia, no contato
com as representações de todos esses saberes, especialmente as representações da
literatura de diversos países. Uma abordagem espacial do sertão construída a partir das
relações entre diferentes tipos de discursos, representações, saberes. Investe-se em outro
tipo de ciência, diferente da moderna. Uma ciência que se reinventa e se fortalece a
partir da prática de uma ecologia de saberes,6 do diálogo que se pode construir nos
diversos espaços de fronteiras entre conhecimentos e entre conhecimentos e saberes:7
científicos, artísticos, populares, do senso comum etc.
Abordam-se, também, brevemente, os conceitos de lugar, território e suas
paisagens, essenciais à argumentação da tese, uma vez que ela se fundamenta na
compreensão do sertão como um lugar-cosmo que, ao emergir em toda parte, nos
permite refletir sobre territórios de sertões do mundo. Esses territórios, estudados a partir
do lugar-sertão no mundo, podem apontar alternativas epistemológicas para se estudar
os diversos mundos do Sul que emergem em toda parte nas mais variadas escalas. Assim,

6
SANTOS. Para uma sociologia das ausências e para uma sociologia das emergências.
7
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade; HISSA (Org.). Saberes
ambientais: desafios para o conhecimento disciplinar; HISSA (Org.). Conversações: de artes e de ciências.
13

a relação dialética entre os conceitos de lugar e mundo assume também no texto uma
dimensão fundamental para o debate.
O primeiro capítulo da tese, Relevo de palavras, em três ensaios iniciais, tem o
objetivo de refletir sobre alternativas de abordagem das questões socioespaciais. Essas
alternativas consistem na incorporação de discursos ficcionais como parte do corpus
argumentativo do trabalho. Para isso, as relações entre ciência e arte, geografia e
literatura são estudadas tomando como base o exercício da ecologia de saberes8 e os
espaços de fronteira entre conhecimentos e saberes e entre saberes.9 Ambos os conceitos
pressupõem contatos, traduções, transcriações entre saberes científicos e, também, entre
saberes científicos e não-científicos.
No segundo capítulo, abordam-se brevemente os conceitos de paisagem, lugar e
território em três ensaios reunidos sob o título O palimpsesto espacial. Para tratar dos
processos de transformação do espaço-mundo, toma-se o espaço como um palimpsesto
cujo corpo se faz de camadas diversas de grafias, compreendidas tanto como as
alterações físico-sociais experimentadas por ele, espaço, quanto pelos discursos diversos,
das diversas literaturas e artes verbais, das ciências e do senso comum que representam
essas alterações. Assim como são inscritas num determinado momento, tais grafias são
continuamente expostas a rasuras, ou seja, são invariavelmente raspadas para dar lugar a
novas grafias na superfície-espaço. No palimpsesto, entretanto, a sobreposição das
diversas e distintas grafias, em tempos diversos, não representa a supressão completa da
grafia anterior, pois o processo de “raspagem”, rasura das superfícies, não é absoluto.
As camadas de grafias que compõem o palimpsesto espacial são esgarçadas como
resultado da heterogeneidade típica do espaço. O esgarçamento dessas camadas permite
a coexistência e o contato de superfícies mais antigas com as mais contemporâneas. Na

8
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
9
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade; HISSA (Org.). Saberes
ambientais: desafios para o conhecimento disciplinar; HISSA (Org.). Conversações: de artes e de ciências.
14

mais recente superfície, emergem sempre traços diversos das escritas anteriores, grafias
que resistem ao processo de raspagem, transcriando-se em diferentes temporalidades.
Não há superfícies imunes aos esgarçamentos, que deixem de pôr à mostra as diferentes
memórias e grafias dos sujeitos ao longo do tempo, da história. Mesmo nos trechos em
que a raspagem é completa, resta na memória dos lugares (nos sujeitos) imagens que já
não estão na superfície mais recente. As mais recentes superfícies constituem, desse
modo, um todo heterogêneo, um mosaico de formas, funções e fluxos de diferentes
tempos e espécies que permitem tanto a permanência de velhos sertões quanto o
surgimento de novos lugares-sertão.
O terceiro capítulo, o último, trata do que se denomina uma Cosmologia do
sertão, que consiste no estudo do conceito de sertão, partindo das imagens do romance
Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956. Imagens, dentre
tantas outras, de tantos outros sistemas semióticos (artes verbais, cinema, música etc),
motivadoras da pesquisa de um conceito de sertão e especialmente da proposta de sua
ampliação. Trata-se do estudo de um conceito que se faz no contato com as
representações da ciência, da arte verbal, do senso comum e das literaturas de diversos
países sobre um sertão nomeado e um sertão não nomeado que este trabalho procura
nomear. Do primeiro grupo fazem parte textos de escritores, como, por exemplo,
Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Jotacê Freitas. Dos
sertões não nomeados fazem parte textos de poetas, contistas e romancistas
contemporâneos brasileiros, palestinos, afegãos e africanos, como, por exemplo,
Manoel de Barros, Cândido Rolim, Rubem Fonseca, Mahmoud Darwish, Atiq Rahimi
e Mia Couto, dentre muitos outros. Todos presentes no caderno Uma cosmologia do
sertão, segundo volume da tese. A partir da leitura dessas imagens, propõe-se a
ampliação do conceito de sertão para além das significações construídas ao longo da
história do País, contemplando paisagens específicas dos lugares-sertão dispersos em
várias partes do mundo.
15

A Cosmologia do sertão, presente em ambos os cadernos, parte das imagens dos


sertões em Rosa.10 O caderno Uma cosmologia do sertão apresenta imagens dos sertões da
África portuguesa, que se estendem ao Brasil colonial, atravessam o Império, a
República e chegam ao mundo contemporâneo que se expressa nos mais diversos
lugares em que se produz atopia, territórios de exclusão social. Através essencialmente
das imagens de atopia, produzidas nos múltiplos movimentos do mundo responsáveis
pela heterogeneidade do espaço, disseminadas no campo, na cidade, na metrópole, no
mundo urbano-rural dos diversos corpos de mundo11 que os cadernos se comunicam.
Trata-se de um recorte de imagens verbais, e também de algumas visuais, realizado a
partir do estudo do conceito de sertão como um lugar-cosmo, feito cartografias omissas,
territórios de atopias e utopias que emergem em diversas partes do mundo nas mais
diversas escalas e nos mais diversos espaços-tempos. Sendo assim, todo e qualquer
recorte que contemple a formulação desse conceito poderia justificar a escolha das
imagens dos sertões do mundo presentes em toda parte: no campo ou nos interiores das
grandes cidades, nos espaços pouco modernizados ou hipermodernizados, nas guerras,
nas prisões, nos territórios de antigas e novas formas de totalitarismos,
fundamentalismos e colonização.
As considerações finais ocupam-se brevemente da reflexão sobre os territórios de
sertões do mundo, também em nós, pensando esses territórios como alternativa
epistemológica para se estudar os diversos mundos do Sul, lugares que emergem em
toda parte nas mais diversas escalas e transescalas. Estudar o lugar no mundo ou o
mundo no lugar nos leva a pensar em outras epistemologias. Assim, a Cosmologia do
sertão traduz, e é traduzida, pelos Sertões do mundo, uma epistemologia.

10
ROSA. Grande sertão: veredas.
11
HISSA. Territórios de diálogos possíveis.
RELEVO DE PALAVRAS
17

Ciência, arte e metáfora

Partindo de breves enunciados científicos sobre caos e cosmos, certo senhor


Qwft, nascido das páginas do escritor Italo Calvino,12 reescreve em linguagem lúdica e
envolvente, a história do universo. Essa é a estratégia prática da qual se serve o
ficcionista, ensaísta e teórico em sua crítica à linguagem convencional pretensamente
objetiva, impessoal, e, às vezes, desestimulante da ciência: a cada enunciado científico,
de linguagem contida, “seca”, objetiva, o personagem responde com uma espécie de
tradução ou transcriação poético-narrativa, refazendo a explicação dada pelo rigor da
linguagem científica com uma linguagem rica em imaginação, operacionalizada
especialmente por metáforas, e que nada tem da racionalidade comumente exigida a
uma explicação científica. É muito estimulante o modo como Calvino questiona os
percursos convencionais trilhados pela linguagem da ciência nascida com a
modernidade. É na sedutora forma literária de conto-fábula que ele nos conduz aos
seus pensamentos "teóricos" sobre o espaço, os olhos, a visão, a imagem, a imaginação.
O sinal só existe como inscrição no espaço através do exercício sincrônico da imagem,
da imaginação e da palavra. A ação só pode se dar a partir da palavra, sem a qual o
movimento se extinguiria transformado em fixidez, já que não poderia ser enunciado.
Calvino imagina um hipotético tempo de origem do cosmo em que imagem, palavra,
coisa e ser emergem cada um a seu tempo, de maneira separada. Teórico e fabulista, o
escritor separa e personifica essas instâncias apenas para reafirmar que elas só podem ser
concebidas numa relação dialética, como ato fundante da língua, forma de nos
referirmos ao mundo e a nós próprios.
Inventamos num determinado momento limites de confinar palavras,
apartando-as, palavras da arte, compreendida como ficção, palavras da ciência,

12
CALVINO. Todas as cosmicômicas.
18

movidos pela mesma mentalidade dicotômica que opõe o imaginário ao real, a


subjetividade à objetividade, o belo ao verdadeiro. Desinventamos, assim, felizmente
sem sucesso, aquilo que não se pode desinventar, já que é essencialmente invenção: a
natureza da palavra, da linguagem. A esse tempo, de estreiteza das classificações
binárias, (co-)responde um outro tempo, o da compreensão do deslimite das coisas-
conceito, assim como o da visibilidade, da flexão e da expansão dos limites, dos lugares,
dos territórios e dos saberes os mais diversos. Os deslimites dos territórios e lugares das
coisas-conceito e dos saberes têm regência poética, já que a poesia é o lugar nômade do
deslimite das coisas, dos conceitos, do belo, da palavra, como tão prazerosamente nos
faz ver Manoel de Barros.13 É a palavra poética que expande ao infinito as margens do
pensamento, da linguagem, redesenhando-as, livres, flexíveis, fluentes para o diálogo.
Com sua potencialidade de poiésis, de fazer, fábrica inalienável de imagens e
significações, a palavra incompatibiliza-se com lugares delimitados, não se dá a
pertencimentos, privatizações. Antes, faz pertencer: de imagens e significações os
sujeitos e os textos do mundo. Insubordinada, com sua voz de metáfora insuspeitada, é
capaz de assujeitar o sujeito apenas para confirmar nele a sua condição de sujeito.
Refratária a objetividades e exatidões convencionais, a palavra abriga o sujeito e é por
ele abrigada. Por que restringir a palavra poética ao âmbito da arte, da literatura? Em
qualquer gênero textual, é preciso guardar a palavra, como quer o poeta Antonio Cícero:14

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,

13
BARROS. Retrato do artista como coisa. Toda poesia é feita da desconstrução, sobretudo, da linguagem. Em toda a
obra de Manoel de Barros, entretanto, a construção da poesia e do pensamento pelo -des ganha um estatuto especial.
14
CÍCERO. Guardar e outros poemas, p. 23.
19

isto é, estar por ela ou ser por ela.


Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro
do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
para guardá-lo:
para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
guarde o que quer que guarda um poema:
por isso o lance do poema
por guardar-se o que se quer guardar.

É preciso que o sujeito abrigue de beleza a palavra para ouvir sua linguagem de
fonte, seu grito de eureca,15 sua voz compartilhável, sua potência de fazer, construir.
Abrigar de beleza a palavra, longe de edificar-lhe uma morada, de fechá-la em um
lugar-texto ou campo de conhecimento específico, é cuidar para que ela se faça
pertencer de poesia. Deixar que a palavra pertença, confinada à ficção ou à ciência,
como se houvesse mesmo, necessariamente, uma palavra da arte e uma palavra da
ciência, é abrigá-la de abandono, de incomunicabilidade. Por que não poderia ser o
belo verdadeiro? O que é o verdadeiro senão as imagens que diariamente fazemos
desfilar aos nossos olhos, do modo múltiplo como as percebemos, lemos,
interpretamos, traduzimos, transcriamos?
A ciência moderna, especialmente no século XIX, quando se desdobra em campos
disciplinares específicos, elide o sujeito do objeto sob estudo, em nome de uma suposta
verdade isenta de parcialidade, a partir da qual ela se define e se afirma como ciência. O
cientista seria, desse modo, o sujeito capaz de controlar a sua posição social, cultural,
política. Como se fosse possível extrair o sujeito e a subjetividade da linguagem e da
língua, através das quais se fazem, necessariamente, também, as ciências.
Da mentalidade fortemente cientificista do século XIX, não escaparam nem
mesmo as artes plásticas e a literatura, com sua Escola Realista de ler o mundo. Com

15
TAVARES; HISSA. De arte e de ciência: o golpe decisivo com a mão esquerda. Entrenotas.
20

formas, cores ou palavras, a ideia era documentar a “realidade,” como se houvesse um


mundo alheio à representação, à linguagem, e aos mais diversos olhares e vivências dos
diversificados sujeitos do mundo e das suas diversas realidades. No limiar do século
XXI, quando, há muito, essas questões foram superadas nas artes, deparamo-nos ainda
com uma ciência que insiste em exilar o sujeito e, no limite, desqualificar e
desconsiderar a existência de determinados sujeitos e grupos sociais: todos aqueles que,
a despeito dos seus saberes, foram desautorizados a participar da produção da ciência
compreendida de acordo com os paradigmas da modernidade. Desse modo, os saberes
populares, provenientes de comunidades rurais, indígenas, africanas, asiáticas e de
todos os povos vítimas do princípio da apropriação/violência,16 considerados não-
científicos, foram relegados à invisibilidade e ao silêncio. A literatura e as artes, de
modo geral, separadas da filosofia e da ciência, no século XIX, também foram
desautorizadas a participar do conhecimento científico, erigido especialmente sob a
égide das dicotomias real/fictício, conhecimento/não conhecimento.
Se a modernidade do final do século XIX representa para as artes a consciência da
insubordinação do sujeito, da sua condição inalienável, manifestada nas mais diversas
linguagens, produtoras de sujeitos outros ou eus desconhecidos, para as ciências, ela
representou o oposto disso. A postulação do inconsciente, dentre muitos outros eventos
nascidos ainda no século XIX, representa a impossibilidade do exílio do sujeito da
palavra, a ampliação da consciência de todo um modo de pensar o mundo segundo o
qual não há como dissociar o sujeito de si, da linguagem, da vida. Há que se lembrar que
o século XX foi o momento

16
Princípio que se manifesta, de modo geral, na incorporação, cooptação, assimilação, destruição física, material,
cultural e humana. Utilizo esse termo, criado por Boaventura de Sousa Santos (Para além do pensamento abissal: das
linhas globais a uma ecologia dos saberes), como alternativa ao termo colonialismo, por considerar que o seu sentido
abrange tanto as relações coloniais do passado, quanto as contemporâneas, estendendo-se ainda para além delas.
21

[...] em que as forças e representações inconscientes deixaram o


silêncio e a obscuridade a que foram relegadas no início da era
moderna, e voltaram a ganhar um estatuto de discurso significativo
[...], indicando que em sociedades organizadas em moldes diferentes
da racionalidade moderna, as produções do inconsciente teriam um
outro lugar, reconhecido como lugar de produção de verdade; pensem
no caso dos adivinhos na Antiguidade, ou dos xamãs nas sociedades
indígenas, por exemplo. Ou dos pais e mães-de-santo do candomblé.17

A consciência de que não nos conhecemos, ao mesmo tempo em que nos assujeita,
confirma em nós a condição de sujeitos inalienáveis, certamente múltiplos, representados e
revelados pela linguagem em sua condição eminentemente simbólica. O que dispensaria a
mediação da linguagem? Ao erigir para si uma torre pretensamente refratária à
subjetividade, à parcialidade, à proximidade e ao contato, a ciência moderna criou
também uma língua distinta da língua das artes e de todos os demais saberes, por isso não
participou do debate sobre o mundo sob representação. Línguas intraduzíveis, torre de
babel. Em contrapartida, neste tempo em que assistimos à radicalização da modernidade,
assistimos também finalmente à emergência de uma transição paradigmática.18
Na contramão da racionalidade imposta pelo pensamento da ciência moderna,
seria a liberdade da criação, da criatividade, da imaginação19 a ponte a transpor o
abismo dos limites pretensamente racionalizantes do texto, a transformá-los em
fronteiras, lugares de contato.
Nos ensaios que compõem este trabalho serão utilizados os conceitos de limites
e de fronteiras na acepção concebida por Cássio Hissa. Para o geógrafo, enquanto o
limite separa, a fronteira, contendo o limite, é abertura, extensão do limite, espaço
potencial de atravessamentos, transitividades, travessias:

17
KEHL. O tempo e o cão, p. 21.
18
Ao afirmar que estamos no fim de um ciclo de uma ordem científica hegemônica, Boaventura de Sousa Santos
caracteriza essa ordem, traça os sinais da crise de sua hegemonia e, ainda, o perfil de uma nova ordem científica
emergente (SANTOS. Um discurso sobre as ciências).
19
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade.
22

[...] a fronteira é demarcação imprecisa, vaga. Longe do núcleo, de


costas para o território que em princípio lhe diz respeito, a fronteira é
lugar pulverizado que se questiona mesmo com seus arquitetos e
guardiões. O que deveria ser demarcação perceptível mostra-se espaço
de transição, lugar de interpenetrações, campo aberto de interseções.
O que foi concebido para conter transforma o conteúdo em espaço
ilimitado, incontido. Para além da linha que demarca é exatamente a
fronteira que explicita a amplitude ou a complexidade do que não foi
arquitetado para ser contido ou confinado. O que foi concebido para
pôr fim, para delimitar territórios com precisão como se fosse uma
linha divisória, espraia-se em uma zona de interface e de transição
entre dois mundos tomados como distintos.20

Todo limite produz necessariamente uma fronteira. É, portanto, precisamente


este limite, a impossibilidade de desvincular a linguagem da imaginação, a despeito do
que acreditou o racionalismo cientificista do século XIX, a sua própria condição de
transcendência, de transposição: de obstáculo à ponte, de limite à fronteira, abertura. O
desejo de razão pura, ponto-limite, transforma-se em ponto de passagem a partir do
exercício da criatividade, do improviso,21 da surpresa, da incompletude, efervescência
da vida. Como a pausa, que suspende a narrativa e alimenta o desejo de conhecer o
novo, o inusitado, o incerto, o obscuro onde tudo pode tomar qualquer forma e
função ou não ter forma ou função alguma. Imagina-se o mapa sem traçá-lo, pois o
primeiro traço cartográfico da escrita já se desloca, muda de direção, dissolve-se para de
novo se escrever e, assim, infinitamente, de múltiplas formas, como as histórias das mil
e uma noites. É a sedução da incerteza que garante a vida do texto, sua fertilidade.
Seduzir: do latim, seducere, “levar para o lado”, “desviar do caminho”. “O extremo
desse desvio (ou sedução) se chama poesia”, nos diz Leyla Perrone-Moisés.22 Há
linguagem mais exata, mais precisa, mais rápida, tal como define Calvino a rapidez,23

20
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 35-36.
21
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 134.
22
PERRONE-MOISÉS. Flores da escrivaninha: ensaios, p. 13.
23
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio.
23

do que a linguagem da poesia? Entretanto, ela seduz, desvia-nos do caminho. A


exatidão da linguagem poética não se confunde com a fixidez, com o estático. Na
palavra poética, o ponto é móvel e nos mobiliza: desviando-nos do caminho, convoca-
nos a visualizar novos caminhos. Não há um caminho a seguir, não há um mapa. O
contínuo e infinito percurso requer leveza, rapidez, exatidão, visibilidade,
multiplicidade, consistência, valores que “[...] só a literatura com seus meios específicos
nos pode dar.”24 O desejo de exclusão da metáfora em nome de um ideal de clareza e
objetividade do texto, almejado pela ciência moderna, além de impraticável em termos
absolutos, pode, em alguns casos, dificultar a sua compreensão, fato que se manifesta
também na condição às vezes desestimulante produzida por uma linguagem
excessivamente árida ou hermética.
Os exercícios de explicação do mundo, domínio reivindicado pela ciência, não
apenas carecem dos intercursos da metáfora, como também veem fortalecidos seus
argumentos e enriquecida e qualificada a sua linguagem, como ilustra essa bela fábula
chinesa:

O rei Liang25 havia proibido as parábolas, e Huizi era um sábio


conhecido por usá-las quando queria explicar alguma coisa.
Um hóspede do rei comentou:
− Huizi é um sábio porque sabe explicar os fatos utilizando as
parábolas de maneira apropriada. Se Vossa Majestade proibir o uso
delas, Huizi não poderá mais falar.
O rei ficou pensativo e, no dia seguinte, em audiência com Huizi,
disse-lhe:
− Daqui para frente, você, meu conselheiro, deverá falar direto, sem
rodeios e meias palavras.
Huizi respondeu:

24
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio.
25
Um dos feudos da dinastia Zhou (1100-221 a. C), que mudou de nome para reino de Wei, um dos Três Reinos
(N. do T.).
24

− Suponhamos que um homem não saiba o que seja uma catapulta e


que ele me pergunte que forma ela tem. O que respondo para ele?
Que a catapulta tem a forma de catapulta?
− Claro que não, respondeu o rei.
− Mas suponhamos que alguém diga a esse mesmo homem que uma
catapulta tem a forma de um arco, com uma corda feita de bambu, e
que é uma máquina de guerra para atacar um alvo com grandes
pedras. Nesse caso, acha que ele me entenderia?
− Sim, você estaria sendo claro.
Huizi concluiu:
− Parábola ou metáfora nada mais são do que explicar alguma coisa ou
assunto difícil por meio de um exemplo que a outra pessoa concede,
facilitando o entendimento e a compreensão. Se eu não posso utilizá-
las, como poderei explicar algum assunto ou coisa para Vossa
Majestade?26

Utilizar as parábolas, as metáforas, as palavras de modo adequado é o desafio


posto ao sujeito diante da linguagem, ou seja, diante do diálogo e do encontro consigo
mesmo e com os outros de si. A metáfora pode ser tomada como uma das diversas
representações da tradução intra ou interlingual, em que um universo se transcria num
outro para que ambos se tornem inteligíveis um ao outro em sua diversidade
socioeconômica, cultural, política. Assim, o sujeito não poderia mais falar se
supostamente o código linguístico fosse restringido, uma vez que cada signo linguístico
remete sempre a um outro signo que o traduz.

