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Sumário
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Sumário
4. Dedicatória
5. 1
6. 2
7. 3
8. Epílogo
9. Agradecimentos
10. Sobre a autora
11. Créditos
Landmarks
1. Cover
2. Body Matter
3. Dedication
4. Table of Contents
5. Epilogue
6. Acknowledgments
7. Copyright Page
Esta edição foi feita com carinho pela TAG para
seus associados.
Para Dan Wilde, por tudo
1
Dado que a morte é certa,
mas o momento da morte é incerto,
o que é mais importante?
PEMA CHÖDRÖN
12 de junho de 2013
7h45
O aeroporto de Newark parece novinho em folha depois de
uma reforma. Ao longo de todas as curvas da fila para passar
pelo controle de segurança há vasos de plantas, assim os
passageiros não se dão conta de quanto tempo vão ter que
esperar. As pessoas se apoiam nas paredes ou se sentam sobre
as malas. Todas acordaram antes do amanhecer. Dão longos e
fortes suspiros, mortas de exaustão.
Quando chega a vez da família Adler, todos colocam seus
computadores e sapatos nas bandejas. Bruce Adler tira o cinto, o
enrola e o encaixa direitinho ao lado dos mocassins marrons na
caixa de plástico cinza. Os filhos não são tão cuidadosos e jogam
os tênis por cima dos laptops e das carteiras. Os cadarços
pendem para fora da bandeja compartilhada pela família, e Bruce
não deixa de ajeitá-los para dentro.
A grande placa retangular ao lado deles indica: Todos os
celulares, carteiras, chaves, joias, aparelhos eletrônicos,
computadores, tablets, objetos metálicos, sapatos, cintos e
alimentos devem ser colocados nas bandejas de segurança.
Todos os objetos proibidos e bebidas devem ser descartados.
Bruce e Jane Adler estão ao lado do filho Eddie, de doze anos,
cada um de um lado, conforme se aproximam do escâner
corporal. O filho de quinze anos, Jordan, espera os dois
passarem primeiro.
Jordan diz ao agente de segurança que controla a máquina:
“Me recuso”.
O agente olha para ele. “O que você disse?”
O menino enfia as mãos nos bolsos e responde: “Me recuso a
passar pelo aparelho”.
O agente grita, aparentemente sem um interlocutor em
especial: “Temos uma recusa masculina!”.
“Jordan”, o pai chama, do outro lado do aparelho. “O que está
fazendo?”
Crispin abre os olhos e não sabe onde está. Bem, sabe que
está num avião. Isso é óbvio. Mas para onde está indo, e quando
chegará? Já esteve em centenas de aviões na vida; houve anos
em que parecia passar mais dias no ar, no caminho para
reuniões, conferências e férias luxuosas, do que no solo. Ele
poderia comprar uma frota de aviões se quisesse, mas nunca
quis um jatinho. Voos comerciais eram um dos poucos lugares
em que se sentava em meio aos clientes, para observar como
pensavam e se comportavam. Sempre considerou o tempo que
passava em aeroportos ou aviões uma pesquisa de marketing
inestimável.
“Em que ano estamos?”, Crispin pergunta à mulher ao seu
lado.
Ela usa um cardigã branco abotoado até em cima. “Me dê seu
pulso”, ela diz. “Vou checar seus batimentos.”
“De jeito nenhum. Responda à minha pergunta.”
“Estamos em 2013.”
“Nasci em 1936. Isso significa que…” Crispin fecha os olhos,
mas seu cérebro se recusa a fazer as contas. Suspeita que a
mulher é enfermeira e que provavelmente está com ele.
Ela pega o braço dele como se tivesse esse direito, e posiciona
dois dedos na parte interna do pulso. Crispin deixa, porque sua
força física foi embora, junto com a capacidade de fazer contas.
“Está fraco”, ela comenta baixinho.
Ele assente, ou talvez não faça isso de fato, mas só por dentro,
em concordância. Ele está fraco. Está fraco por dentro e por fora,
onde quer que esteja.
“Está com frio, senhor Cox?”
Estou, ele pensa. Estou congelando. E não sou mais jovem.
Estou sozinho no céu, indo não sei para onde.