26
CAPARELLI; SCHMALTZ. O uso das metáforas, p. 133.
25

Traduções, transcriações,
transculturações do espaço

Muito antes do surgimento da palavra, o homem se expressou através da


imagem: traços, sinais, desenhos, inscrições nas paredes das cavernas. A escrita desses
traços teria sido motivada pela observação/leitura das marcas e dos sinais grafados no
solo, gravados nos veios das rochas, da madeira, nos traços das constelações, nos rastros
de animais silvestres. Na terra, no gelo, no deserto, nos campos: espaços em que os
homens realizam a sua vida e a representam, comunicando-se. Espaço e representação
do espaço se concebem sempre em relação dialética, num movimento contínuo de
transformação ao longo do "tempo", concebido também em relação dialética com o
espaço. Para Roland Barthes, a tese aparentemente paradoxal de que o homem teria
aprendido a ler antes de escrever importa menos como informação cronológica do que
como evidência de uma sociedade que estruturou a sua escrita e se estruturou a partir
do visual e não do oral. Para o semiólogo, “[...] a escrita é uma estrutura autônoma
que, no decorrer dos séculos, foi preenchida com a palavra; a escrita é uma estrutura
que pouco a pouco se fonetizou.”27 Tese que não invalida o fato de imagem e verbo
comporem juntos o tecido da linguagem em suas múltiplas possibilidades de expressão.
Como conceber a imagem destituída do verbo, do pensamento, da imaginação? Lúcia
Santaella e Winfried Nöth28 reafirmam os dois domínios compositores do mundo das
imagens: o das representações visuais (desenhos, pinturas, gravuras, fotografias etc) e o
das mentais. Esses domínios são unificados pelos conceitos de signo e de representação.
O signo linguístico é constituído do conceito (ideia) que se tem de alguma coisa e de
sua imagem acústica, que “[...] não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o

27
BARTHES. Oral/escrito, p. 38.
28
SANTAELLA; NÖTH. Imagem: cognição, semiótica, mídia, p. 15.
26

testemunho de nossos sentidos.”29 O testemunho dos nossos sentidos nos dá a ver


sempre uma possibilidade: as representações da diversidade da vida e das subjetividades
que compõem a diversidade social do espaço: física, biológica, cultural, filosófica,
econômica, política, jurídica, epistemológica etc. Captada pelo olhar (também interior)
e pela cultura (o lugar, o ponto de vista) de uma diversidade de sujeitos e grupos
sociais, nos diversos espaços-tempos, a possibilidade se movimenta e se multiplica,
num caleidoscópio de imagens e sentidos em contínua transição.
De Ortega y Gasset,30 recolho a ideia de possibilidade, objet trouvé para a reflexão
sobre as vertigens do olhar que compõem a imagem e suas representações:

Tenho agora ao meu redor cerca de duas dúzias de carvalhos


circunspectos e de freixos gentis. É isto um bosque? Certamente não.
Estas são as árvores que vejo do bosque. O bosque é uma natureza
invisível – por isso em todos os idiomas conserva seu nome um halo
de mistério. Posso me levantar agora e tomar uma dessas vagas veredas
por onde vejo cruzarem melros. As árvores que antes eu via serão
substituídas por outras análogas. O bosque ir-se-á decompondo,
desgarrando-se numa série de trechos sucessivamente visíveis. Mas
nunca o encontrarei aqui onde estou. O bosque foge dos olhos. [...]
Está sempre um pouco mais além de onde nós estamos. De onde
chegamos, acaba de sair, restando somente suas pegadas ainda frescas.
Os antigos, que projetavam em formas corpóreas e vivas as silhuetas de
suas emoções, povoaram as selvas de ninfas fugitivas. [...] De qualquer
um de seus pontos, o bosque é a rigor uma possibilidade!

As representações dos lugares, das paisagens, do espaço de modo geral, se fazem


das múltiplas possibilidades de construção de imagens do mundo, físico, biológico,
humano: lugares e territórios que se organizam de diferentes maneiras, de acordo com
a subjetividade da diversidade social e seus diferentes pontos de vista, num tempo-
espaço estabelecido e recortado pelo olhar de determinada cultura. Na representação
dos lugares, importa fundamentalmente quem olha e enuncia, de qual ponto de vista e

29
SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 80.
30
ORTEGA Y GASSET. Meditações do Quixote, p. 68.
27

em que espaço-tempo. Palavra e imagem combinam-se de diferentes maneiras na


representação do mundo que se apresenta diante dos nossos olhos. Os olhos, um dos
instrumentos da visão, processo complexo que no âmbito da física resultaria “[...] de
três operações distintas (e sucessivas): operações ópticas, químicas e nervosas.”31 Para
além da física, os olhos refletem a subjetividade dos sentidos, a subjetividade da alma.
Vê-se de forma indireta, através dos olhos, espelhos que refletem imagens de luzes,
sombras, cores, formas, contornos, preenchidos, ainda, por um outro olhar, o do
terceiro olho,32 domínio das imagens interiores, da imaginação. Refletindo sobre o
olhar, Manoel de Barros, complementa:

Eu não acho que seja pelo olho que entram as coisas minhas. Elas não
entram. Elas vêm. Elas aparecem de dentro. Não entram pelo olho. O
olho vê, a lembrança revê as coisas, e é a imaginação que transvê, que
transfigura o mundo, que faz outro mundo para o poeta, para o artista
de um modo geral. A transfiguração é que é a coisa mais importante
para o artista.33

O espelho: metáfora do olhar, das imagens que cada sujeito se dispõe, se propõe
ou se dá a ver e a partir daí, a dizer, a enunciar, a ler, a interpretar, a traduzir. Italo
Calvino nos lembra que Perseu vence a temerosa figura da Medusa, contemplando-a
em seu escudo de bronze,34 ou seja, através do espelho: “[...] é sempre na recusa da
visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de
monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e
assume como um fardo pessoal.”35 Em um outro momento da narrativa, podemos ver
o herói levando consigo, oculta dentro de um saco, a cabeça da Medusa, da qual
frequentemente lança mão como arma no embate com os outros que encontra ao longo

31
AUMONT. A imagem, p. 18.
32
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 42.
33
JANELA da alma.
34
Escudo que lhe fora dado por Athena, deusa da sabedoria.
35
Seis propostas para o próximo milênio, p. 17.
28

do seu percurso. Recusar a visão direta é recusar a nossa própria petrificação: a


unicidade dos sentidos, a certeza, a fixidez, a imobilidade. É recusar um referente
alheio à representação, aos reflexos do olhar, do simbólico e, em uma instância mais
subjetiva, recusar a conhecer o mundo múltiplo desconhecido em nós mesmos.
Mundo tomado como estrangeiro,36 estranho, alheio, distante, diferente, outro, fora de
nós e frequentemente traduzido como monstruoso. Recusar a reconhecer, em nós, os
outros, ao contrário do que faz Perseu, quando olha o espelho e vê ali refletida a
imagem do monstro, concebendo-a em si e, ao mesmo tempo, fora de si. Ao se dispor
ao contato com o mundo estrangeiro, reconhece-o, através do espelho, em vez de
ignorá-lo e negá-lo, e, desse modo, evita ser surpreendido e imobilizado: evita ser
petrificado por ele.
Nesse limite eu/outro, representado e atravessado pela metáfora do espelho e do
olhar, se dá o encontro de alteridades, o contato entre diferentes sujeitos, seus lugares e
seus territórios de vida, de cultura. A metáfora do espelho e do olhar remete-nos,
portanto, a uma nova metáfora, a da fronteira, atravessamento do limite, lugar do
contato e da diversidade, mundo da permeabilidade, do trânsito e do transitório:
transitividade, movimento, transformação, transculturação: "A questão da alteridade
levanta a da fronteira: onde passa a cesura entre o mesmo e o outro?"37 Se o olhar e o
espelho representam os limites eu/outro, suas fronteiras se fazem das múltiplas
possibilidades de relações que se estabelecem no contato entre as diversas alteridades e
o modo como cada uma delas constrói/representa essas relações.
Ao ler as Histórias, de Heródoto, François Hartog estuda como os gregos do
período clássico representavam para si os outros, não-gregos, propondo para isso uma
retórica da alteridade, prática que consiste em estudar, nas marcas da enunciação do

36
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos.
37
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 97.
29

discurso, o modo como o narrador traduz para si a diferença entre "o seu mundo" e o
mundo outro, que se propõe a narrar:

A partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura


entre os dois conjuntos [gregos/citas], pode-se desenvolver uma
retórica da alteridade própria das narrativas que falam sobretudo do
outro, especificamente as narrativas de viagem, em sentido amplo. Um
narrador, pertencente ao grupo a, contará b às pessoas de a: há o
mundo em que se conta e o mundo que se conta. Como, de modo
persuasivo, inscrever o mundo que se conta no mundo em que se
conta? Esse é o dilema do narrador. Ele confronta-se com um
problema de tradução.38

Traduzir: tornar uma ideia inteligível a alguém, a uma cultura, através da


oralidade, da escrita, de gestos, sinais, expressões, imagens. É assim que todo
procedimento de linguagem pode ser compreendido como tradução: “Aprender a falar
é aprender a traduzir.”39 Traduz-se o mundo "visível", produto das imagens concebidas
pelos olhos do sujeito e da sua cultura, da sua língua, da sua subjetividade. Nesse
sentido, amplo, a tradução é uma interpretação, uma leitura das imagens do mundo. A
língua e a cultura são arcabouços a partir dos quais o sujeito produz sentidos. Ao
limitarem com seus contornos a tradução da diferença, tais arcabouços acabam por
conduzir o sujeito a criar novas formas de dizer: na tradução de um outro, inscreve-se
sempre um mesmo diferente, ou seja, um outro construído a partir de efeitos análogos
ao mundo do tradutor. François Hartog observa que Heródoto recorre frequentemente
à figura da inversão e da analogia ao tratar da diferença entre a sua cultura e à do outro
que se propõe a traduzir:

As Histórias recorrem a essa figura [a inversão] em muitas ocasiões.


Dois exemplos mostram a que ponto ela constitui uma tentação
sempre presente para a narrativa que pretenda dizer o outro: num
primeiro momento, levanta-se a diferença; num segundo momento,

38
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 229.
39
PAZ. Tradução: Literatura e literalidade, p. 9.
30

ela é "traduzida" ou apreendida" pondo-se em ação um esquema de


inversão. Tomemos um primeiro exemplo, bem conhecido – o do
Egito: os egípcios vivem num clima outro (héteros), às margens de um
rio diferente (állos) de todos os outros rios, e "adotaram também, em
quase todas as coisas, modos e costumes que são o inverso (émpalin)
dos de todos os outros homens". Quando se trata dos costumes, a
diferença transforma-se em inversão. Além disso, o enunciado tem
pretensões de universalidade: a inversão mede-se com relação ao resto
do gênero humano. Ora, tão logo Heródoto começa a desfiar os
exemplos de inversão, percebe-se que, com a expressão "todos os
homens" deve-se entender, de princípio e antes de tudo, os gregos."40

Quanto aos traços de intraduzibilidade, inerentes a todo sujeito e a toda cultura,


não considerados pela inversão ou por qualquer outro procedimento de tradução,
Hartog acrescenta:

Mesmo que eles resistam ao trabalho que visa torná-los inteligíveis


(mesmo que o viajante não possa ou não queira traduzi-los), não são
por isso expulsos da esfera do verossímil. Muito pelo contrário,
poderíamos pensar que sua verossimilhança reside principalmente
nessa aparente falta de sentido. A verossimilhança desses traços que
escapam ao processo de inversão estaria no fato de eles se
apresentarem, na narrativa, como "idiotismos", cujo sentido não se
deixa capturar, constituindo uma espécie de meteoritos. É justamente
a impossibilidade de capturar seu sentido que lhes garante a
alteridade."41

Como resultado da operação tradutora, produz-se sempre um outro, desejado e


estranho, já que a comunicação, seja na mesma língua ou entre línguas diferentes, é
frequentemente atravessada pela falta: “toda tradução é apenas um modo, de alguma
forma provisório, de lidar com a estranheza das línguas.”42 Se a estranheza existe dentro
da própria língua, restando-nos, portanto, traduzi-la, o que não garante inteligibilidade
total ou unidade, mas, ao contrário, exibe diferenças e fragilidades, a tradução pode ser

40
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 230.
41
HARTOG. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, p. 232.
42
BENJAMIM. A tarefa-renúncia do tradutor, p. 201.
31

compreendida sempre como uma recriação, uma transcriação43 do texto de partida. A


concepção pré-moderna de tradução que respondia com o ideal de inteligibilidade
universal à alteridade babélica não deve ser lida como “garantia da unidade de
espírito.44 Toda tradução pressupõe uma incompletude, uma falta, um silêncio, limites
de traduzibilidade que reafirmam Babel e ao mesmo tempo apresentam a chave para a
sua saída: o reconhecimento do outro e a sua tradução, transcriação.
Historicamente marcado pela violência, o contato entre os mundos tomados
como mesmo/outro valeu-se frequentemente da tradução, no sentido estrito, como
ponte para se chegar ao outro e, simultaneamente, como instrumento para a sua
dominação. O mundo moderno, que nasce e se expande a partir da travessia do
Atlântico pela Europa ocidental rumo às terras da “África”, da “Ásia” e do “Novo
Mundo,” usou e abusou da tradução como instrumento de apropriação e de
aniquilação do outro. As entradas dos colonizadores nessas terras só se viabilizaram a
partir do contato também "pacífico" com os povos autóctones e seus saberes,
apropriados para todo tipo de dominação: econômica, religiosa, política etc.
Concebidos pela diversidade de imaginários sociais, os espaços-tempos da
diversidade de sujeitos, grupos sociais e as suas formas de representação espacial,
exibem, grafadas na língua e na linguagem, suas diferentes concepções simbólicas,
ideológicas, políticas, econômicas, culturais. O reconhecimento da diferença, da
alteridade, e o cuidado com a sua tradução, de modo a ultrapassar em nós o ostracismo
e também o nivelamento,45 demanda, num primeiro momento, o exercício de um
pensamento complexo que reconduza ao encontro e ao diálogo os saberes excluídos do
processo de produção do conhecimento. Os saberes populares tradicionais, das

43
Conceito elaborado por Haroldo de Campos (Transluciferação mefistofáustica) para se referir à tradução criativa,
aquela que não se submete servilmente ao conteúdo, mas, antes, o trata como bastidor semântico da coreografia,
ocupando-se, especialmente, da forma significante.
44
PAZ. Tradução: Literatura e literalidade, p. 9.
45
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos.
32

literaturas, da arte verbal,46 dos diversos pensamentos filosóficos e das humanidades, de


modo geral, têm sido reconduzidos por uma teoria social crítica47 ao lugar de contato,
de convergência, de diálogo, na prática de uma ciência que deseja interrogar a sua
metodologia convencional, os seus caminhos, e, assim, se permitir reinventar,
assumindo, como qualquer outro saber, a sua condição de incompletude e de incerteza.
Edgar Morin situa o início dos questionamentos da racionalidade e da cientificidade e
de seu consequente movimento rumo a um pensamento complexo a partir dos trabalhos
de Bachelard, Popper, Khun, Holton, Lakatos e Feyrabend.48 Ao propor a prática de
um pensamento complexo, no sentido da origem do termo complexus, "aquilo que é
tecido junto", Morin reconduz a metáfora e, portanto, a literatura, a filosofia e as
humanidades, de modo geral, como fontes reveladoras da complexidade humana
ignorada pela ciência moderna:

No século XIX, enquanto o individual, o singular, o concreto, e o


histórico eram ignorados pela ciência, a literatura e, particularmente, o
romance – de Balzac a Dostoievski e a Proust –restituíram e revelaram
a complexidade humana. As ciências realizavam o que acreditavam ser
a sua missão: dissolver a complexidade das aparências para revelar a
simplicidade oculta da realidade; de fato, a literatura assumia por
missão revelar a complexidade humana que se esconde sob as
aparências de simplicidade. [...] Todas as obras-primas da literatura
foram obras-primas de complexidade: a revelação da condição humana
na singularidade do indivíduo (Montaigne), a contaminação do real
pelo imaginário (o Dom Quixote,de Cervantes), o jogo das paixões
humanas (Shakespeare). Melhor ainda: a literatura revela o valor
cognitivo da metáfora, que o espírito científico rejeita com desprezo.
[...] Ao levantar ondas analógicas, a metáfora supera a descontinuidade
e o isolamento das coisas. Fornece, frequentemente, precisões que a
língua puramente objetiva ou denotativa não pode fornecer. Assim
quando falamos da roupa, do corpo, do buquê, da perna de um vinho,

46
JAKOBSON. Lingüística e comunicação.
47
Toda a obra de Milton Santos, Paulo Freire, Edgar Morin, Boaventura de Sousa Santos, Cássio Hissa, Carlos
Walter Porto-Gonçalves, Walter Mignolo, dentre muitos outros.
48
MORIN. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 90.
33

compreendemos melhor sua qualidade do que por meio de referências


físico-químicas.49

Para Cássio Hissa, a comunicação entre conhecimentos e saberes realizar-se-ia a


partir de um diálogo epistemológico, ação que leva em conta os espaços de fronteira entre
os saberes na construção de uma epistemologia do complexo. Essa ação seria realizada, “na
prática, através da experiência dos próprios profissionais.”50 O autor considera que,
apesar de não haver ciência especificamente socioespacial, existem fragmentos do que
ele denomina conhecimento socioespacial, “[...] dispersos e, muitas vezes, carentes de um
contexto de integração, de aproximação de discursos e de ruptura de fronteiras
interdisciplinares,”51 presentes na literatura e também em outros saberes:

Em primeiro lugar, o que se compreende como conhecimento


socioespacial está mais próximo das humanidades do que das ciências
sociais. Existe um grupo importante na ciência que, que inclusive,
percebe as ciências sociais na perspectiva das humanidades, “buscando
antes de tudo ampliar a autocompreensão do homem, o que se
manifesta em certas formas da sociologia da cultura, da arte, da
literatura e do conhecimento.” Entretanto, muito embora não seja de
fato uma novidade, tal posição não se refere a uma sociologia da
cultura, da arte ou da literatura. O conhecimento socioespacial que
aqui se discute absorve a literatura como disciplina que tem
contribuições a dar, pois assumiria diversos saberes. Barthes reflete
sobre a importância da literatura, observando que – na criação de uma
imagem ou caricatura – na perspectiva de exclusão das disciplinas do
ensino, a disciplina literária deveria ser salva, “pois todas as ciências
estão presentes no monumento literário.”52

Boaventura de Sousa Santos traça o perfil de uma ordem científica emergente


cujo percurso leva em conta a recondução das humanidades na prática, proposta por
ele, de uma ecologia de saberes: "a promoção de diálogos entre o saber científico ou

49
MORIN. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, p. 91-92.
50
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 285.
51
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 285.
52
HISSA. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade, p. 288-289.
34

humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais,


urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem
africana, oriental etc) e que circulam na sociedade."53 A ecologia de saberes seria
viabilizada, segundo o sociólogo, por um trabalho de tradução, complementar ao que
ele denomina sociologia das ausências54 e sociologia das emergências:

A tradução entre saberes assume a forma de uma hermenêutica


diatópica. Consiste no trabalho de interpretação entre duas ou mais
culturas com vista a identificar preocupações isomórficas entre elas e as
diferentes respostas que fornecem para elas. Tenho vindo a propor um
exercício de hermenêutica diatópica a respeito da preocupação com a
dignidade humana entre o conceito ocidental de direitos humanos, o
conceito islâmico de umma e o conceito indu de dharma (SANTOS,
1995a:337-347; 2003b:444-451). Dois outros exercícios de
hermenêutica diatópica parecem-me importantes. O primeiro consiste
na tradução entre diferentes concepções de vida produtiva entre as
concepções de desenvolvimento capitalista e, por exemplo, a
concepção do swadeshi proposta por Ghandi. [...] O segundo exercício
de hermenêutica diatópica consiste na tradução entre várias
concepções de sabedoria e diferentes visões do mundo. Tem lugar, por
exemplo, entre a filosofia ocidental e o conceito africano de sageza
filosófica. Este último é uma contribuição inovadora de Odera Oruka
(1990a, 1990b, 1998), entre outros. Assenta numa reflexão crítica
sobre o mundo, protagonizada pelos sages, como os designa Odera
Oruka, sejam eles poetas, médicos tradicionais, contadores de
histórias, músicos ou autoridades tradicionais.55

O conhecimento socioespacial, presente nos textos literários, nas artes verbais,


formulado pela geografia ou por qualquer outro campo de conhecimento ou saber é,
antes de qualquer coisa, resultado de uma tradução, em sentido em amplo, do espaço.
A tradução, transcriação como operadora da leitura da ciência que leva em conta a

53
SANTOS. A universidade do século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade, p. 76.
54
A sociologia das ausências opera identificando experiências sociais produzidas como ausentes, de modo a promover
movimentos que as torne presentes, possíveis, emergentes.
55
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 124-125.
35

revalorização dos saberes, num movimento contrário ao do seu desperdício,56 seria


viabilizada pela escuta das diferentes vozes portadoras dos mais diversos saberes. Escuta
que pressupõe o reconhecimento do outro em nós, a sua acolhida, ao contrário da sua
aniquilação e exclusão do processo de produção do conhecimento:

[...] um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco


séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas tem vindo a
ser desperdiçadas. Para recuperar algumas destas experiências, a
ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais
característico, a tradução intercultural. Embebidas em diferentes
culturas ocidentais e não-ocidentais, estas experiências não só usam
linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes
universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor.57

Da negação da diferença ao seu reconhecimento, o movimento em direção ao


outro, demanda um pensamento paradoxal em que semelhança e diferença, identidades
e alteridades contrastam-se e complementam-se, constituindo um todo complexo:
“Diferentemente do conhecimento científico, que desloca a ignorância para o outro, o
saber convida a ignorância por saber mais, por desaprender mais a partir do que
permanentemente se aprende.”58 O reconhecimento do outro como sujeito é um
desafio que requer consciência e humildade. O processo de transformação e integração
dos saberes a ser viabilizado pela tradução convoca diferentes sujeitos a se reunirem
diante do mesmo utópico desafio: aprender a ouvir, a falar, a traduzir, a transcriar,
estabelecendo um diálogo sem ostracismo e sem nivelamento, sem a violência da
predominância, da dominação ou da colonização de nenhuma das partes.. Permanência
de Babel, reformulada, livre da “eterna” condenação à incomunicabilidade.

56
SANTOS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
57
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, p. 61.
58
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 72.
36

Epistemologias de fronteira

“Todas as ciências são de síntese ou simplesmente não são ciências,”afirmou


Milton Santos59 ao se referir ao fato de a geografia ter se afirmado, desde o início do
seu processo de constituição, como ciência capaz de trazer para o seu campo de estudo
outros campos das ciências, tanto humanas quanto naturais e exatas. Edgar Morin
assinala que a ciência de qualquer tempo é necessariamente transdiciplinar.60 Mais
recentemente, ao refletir sobre certo decréscimo da experiência do pensamento em
tempos de mutações,61 o físico e cosmólogo Luiz Alberto Oliveira relembra Heiddgger e
Nietzsche:

Mas a fissura entre a Ciência (e decerto, suas derivações técnicas) e a


atividade positiva do pensar já havia sido antevista por Nietzsche, que
mesmo num período em que vigorava amplamente a ideologia do
"Progresso" – talvez o mais autêntico substrato mítico da Cosmovisão
clássica – assinalou com agudeza que "[...] o problema da Ciência não
poderá será abordado no domínio da Ciência."E seguindo esta linha
encontraremos, no próprio coração da postura crítica das Humanidades
perante o vulto assumido pelos saberes e práticas da Ciência Natural, a
bem conhecida observação de Heiddgger: "A ciência não se move na
dimensão da Filosofia, mas, sem o saber, se liga a essa dimensão. [...] A
Ciência, enquanto Ciência, não pode decidir o que são Movimento,
Espaço, Tempo. Portanto, a Ciência não pode pensar com seus
métodos (a Física não é o método da Física!) [...] É próprio de sua
essência que dependa do que pensa a Filosofia, mas se esqueça e
negligencie o que aí se exige ser pensado."62

Convencionalmente, a epistemologia se refere ao exercício cujo propósito é


estudar o conhecimento disciplinar: “os estudos epistemológicos, portanto, têm o

59
SANTOS. Por uma geografia nova: da crítica à geografia a uma geografia crítica, p. 126.
60
MORIN. Ciência com consciência.
61
NOVAES. O homem máquina: a ciência manipula o corpo; NOVAES. Mutações: ensaios sobre as novas
configurações do mundo; NOVAES. A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações;
NOVAES. Mutações: a experiência do pensamento.
62
OLIVEIRA. O que Poincaré sussurrou a Valéry, p. 390.
37

objetivo de questionar a natureza das disciplinas científicas, a lógica que as estrutura, o


valor que lhes é concedido, assim como as suas próprias finalidades.”63 A uma ciência
que pretende se transformar, não basta, entretanto, a prática da reflexão e do diálogo
entre disciplinas no processo de produção do conhecimento científico. A consciência da
complexidade do mundo exige de nós uma epistemologia que se abra à diversidade, à
pluralidade, à transitividade e ao movimento contínuo entre campos do conhecimento e
saberes contra todo tipo de monocultura na construção do conhecimento.
Epistemologias de fronteira que permitam o encontro, o contato e o diálogo entre
diferentes alteridades para que possam ser ampliadas as possibilidades de construção de
linguagens que, de fato, se comuniquem e assim se enriqueçam e se fortaleçam: “O
princípio de incompletude de todos os saberes é condição da possibilidade de diálogo e
debate epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento.”64
Ao conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos
saberes realizada ao longo da modernidade por uma única epistemologia que tem se
imposto como dominante, Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses
denominam Epistemologias do Sul:

intervenções epistemológicas [...] que valorizam os saberes que


resistiram com êxito, e as reflexões que estes têm produzido e
investigam as condições de um diálogo horizontal entre
conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de
saberes.65

As epistemologias do sul são um convite a um amplo reconhecimento


das experiências de conhecimentos do mundo. Incluindo, depois de
configuradas, as experiências do Norte global. Abrem-se , assim,
pontes insuspeitadas de intercomunicação, vias novas de diálogo. No
plano epistemológico, o mundo não pode se contentar com breves

63
HISSA. Saberes ambientais: a prevalência da abertura, p. 47.
64
SANTOS. A Gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 107.
65
SANTOS; MENESES. Prefácio, p. 11.
38

resumos de si próprio, mesmo sabendo que a ‘versão completa e


integral’ é impossível.

O presente estudo procura se desenvolver a partir da reflexão sobre o lugar-sertão


no mundo e também sobre o mundo do sertão no lugar, levando em conta o contato
entre diferentes saberes, científicos, literários, da arte verbal, do senso comum, e a
riqueza de experiências que esses saberes são capazes de nos proporcionar.
O PALIMPSESTO ESPACIAL
39

Grafias, rasuras e rugosidades

As dinâmicas dos processos de transformação do espaço-mundo podem ser


interpretadas tomando-se o espaço como um palimpsesto66 cujo corpo se faz de camadas
diversas de grafias, compreendidas tanto como as alterações físico-sociais
experimentadas por ele, espaço, quanto pelos discursos diversos, das ciências, das artes
verbais, das diversas literaturas, do senso comum, que representam essas alterações.
Considera-se que uma organização espacial vá se inscrevendo sobre a outra a partir de
fatos históricos, como, por exemplo, o processo de urbanização caótico gerado pela
industrialização, o desenvolvimento e a aliança da técnica e da ciência e a
transnacionalização de uma economia que se impõe como hegemônica. A imagem de
um palimpsesto sugere a existência de grafias antigas que teriam sido raspadas,
omitidas, apagadas para dar origem a novas grafias. Num palimpsesto, entretanto, nem
sempre a sobreposição das diversas e distintas grafias, em tempos diversos, representa a
supressão completa da grafia anterior, já que o processo de raspagem, rasura das
superfícies, não é absoluto. Além disso, na estruturação dos palimpsestos, processo que
se articula ao tempo, à história, está necessariamente presente a memória. Ao se
considerar que o visível incorpora o olhar que carregamos em nós (olhar interior),
restam sempre na memória dos lugares (nos sujeitos) imagens que já não estão na
superfície mais recente. Ecléa Bosi67 nos mostra a importância dos idosos na
reconstituição da história dos lugares. Guardados nas vivências mnemônicas dos
velhos, e reveladas em depoimentos, lá estão os antigos lugares e os acontecimentos

66
Metáfora muito utilizada por diversos pesquisadores, como, por exemplo, Milton Santos, na elaboração do
conceito de paisagem (Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia), David
Harvey, na compreensão da cidade contemporânea (Espaços urbanos na aldeia global: reflexões sobre a condição
urbana no capitalismo do final do século XX), Gérard Genette, na elaboração do conceito de transtextualidade
(Palimpsestos).
67
BOSI. Memória e sociedade: lembranças de velhos.
40

neles vivenciados – a casa, o bairro, a rua, a escola, o centro, os jardins – espaços


afetivamente compartilhados num tempo específico que através da memória nos abre a
possibilidade de acesso às primeiras inscrições do palimpsesto.
Na mais recente camada de escrita, na mais recente superfície, emergem sempre
traços diversos das escritas anteriores, grafias e grafemas68 que resistem ao processo de
raspagem e emergem nas novas superfícies, constituindo superfícies complexas:69 um
todo heterogêneo, um mosaico de formas, funções e fluxos de diferentes tempos e
espécies. São as rugosidades de que nos fala Milton Santos.70
Como um único pergaminho cujo corpo, dinâmico, processual, está em
contínuo movimento, agregando grafias de todos os tipos e tempos, o espaço vai se
tornando cada vez mais complexo, constituindo-se de múltiplas superfícies, todas
esgarçadas, deixando à mostra, por suas fissuras, o intrincado e heterogêneo tecido, de
cada vez mais difícil legibilidade. É assim que se pode observar, por exemplo, trechos,
traços, linhas inteiras de cidades antigas, no sentido estrito, ou de cidades de
temporalidades diversas, convivendo lado a lado com fragmentos hipermodernos de
cidades contemporâneas: Bizâncio, Constantinopla, Istambul. Quando se pensa em
uma escala menor, nos diversos lugares dos interiores das cidades, nas cidades das
cidades,71 são ainda mais diversas as temporalidades que co-habitam a cidade
contemporânea, traços que se veem nos diferentes modos de vida que se espalham
nesse tecido heterogêneo, rugoso, denso de diversidade, de movimento, de transição, a
cidade. Esse processo, de complexificação do espaço, conduz-nos necessariamente à
releitura, à reformulação constante dos conceitos-categorias que nomeiam partes do
seu corpo, como, por exemplo, a paisagem, o lugar, o território, a região, assim como os

68
A palavra é utilizada aqui no sentido de traços, sinais, fragmentos de letras obliteradas.
69
HISSA; MELO. O lugar e a cidade: conceitos do mundo contemporâneo, p. 297.
70
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
71
HISSA. As cidades das cidades.
41

demais conceitos que buscam compreender o homem e sua vida. Todos os conceitos
são dinâmicos, processuais, da ordem do movimento, da mutação, já que o espaço é
dinâmico, assim como a vida.
Muito se discutiu a respeito da velocidade das transformações tecnocientíficas e,
por extensão, econômicas e culturais da contemporaneidade que, ao promoverem com
seus fluxos de alcance mundial o encurtamento das distâncias através da
instantaneidade das informações, seriam capazes de comprimir tempo e espaço.
Coberto por uma película que se impõe como global, o mundo emergiria por meio de
processos contemporâneos associados à transnacionalização da economia. Decorrem
daí, por um lado, interpretações que procuram compreender os lugares, os territórios,
as regiões, as paisagens como subordinados ao processo de homogeneização: a
uniformização de valores e comportamentos conduzindo ao pensamento único72
ameaçaria as identidades das culturas local, regional, nacional, decretando a morte da
tradição. Por outro lado, as transformações experimentadas pelo mundo dos lugares e
dos territórios são enaltecidas por um discurso hegemônico como extraordinárias,
porque capazes, entre muitas proezas, de suprimir os limites do tempo e do espaço.
Diante da comunicação verbo-visual em “tempo real,” a aproximação dos lugares, dos
indivíduos, das populações e, hipoteticamente, a elevação do padrão de vida pela
facilidade de acesso aos produtos, criou-se a imagem da globalização total a partir,
apenas, da globalização econômica, que se manifesta, de fato, como
transnacionalização do capital financeiro. Como se o mundo pudesse se tornar acessível
a todos.
Tal discurso constrói a ideia de mundo como fábula,73 como nos mostra Milton
Santos, ocultando a perversidade da globalização tal qual ela se apresenta de fato, que

72
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
73
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
42

resulta no abandono da educação e da saúde, na intensificação da degradação


ambiental e na ampliação das desigualdades sociais. A imagem de homogeneização é
bastante imprecisa: toda superfície é passível de esgarçamentos e fissuras através dos
quais se entreveem superfícies de diversidade, diferenças, exclusão. A mais
contemporânea superfície do mundo é atravessada pela diversidade de lugares, pelas
inesgotáveis diferenças dos modos de vida que recusam a ideia de homogeneização. Os
tecidos de revestimento das camadas de grafias espaciais, esgarçados como resultado da
heterogeneidade típica do espaço, evidenciam os limites ao escoamento total das
superfícies grafadas, à sua padronização ou homogeneização, à rasura absoluta, isenta
de vestígios, imune aos borrões, livre de grafemas: “[...] as condições preexistentes em
cada lugar, o seu estoque de recursos, materiais ou não, e de organização – essas
rugosidades [...]”74 diferenciam os lugares, fazendo com que deles se manifestem as suas
próprias possibilidades de resistência, os limites à sua homogeneização.
A velocidade dos ritmos digitais, eletrônicos, que se apresentam como globais,
assim como a diversidade de fluxos de todos os tipos, especialmente os de consumo, a
instantaneidade e a simultaneidade de processos, constituem, no conjunto, uma
“superfície de territórios,” que atravessa o mundo dos mais diversos lugares. O mundo
não se reduz, entretanto, apenas à dinâmica do capital. A vida é feita de vários
significados passíveis de identificação nos lugares, de diferenças que emergem e
esgarçam o fino tecido da superfície de mundo tomada como unívoca. Cabe aqui a
distinção dos significados que atribuímos à palavra mundo:

[...] o “mundo inteiro" é uma ficção. A chamada “aldeia global” não


existe. É apenas uma construção. Eu sempre desconfio de tudo o que é
apresentado como sendo global, pois falta sentido a esse conceito.

74
SANTOS. A natureza do espaço: técnica, tempo, razão e emoção, p. 203.
43

Meu ponto de partida são os valores. Estes podem até se tornar


mundiais, mas o ponto de partida é local.75

Uma chave de leitura para as diversas superfícies de mundo nos é apresentada


pela expressão Corpo do mundo e suas derivações teóricas, cunhada por Cássio Hissa a
partir de sua leitura da bela declaração de Milton Santos:

O mundo inteiro poderá mesmo ser visto como uma ficção. Mas isso
também valerá para a cidade inteira, o lugar inteiro, o território inteiro.
Há recortes de mundo no interior do corpo do mundo. Do mesmo
modo, há recortes de lugar, de cidades, assim como recortes de território
no interior do corpo do território.76

Ao longo do corpo do território, produzem-se territórios de economia globalizada


e também cartografias omissas,77 lugares e territórios de exclusão social. Dependendo do
grau de atopia,78 imposto pelas rasuras dos fluxos hegemônicos, dessas cartografias
podem emergir ou não lugares e territórios de cidadania e de resistência que se
organizam a partir de outros tipos de economia, outros ritmos, outras temporalidades,
representando limites à mesma racionalidade produtora desse tecido de lugares. Entra-
se aqui nos diversos mundos presentes no interior do corpo do mundo.
Mesmo a partir do recorte de mundo representado pelo território
transnacionalizado, não se sustenta a leitura da unificação e da integração dos mercados
que originaria uma superfície homogênea, feita de processos padronizadores. Na
prática, essa interpretação é claramente insustentável, não apenas pelas intensas
diferenças históricas entre países, regiões, cidades, lugares, mas também pela evidência
de que, na lógica de acumulação de capitais, os recursos do ambiente se esgotariam se a

75
SANTOS; HARAZIM. O mundo não existe.
76
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 37.
77
As cartografias omissas não são constituídas de lugares omissos, mas sim, por lugares que foram omitidos, obliterados,
rasurados, em parte, por territórios hegemônicos. Os territórios hegemônicos produzem as cartografias mais visíveis
do que chamamos mundo.
78
A atopia será tratada no próximo capítulo.
44

emergência da riqueza dos países pobres fosse padronizada no mundo a partir do


desenvolvimento dos países ricos. A leitura do mundo, feita por esses processos
padronizadores, aponta a inclusão de poucos e a exclusão da maioria.
Ainda sobre a declaração de Milton Santos, na poética leitura de Cássio Hissa:

O mundo se expressa nos lugares, escreverá o geógrafo. Cada qual a


seu modo, os lugares são expressões do mundo. Mas a que mundo ele se
refere? Não, certamente, à geometria do mundo ou à sua esfericidade
planetária. Ele se refere ao mundo dos sujeitos da existência, que,
inevitavelmente se dá nos lugares, na escala do cotidiano. Não se existe
no mundo, mas nos lugares onde a vida social se desenrola.