John fica acordado toda noite agora, até que Edward esteja na
cama no porão. Põe a cabeça para dentro do cômodo só para
confirmar que o sobrinho está deitado debaixo dos lençóis. “Tudo
certo?”, John pergunta, então Edward assente e se vira na
bicama.
Uma hora depois, quando tem certeza de que os tios
dormiram, Edward se levanta, põe blusa e tênis — e a parca
laranja, se estiver muito frio — e vai lá para fora. Dá várias voltas
no quarteirão, tomando cuidado para não ficar à vista do quarto
de Shay. Conta as casas pelas quais passa, o número de
janelas, a miscelânea de estrelas lá em cima. Ele precisa de
movimento, gosta da escuridão do céu noturno e do ar preto
entre as árvores. Às vezes, quando os números começam a se
embaralhar em sua mente, Edward anda de olhos fechados.
Nunca se permite se sentar ou se deitar, no entanto, para evitar
pegar no sono e congelar, o que confirmaria o medo dos adultos.
Em determinado ponto, quando algo dentro de Edward se
tranquiliza, ele volta para o porão e para a bicama. Não é
silencioso lá dentro, mas os ruídos são completamente diferentes
daqueles que havia no quarto de Shay. Talvez por estar embaixo
da casa, a estrutura parece se mover e chiar acima de sua
cabeça. Edward consegue ouvir o farfalhar das folhas secas
através das janelas fechadas. Pelo menos duas vezes por noite
há um estalo alto, que faz com que ele se sente na cama na
mesma hora e fique observando as sombras.
Do lado de dentro, Edward não quer escuridão. Mantém a luz
do banheiro acesa, além do brilho difuso de um poste de luz que
entra pelas janelas altas do porão. O único ponto positivo de ter o
próprio quarto é que ele não precisa fazer silêncio para não
acordar Shay. Nem precisa fingir dormir. Pode tossir, socar o
colchão, falar sozinho. Pode rolar de um lado para o outro da
cama. Comer uma barrinha de cereal às duas da manhã porque
o estômago está roncando.
Ele ouve o apito estridente da sra. Tuhane, lembra-se de
entreouvir Shay falar — com a voz aguda, animada — com uma
menina na aula de francês sobre ir a uma festa na sexta, perto do
lago. Edward fica olhando pelas janelas altas e estreitas quando
o céu se ilumina e outro dia começa.
Edward Adler
Querido Edward,
Atenciosamente,
Jeanette Louis
Ele mandou uma foto com a carta. Shay mostra a Edward. Três
crianças negras enfileiradas em ordem de altura. Os dois
meninos mais velhos usam blusas de frio listradas, e a menina
mais nova usa um vestido listrado combinando. Eles sorriem para
a câmera.
“Mierda”, Shay solta.
Edward passa a mão pelo cabelo, como se estivesse
agarrando uma bola de basquete, com os dedos bem abertos.
Sua cabeça pulsa.
“Mais algumas, e paramos por hoje”, Shay diz. Edward sabe
que ela quer continuar lendo na esperança de encerrar os
trabalhos num tom mais animado. O que quer que isso signifique.
A próxima carta é de uma mulher que perdeu a filha, cujo
sonho era homenagear sua ascendência andando pela Muralha
da China.
Edward passa de uma aula a outra sem ouvir o que lhe dizem.
Mais de uma vez, Shay tem que puxar seu cotovelo enquanto ele
anda, para mudar a direção. Edward deixa que o faça, mas
pensa: Não faz a menor diferença se assisto a uma aula de
inglês ou de estudos sociais.
Aquela noite, eles só esperam quinze minutos depois que as
luzes dos quartos estão todas apagadas antes de atravessar o
gramado até a garagem.
Uma vez lá dentro, Edward abre o cadeado da mala. Shay diz:
“Acho que devemos estabelecer regras”.
“Regras?”
“Talvez a gente devesse ler dez cartas por noite, só ficar aqui
por uma hora ou coisa do tipo. As cartas são… intensas. E acho
que depois de ler é melhor levar a carta com a gente. Temos que
deixar as malas aqui, claro, mas posso encher com alguma outra
coisa depois que tivermos tirado bastante. Quero registrar as
cartas, e depois podemos responder, se quisermos.”