O lugar, o mundo, o território são fragmentados, heterogêneos, indivisíveis,


esquizofrênicos,79 na medida em que apenas parte deles acolhe as imposições do corpo de
mundo que se impõe como hegemônico, enquanto que outra parte, constituída pelo
aumento do contingente dos excluídos desse corpo de mundo funciona como limites à
imposição de uma única racionalidade:

A tendência atual é que os lugares se unam verticalmente e tudo é feito


para isso, em toda parte. Créditos internacionais são postos à
disposição dos países mais pobres para permitir que as redes se
estabeleçam ao serviço do grande capital. Mas os lugares também
podem se unir horizontalmente, reconstruindo aquela base da vida
comum suscetível de criar normas locais, normas regionais... Na união
vertical, os vetores de modernização são entrópicos. Eles trazem
desordem às regiões onde se instalam, porque a ordem que criam é em
seu próprio, exclusivo e egoístico benefício. Se aumenta a coesão
horizontal isso se dá ao serviço do mercado, mas tende a corroer a
coesão horizontal que está a serviço da sociedade civil como um todo.
Mas a eficácia dessa união vertical está sempre sendo posta em jogo e
não sobrevive senão às custas de normas rígidas, ainda que se fale em
neoliberalismo. Enquanto isso, as uniões horizontais podem ser
ampliadas, mediante as próprias formas novas de produção e
consumo. Um exemplo é a maneira como produtores rurais se reúnem
para defender os seus interesses, o que lhes permitiu passar de um
consumo puramente econômico, necessário às respectivas produções a

79
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
45

um consumo político localmente definido e que também distingue as


regiões brasileiras umas das outras. Devemos ter isso em mente ao
pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a
partir da base da sociedade territorial, encontrar um caminho que nos
libere da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da
possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o
homem na sua dignidade.80

No nível das conquistas localizadas, no âmbito dos sujeitos do mundo e das


comunidades locais, “é preciso fazer com que o local contra-hegemônico também
aconteça globalmente,” como sugere Boaventura de Sousa Santos.81
O sociólogo faz referência às possibilidades de consolidação de movimentos
contra-hegemônicos de amplitude global, desenvolvidos através do diálogo entre
movimentos e práticas culturais contestadoras.82 Desse diálogo, que adquire corpo
através de processos interculturais de tradução, emergem fortes movimentos cuja lógica
se rivaliza com a racionalidade própria da globalização hegemônica. Esse diálogo, a
construção da contra-hegemonia, se dá na “escala” do lugar.83 À globalização dita
hegemônica se contrapõe um conjunto de globalizações, muitas delas de âmbito
local/global:

A ideia é que [...] esta forma de globalização, apesar de hegemônica,


não é a única, e tem vindo, de fato, a ser crescentemente confrontada
por uma outra forma de globalização, uma globalização alternativa,
contra-hegemônica, constituída de um conjunto de iniciativas,
movimentos e organizações que, através de vínculos, redes e alianças
locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal, mobilizados pela

80
SANTOS. O retorno do território, p. 19-20.
81
SANTOS. Os processos da globalização, p. 74.
82
SANTOS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
83
“Uma das armadilhas da globalização neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinção entre o local e o
global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia [...]. Ao nível dos processos
transnacionais da economia à cultura, o local e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda [...]”
(SANTOS. Os processos da globalização, p. 73)
46

aspiração de um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam


possível e a que sentem ter direito.84

É desse modo que a partir do lugar se produzem territórios de cidadania e de


resistência que funcionam como limites às perversidades socioambientais da chamada
globalização, criando alternativas ao pensamento único, imposto por um corpo
mercantil de mundo. Utilizando o território (espaço habitado) como base para a
ampliação da consciência universal, como observou Milton Santos.85

84
SANTOS. Prefácio, p. 13.
85
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
47

Cartografias omissas

Mapas omissos

Quem vai para as nuvens passa


necessariamente pela cidade onde nasci:
um povoado com igrejas e casas
incrustadas nos morros, a torre com
a imagem encardida do santo calvo
segurando um ramo de arroz e os
dedos em pregação para o ar
e as andorinhas.
Todos os mapas são omissos quanto
a esse ofuscante santuário da infância.
É que de tão alto, o lugarejo só é visto
nos relâmpagos.

Cândido Rolim, Exemplos alados.

Em contínuo movimento, permanente transição, o espaço experimenta ritmos


cada vez mais intensos de aceleração de seus processos socioespaciais. A dinâmica desses
ritmos, impulsionada pelo avanço e pela aliança da técnica e da ciência, é dada pela
ideia de desenvolvimento e de consumo a qualquer preço. Na sociedade do espetáculo,86
mundo da ditadura do mercado, da mercadoria e do consumo, redesenham-se a todo o
tempo novas cartografias, redefinem-se continuamente os lugares, os territórios, suas
paisagens. As mais recentes cartografias do mundo, produzidas pelos fluxos cada vez
mais velozes de capitais, informações, comportamentos e sujeitos, são feitas de mapas
de lugares interconectados transnacionalmente e também daqueles economicamente
pouco conectados, em diversos níveis, cujas linhas emergem e se espraiam por todo o
tecido cartográfico. Evidenciam-se, assim, nos territórios de economia globalizada,
cartografias omissas. Compondo o mesmo tecido da superfície-espaço, emergem esses
lugares-territórios de exclusão junto aos lugares-territórios de economia globalizada,

86
DEBORD. A sociedade do espetáculo.
48

constituindo rugosidades. As favelas que emergem dos interiores das valorizadas (do
ponto de vista do mercado) zonas-sul das grandes cidades são uma caricatura, um
detalhe dessa cartografia. Essas rugosidades representam limites às tradicionais clivagens
ideológicas dicotômicas, arquétipos espaciais do subdesenvolvimento,87 tais como, centro e
periferia, cidade e campo, Norte e Sul. Ao se inscreverem ao longo dos mapas imperiais
transnacionais do capital financeiro, ainda que invisibilizadas por esses mapas, as
cartografias omissas representam também a crise ou a necessidade de transformação dos
ideais de vida impostos pela modernidade, na contemporaneidade, radicalizada.
O cenário de radicalização da modernidade se faz sentir de forma cada vez mais
intensa através da consolidação da lógica capitalista mundial alimentada pela
transnacionalização da economia e pela implementação em larga escala da política
neoliberal. Prática que reafirma a livre iniciativa, promove, sob o signo do
desenvolvimento e suas metas suspeitas, a apologia do mercado, e impõe o embuste do
Estado mínimo. Os Estados Nacionais reduzem a sua regulação, as suas funções sociais,
para se aliar às agências de fomento do capital financeiro internacional, como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, no fortalecimento desse capital. Grandes
empresas a serviço do capital financeiro “exercem” cada vez mais a regulação social no
lugar do Estado. Privatiza-se gradativamente a vida privada, com o domínio de serviços
básicos, como, por exemplo, a saúde, nas mãos de pequenos grupos de grandes
empresários. Como resultado de toda essa política, se vê uma mundialização
intensamente desigual do mercado, com a crescente submissão dos países mais pobres
às exigências do capital financeiro, a injusta distribuição dos benefícios da tecnologia e
da produção e divulgação do conhecimento. E, ainda, a ampliação das desigualdades
sociais e da degradação ambiental, o surgimento e a valorização de um imaginário
social consumista e individualista e a mercantilização das relações sociais, esses dois

87
MUSSSET. De Lênin a Lacoste: os arquétipos espaciais do subdesenvolvimento.
49

últimos muito bem distribuídos entre os mais diversos grupos sociais. O mercado
atravessa todos os tipos de lugares, produzindo e estimulando o consumo em toda
parte: mesmo os lugares pouco conectados às redes transnacionais de mercado
experimentam explicitamente transformações radicais em suas paisagens. Os modos de
vida, em geral, são compreendidos e exercitados como modos de ter. A informação e o
consumo se transnacionalizam, produtores e produtos da unicidade da técnica, do tempo
e do motor da vida econômica e social,88 bases materiais do pensamento único imposto
pela globalização econômica.
Mas, tal como nos mostra Milton Santos,89 apesar da perversidade a partir da
qual se distribuem no mundo os avanços da técnica e da ciência, parte desses avanços
chega inadvertidamente aos grupos sociais menos favorecidos, fornecendo-lhes bases
para a criação de territórios de cidadania fundados em outras racionalidades. Ao
atravessar diferentes lugares e territórios, o mundo do mercado distribui seus produtos
por toda parte. A informação e o consumo não são mais privilégio de um único grupo
social. Emergem pelo mundo movimentos contrários ao globaritarismo,90
instrumentalizados pela próprias novas formas de produção e consumo. As músicas de
protesto dos rappers, divulgadas em clipes, DVDs e CDs de produção doméstica, a sua
ocupação de espaços urbanos, através do movimento hip-hop, são apenas alguns
exemplos de possibilidades de construção de territórios de afirmação política e
econômica de grupos sociais menos favorecidos. Territórios alternativos àqueles que se
impõem como únicos, globais, hegemônicos, nas mais diversas escalas. Cria-se, assim,
uma tensão permanente de valores de produção da vida entre os lugares
hiperglobalizados economicamente e aqueles menos “globalizados,” constituindo

88
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
89
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
90
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
50

férteis territórios de novas sinergias e, portanto, territórios de utopias nos processos de


transformação social.
As cartografias omissas representam, desse modo, um espaço paradoxal, feito de
territórios de atopias e utopias, lugares capazes de produzir ou não territórios de
resistência e de cidadania que se apresentam em outros tempos, outras técnicas, outros
ritmos, outras economias, diferentes do tempo, da técnica e do pensamento único
impostos pelos ritmos “globais.”
51

Paisagens, lugares e territórios

Nas atuais condições da globalização, a metáfora proposta por Pascal parece ter
ganho realidade: o universo visto como uma esfera infinita, cujo centro está em
toda parte... O mesmo se poderia dizer daquela frase de Tolstoi, tantas vezes
repetida, segundo a qual, para ser universal, basta falar de sua aldeia... Como
nos lembra Michel Serres, “[...] nossa relação com o mundo mudou. Antes, ela
era local-local; agora é local-global [...] Recorda esse filósofo, utilizando um
argumento aproximativamente geográfico, que “hoje, temos uma nova relação
com o mundo, porque o vemos por inteiro. Através dos satélites, temos imagens
da Terra absolutamente inteira.”

Milton Santos

Paisagens, lugares, territórios, regiões são termos recorrentes do imaginário


espacial, compreendido, genericamente, como a diversidade de discursos provenientes
tanto de diferentes saberes quanto da produção teórica das diversas áreas do
conhecimento que tratam do espaço. Na linguagem cotidiana, utilizados comumente
na acepção de área, terreno, extensão de terra, tais termos, incluindo-se aí o espaço,
frequentemente se confundem. Em determinados sentidos, é possível tomar um
conceito pelo outro pelas suas próprias possibilidades de uso. Categorias de análise dos
estudos socioespaciais, espaço, região, território, lugar e paisagem se concebem em
natureza intimamente relacional, demandando, por isso, abordagens teóricas que se
atravessam. O dinamismo do espaço e das suas formas de representação faz com que
essas categorias ganhem novos sentidos como resultado da própria dinâmica espacial.
Os esforços para que a geografia fosse sistematizada como ciência, no contexto
da compartimentalização e hiperespecialização das ciências da modernidade do fim do
século XIX consistiam, num primeiro momento, em reunir e interpretar as descrições
de paisagens, dispersas em textos filosóficos, literários e relatos de viajantes. Tais
esforços, partindo dos alemães Alexander von Humboldt (1769-1859) e Karl Ritter
52

(1779-1859), tomavam a geografia como a ciência das paisagens.91 O conceito de


paisagem, numa época marcada pelo pensamento determinista-positivista, não dava
margem, entretanto, a abordagens que incluíssem a sua dimensão subjetiva, simbólica,
tal como acontece na contemporaneidade. Ainda que o ponto de partida para o estudo
da paisagem fossem descrições e relatos de viagens, gêneros (mais do que muitos
outros) bastante suscetíveis a uma densa carga de subjetividade. Vera Mayrinck Melo
faz um breve esboço das alterações experimentadas pelo uso e pelo conceito de
paisagem:

No início do século XX, a paisagem foi um dos primeiros temas a ser


abordado numa perspectiva cultural pelos geógrafos alemães, sendo
posteriormente incorporada pela geografia cultural, nos anos 20, por
meio do geógrafo americano Carl Ortwin Sauer, da Escola de
Berkeley. No entanto, essa abordagem privilegiou a análise
morfológica da paisagem, considerando apenas aspectos materiais da
cultura. A paisagem cultural, analisada sob essa perspectiva, perdurou
até a década de 1940. Durante as décadas de 1950 e 60, o estudo da
paisagem não foi predominante, mas a partir da década de 1970, de
acordo com Corrêa, os geógrafos se reconciliaram com a tradição que
remonta ao passado, voltando a paisagem a ser um dos conceitos-
chave da geografia, mas inserida em outras abordagens. Dentre essas
novas abordagens são considerados os aspectos subjetivos da paisagem
[...].92

Todo conceito é datado pela história da cultura. O objetivo neste estudo não é
traçar uma historiografia dos conceitos de paisagem, lugar e território, recuperando as
várias significações que lhe foram atribuídas ao longo do tempo, mas refletir sobre eles
a partir de pensadores contemporâneos, como, por exemplo, Milton Santos. Este
estudo também não pretende apresentar definições dos referidos conceitos (que até
mesmo podem se rivalizar), fornecendo-lhes contornos precisos, mas apenas discuti-los

91
CAPEL. Filosofia y ciencia en la geografía contemporánea: una introducción a la geografía.
92
MELO. Paisagem e simbolismo, p. 30-31.
53

a partir de uma outra ótica, a das suas relações, de modo a construir algumas
referências a partir das quais se aborda a temática central desta pesquisa.
Milton Santos propõe que se pense o espaço como “um conjunto indissociável
de sistemas de objetos e de sistemas de ações”93, ou como um sistema de fixos e fluxos.94
Os objetos são compreendidos como o resultado das interferências e realizações
materiais do homem e das sociedades no espaço ao qual se costuma designar
“natureza,”95 ou seja, as interferências produzidas pelo trabalho, a partir do
desenvolvimento da técnica. São os instrumentos de trabalho e as forças produtivas, os
fixos, ou seja (num determinado momento histórico), pontes, portos, edifícios,
rodovias, fábricas, hospitais, indústrias etc. O sistema de ações (ou de fluxos) pode ser
pensado como a diversidade de relações que os homens estabelecem entre si, os
eventos,96 mediados pelo sistema de objetos. Os dois sistemas, o de fixos e o de fluxos,
encontram-se permanentemente em interação: a existência de um implica a do outro; o
fortalecimento de um implica o do outro. Ambos dizem respeito ao espaço que se
produz e que, utilizado pelas sociedades, concede existência aos territórios habitados.97
O espaço pode ser compreendido como uma espécie de categoria-matriz,98
simultaneamente continente e conteúdo, uma vez que contém as demais categorias e ao
mesmo tempo é contido por elas. Do espaço, podem-se derivar a paisagem, o lugar, o
território, a região, que se concebem numa relação sistêmica, o que não significa que
essas categorias não possam receber abordagens específicas. É certo que se pode, para
determinadas finalidades interpretativas, abordar isoladamente cada uma delas. Essa

93
A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 21.
94
Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 77.
95
Através dos processos de mercantilização do mundo, cujo marco inaugural é a modernidade ocidental do século
XVI, exteriorizamos progressivamente de nós a natureza a fim de mercantilizá-la, mercantilizando-nos. Na
modernidade radicalizada, esses processos se intensificam a partir da transnacionalização do capital financeiro.
96
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 86.
97
SANTOS. O retorno do território.
98
HISSA. Categorias geográficas: reflexões sobre sua natureza.
54

iniciativa é realizada com frequência, e o mais rotineiro é que assim se faça. Mas, como
observa Milton Santos,99 todas essas categorias se referem a um convergente universo
teórico e tal situação merece ser considerada: é o que interessa ao presente estudo.
Todos os lugares têm as suas paisagens, referem-se a determinados territórios,
estão inseridos em regiões. Todas essas categorias derivam de processos históricos,
culturais, políticos, econômicos, e, também, biológicos, físico-químicos que se
atravessam, constituindo mundos de caráter complexo. Feitos da mesma “matéria” – o
espaço – tanto a paisagem, quanto o lugar, o território e a região constituem-se de
formas, funções e fluxos em permanente processo de mutação. Os objetos (elementos
artificiais) produzidos pelos homens, assim como os elementos naturais, são dotados de
formas e funções, continuamente metamorfoseadas pelo desenvolvimento do sistema
técnico ao longo do tempo, pela ação dos fluxos e suas lógicas de produção do espaço,
pela cultura e suas subjetividades. Desempenham funções capazes de criar novas
formas, enquanto outras permanecem, com novas funções ou não.
Refletindo sobre a paisagem, Milton Santos escreve:

[...] uma região produtora de algodão, de café ou de trigo. Uma


paisagem urbana ou uma cidade de tipo europeu ou de tipo
americana. Um centro urbano de negócios e as diferentes periferias
urbanas. Tudo isso são paisagens, formas mais ou menos duráveis. O
seu traço comum é ser a combinação de objetos naturais e de objetos
fabricados, isto é, objetos sociais, e ser o resultado da acumulação de
atividades de muitas gerações. Em realidade, a paisagem compreende
dois elementos: 1. Os objetos naturais, que não são obra do homem
nem jamais foram tocados por ele. 2. Os objetos sociais, testemunhas
do trabalho humano tanto no passado, como no presente.100

99
Território e sociedade: entrevista com Milton Santos.
100
SANTOS. Pensando o espaço do homem, p. 53-54.
55

Lagos, encostas, planícies, pontes, edifícios: formas às quais atribuímos funções


diversas e que nos assomam aos olhos quando contemplamos algum ponto do espaço.
Mais uma vez, Milton Santos esclarece:

Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem.
Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista
abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores,
movimentos, odores, sons etc.101

Para que possamos ver, entretanto, a paisagem como algo aparentemente fora de
nós, vemos com os nossos olhos, feitos da nossa história e da nossa subjetividade que,
por sua vez, estão inseridas no mundo das histórias e das subjetividades coletivas. A
paisagem está fora e, simultaneamente, dentro de nós (imagens históricas, interiores),
tais como as percebemos pelos sentidos. Fernando Pessoa102 complementa:

Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo


fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum
estado de alma, temos dentro de nós, impressionando-nos os sentidos
que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo
por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo
exterior num determinado momento da nossa percepção. Todo o
estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.
Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se
agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria
um dia de sol no nosso espírito. E − mesmo que não se queira admitir
que todo o estado de alma é uma paisagem – pode-se ao menos
admitir que todo o estado de alma se pode representar por uma
paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém
compreenderá que os meus pensamentos estão tristes. Assim, tendo
nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e
sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo
consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se,
interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual
for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo − num dia de sol

101
SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 61.
102
Esses apontamentos sobre a paisagem, embora não tenham sido assinados, foram atribuídos a Fernando Pessoa, e
publicados pela primeira vez na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa.
56

uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva − e,
também a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma − é de
todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na
ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim.103

A paisagem não é um dado físico, objetivo, fora do sujeito. Domínio do visível,


existe como resultado de um olhar, de uma sensação. O visível, por sua vez, não é
apenas o exercício de um único sentido, a visão, mas de uma constelação de sentidos.
Trata-se de um quadro dinâmico que se constrói a partir do olhar (inclusive interior)
de um sujeito sobre um ponto qualquer do espaço num determinado momento. Olhar
necessariamente atravessado pelo seu estado de alma, seus valores culturais, seus modos
de vida e a diversidade de sensações que o conjunto de objetos contemplados é capaz
de evocar na interação do sujeito com todas essas variáveis. Nesse quadro dinâmico,
cujas molduras são “conhecidas” apenas pelo observador, tudo pode ser cambiante, de
acordo também com as condições de luz ou com os fenômenos meteorológicos, os
odores, os ruídos, as emoções, que podem ser estéticas, mnemônicas, culturais. A
paisagem é a constelação de sensações visuais, olfativas, gustativas, auditivas, táteis,
“enquadradas” pelo olhar de um sujeito sobre um conjunto de objetos e seus fluxos
num determinado momento.
O conjunto de objetos “enquadrados” pelo olhar é também produzido pelas
lógicas sócio-econômicas e políticas de produção espacial do momento, quaisquer que
sejam as escalas dos recortes espaciais.
Os objetos são criados ao longo do tempo, dispondo-se em superfícies espaciais
diversas que se sobrescrevem e se atravessam, com seus fluxos, evidenciando a
coexistência e a convivência de formas e funções mais antigas com as mais recentes:

A paisagem não se cria de uma vez só, mas por acréscimos e


substituições; a lógica pela qual se fez um objeto no passado era a

103
PESSOA. O eu profundo e outros eus: seleção poética.
57

lógica da produção daquele momento. Uma paisagem é uma escrita


sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é
uma herança de muitos diferentes momentos.104

O palimpsesto: não apenas a paisagem, mas todo o espaço pode ser lido a partir
dessa imagem. Milton Santos complementa:

A paisagem nada tem de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade


passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e
políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados. A
mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem que se
transformam para se adaptar às novas necessidades da sociedade.105

A heterogeneidade do espaço se dá como resultado da ação das diferentes formas


de organização, circulação, distribuição e consumo nos diferentes lugares, de acordo
com as lógicas de produção, o capital, os sistemas de informação, a tecnologia, de
modo geral, disponíveis, e a história específica de cada lugar e suas relações com todos
esses elementos. Do arranjo das lógicas dos interesses de produção e reprodução do
capital às lógicas próprias de cada lugar, se produzem diferentes tipos de territórios no
corpo do território, já que os lugares acolhem ou refratam em maior ou menor grau as
forças de interesse do capital que neles tenta se estabelecer. O corpo mercantil do mundo
é apenas um dentre os diversos corpos de mundo.
Resultado de um olhar, representação daquilo que se vê, a paisagem é
essencialmente imagética, subjetiva, simbólica. O mesmo se pode dizer do lugar e do
território usado, habitado.106 Espaços afetivamente compartilhados num tempo
específico e que despertam sensações de pertencimento, identificação, identidades,
vivenciados e revelados nas paisagens e pelas paisagens. Nos lugares se dão os processos
de construção das múltiplas identidades individuais e coletivas: criam-se vínculos de

104
SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia, p. 66.
105
SANTOS. Pensando o espaço do homem, p. 54.
106
SANTOS. O retorno do território.
58

familiaridade, vizinhança, amizade, amor, e se realizam também conflitos e lutas,


projetam-se sonhos e desejos. Lugar é o ambiente em que se funda, se constrói e se
realiza a vida. Onde se desenvolvem as ações triviais e fundamentais do cotidiano de
um sujeito, de um grupo social. Nos lugares, os homens se situam, circunscrevem o seu
espaço, produzem territórios, constroem a sua existência. Sobre a aproximação entre os
conceitos de lugar e território, Cássio Hissa nos esclarece:

[...] a corporeidade territorial se faz através de uma rede, de uma


malha assimétrica construída historicamente, cuja existência – social,
econômica, política, cultural – é produto de conexões assimétricas e
desiguais entre lugares. Nesses termos, o conceito de lugar é
interiorizado pelo conceito de território.107

O esgarçamento da película de cobertura estendida pelos fluxos “globais” exibe a


diversidade de lugares presentes especialmente na metrópole. A heterogeneidade do
espaço é típica da paisagem urbana. No campo, as formas são aparentemente menos
heterogêneas. Não se deseja, com isso, admitir a existência de limites precisos entre
cidade e campo. Na contemporaneidade, são ainda mais ampliadas as fronteiras entre
esses dois mundos. Quer seja no âmbito dos processos socioeconômicos, quer seja no
âmbito das próprias marcas transportadas para a paisagem, cidade e campo se
atravessam. Entretanto, há superfícies de cobertura suficientemente nítidas, no nível da
paisagem, para que se possa refletir sobre o caráter da diversidade das formas que
constituem os dois mundos: o do campo, o da cidade. Processos de origem biológica,
físico-químicos constituem a diversidade das formas responsáveis pelo desenho da
paisagem rural, que mais se identifica com o que nos acostumamos a conceituar como
natureza e que, na contemporaneidade, demanda tratamentos teóricos mais complexos.
Pode-se refletir, por exemplo, sobre as ativas coberturas, muitas vezes invisíveis de
caráter urbano que se espalham pelo campo e que à física do olhar restariam ao

107
HISSA. Território de diálogos possíveis, p. 67.
59

domínio da natureza. O mesmo, invertido, pode ser dito sobre o ambiente na cidade, à
física dos olhares desatentos frequentemente esvaziado de natureza.
A mais recente camada do palimpsesto espacial é predominantemente mundial e
citadina. “Palco da atividade de todos os capitais e de todos os trabalhos,”108 a
metrópole atrai e acolhe os sujeitos expulsos do campo e das cidades médias, pela
modernização da agricultura e dos serviços. A diversidade socioespacial produzida por
esses fluxos no contato com os já presentes evidencia a diversidade de lugares e
territórios que se produzem em todo o tecido urbano que constitui a metrópole.
Para Milton Santos, há lugares globais simples e lugares globais complexos.109 Os
primeiros acolhem parte dos vetores das forças hegemônicas globais sem oferecer
resistência, enquanto os segundos, que coincidiriam com as metrópoles, representam
simultaneamente forças acolhedoras e refratárias às lógicas unívocas de pensamento,
economia e comportamento que se impõem como hegemônicas.
Nesses termos, a metrópole assume, com seus múltiplos lugares, com sua
diversidade cultural, a condição de “o mais significativo dos lugares,”110 já que produz
em seu corpo lugares e territórios dos mais diversificados tipos e temporalidades:
condições de realização do espaço banal, espaço de todos os objetos e de todas as ações,
em que “todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organização
social podem aí se instalar, conviver, prosperar.”111
Na metrópole, são mais numerosos os pobres, homens lentos,112 sujeitos a quem
certa mobilidade mercantil foi negada, levados por isso mesmo a transcriar o seu
cotidiano, fabricando territórios alternativos de economia e de vida, cujos “parâmetros
são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização

108
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 323.
109
SA NTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
110
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 322.
111
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 322.
112
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 325.
60

com base na contigüidade.”113 Diferentes tipos de territórios se confrontam diariamente


na metrópole, muitos deles munidos de lógicas, racionalidades, tempos e ritmos que se
apresentam bem distintos de um tempo, um ritmo e um pensamento unívocos,
impostos por uma racionalidade “global”. Ainda que essa racionalidade esteja em toda
parte, produto da relação dialética entre o lugar e o mundo.
O conceito de território remete ao de espaço habitado, corpo de mundo que
abriga diversos outros corpos de mundo, territórios dentro do território, espaços de
poder, domínio, fronteira. Seja do Estado, de capitais ou de sujeitos e grupos sociais
reunidos sob os mesmos desígnios:

O território hoje pode ser formado de lugares contíguos e de lugares


em rede. São, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que
formam o espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmos pontos,
mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá
divergentes ou opostas.114

O território pode assumir a dimensão do conceito de espaço. Toda vida social se


projeta e se realiza no território, espaço em que se criam diferentes organizações de
poder, laços diversos de afetividade, pertencimento, identidades, construídos pelos
sujeitos através de objetos e ações permanentemente em transição, tal como evidencia a
dinâmica de significações incorporadas pelo conceito no minucioso estudo de Maria
Teresa F. Ribeiro:

Sob a influência do conjunto das ciências sociais, o território passa da


situação de uma descrição de uma malha espacial (no sentido jurídico-
administrativo) para o estatuto de conceito que busca dar conta da
complexidade da realidade e das construções sócio-econômicas
inseridas em um espaço físico. O conceito de território remete tanto
aos aspectos formais (distribuição no espaço de materiais naturais e
construídos, divisões administrativas, políticas e jurídicas), bem como
os aspectos ligados aos sentidos dessas formas (as ideologias espaciais,

113
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 339.
114
SANTOS. O retorno do território, p. 139.
61

representações e sistemas de valores), como lembra Benko (2007). O


poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores
não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e
afetivos. [...] O território é um lugar compartilhado no cotidiano,
criador de raízes e laços de pertencimento e símbolos. É através do
conhecimento desses símbolos que podemos restituir toda a riqueza de
valores que dão sentido aos lugares e aos territórios de vida. Numa
perspectiva crítica, o território é visto como um campo de forças, um
teia, uma rede de relações sociais que, apesar de sua complexidade
interna, define ao mesmo tempo um limite, uma alteridade: a
diferença entre “nós” e os “outros.” Territórios são relações sociais
projetadas no espaço, uma rede de relações sociais e produtivas capazes
de produzir singularidades (SOUZA, 1995).115

O papel do território usado, que se reafirma no lugar, pelo cotidiano do lugar,


para Milton Santos, é determinante nos processos de transformação social, capazes de
apontar caminhos para uma outra globalização:

Mesmo nos lugares onde os vetores da mundialização são mais


operantes e eficazes, o território habitado cria novas sinergias e acaba
por impor ao mundo uma revanche. Seu papel ativo faz-nos pensar no
início da História, ainda que nada seja como antes. Daí essa metáfora
do retorno.116

Assim, o papel do território dos homens lentos ou dos homens do Sul ou, ainda,
o papel dos sertões do mundo assume uma dimensão fundamental na reflexão sobre os
processos contemporâneos associados às possibilidades de transformação social. Sertões,
mundos do sul, mundo dos homens lentos, esses mundos, no confronto com o corpo
mercantil de mundo, do qual também fazem parte, mostram-se frequentemente,
entretanto, capazes, na diversidade e na adversidade, de produzir novas possibilidades
de utilização do território ou manter algumas tradicionais adaptadas ou não. Esses
mundos criam, portanto, férteis territórios de utopias:

115
RIBEIRO; MILANI. Compreendendo a complexidade socioespacial contemporânea: o território como categoria de
diálogo interdisciplinar, p. 26.
116
SANTOS. O retorno do território, p. 137.
62

Por serem diferentes, os pobres abrem um debate novo, inédito, às


vezes silencioso, às vezes ruidoso, com as populações e as coisas já
presentes. É assim que eles reavaliam a tecnosfera e a psicosfera,
encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também
novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva.
Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são
passivos, como todas as demais pessoas. É na esfera comunicacional
que eles, diferentemente das demais classes ditas superiores, são
fortemente ativos. Trata-se, para eles, da busca do futuro sonhado
como carência de participação e de cidadania. Esse futuro é imaginado
ou entrevisto na abundância do outro e entrevisto, como
contrapartida, nas possibilidades apresentadas pelo Mundo e
percebidas no lugar.117

O lugar produz, junto à busca de sobrevivência, um “[...] pragmatismo


mesclado à emoção.”118 O lugar “[...] não é apenas um quadro de vida, mas um espaço
vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite ao mesmo tempo, a
reavaliação de heranças e a indagação sobre o presente e o futuro.”119 É desse modo que
o lugar pode criar territórios de cidadania e de resistência que funcionam como limites
às perversidades socioambientais da chamada globalização, substituindo, como observa
Milton Santos,120 o pensamento único pela consciência universal. Para que isso se
realize, o geógrafo observa que basta que se completem duas mutações, para ele, já em
gestação neste nosso tempo: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie
humana. Essa última torna-se o grande desafio, a condição essencial para que um novo
mundo, construído de uma nova grafia espacial, feita de consciência, cidadania e
solidariedade, não se constitua apenas de uma contínua esperança.

117
SANTOS. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, p. 326.
118
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, p. 114.
119
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, p. 114.
120
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
UMA COSMOLOGIA DO SERTÃO
64

O lugar-sertão em Rosa

Esta cosmologia começa a se organizar em torno das imagens do sertão no


romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956.
Imagens, dentre tantas outras, de tantos outros sistemas semióticos (artes verbais, artes
visuais, cinema) motivadoras da pesquisa de um conceito de sertão e especialmente da
proposta de sua ampliação. Fascinado pelo universo do sertão, pelo sertanejo e por sua
cultura, com os quais manteve contato durante o tempo em que atuou como médico
no interior mineiro e durante as suas viagens com sertanejos, como Manuelzão, por
exemplo, Guimarães Rosa desenha um esboço metafórico, uma cartografia volátil do
sertão, em Grande sertão: veredas. No romance, as marcas espaço-temporais são vagas,
delicadas, imprecisas. O autor parece ter procedido intencionalmente a uma
camuflagem do tempo-espaço, numa espécie de jogo narrativo cuja regra básica é a
invenção fundada na mistura de lugares, situações, linguagens e personagens
históricos121 e ficcionais. Uma narrativa que, conforme já nos adverte o narrador, “[...]
é como jogo de baralho, verte, reverte [...],”122 apontando, não apenas para o ir e vir
casual da memória do narrador (que não relata linearmente os fatos), mas para a
imprecisão, a indeterminação, a ambiguidade, a polissemia, a complexidade e a
impossibilidade de localização e definição exatas da matéria essencial de seu relato,
“matéria vertente,” o sertão, um grande sertão. Assim como Riobaldo, personagem
narrador do romance, que muito aprecia uma história cuja continuação é inventada, −
já que “no real da vida, as coisas acabam com menos formato”123 − Guimarães Rosa

121
Manoel Tavares de Sá, Francisco Leobas de França Antunes, João Brandão, Antônio Dó, Horácio de Matos e
Rotílio da Manduca, segundo Wille Bolle (grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 105-106).
122
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 82.
123
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 70.
65

recria o sertão a partir da mistura de uma geografia, uma história e uma língua “reais” e
ficcionais.
É claro que é possível dizer que a história relatada por Riobaldo se passa
aproximadamente entre o fim do século dezenove e o início do século vinte, já que o
seu relato retrata o apogeu e a decadência da jagunçagem. Também é possível afirmar
que o espaço abordado no romance abrange os estados de Minas Gerais (eixo centro-
norte), Goiás e Bahia. Há algumas marcas desse tempo-espaço no texto. Muitos
autores fizeram cuidadosos estudos desse espaço,124 inclusive representando-o através
de mapas. Entretanto, neste trabalho, defende-se a ideia de que a “camuflagem” do
tempo-espaço,125 realizada por Guimarães Rosa, através do personagem-protagonista
Riobaldo, é mais uma estratégia do romancista para traduzir a ideia, presente em todo
o texto, de que o sertão não é passível de mapeamento, de localização exata, precisa.
Sua complexa natureza não pode ser apreendida por cartografias convencionais.
Já na página de abertura do romance, surge a ideia da controversa localização do
sertão:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado
sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo,

124
VIGGIANO. Itinerário de Riobaldo Tatarana; BOLLE. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil.
125
Riobaldo não faz referências à cronologia de suas deambulações a não ser a partir de pequenas indicações, às vezes
vagas, como, por exemplo, ao se referir à certidão de nascimento do personagem Diadorim, quando diz que consta do
documento “[...] um 11 de setembro da era de 1800 e tantos...”(ROSA. Grande sertão: veredas, p. 535). Encontra um
velho que falava “[...] no tempo do Bom imperador.” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 458). Entretanto, era
homem “[...] no sistema de quase-doido [...]”(ROSA. Grande sertão: veredas, p. 458). Refere-se à construção de uma
estrada de ferro que passaria no Curralinho, atual Corinto, “[...] em breves tempos [...]” (ROSA. Grande sertão:
veredas, p. 106). Waldemar Barbosa (Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais) nos informa que a Estrada de
Ferro Central do Brasil foi inaugurada em Corinto em 20 de março de 1906. Em dois momentos, Riobaldo se refere
mais claramente ao fim do século XIX, quando relata a tomada de todos os portos de Januária e Carinhanha “[...] nas
eras do ano de 79” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 94), chefiada pelo Neco, Manoel Tavares de Sá, figura histórica
que atacou essas cidades em 1879 (BOLLE. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil, p. 105); e quando
menciona o ataque à cidade de São Francisco “nas eras de 96 [...]” (ROSA. Grande sertão: veredas, p. 143) chefiado
por Andalécio e Antônio Dó. Esse último também personagem histórico, segundo Wili Bolle (grandesertão.br: o
romance de formação do Brasil, p. 106).
66

terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do


Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos, onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador, e onde
criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O
Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele tudo dá
– fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as
vazantes, culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até
virgens dessas lá ainda há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem
tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou
pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.126

Lugar sertão se divulga: se publica, se difunde, se propaga, “se percebe, se vê, se


sabe, se compreende.”127 Sertão é o lugar nominado como sertão, o que se vê, se
percebe, se compreende como sertão. Lugar que se propaga, se difunde, se diz sertão.
Trata-se, portanto, de um espaço fundamentalmente subjetivo e movente, migrante,
mutante, grafável e rasurável e, por isso, de difícil apreensão. Presente no trecho citado
está também a ideia de sertão como espaço interminável, deserto, no sentido de pouco
habitado, e sem lei institucionalizada pelo Estado. Lugar para onde fogem os fora-da-
lei, os degredados da sociedade. E, ainda, duas imagens recorrentes no romance. A de
um sertão transmutado pelo tempo, conforme se pode perceber pela transformação da
paisagem: as margens do rio Urucuia passam a exibir grandes fazendas que se ocupam
da agropecuária: “almargem” (pastagem, conforme Nilce Sant’Anna Martins128 e
“culturas”. E a imagem do gerais que “corre em volta”, percorrendo todo o texto. Essa
última, a despeito de nomear usualmente um tipo de vegetação, presente especialmente
em Minas, apresenta-se sob o signo da incógnita, assumindo várias paisagens, lugares,
territórios e significações, confundindo-se com a própria imagem do sertão. Aparece de
modo genérico, como sinônimo de todo o espaço físico denominado sertão: “Medeiro

126
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 61.
127
Acepções pesquisadas por Nilce Sant’Anna Martins (O léxico de Guimarães Rosa, p. 172) ao estudar a linguagem e
o vocabulário do romance Grande sertão: veredas.
128
MARTINS. O léxico de Guimarães Rosa, p. 23.
67

Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa [...].”129 De
modo específico, como parte do todo nominado como sertão: “Joaquim Beiju,
rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente [...].”130 Como paisagem/lugar
comum a determinados estados: “Como contam também que nos Gerais goianos se
salga o de comer com suor de cavalo...”131. Como espaço de paisagem desértica, tanto
no sentido de lugar desabitado, quanto árido, e que revela a pobreza:

Por certo, que, para a jagunçagem, os Gerais mal serviam. A pobreza


daquelas terras, só pobreza, a sina tristezinha do pouco povo. Aonde o
povo no rareado, pelo que faltava de água naquelas chapadas; e a
brabeza do gado, que caminhava em triste achar.132

Paisagem marcada por rios, água em abundância: “[...] eu era Riobaldo, com
meus homens, trazendo glória e justiça em território dos Gerais de todos esses grandes
rios que do poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, enquanto Deus
dura!”133 Águas subterrâneas: “O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando
o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra.
O senhor dorme sobre um rio?”134 Águas de chuva: “[...] eles sabem como o Gerais é
espaçoso; como no Gerais tem disso: que, passando noite tão serena, desse de manhã o
desabe de repente daquela chuva...”135 Paisagem de belezas: “Esses Gerais em serras
planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino.”136 Gerais é
também paisagem em que se depara com aquilo que é feio. No Gerais, tudo cabe: “E

129
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 120.
130
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 279.
131
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 438.
132
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 410-411.
133
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 389.
134
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 255.
135
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 496.
136
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 276.
68

por fim viemos esbarrar num lugar feio, como feio não se vê. – Tudo é Gerais... – eu
pensei, por consolo.”137
Francis Utéza assim resume a potencialidade assumida pela imagem dos Gerais
no romance:

Sublinhado por itálicos no texto e determinado por um surpreendente


singular, “o” Gerais, terra do Urucuia, erige-se em arquétipo, o que
confirma o plural, conforme à norma gramatical, que lhe segue
imediatamente: sem tamanho. Incomensurável, esse espaço contém
tudo – gerais. Fora e dentro, margem esquerda e margem direita,
singular e plural, montanha e vale, fértil e deserto, vazio e cheio, o
sertão-gerais nada mais tem a ver com a geografia de Minas.138

O romance Grande Sertão: veredas é construído na forma de relato, pelo


personagem Riobaldo já velho, ex-jagunço, e respeitável fazendeiro, a alguém a quem
ele se refere, a todo o tempo, como “senhor,” um “homem instruído, que teria vindo
da cidade e tem carta de doutor,” nas palavras do personagem. Esse senhor, espécie de
alter ego de Guimarães Rosa, − e que pode ser também qualquer um de nós, leitores do
romance − interessado em conhecer o cotidiano do sertão vivido por um ex-chefe
jagunço, recolhe o depoimento de Riobaldo, numa espécie de entrevista. Ele anota, em
sua caderneta,139 as longas e intensas deambulações e vivências de Riobaldo: da
juventude à maturidade, entre o fim do Império e o início do período republicano no
Brasil, no universo denominado pelo ex-jagunço grande sertão. Como se trata de uma
história em que se relata um longo período, o narrador nos chama a atenção, a todo o
tempo, para as transformações sofridas pelo sertão percorrido por ele:

137
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 352.
138
UTÉZA. Metafísica do grande sertão, p. 66.
139
Em suas viagens pelos sertões, no contato com sertanejos, à maneira do “senhor”, interlocutor do sertanejo
Riobaldo, Guimarães Rosa anotava, em suas cadernetas, a linguagem, os costumes, as paisagens, enfim tudo que o lhe
despertava interesse na cultura sertaneja. Eram “[...] causos, cantigas, estórias, nomes de pássaros, rios, vegetação”,
conforme nos conta Manuelzão, “Seu” Manuel Nardy, vaqueiro e contador de histórias, entrevistado por Marli
Fantini (Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens, p. 25), que fez uma viagem de condução de boiada com
Guimarães Rosa em 1952.
69

Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios,


para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora –
digo por mim – o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes
demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra
mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim, muito
que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros
duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham
que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado grameal vai minguando
menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de
curraleiro e de criolo. Sempre, no gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma
tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de
bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não
fosse por meu despoder, por azias e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o
senhor até tudo.140

E Riobaldo nos guia a “Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim


desses horizontes [...],”141 através de suas palavras, de seu relato, conduzindo-nos à
travessia, sempre rumo ao Norte,142 do imenso “mar de territórios” de seus sertões.
Territórios repletos de paisagens e lugares a cujas rasuras ele, um dos raros
remanescentes da cultura dos sertões da jagunçagem à época da enunciação da
narrativa, ex-chefe jagunço, assiste e nos apresenta. Sertões da “política trabuco,”143 dos
violentos e sangrentos combates entre grupos de jagunços rivais, a serviço da disputa
entre grandes proprietários de terra, “homens dos sertões transatos,”144 ou seja,
pretéritos, e entre jagunços, representantes desses proprietários rurais, e o exército
republicano. Esse último movido pelo ideal positivista de ordem e progresso, portador
do desejo de modernizar o sertão, ou seja, retirá-lo da “barbárie”, “do arcaísmo”,
povoando-o, urbanizando-o.