“Não acha que John vai notar?”
“Ele nunca abriu nenhuma. Acho que ia deixar as cartas nas
malas pra sempre. Ou talvez te dar quando você ficar mais
velho.”
Edward parou de ouvir. Seu braço já está enfiado bem fundo
na mala. Ele fecha os dedos em torno de um envelope e o puxa.
Querido Edward,
Sinceramente,
Gary
“Ah, essa foi boa”, Shay diz, claramente aliviada. “Oi, Gary.”
“Oi, Gary”, Edward diz.
A próxima carta pede que ele visite uma casa no Alabama,
para abraçar uma mulher acamada cujo filho estava no avião.
Edward tenta se imaginar se inclinando sobre a cama onde uma
desconhecida frágil morre e envolvê-la com os braços. Quando
termina a carta, entrega a Shay. Ela trouxe um laptop para a
garagem para fazer anotações e registrar todos os pedidos numa
planilha.
As duas cartas seguintes pedem a Edward que assuma a
ocupação das pessoas mortas, virando enfermeiro e depois
violinista. Uma mulher pede que ele reze para o marido dela
todas as noites, antes de dormir. A carta é acompanhada por
salmos copiados à mão, que Edward imagina que também se
espera que ele leia antes de ir para a cama.
“Você não pode fazer tudo isso”, Shay diz.
“Talvez possa.” Na metade de cada carta, Edward pensa:
Tenho que fazer isso. Tenho que tocar violino. Tenho que sorrir
mais. Tenho que aprender a pescar. Ao fim de cada carta, ele
sente como se já tivesse falhado.
Querido Edward,
Cordialmente,
Harrison Cox
“Você vai contar à sra. Cox que o filho dela te escreveu?”,
Shay pergunta depois de ler a carta.
Edward faz que não com a cabeça. Essa carta pertence a
outra categoria, da qual faz parte a história da secretária da
escola sobre ter alimentado jacarés quando pequena, e a
revelação de um colega de laboratório de que quer ser cantor de
ópera quando crescer. São segredos, confissões e, portanto,
sagrados. Edward vai guardá-los no peito.
Está olhando para a mala, com a visão turva, quando Shay diz:
“Para. Vamos parar. Lemos bem mais que dez cartas”.
Quando a ajuda a levantar, Edward nota que as pontas dos
dedos de Shay estão manchadas de tinta. Ele se sente mais
velho, ou mais pesado, do que quando entrou na garagem, e
Shay parece mudada também, de um modo que Edward não
seria capaz de explicar. Os dois saem juntos, levando para a
noite escura todas as palavras que ingeriram.
“Não achei que fosse durar tanto”, a sra. Tuhane diz para o
reflexo de Edward no espelho.
Ele acabou de se sentar no banco para levantamento de peso.
As palavras o surpreendem, porque, até onde se lembra, é a
primeira vez que a professora lhe diz algo que não se trata de
instrução. Edward queria que Shay estivesse ali para traduzir,
porque, embora não faça ideia do que a sra. Tuhane esteja
falando, gostaria de poder dar uma resposta apropriada ao
comentário.
“Hum, como assim?”, ele pergunta.
“Achei que você fosse desistir, que fosse correr para o diretor,
dizendo que é difícil demais. Teria apostado dinheiro que estaria
de volta à sala de estudos duas semanas depois de ter entrado
aqui.”
Edward balança a cabeça, ainda confuso. “Mas educação
física não é obrigatório?”
A sra. Tuhane coloca uma anilha pequena de cada lado da
barra que Edward vai levantar. “É um elogio, garoto. Faz meses
que você vem treinando. É mais durão do que eu pensava. E
está ficando mais forte.”
Edward olha para seu corpo magro no espelho.
Ela parece ler sua mente, e franze a testa. “Não importa se não
dá pra ver os músculos. Não estou nem aí para o que você vê.
Seu cérebro foi reprogramado. Você consegue levantar quarenta
e cinco quilos. Está objetivamente mais forte. Agora chega de
perder tempo.”
Edward se deita no banco e fecha os dedos em volta da barra.