140
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
141
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 344.
142
Outra imagem da imprecisão do sertão, bastante recorrente no texto. Para o norte/noroeste avançou o processo de
urbanização brasileira, no século XIX, rasurando muitos espaços compreendidos como sertões à época.
143
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 94.
144
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 403.
70

Amante e representante da cultura dos sertões transatos – eivada de histórias da


tradição oral, superstições, mitos e também de “guerras”, palavra utilizada pelos
jagunços para se referir aos seus combates – Riobaldo presencia suas transformações,
suas rasuras, desconfiado do ideal de progresso veiculado pelos projetos de
modernização:

Seo Assis Wababa oxente se prazia, aquela noite, com o que o Vupes
noticiava: que em breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se
armavam de chegar até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar
comercial de todo valor. Seu Assis Wababa engordava concordando,
trouxe canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei – na
iluzãozinha de que para mim também estava tudo assim resolvido, o
progresso moderno: e que me representava ali rico, estabelecido.
Mesmo vi como seria bom se fosse verdade.145

Ao tempo da enunciação da história, o narrador sabe da existência das ruínas de


arraiais, como o Paredão, em que travou seu último combate. Sabe também que os
lugares se transformaram e tiveram seus nomes alterados, “perderam o ser”, como já
havia presenciado no tempo em que fazia suas deambulações como jagunço pelos
Currais-do-Padre, “[...] lugar que não tinha curral nenhum, nem padre: só o buritizal,
com um morador.”146 Constata, ainda, a alteração dos nomes dos lugares próximos às
fontes do rio Verde, “que verte no Paracatu”:

Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver.


Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando.
É em senhas. São Romão todo mundo não se chamou de primeiro
Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-
Grande? – Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor
concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar
sagrado.”147

145
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 105-106.
146
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 333.
147
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 32.
71

Conclui que o mundo quer ficar sem sertão, quando se lembra de um lugar que
não existe mais, como a Guararavacã do Guaicuí148 que se transformou em
Caixeirópolis. Entretanto, a despeito da “[...] boa estrada rodageira, de Pirapora a
Paracatu, por aí...”,149 que o Governo mandava abrir à época em que Riobaldo contava
a sua história, da presença dos trilhos do trem, dos “bandos bons de valentões que
repartiram seu fim”,150 dos costumes que “demudaram”, da presença da cidade que
“[...] acaba com o sertão [...] Acaba?”,151 muitos lugares permaneciam quase intactos,
indiferentes ao ideal progressista republicano:

Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se
podia ver um carro-de-bois parado, os bois mastigavam com escassa
baba indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o senhor veja: tanto
trabalho, ainda, por causa de uns metros de água mansinha, só por
falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias,
para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é
assim, por borco.”152

Indiferente a homens republicanos que tencionavam tirar o sertão das


“estrebarias”, “[...] botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos,
preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”,153 como Zé Bebelo, por exemplo;
alheio às políticas de ocupação territorial republicanas, que deram início ao processo de

148
Segundo Heloisa Starling, “A rigor são múltiplas as referências que entrelaçam Barra do Guaicuí à narrativa de
Grande Sertão: veredas. De pronto, por sua localização geográfica e pelo papel econômico que desempenhou na
margem direita do São Francisco, este vilarejo parece erguer-se sobre as ruínas da Guararavacã do Guaicuí, o lugar
mítico onde Riobaldo aprendeu que o privado não é só privatividade e também comporta uma dimensão única de
felicidade. Além disso, da mesma maneira como a Guararavacã desapareceu, devastada por febres e enchentes, Barra
do Guaicuí cedeu vez à Pirapora, em virtude de sua fama de lugar insalubre, assolado pela maleita, cercado de
alagadiços e sujeito a inundações. Nesse caso, o entrecruzamento com a ficção parece indicar a existência do duplo
espetáculo de ruínas, antigas e, de agora, míticas e históricas, resíduo de lembrança.”(STARLING. Lembranças do
Brasil: teoria política, história e ficção em Grande Sertão: veredas, p. 30).
149
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 18.
150
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
151
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 144.
152
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 85.
153
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 111.
72

urbanização do País, no século XIX, o sertão, compreendido como espaço pouco


assistido pelos governos, permaneceu e permanece, vez ou outra migrando, mudando
de lugar, como bem sabia o criador de Riobaldo: “[...] o sertão está movimentante
todo-tempo − salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes
efeitos de leves pesos... Rodeando por terras tão longes.”154 Sertão é espaço migrante,
grafável e rasurável, polissêmico, que se propaga por toda parte e, por isso, refratário a
cartografias convencionais e a definições, conceituações precisas:

Sertão velho de idades. Porque − serra pede serra e − dessas, altas, é


que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se
dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes.
Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros: urubu, gavião
− sempre que voam, às imensidões por sobre... Travessia perigosa, mas
é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos
campos estendem sempre para mais longe.155

Mbaiá é o nome que se dá à “arte, artimanha” do disfarce, da camuflagem de


“guerra” dos jagunços. É assim que Guimarães Rosa nos vai divulgando o sertão:
embaiado, no relato de seu personagem Riobaldo, sertanejo, ex-jagunço, ex-chefe
jagunço e, ao final da vida, fazendeiro. A estratégia bélica da camuflagem, ao contrário
de seu uso habitual na guerra, é aplicada no texto com relação às marcas espaço-
temporais, no exercício de nos fazer conhecer o sertão, em vez de “fazê-lo muito
escapar de nosso ver e mirar.” Espaço complexo, repleto de ambiguidades e paradoxos,
é de forma ambígua e paradoxal que se lida com ele, como ambígua é a vida, conforme
nos ensina o sertanejo Riobaldo: “só aos poucos é que o escuro é claro”;156 “A gente
sabe mais, de um homem, é o que ele esconde.”157 É o sertanejo, que admira “a quanta

154
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 456.
155
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 479.
156
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 165.
157
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 296.
73

coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe,”158 que fala do sertão
ao homem “culto e instruído” da cidade, que, em sua caderneta, anota as palavras do
jagunço: “o sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas
o sertão de repente se estremece dentro da gente...”159
É por conhecer o caráter instável, escorregadio, “[...] grande ocultado
demais...”160 do sertão, por entender que “sertão, – se diz –, o senhor querendo
procurar, nunca não encontra [...]”, e que “de repente, por si, quando a gente não
espera, o sertão vem,”161 conhecimento adquirido sobretudo no contato com
sertanejos, que Guimarães Rosa opta por apresentá-lo “embaiado” através da narrativa
de Riobaldo. Para o professor Willi Bolle:

O trabalho de campo nos leva[...] a verificar empiricamente quais são


os principais procedimentos de uso ficcional da geografia por parte do
romancista: as técnicas de fragmentação, desmontagem, deslocamento,
condensação e remontagem. O narrador retira pedaços do sertão real e
os recompõe livremente – de maneira análoga aos mapas mentais, que
nascem da memória afetiva, de lembranças encobridoras, de pedaços
de sonhos e fantasias, medos e desejos.162

Assim como durante as deambulações de combate, caminha dentro dos riachos


ou pisa nas pedras ou, ainda, apaga, com ramos, as marcas do caminho, Riobaldo, em
sua narrativa dirigida ao senhor citadino, não deixa nítidas as pegadas do seu trajeto,
numa evidência de que, quando a “matéria vertente” é o sertão, pouco importa o
caminho, já que não há mapa a seguir: “a de entre, entramos, pela esquerda e rumo do

158
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 70.
159
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 461.
160
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 446.
161
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 335.
162
BOLLE. Grandesertãobr: o romance de formação do Brasil, p. 71.
74

norte. Desde o depois, o do poente mesmo. Com foras e auroras, estávamos outra vez
no público do campo.”163
Rumo ao noroeste, para onde costumam migrar os sertões, como se fugissem do
processo de urbanização iniciado no sudeste, seguem Riobaldo e seu bando de
jagunços, dobrando léguas e léguas:

[...] em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas. As nove. Com
mais dez, até a Lagoa do Amargoso. E sete, para chegar numa
cachoeira Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e
Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor
empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos
lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos.
Subimos. Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras,
agradáveis. As muitas águas.164

Espaço paradoxal, onde os opostos não se excluem, mas se contrastam se


justapõem, se misturam e se complementam, sertão é o árido e o úmido, o estéril e o
fértil, o pobre e o rico, o vazio e o pleno, o distante e o próximo, o fim e o começo, a
parte e o todo, a sombra e a luz, o interior e o litoral, a superfície e o subterrâneo.
Deserto e vereda: “[...] é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.”165
Lugar de avarezas d’água, chuvas esquecidas, “estralal do sol”166 “[...] chão [...]
gretoso e escabro, [...] entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de
áspera raça [...],167 “[...] pesadelo mesmo de delíros”,168 sertão é também lugar “muito
deleitável”, de ”[...] claráguas, fontes, sombreado e sol”, onde “[...] de decomer não

163
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 325.
164
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
165
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 134.
166
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
167
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 39.
168
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 40.
75

faltava.”169 Lugar de veredas, “[...] com seus buritis altos e a água ida lambida, donzela
de branca, sem um celamim de barro. Diz-se que lá se pesca, e gordas piabas.”170
Riobaldo é um sertanejo marcado por vários dilemas, como, por exemplo, ser
ou não ser pactuário, amar ou não amar outro homem (que se revela mulher só depois
de morto), matar e não matar, ser jagunço ou fazendeiro. É o lugar em que ele vive, o
sertão, que lhe ensina que as coisas são relativas, dialéticas, que o “[...] mundo é muito
misturado...”171 Sabedoria que ele vai nos mostrando ao longo de sua narrativa: “o
senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz,
sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!”172
Sabedoria que advém da experiência do olhar, da vivência do lugar:

Melhor, se arrepare: pois num chão, e com igual formato de ramos e


folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-
brava, que mata? Agora o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-
doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz
porque é replantada no terreno sempre, com muitas mudas seguidas,
de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma
toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca brava, também é que
às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal.173

Preencher com relevos de significações a palavra-lugar-sertão-mundo é refletir


sobre aquilo que é feito da mistura, da ambiguidade, do paradoxo. Não há dicotomias:
centro e circunferência convergem num mesmo ponto. Aos poucos, na narrativa de
Riobaldo, o escuro torna-se claro e, então, podem-se ver, no entrançado de ramos e
moitas, os sertanejos, guerreiros mbaiás; no Reinaldo, Diadorim, a Maria Deodorina, e
em Deus e o Diabo faces de uma só moeda: “[...] homem humano.”174 O mesmo lugar

169
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 19.
170
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 483.
171
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 192.
172
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 5.
173
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 4.
174
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
76

visto duas vezes, o Liso do Suçuarão, revela-se, num primeiro momento, “[...] o raso,
pior havente, [...] um escampo dos infernos [...] onde se forma calor de morte [...]”175
Um lugar em que a paisagem só revela o deserto, o ermo, o extremo, o estéril, onde a
ausência de excrementos denuncia a impossibilidade da vida: vazio, chão desvestido,
homogêneo, em que “não se tem onde acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve.”176
Lugar sem água e sem vegetação, em que a excessiva luz assassina, e o céu, “[...] sem o
simples de passarinhos faltantes,”177 tonteia. Síntese do deserto, na primeira tentativa
de travessia, que se revela frustrada, o Liso do Suçuarão se mostra, posteriormente,
como síntese do sertão, com sua multiplicidade de lugares, paisagens, territórios e
significações paradoxais. O que se mostrou, num primeiro momento, como apenas o
escasso, o estéril, o vazio, passa a ser, simultaneamente, o escasso e o farto, o estéril e o
fértil, o vazio e o cheio.
Na primeira tentativa de travessia, os jagunços sobreviventes só não acabaram
“[...] sumidos dextraviados, por meio do regular das estrelas.”178 Na paisagem
monocrômica, homogênea e indiferenciada do deserto, labirinto aberto, cujos
horizontes dizem inesgotavelmente as mesmas linhas, só é possível guiar-se pelas
estrelas. Há que se aprender a linguagem delas. Nessa travessia “[...] nada campiou
viável,”[...] os homens tramavam zuretados de fome [...]”179 Então retornaram,
fustigados pelo poder do lugar:

Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas e o miolo


mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia
dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião –areia que
escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás.
Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e

175
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 25.
176
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 275.
177
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 39.
178
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
179
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 42.
77

restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho


não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso
e escabro – no desentender aquilo os cavalos arupanavam. [...] Será
que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os
companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter um
vagado – como tonteira de truaca. [...] Até que no mesmo padrão de
lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem
nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. [...]
Onde é que os animais iam poder pastar? [...] Nem menos sinal de
sombra. Água não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em
cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando o pescoço para
pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que
cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado.
Se ia o pesadelo. Pesadelo mesmo de delírios. Os cavalos gemiam
descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum
poço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos,
arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. Já tinha quem beijava os
bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado
para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo.
Valentia vale em todas as horas? [...] O senhor sabe o que é o frege
dum vento, sem uma moita, um pé de parede pra ele se retrasar? [...]
Dia da gente desexistir é um certo decreto – por isso que ainda hoje o
senhor aqui me vê. Ah, e os poços não se achavam... Alguém já tinha
declarado de morto. O Miquim [...] que muito valia em guerreiro,
esbarrou e se riu: “Será que não é sorte?” Depois, se sofreu o grito de
um, adiante: – “Estou cego!...” Mais aquele, o do pior – caiu total,
virado torto; embaraçando os passos das montadas. De repente os
cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas caras.
Credo como algum – até as orelhas dele estavam cinzentas. E outro:
todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dos-olhos.[...] E foi,
saímos dali [...]180

Na segunda tentativa, a travessia se faz, tendo à frente Riobaldo como o chefe


Urutu Branco. Persistente, decidido (“Eu não era o do certo: eu era o da sina.”181), ele
muda a tática, intuitivamente guiado por um preceito popular:

Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente
pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo

180
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 38- 42.
181
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
78

sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro
indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é homem, é sua,
dele obediência? Isso, não pensei – mas meu coração pensava.182

Assim, não envia a patrulha de rastreadores do sertão, o Suzarte, o Joaquim


Beiju e o Tipote. “[...] esse Tipote sabia meios de descobrir cacimbas d’água e grotas
com o bebível, o Suzarte desempenhava um faro de cachorro-mestre, e Joaquim Beiju
conhecia cada recanto dos gerais [...]”183 E ainda resolve atravessar o liso “[...] sem
preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos
para carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropa de jegues
para carregar água. Para que eu carecia de tantos embaraços?”184 A audácia de Riobaldo
confirma a ideia de que “[...] sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte
que o poder do lugar.”185 Dessa vez, o Liso do Suçuarão é inteiramente atravessado,
revelando surpresas:

O que era, no cujo interior, o Liso do Suçuarão? – era um feio


mundo, por si, exagerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus
tufos de capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até não- onde a
vista não se achava e se perdia. Com tudo, que tinha de tudo. Os
trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas – cavalo repisa em
pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza em-sobre
pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava encostada no sol.
Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, o que deu pronto
mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro, em az. A uns lugares
estranhos. Ali tinha carrapato... Que é que chupavam, por miudinho
viver? Eh, achamos reses bravas – gado escorraçado fugido, que se
acostumaram por lá, ou que de lá não sabiam sair; um gado que assiste
por aqueles fins, e que como veados se matava. Mas também dois
veados a gente caçou – e tinham achado jeito de estarem gordos... Ali,
então, tinha de tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abelha.
O dar de aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores.
Todo o tanto de que sede não se penou demais. Porque, solerte

182
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
183
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 36
184
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 447.
185
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 17.
79

subitamente, pra um mistério do ar, sobrechegamos assim, em


paragens. No que o senhor nem ninguém não crê: em paragens com
plantas. [...] Mesmo, não era só capim áspero, ou planta peluda como
um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarroxa, um mandacaru que
assustava. Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas
lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor dói em branco. Ou cacto
preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro. Ah, não. Cavalos iam pisando
no quipá, que até rebaixado, esgarço no chão, e começavam as
folhagens – que eram urtigão e assa-peixe, e o neves, mas depois a
tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil-trepador, e até essas
sertaneja-assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a
sinhazinha, muito milindrosa flor, que também guarda muito orvalho
pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva-curraleira... E a
quixabeira que dava quixabas. Digo – se achava água. O que não em-
apenas água de touceira de gravatá, conservada. Mas em lugar onde foi
córrego morto, cacimba d’água, viável, para os cavalos. Então, alegria.
E tinha até uns embrejados, onde só faltava o buriti: palmeira alalã –
pelas veredas. E buraco-poço, água que dava prazer em se olhar.
Devido que, nas beiras – o senhor crê? – se via a coragem de árvores,
árvores de mata, indas que pouco altaneiras: simaruba, o anis, canela-
do-brejo, pau-amarante, o pombo; e gameleira. A gameleira branca!
[...] Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, eu
apalpei os cheios.186

O sertão contém o deserto e muitos outros espaços repletos de diferentes


paisagens, lugares, territórios. “O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o
Chapadão, lá acolá é a caatinga.”187 O deserto, a aridez é apenas uma das múltiplas
facetas do sertão. Certamente aquela que ficou mais marcada no imaginário social.
Costuma-se associar o sertão, mais comumente, apenas aos espaços áridos e pobres,
sobretudo do Nordeste, já que o IBGE subdividiu essa região em quatro áreas, assim
designando a área pobre e árida situada ao extremo oeste, respectivamente, das áreas
“agreste”, “zona da mata” e “litoral”. A literatura modernista da chamada geração de
1930, da qual fazem parte, por exemplo, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz,
talvez tenha contribuído para difundir a ideia de sertão apenas como espaço árido,

186
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 448-450.
187
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 432.
80

deserto, já que essa literatura se ocupou sobretudo dos sertões nordestinos. Assim, as
noções de aridez, esterilidade, deserto, ausentes na origem da palavra sertão, foram
sendo, gradualmente, incorporadas, somadas às noções de interior, distante da costa,
sempre presentes nas representações do sertão.188
O sertão se estende para muito além do espaço infértil, pobre, árido e áspero do
deserto. Lugar onde cabem a pobreza, a miséria e a resistência de homens que
sobrevivem “[...] só por paciência de remendar coisas que nem conheciam [...],”189
homens “[...] reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros
dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas [...],”190 “[...] cacundeiros simplórios
desse Norte pobre, [...]”191 o sertão apresenta-se, também, como lugar da riqueza e da
fartura:

E aí esbarramos parada, para demora, num campo solteiro, em varjaria


descoberta, pasto de muito gado. [...] O que, por começo corria
destino para a gente, ali, era: bondosos dias. Madrugar vagaroso,
vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão − que vinham
voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma
restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as
malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de
dormir, suspendendo o corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro,
como um açúcar se derretendo no campo. [...] Todo dia se comia bom
peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado [...]192

No sertão cabe também a cidade: “Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com


suas ruas e igrejas, antiquíssimo – para morarem famílias de gente. [...] Aqui é Minas;
lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, altas cidades...”193 Urubu é a vila da “canção de

188
Essas significações serão tratadas no próximo texto.
189
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 341.
190
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 337.
191
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 127.
192
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
193
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 270.
81

Siruiz”, uma toada tão antiga quanto a povoação e que atravessa toda a narrativa de
Riobaldo, reavivando a sua memória afetiva:

Urubu é vila alta


mais idosa do sertão
padroeira, minha vida −
vim de lá volto mais não.
Vim de lá, volto mais não?

Corro os dias nesses verdes,


meu boi macho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão

Remanso de rio largo,


viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração.194

Memória dos diversos e extraordinários lugares, paisagens e situações


vivenciados por ele, no universo dos seus sertões transatos, do tempo da jagunçagem, e
que lhe despertam saudade. Lugares onde se vê “[...] o remôo do vento nas palmas dos
buritis todos quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é
verde.”195 Riobaldo é um homem intrinsecamente ligado ao lugar em que vive, o
sertão. Um contumaz apreciador de seus múltiplos lugares, territórios, paisagens (de
seus antigos costumes, cantigas, superstições, histórias da tradição oral). Entoada por
um jagunço chamado Siruiz, do bando de Joca Ramiro, a cantiga ouvida por Riobaldo
ainda jovem, antes de se tornar jagunço, desperta-lhe forte emoção, relacionada à
admiração do modo de vida dos jagunços, passando a desempenhar um significado
especial em sua vida:

194
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 101.
195
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 253.
82

O que guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada


inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o
refimfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar
dos cavalos e a canção de Siruiz.196

Recordar a cantiga (a partir da qual passou a fazer versos), ainda durante as suas
deambulações, significava para Riobaldo reviver as díspares sensações que o denso e
também díspar universo sertanejo é capaz de despertar em quem o vivencia: o medo e a
coragem, o amor e o ódio, a delicadeza e a rispidez, a ternura e a vingança, a fantasia e
a “realidade”, a vida e a morte. Um sertão em que “[...] morrer em combate é coisa
trivial [...],”197 pois o sertão “[...] é o penal, criminal [...]198 “O grande sertão é a forte
arma.”199 Sertão de tocaia e de violência, em que homem rasteja feito bicho, por entre
as moitas, “o punhal atravessado na boca,”200 o peito roçando espinhos, “[...] e vem
pular nas costas da gente, relampeando faca.“201 Sertão que exige cautela, pois

Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado
em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao inimigo. Pior são os
que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar –
dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil
demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se
esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de
fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso.202

Sertão de feios lugares: “[...] fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugar feio,
com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo desse vau, a gente pega
uma chapadinha − a Chapada-da-Seriema-Correndo.”203 E também sertão de bonitos

196
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 103.
197
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 241.
198
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 92.
199
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 300.
200
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 178.
201
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 173.
202
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 178.
203
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 218.
83

lugares, e onde não há perigo ao redor: “Mas tem horas em que me pergunto: se
melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não
tinha perigos em vista [...]”204
Sertão de encruzilhadas e escuridão de noites sem estrela, “talentos de lua
escondida,”205 “o surro dos ramos”206 que suscitam a imaginação e a fantasia, criando
deuses e demônios, num sem fim de narrativas orais que povoam, na mesma medida
de importância que o homem, o universo do sertanejo: “o diabo na rua no meio do
redemunho”. Subtítulo do livro e espécie de refrão que atravessa toda a narrativa, todo
o grande sertão, condensando, na imagem do demo, toda a sorte de criaturas
sobrenaturais que povoam os territórios de sertão. Sertão também da pobreza e da
miséria de homens “quase que cada um era escuro de tanto comer só polpa de buriti
[...]”207 e que

[...] viviam tapados de Deus, assim nos ocos [...] Mas por ali deviam
ter suas casas e suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas
levantadas nas burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas,
beira de brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas
rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal [...] Como era que
podiam parecer homens de exata valentia? Eles mesmos faziam
preparo de pólvora de que tinham uso, ralado salitre das lapas,
manipulando em panelas. Que era uma pólvora preta, fedorenta, que
estrondava com espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às
vezes essa pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e
matando o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme
podiam viver?208

204
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 250.
205
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 369.
206
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 370.
207
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 337.
208
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 338.
84

Sertão da aprazível “música” dos cavalos que andavam “ao assaz,”209 levantando
poeira e exalando os cheiros do sertão:

De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes


de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros.
Nenhum não tinha desapeado. E deviam ser perto duns cem. Respirei:
a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo
deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão.210

Um sertão rico “em instância de pássaros”:211

O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o


pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes martim-
pescador; mergulhão; e até uns urubus [...] Mas, melhor de todos −
conforme o Reinaldo disse − o que é o passarim mais bonito e
engraçadinho de rio–abaixo e rio-acima: o que se chama o
manuelzinho-da-croa [...] sempre em casal indo por cima da areia lisa,
eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás, traseiras,
desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para
comer alimentação. Machozinho e fêmea − às vezes davam beijos de
biquimquim − a galinholagem deles. − “É preciso olhar para esses com
todo carinho...” − o Reinaldo disse.212

Sertão de “viajores” e tropeiros, levando mantimentos, como sal, café, bacalhau,


cachaça, mantas de carne de sol, farinha, toucinho e bom fumo de corda, no “geme-
geme das cangalhas.”213 Vaqueiros conduzindo boiada. Sertão do bom som da famosa
viola de Queluz:214 “queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o sapateado de pés
dançando.”215 Sertão das casas de fazenda “[...] do batido do monjolo dia e noite, da
cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais de

209
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 217.
210
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 99.
211
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 122.
212
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 122
213
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 101.
214
Atual Conselheiro Lafaiete (MG), famosa, desde o século XVIII, pela produção de violas (GOULART. Tropas e
tropeiros na formação do Brasil).
215
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 463.
85

adiante, da varanda de ver nuvens.”216 Dos povoados dos negros “[...] que ainda sabem
cantar gabos em sua língua da Costa.”217 Das vendinhas onde se encontra licor de
banana e de pequi. No batente da porta, quase sempre se pode ver uma velha trançando
peneiras e pitando cachimbo218 ou “picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com
muita demora.”219 Sertão de homens lentos, “em tudo, eles gostam de alguma demora.”220
Isolado, ermo, “o sertão nunca dá notícia.”221 Não importa de que espaço-tempo seja o
sertão. “O sertão é uma espera enorme.”222
É por reunir tantas espacialidades, lugares, paisagens e significações distintas que se
pode dizer que “o sertão é do tamanho do mundo.”223 Um lugar migrante, transescalar,
descontínuo, que não se localiza em um único ponto, mas em toda parte, por isso “o
sertão é sem lugar.”224
Sem lugar também por emergir em diversos lugares. Um lugar que apresenta
singularidades − o sertão − mas que por reunir uma diversidade de paisagens, lugares,
territórios e significações, condensa a imagem do mundo, repleta de contrastes,
ambiguidades, paradoxos: “e nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo.”225
Nas belas palavras de Antonio Candido:

A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida


sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de
entrar na psicologia do rústico, tudo se transformou em significado
universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para
fazê-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte não

216
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 151.
217
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 23.
218
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 204.
219
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 141.
220
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 227.
221
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 267.
222
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 509.
223
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 60.
224
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 310.
225
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 300.
86

sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a
cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade
o Sertão é o Mundo.226

Se o sertão é o mundo, um lugar-mundo, sua localização pontual, cartográfica


pouco importa. O que importa é a “matéria vertente”, ou seja, aquilo que constitui a
sua essência de lugar, o exercício da condição humana: “e estou contando não é uma
vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo
e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao
suceder.”227
Como o rio, o sertão se movimenta, escoa, escorre: “é, toda a vida, de longe a
longe, rolando essas braças águas de outra parte, de outra parte, de fugidia, no
sertão.”228 Como o sertão, “o rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser
mais grosso, mais fundo.”229 Sertão, deserto-rio, mar de territórios: lei e ausência de lei,
ordem e desordem, liberdade e aprisionamento. As dificuldades de compreensão do
lugar-sertão, lugar-cosmo, suas ambiguidades, ambivalências, contradições, paradoxos e
aporias são do mesmo caráter das que se referem à condição humana: “sertão: é dentro
da gente.”230 É o interior de cada um, o interior da humanidade. Não se pode localizar
precisamente um lugar. Não se pode localizar precisamente o sertão, assim como não se
pode elucidar a natureza dos subterrâneos da humanidade, da distância e da
proximidade entre os homens, de suas relações, seus desejos e de suas ações: “o senhor
enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele? ... Tudo
sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu.”231

226
CANDIDO. O homem dos avessos.
227
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 83.
228
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 376-377.
229
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 383.
230
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 270.
231
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 527.
87

O sertão não se apreende por objetividades e exatidões. É lugar que não se pode
mapear, definir. É o mundo do subjetivo, do inexato, do cambiante, daquilo que não se
sabe ao certo. O infindável, o interminável, o perigoso, o desconhecido, não apenas no
que diz respeito aos territórios físico-sociais, mas também nos mais recônditos territórios
interiores dos homens: o inconsciente, o eterno devir, aquilo que está continuamente em
elaboração, os territórios da vida, da existência: “viver − não é? − muito perigoso. Porque
ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”232 Sertão é o ∞.233
Infinito: “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas − mas que elas vão sempre mudando.”234
Não se pode saber o que não tem fim, o que está, permanentemente, em
elaboração. Não se sabe o infinito, o interminável do viver, da existência, não se sabe o
infinito do sertão: “sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota,
esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar
remedindo a alegria e as misérias todas...”235
Sertão é fronteira, limite e abertura, espaço do encontro e do confronto de
alteridades diversas e seus territórios. Passagem, transição, transformação. Lugar da
mestiçagem, da mistura, da transculturação: nem Deus, nem Diabo, ambos: “homem
humano”236 em sua infinita e enigmática travessia, a da existência. “As coisas assim a gente
mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite.”237 Não se localiza o sertão,
não se mapeia, não se apreende ao exato, preciso. Antes, se divulga. “Absolutas estrelas!”238
“No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.”239

232
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 517-518.
233
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
234
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 15.
235
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 508.
236
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 538.
237
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 372.
238
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 372.
239
ROSA. Grande sertão: veredas, p. 531.
88

Grafias e rasuras do sertão

Canto à cidade

auê
aqui onde foi mato alto senguê
aqui onde foi mina e mato mendê
hoje tudo é cidade onbaro ô sanguê
auê ê ere rê

(Transcriação240 do Vissungo 23, canto afro-


descendente de vida e morte, recolhido, em
mbundo, por Aires da Matta Machado Filho)

Enquanto alguns filólogos dizem ser obscura241 a etimologia da palavra sertão,


não arriscando qualquer hipótese para a sua origem, outros afirmam que o vocábulo
teria nascido como corruptela de desertão,242 embora considerando difícil a explicação
do ensurdecimento do s. A maioria deles define sertão como floresta ou mato longe da
costa, interior, lugar de terra inculta, de terrenos não cultivados.243 Para Gustavo Barroso,
o colonizador português, em terras africanas, teria tomado a palavra do mbundo, uma
das diversas línguas angolanas, transformando-a, “ao sabor de sua prosódia.”244 No
Dicionário da Língua Bunda ou Angolense, de Frei Bernardo Maria de Cannecatim,245
de 1804, o jornalista e ficcionista brasileiro encontra o termo

[...] muceltão, de onde, naturalmente, celtão e certão é corruptela, diz


frei Bernardo Maria de Cannecatim, do puro angolano mbunda ou

240
MELO. Canto à cidade.
241
CUNHA. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, p. 718.
242
NASCENTES. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p. 725, citando Maximiliano Maciel e Afrânio
Peixoto; MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, p. 187, citando alguns autores.
243
SILVA. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado, p. 693; CARVALHO. Dicionário Prático da Língua Nacional,
p. 98; FONTINHA. Novo Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, p. 1632; CUNHA. Dicionário Etimológico
Nova Fronteira da Língua Portuguesa, p. 718.
244
BARROSO. Vida e história da palavra sertão, p. 12.
245
Diccionario da Lingua Bunda ou Angolense. Nessa obra, na página 235, encontra-se o vocábulo certão definido
como locus mediterraneus. Disponível em: <http://purl.pt/13927/1/>. Acesso em: 17 maio 2011.
89

simplesmente bunda: michitu ou muchitu, através de muchitum por


nasalação dialetal. Esse termo quer dizer propriamente mato e era
empregado pela gente do interior da África Portuguesa. Tornou-se por
isso designativo de mato longe da costa, como nas definições dos
dicionários. [...] Temos, por conseguinte, em língua bunda – michitu,
muchitu e muchitum; depois muceltão por influência lusa; afinal, celtão
e certão, o interior das terras africanas coberto de mataria, e nunca o
deserto grande, o desertão, de onde a forma aferética sertão. Essa
origem falsa, à custa de ser apregoada, influiu na grafia da palavra, que
passou a ser escrita com s.”246

A palavra sertão já nasce sob o signo da ambiguidade: o mato, para os povos que
habitavam o que seria o continente africano a partir da expansão da Europa Ocidental
ao Novo Mundo, apresenta significado certamente bem distinto daquele atribuído pelo
colonizador europeu. Para os primeiros, é, antes de qualquer coisa, o interior do espaço
em que viviam de acordo com as suas mais diversificadas culturas tribais, o lugar onde,
inclusive, cultivavam à sua maneira a terra. Já ao olhar do colonizador europeu do
século XVI, o mato representa, num primeiro momento, o vazio de humanidade e,
portanto, de cultura, o espaço de terras a serem cultivadas e de seres a civilizar. Forjada
na diferença cultural entre os mundos “africano” e europeu do século XVI, a palavra
vai se constituindo, agregando significados, transmutada inclusive em sua grafia, a
partir do ponto de vista do colonizador português e da violência com que ele fabrica,
com seus pares, esse novo mundo.
O “mundo novo”, espaço desconhecido cuja diferença é traduzida pelo mundo
europeu ocidental do século XVI como negação do mundo humano, constitui-se, desse
modo, como o outro, estranho, não-europeu e, por isso, antípoda, inferior, inculto,
bárbaro e selvagem. Como testemunham, por exemplo, as vastas historiografias e as
literaturas denominadas coloniais, que ainda espalharam seus ecos até meados do

246
BARROSO. Vida e história da palavra sertão, p. 11-12.
90

século XX.247 A ideia de sertão nasce, portanto, como a de um outro, estranho,


estrangeiro, negado e, consequentemente, excluído como parte de um pensamento
europeu ocidental que, a partir do século XVI, inicia sua disseminação ao mundo e
inaugura a modernidade. É assim que, além do mundo “africano”, o mundo oriental, a
despeito das trocas comerciais que estabelecia com a Europa ocidental, e até mesmo os
interiores da própria metrópole portuguesa248 foram denominados sertões pelo
colonizador português. Numa evidência de que é a condição da diferença, traduzida
como estranha e estrangeira a um modo de ver e viver o espaço, que determina desde o
início a sua nomeação como sertão ou sertões, em qualquer escala. Dentro ou fora dos
mesmos espaços responsáveis por essa nomeação. Daí os Sertões d’África,249 da Beira, do
Alentejo250 e tantos outros mais. O conceito de sertão evoca necessariamente a reflexão
para a questão da alteridade.
Trazida para as terras que constituiriam o Brasil, a palavra não teria aplicação
diferente: sertão designava inicialmente todo o território desconhecido e recém
encontrado, a floresta ou o mato, portanto, como se lê na vasta literatura colonial da
qual faz parte, sobretudo, a chamada literatura de viagem.251 Nascidas as primeiras
povoações litorâneas do norte ao sul dessas terras, todo o território que se estendia para
além do litoral conhecido, para além dessas povoações, era denominado sertão pelos
habitantes litorâneos. Na medida em que a colonização avançava pelo interior do

247
Para citar apenas alguns exemplos, Alfredo de Sarmento, Sertões d’África (1880), Pero de Magalhães Gândavo,
Tratado da Terra do Brasil (1570), Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogo das grandezas do Brasil (1618), Francisco
Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil (1854), Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627), Jean de
Léry, Viagem à Terra do Brasil (1578), Visconde de Taunay, História das bandeiras paulistas (1951). O historiador
Victor Leonardi, em Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil, faz um estudo minucioso de
vários desses autores.
248
BARROSO. Vida e história da palavra sertão.
249
SARMENTO. Sertões d’África.
250
BARROSO. Vida e história da palavra sertão.
251
Toda a obra de Spix e Martius, Saint-Hilaire, Richard Burton, Wilhelm L. Von Eschewge, Johann B. Emanuel
Pohl, dentre muitos outros.
91

continente, rasurava-se gradativamente a representação dos espaços ocupados como


sertões e assim os sertões migravam para mais adiante.
Desse modo, o interior do continente, tal como todo território desconhecido
para um determinado grupo social, foi preenchido por uma significação ambígua, de
atração e repulsa: lugar do maravilhoso e do tenebroso, de riquezas, monstros,
demônios e perigos diversos, oferecidos por uma natureza hostil e bruta. Assim como
foi o mar antes de se lançarem os reinos europeus às grandes navegações. À essa época,
o sertão começava, portanto, tão logo se saía dos limites das povoações de Salvador
(cidade da Bahia), Rio de Janeiro, Paraty e São Vicente. Realizadas as primeiras
incursões pelo interior dessas terras e fundadas as povoações que dariam origem à
cidade de São Paulo e algumas cidades do Vale do Paraíba paulista, essa região deixa de
ser representada no imaginário da época como sertão e as terras que constituiriam o
estado de Minas Gerais252 é que são assim nominadas. Na medida em que a
colonização avançava pelo interior do continente, rasurava-se progressivamente a
representação dos espaços conquistados como sertões e o sertão ou os sertões migravam
para mais adiante. Ao perderem territórios numa guerra contra os emboabas
(estrangeiros provenientes de diversas partes da Europa), bandeirantes paulistas
empreendem novas incursões pelo interior do continente em busca de metais, dessa vez
nas regiões que constituiriam os estados de Goiás e Mato Grosso, espaços, então,
denominados sertões.
Esses são apenas alguns exemplos de espaços grafados e posteriormente
rasurados, em alguns trechos, ao longo do tempo, como sertões. Até hoje algumas
partes de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso permanecem compreendidas, tanto por

252
Da povoação, fundada pelos jesuítas, que deu origem à cidade de São Paulo, partiram as primeiras bandeiras em
busca do ouro e do apresamento de índios, rumo à “rica”, “perigosa” e “desconhecida” região das “minas”,
considerada sertão à época.
92

parte de seus habitantes quanto por “olhares de fora”, como sertões. A historiadora
Janaína Amado registrou vários sentidos para a palavra:

Em Santa Catarina, ainda hoje se emprega a expressão “sertão” para


referir-se ao extremo oeste do estado. Em partes do Paraná, a mesma
expressão identifica uma área do interior de outro estado, − São Paulo,
próximo a Sorocaba (provavelmente, uma reminiscência dos antigos
caminhos das tropas). No Amazonas, “sertão de dentro” refere-se à
fronteira do estado com a Venezuela, enquanto, no interior do Rio
Grande do Sul, “sertão de fora” também nomeia área de fronteira,
porém situada... no Uruguai! “Sertão” é também uma referência
institucionalizada sobre o espaço no Brasil: segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), designa oficialmente uma
das subáreas nordestinas, árida e pobre, situada a oeste das duas outras,
a saber: “agreste” e “zona da mata”.253

No Brasil imperial, a tentativa de forjar uma identidade, demandada por uma


emergente nação politicamente independente da metrópole, feita pelos escritores
românticos, revela-se frustrada em vários aspectos. Na caracterização extremamente
europeizada do indígena, idealizado como o bom selvagem de Rousseau, na
invisibilização do africano254 e na idealização do "sertanejo" como ser representante
dessa nação que surgia, em contraposição ao "tipo" humano do litoral.
O advento da República no fim do século XIX e seu ideal de “[...] ‘atualizar’ o
Brasil com o ritmo das nações europeias ou com os Estados Unidos [...]”255 faz nascer
várias políticas de ocupação do espaço territorial que culminam no início do processo de
urbanização do País: criam-se as Comissões Geográficas e Geológicas com o objetivo de
mapear e “reconhecer” os terrenos até então inexplorados. Com esse intuito, técnicos,
engenheiros, militares, médicos e políticos empreendem diversas expedições pelos
territórios denominados sertões à época. Herdeira das políticas coloniais, empreendidas

253
AMADO. Sertão, nação, região, p. 145.
254
Salvo na poesia da chamada terceira geração romântica a qual pertencem escritores como Castro Alves.
255
ARRUDA. Cidades e sertões, p. 19.
93

por uma oligarquia rural da qual se constituiu a chamada República Velha, essas
políticas viam nesses espaços inexplorados por elas e em seus habitantes, indígenas,256
negros, sertanejos, um obstáculo ao avanço da modernidade, da “civilização”. Os
discursos que legitimaram tais políticas apoiaram-se na ideia positivista de progresso da
qual os territórios denominados sertões representavam a antítese.
A socióloga Lúcia Lippi Oliveira sintetiza as concepções de sertão na literatura
brasileira romântica e realista:

Na perspectiva romântica, o sertanejo aparece como símbolo da


nacionalidade pelo seu admirável modo de vida, caracterizado pela
destreza e pela simplicidade. Natureza e organização social se fundem
na base deste julgamento positivo, opondo-se à vida degradada e
corrompida do litoral, ou seja, das cidades. Na perspectiva realista, a
vida interior perde esta visão idealizada. O sertão passa a ser visto
como um problema para a nação e se opõe à urbanidade do litoral.
Sob a visão cientificista do final do século XIX, as explicações raciais
sustentam uma suspeita sobre tipos miscigenados portadores da
degeneração.257

Reforça-se, assim, a perspectiva dicotômica na forma de compreender e grafar os


sertões, cujas bases se encontram no colonialismo europeu ocidental do século XVI e até
hoje disseminam seus vestígios: civilização/barbárie, litoral/sertão, cidade/sertão,
moderno/primitivo, desenvolvido/subdesenvolvido. Na medida em que a urbanização
avançava, intensificava-se o processo de transformação das paisagens e as grafias dos
espaços denominados sertões iam sendo rasuradas para dar lugar a novas grafias, novas
representações, novas imagens: sob o signo do moderno, do civilizado, do
desenvolvido, a cidade impõe-se gradativamente sobre a densa e selvagem floresta,
sobre o desconhecido, sobre o sertão, e assim mais uma vez a sua representação, o seu