Antes de ir para a escola, leu um punhado de cartas que tinha
contrabandeado do porão. Uma era de uma senhora em Detroit
dizendo que um de seus vinte e sete netos tinha morrido no voo,
aquele que sempre tinha sido seu preferido. Ela se perguntava se
todos os passageiros do avião não eram simplesmente bons
demais, de uma ou outra maneira, para este mundo. E queria
saber o que Edward achava de sua teoria.
“Vamos”, a sra. Tuhane diz, e ele levanta a barra.
Outra carta era de uma mulher que dizia ter dado um beijo na
bochecha de Edward do lado de fora da audiência do NTSB, em
Washington, embora ele não conseguisse se lembrar de ter sido
beijado por quem quer que fosse naquele dia. Outra era de uma
mulher que se dizia arrependida de ter sido crítica demais com a
filha. Eu dizia que ela tinha que parar de comer carboidratos, e
que seu corte de cabelo não combinava com ela. Agora me
pergunto o que importava a aparência dela. Depois veio uma
sequência de cartas com exigências que pareciam bastante
inapropriadas.
Por favor, não desperdice nem um minuto, não desperdice o
presente que lhe foi dado.
Certifique-se de que sua vida tenha significado.
Viva todos os dias em memória daqueles que morreram.
Era o tipo de carta de que Edward menos gostava: as que lhe
diziam como levar a própria vida.
“Além disso”, a sra. Tuhane diz, “na sua idade, o metabolismo
é uma caldeira queimando. Se continuar fazendo musculação
com essa regularidade, vai ganhar dez quilos de músculos até o
último ano. Agora abaixa, devagar.”
Edward leva a barra até o peito. Pensa em si mesmo em três
anos, com o peito mais largo e os membros mais grossos. Pensa
nas cartas por abrir dentro das malas — com seu nome em cada
uma delas —, e sobe e desce a barra até que todo o seu ser
sinta dor.
Oi, Edward,
Querido Eddie,
Meu nome é Mahira. Meu tio é dono do mercadinho onde
você e sua família iam o tempo todo. Não sei se sabe a meu
respeito. Jordan disse que não contou a ninguém, mas
talvez você seja exceção. Bom, talvez seja melhor eu contar
que estávamos juntos, que ele foi meu primeiro namorado.
Não posso falar dos sentimentos do seu irmão, é claro, só
dos meus. E eu estava apaixonada.
No minuto em que ele me falou que sua família ia se
mudar para a Costa Oeste, decidi que ia fazer faculdade em
Los Angeles. Não disse isso ao Jordan, porque podia não
dar certo, mas eu sabia que não era uma despedida
definitiva. Quero estudar física, e tem faculdades excelentes
lá. Eu tinha visualizado todo esse futuro. Tinha imaginado
conhecer você, o irmão dele. Tinha imaginado que nos
tornávamos amigos enquanto ficávamos na praia.
Estou com dezoito anos agora, e disse a meu tio que
precisava tirar um ano de folga antes de entrar na faculdade.
Então estou trabalhando no mercadinho enquanto ele visita
a família no Paquistão. Mas por que estou te contando tudo
isso? Acho que é porque gostaria de falar ao Jordan. Queria
ter dito o que eu imaginava para o meu — para o nosso —
futuro antes que ele entrasse no avião. Achei que tivesse
tempo. É estranho ser jovem e não ter tempo, não acha? Eu
também queria escrever para dizer que seu nome sempre
fazia Jordan sorrir. No seu lugar, gostaria que me contassem
isso.
Querido Edward,
Tahiti
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no
Brasil em 2009.
Trechos significativos das cenas na cabine do piloto nas páginas 243-87 são uma citação literal do artigo
“What Really Happened Aboard Air France 447”, de Jeff Wise, publicado em 2011 na revista Popular
Mechanics, reproduzidos aqui com a permissão do autor e da Hearst Magazine Media, Inc.
CAPA TAG — Experiências Literárias/ Bruno Miguell Mesquita, Gabriela Basso, Gabriela Heberle e
Paula Hentges FOTOS DE CAPA Alex Perz/ Unsplash (caixa de correio) e Jack Bulmer/ Pexels
(pássaros)
ISBN 978-85-5451-797-7