256
Criados para registrar a memória, compondo a história da ideia de nação que surgia, os Institutos Históricos e
Geográficos, contraditoriamente, excluíram os indígenas e africanos da desejada nação forjada por eles (ARRUDA.
Cidades e sertões).
257
OLIVEIRA. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos, p. 71.
94

lugar migra para mais adiante, forjado sempre como um outro, estranho, antípoda,
atrasado e fora da lei.
Os diferentes momentos dos processos de industrialização em nível mundial
fazem nascer uma sociedade urbana que, para muito além desses processos, ganha cada
vez mais complexidade, culminando na urbanização completa da sociedade, prenunciada
por Henri Lefebvre: “o momento em que a problemática urbana prevalecerá
decisivamente; em que a busca das soluções e das modalidades próprias à sociedade
urbana passará ao primeiro plano.”258 A cidade moderna contemporânea se estende
através de diversos canais, sendo visível não apenas na sua tessitura que atravessa
espaços diversos, como, também, nos modos de vida que se misturam às tradições.259
Organiza-se em redes de lugares, territórios que atravessam física e virtualmente
espaços nacionais, conectando-os e integrando-os a redes mundiais. Ao longo dessas
redes transnacionais de cidades, de lugares, inscrevem-se, entretanto, "outras cidades",
outros lugares, não diretamente conectados a essas redes, transcriados pelo cotidiano de
sujeitos a quem continuamente é negado o direito à instituição cidade. Lugares onde o
Estado não chega, associados ainda apenas à selvageria e ao atraso a despeito da
diversidade de vida que apresentam. A urbanização completa da sociedade, tal como
anuncia Lefebvre, é, desse modo, em contrapartida, mais uma das múltiplas
possibilidades de extensão do sertão, visível, mutante, nos interiores do urbano, da
cidade, da metrópole.
De mata exuberante a deserto, tanto no sentido de área desabitada quanto árida,
de cerrado à caatinga, do campo à cidade, a palavra sertão nomeou e nomeia paisagens e
lugares distintos, assumindo uma diversidade de imagens e significações. Não aponta
para um lugar único quando se pensa no lugar apenas como um ponto físico do

258
LEFEBVRE. A revolução urbana, p. 19.
259
LEFEBVRE. A revolução urbana.
95

espaço. As significações dos lugares, as significações do sertão e da sua infinidade de


territórios, densas de complexidade, declinam de representação pontual, cartográfica
convencional. Pode-se pensar numa cartografia metafórica do sertão: linhas que se
desenham e se redesenham, grafam-se e rasuram-se todo o tempo, compondo um
esboço movente e mutante, capaz de se transferir e de se transportar para espaços e
tempos os mais variados, aí incluindo os espaços-tempos interiores de cada um. O
lugar-cosmo sertão, suas paisagens e seus territórios estão simultaneamente fora e dentro
de nós, dizem respeito à complexidade de relações que se podem estabelecer entre
diferentes alteridades, não importando o ponto do espaço e a escala e em que essas
relações se deem.
96

Atopia, utopia

Lugar é o espaço físico-simbólico em que o homem realiza a sua vida,


experimentando cotidianos de identificação, pertencimento, desejo de ser e de estar e,
ainda, de ser e de estar junto, de compartilhar. Espaço da descoberta de possibilidades
de vida e da criatividade a serviço da reinvenção do cotidiano, num movimento
contínuo de auto-realização pessoal e de transformação social. Quando essas condições
lhe são subtraídas fica caracterizada a atopia, produzida nos múltiplos movimentos do
mundo responsáveis pela heterogeneidade do espaço. No confronto entre diferentes
territórios, suas alteridades, um acaba por impor ao outro a sua invisibilização, muitas
vezes traduzida em aniquilação absoluta. Caso de grande parte dos territórios indígenas
e africanos apropriados pelo Brasil colonial e por outros territórios coloniais presentes em
toda parte nos mais diversos espaços-tempos. Um traço comum, presente na origem e na
permanência da produção de territórios de sertões nos mais diversos espaços-tempos é a
sua fundamentação no princípio da apropriação/violência.260 Par dialético que tomo por
empréstimo do sociólogo Boaventura de Sousa Santos261 para me referir às relações de
poder extremamente desiguais, em diversos domínios (cultural, econômico, jurídico,
epistemológico etc) e que se estabelecem entre sujeitos e grupos sociais, em que um
impõe ao outro a condição de atopia, de negação do seu lugar. Violência que se
manifesta na destituição dos seus territórios de cultura e de vida. A partir da expansão
dos territórios da modernidade ocidental do século XVI, numa escala e graus maiores,
a atopia se manifesta na apropriação dos territórios tribais africanos, indígenas,
asiáticos, latino-americanos e no modo de produção escravista que estruturou e ainda
estrutura sob novas formas essa apropriação na fase contemporânea radicalizada do

260
Princípio que se manifesta, de modo geral, na incorporação, cooptação, assimilação, destruição física, material,
cultural e humana.
261
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes.
97

capitalismo. As formas de apropriação/violência são infinitas na contemporaneidade.


Manifestam-se não apenas na manutenção de territórios coloniais, no sentido estrito,
em pleno início do século XXI262, mas também nos precários processos de
descolonização em todo o mundo, e em novas formas de colonização, imperialismos e
totalitarismos. Numa escala menor a apropriação/violência se manifestou, por exemplo,
na proibição da capoeira, do batuque, da ginga e de outras manifestações culturais
africanas e afro-descendentes pelos territórios imperiais de colonização do século XVI
ao século XIX no Brasil. Na contemporaneidade, se manifesta na repressão policial aos
terreiros de candomblé, nas inúmeras formas de imposição da migração, na expulsão
de milhares de sujeitos tanto do campo quanto das cidades sempre "para mais além",
na submissão de determinados sujeitos e grupos sociais ao trabalho escravo e em toda e
qualquer forma de destituição das suas condições de construção de um lugar.
Do escravismo do mundo antigo ao do capitalismo contemporâneo, cuja
superfície de territórios atravessa o corpo do mundo, do ocidente ao oriente, se produziu
atopia. Evidência de que os sertões, da forma como se concebe neste estudo o conceito,
estiveram presentes em todos os modos de produção. Este estudo ocupa-se, entretanto,
da reflexão sobre as imagens de sertão disseminadas a partir do pensamento moderno
ocidental, pensamento abissal (não o único), nos termos de Boaventura de Sousa Santos,
que:

Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as


invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são
estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social
em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o
universo ‘do outro lado da linha.’ A divisão é tal que o ‘outro lado da
linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo
produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob
qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é
produzido como inexistente é excluído de forma radical porque

262
Caso, por exemplo, do Saara Ocidental, dominado pelo Marrocos.
98

permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de


inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental
do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois
lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que
esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas
inexistência, invisibilidade e ausência não-dialéctica.263

A atopia não se manifesta, contudo, como não-lugar.264 Ao contrário, constitui-


se como lugar cujos territórios foram, entretanto, invisibilizados, rasurados, omitidos
por outros territórios que se impõem como hegemônicos. Um lugar negado, subtraído,
mas que permanece como lugar, na medida em que os sujeitos e grupos sociais que o
constituem buscam permanentemente a reinvenção, a transcriação dos seus territórios
de vida. Nesse sentido, sertão é o complexo lugar da busca de condições de
sobrevivência, da esperança de vida digna, o lugar de todos aqueles que, de algum
modo, tiveram subtraídas ou reduzidas as condições de construção do seu lugar, dos
seus territórios. Esse é um traço comum, presente na constituição dos sertões da
modernidade ocidental do século XVI à contemporaneidade, por toda parte do
mundo, nas mais diversas escalas: do norte ao sul do Brasil, no campo ou nos interiores
das grandes cidades, na Palestina ou no Recife, em Kandahar ou Darfur, Nova York ou
Jerusalém, emergem a todo tempo novos lugares-territórios-sertão. Há, entretanto,
variações diversas no grau de atopia imposto. Como pensar na reinvenção da vida nos
territórios indígenas e africanos em grande parte completamente rasurados pelo sistema
colonial no sentido estrito? As guerras e a escravidão, em suas diferentes formas, são a
expressão da impossibilidade da vida. Prisioneiros de guerra e sujeitos que vivem em
campos de refugiados encontram-se numa situação extrema em que a vida é negada até
mesmo em sua possibilidade de reinvenção. Nesses casos, e em tantos outros, a atopia

263
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, p. 31-32.
264
Expressão cunhada por Marc Augé para designar, na supermodernidade, os espaços de passagem, como, por
exemplo, aeroportos, estações de metrô, salas de espera, supermercados e vias expressas.
99

só pode se constituir em lugar através da reinvenção da vida que se faria de fora, através
do movimento de outros sujeitos, de outros grupos sociais na construção de territórios
fundados em um outro pensamento, um pensamento pós-abissal, nos termos de
Boaventura de Sousa Santos.265
Onde houve e há atopia, há também resistência. Nos territórios imperiais, os
quilombos, instituições africanas de origem angolana, constituíram organizados
territórios (políticos, culturais, econômicos) de resistência à atopia imposta pelo modo
de produção escravista. Muitos outros territórios de resistência africana se
manifestaram em outras escalas nos territórios escravistas:

Numerosas foram as formas de resistência que o negro manteve ou


incorporou na árdua luta pela manutenção de sua identidade pessoal e
histórica. No Brasil, poderemos citar um destes movimentos que no
âmbito “doméstico” ou social tornam-se mais fascinantes quanto mais
se apresenta a variedade de manifestações: de caráter linguístico,
religioso, artístico, social, político e de hábitos, gestos etc.266

Numerosas foram também as formas de resistência indígena em territórios


coloniais: guerras, fugas, recusa ao trabalho escravo. No início da República, a história
de Canudos revela um dos mais organizados movimentos de resistência por parte de
grupos sociais menos favorecidos à imposição de atopia em territórios brasileiros. Um
movimento que reuniu em torno de 25 mil pessoas numa comunidade produtiva,
capaz de erguer, em mutirão, casas, escolas, açudes, igrejas. Sujeitos expulsos de suas
terras pelos altos impostos cobrados pela República, em nome da modernidade, da
igualdade, da liberdade e da fraternidade. Falsamente acusados de resistência
monarquista. Capazes de vencer três batalhas contra o exército republicano brasileiro,
sucumbindo, sem rendição, apenas quando o número de soldados da última batalha foi
multiplicado à proporção dos massacres.

265
SANTOS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes.
266
NASCIMENTO. O conceito de quilombo e a resistência cultural afro-brasileira, p. 142.
100

Na contemporaneidade, a permanente tensão gestada nas relações entre grandes


investimentos corporativos e pequenos agricultores, comunidades indígenas e
quilombolas evidencia a herança legada pelos sertões dos territórios coloniais aos
sertões do nosso tempo. Territórios de resistência às antigas e novas formas de
apropriação/violência são produzidos por essas comunidades através do seu cotidiano,267
da sua crescente organização política, da sua participação cada vez maior em
movimentos sociais de âmbito local e também de âmbito global, como o Fórum Social
Mundial.
Para Milton Santos,268 a idéia da irreversibilidade do processo de
internacionalização do capitalismo encontra seu fundamento e suas contradições na
própria força com que ele se instala no mundo. Isso faz com que se acredite que não há
alternativas para a transformação social. Entretanto, o geógrafo acredita que o mundo
também se faz de possibilidades ainda não realizadas, mas empiricamente factíveis, e
que as condições materiais empíricas da transformação já estão presentes como
promessa de realização. Fazem parte dessas condições os espaços de solidariedade e
descoberta de possibilidades de luta, criados a partir do cotidiano do lugar, o processo
de democratização das técnicas de informação, que permite a utilização contra-
hegemônica da técnica por grupos sociais menos favorecidos, e os limites ao consumo
das “classes médias.” A indignação e as aspirações desses grupos sociais se somariam a
partir da permanente tensão de valores de produção da vida entre lugares
hiperglobalizados economicamente e aqueles menos “globalizados”, constituindo,
assim, territórios férteis de novas sinergias e, portanto, territórios de utopias nos
processos de transformação social.

267
O cotidiano dessas comunidades permite a prática de uma economia também à base de trocas.
268
SANTOS. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
101

Emergiria, desse processo, a possibilidade da política cidadã, construída de baixo


para cima, a política como um conjunto de forças capazes de transformar
gradativamente a sociedade como um todo. Daí emergiria uma nova ética, um novo
espaço em que não mais o território do capital, do dinheiro, da competição, mas o
homem, como um dado filosófico, ocuparia o centro dos movimentos do mundo.
As condições de transformação do mundo, para Milton Santos, estão, portanto,
referenciadas nas utopias. Essas compreendidas, entretanto, não em seu sentido
convencional, como projeções irrealizáveis, mas, ao contrário, como possibilidades
factíveis cuja existência se dá a partir de embriões de possibilidades. No contemporâneo
cenário mundial de radicalização da modernidade, no que diz respeito aos processos
socioeconômicos e suas consequências nos modos de vida, se produzem também as
contradições, os limites a essa ordem e suas possibilidades de superação. Numa linha de
pensamento bem próxima à de Milton Santos, Boaventura de Sousa Santos propõe a
reinvenção da emancipação social269 através do que ele denomina sociologia das ausências
e sociologia das emergências. O par dialético visa transformar a leitura hegemônica do
mundo produzido como ausente, invisível, em mundo visível, emergente, presente.
Transformar o desperdício da experiência social em construção de conhecimento,
trazendo ao diálogo desse processo os saberes e as práticas produzidos como
inexistentes. A sociologia das ausências e a sociologia das emergências, cuja linguagem
seria viabilizada pela tradução, operariam, assim, substituindo monoculturas por
ecologias. Seriam capazes de dilatar o presente contraído, veloz e fugidio, fabricado pelo
mundo do consumo e da mercadoria e, consequentemente, ampliar as possibilidades
das experiências sociais do futuro.
As cartografias omissas representam, desse modo, um espaço múltiplo e
paradoxal, continuamente em transformação, capaz de produzir ou não territórios de

269
SANTOS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
102

resistência e de cidadania que se apresentam em outros tempos, outras técnicas, outros


ritmos, outras economias, diferentes do tempo, da técnica e da racionalidade do
pensamento único imposto pelos ritmos “globais”.
SERTÕES DO MUNDO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
103

Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo


da fluidez, a vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a
banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam,
por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente
sensível, diante de um universo difícil de apreender. Talvez, por isso mesmo,
possamos repetir com Edgar Morin que “hoje cada um de nós é como o ponto
singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo planetário que
o contém.”

Milton Santos

Dinâmico e indivisível, uno, fragmentado e múltiplo, o espaço é transformação.


Nele cabem diversos outros espaços, tempos, ritmos, organizações. O que são a
distância e a proximidade diante da multiplicidade e da mobilidade dos “centros”? O
mundo dos lugares revela a diversidade de mundos presentes no corpo do mundo. Cada
lugar é, à sua maneira, um mundo que carregamos em nós, e também o mundo do
espaço-tempo de uma cultura. A produção de atopia é a representação, a
“exteriorização” do mundo estrangeiro, invisibilizado em nós, espaço deserto e
desertado, não reconhecido, negado, e tomado, por isso, como outro. Ao refletir sobre a
condição do estrangeiro, das sociedades mais antigas às mais contemporâneas, Julia
Kristeva chega à conclusão de que o estrangeiro é parte da condição humana, é o outro
que também nos habita:

Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da


nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em
que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em
nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo por si mesmo. Sintoma que
torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o
estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e
termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos
vínculos e às comunidades.”270

270
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 9.
104

As tensões, os conflitos que se estabelecem nos diversos espaços de fronteira


entre diferentes alteridades, não dizem respeito apenas aos espaços físicos e culturais.
Apontam também, necessariamente, para a questão da alteridade em nós:

Viver com o outro, com o estrangeiro, confronta-nos com a


possibilidade ou não de ser um outro, estar em seu lugar, o que equivale
a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo. O “Eu é um outro
de Rimbaud” não era somente a confissão do fantasma psicótico que
assedia a poesia. A expressão anunciava o exílio, a possibilidade ou a
necessidade de ser estrangeiro e de viver no estrangeiro prefigurando
assim a arte de viver numa era moderna, o cosmopolitismo dos
esfolados.271

O sertão, lugar-mundo presente em toda parte, é a representação da condição


estrangeira que carregamos em nós. A exteriorização de uma diferença não
reconhecida. Nesse espaço, simultaneamente interno e externo, material e imaterial, já
não cabem mais as escalas, os lugares, as medidas e os marcos temporais estabelecidos
pelos homens. O mundo dos sertões, com seus territórios de atopia e utopia, ultrapassa
a racionalidade moderna que produziu seu nome e quaisquer outras racionalidades,
para se instalar no inapreensível espaço do inconsciente e da condição humana.
A imagem da guerra, uma das diversas imagens que compõem o lugar-cosmo
sertão, presente em todos os espaços-tempos, nas mais variadas formas e escalas,
dissemina-se para além dos territórios físico-sociais de atopia. O terror, linguagem de
guerra que emerge também dos interiores dos lugares aparentemente imunes às atopias
“externas,”272 é uma evidência de que as cartografias omissas estão em nós:

[...] pode-se perguntar – quando o número excessivo de trabalhadores


imigrados oprime os subúrbios franceses, quando o cheiro do
churrasco de carneiro enjoa as narinas habituadas a outros deleites e a
quantidade de jovens delinquentes negros leva algumas pessoas a

271
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, 84.
272
Como, por exemplo, os países da Europa do Norte, onde não se veem, na contemporaneidade, relações sociais
fundadas no paradigma da apropriação/violência.
105

identificar a criminalidade com a condição de estrangeiro, para que


serve vasculhar os arquivos do pensamento e da arte tentando
encontrar respostas para um problema, no final das contas, muito
prático, até mesmo trivial?273

Kristeva nos mostra que ao longo da história o estranho em nós é deslocado para
a figura do estrangeiro, o outro, o exterior, desumanizado: aquilo que desejamos
eliminar e que se representa e se apresenta, desse modo, na figura do estrangeiro a ser
socialmente eliminado:

O mundo da barbárie culmina [...] num mundo único, formado por


Estados em que somente a humanidade organizada em residências
nacionais tem de ter direitos. A perda da residência, uma perda de
trama social, agravada pela “impossibilidade de encontrar uma,
caracterizam essa nova barbárie vinda do interior mesmo do sistema
dos Estados-nações. O mundo moderno – trata-se do nazismo e de
suas seqüelas, compreende pessoas que não são mais reconhecidas
cidadãs de um Estado soberano, e, portanto, não pertencem a
qualquer comunidade.... estar privado dos direitos do homem é,
primeiramente e antes de tudo, estar privado de um lugar no mundo
que torne as opiniões significantes e as ações eficazes.”274

A busca do direito a um lugar no mundo, uma outra imagem que compõe os


territórios de sertões, nasce essencialmente desses territórios em que esse direito foi
negado. Territórios dos homens lentos ou territórios do Sul ou, ainda, territórios de
sertões: atopia e utopia são aí faces de um mesmo fértil espaço de alternativas,
experiências, saberes e práticas a serem conhecidos e reconhecidos. Para Milton Santos,

[...] não vemos [as alternativas] em função do nosso aparelho


epistemológico. Todos somos de tal maneira subordinados à episteme
norte-ocidental, que temos enorme dificuldade para pensar diferente.
Esse é um problema para as ciências sociais latino-americanas e
brasileiras. São por demais escravizadas pelo paradigma do Norte e
pela política que daí decorre. Nunca pensamos o mundo a partir da
América Latina. Quem entre nós, intelectuais, pensou o mundo? A

273
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 109.
274
KRISTEVA. Estrangeiros para nós mesmos, p. 160.
106

gente pensa Europa, Estados Unidos e exclui a África e a Ásia. A


própria construção territorial da realidade nos escapa com muita
freqüência na nossa elaboração intelectual. Essa é a realidade que
cobra de nós uma outra epistemologia.275

Uma outra epistemologia, uma Epistemologia da Existência276 seria exercitada a


partir da reflexão sobre os lugares e a vida dos homens que neles se desenvolve. Exige
de nós a busca permanente da consciência do outro em nós, o seu reconhecimento, a
sua acolhida para um diálogo infinito que permita a transformação de ambos, condição
fundamental para a convivência. Para uma ciência conservadora, talvez o sertão não
esteja em toda parte. O estudo dos sertões do mundo a partir dos lugares nos revela,
entretanto, que o singular se universaliza na condição humana, que a barbárie é
humana, e que a utopia é uma outra face da barbárie.

275
SANTOS. Entrevista, p. 37.
276
SANTOS. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência.
107

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