Você está na página 1de 6

03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)


(https://www.uol.com.

(https://revistacult.uol.com.br/home/)

Ex: Cena contemporânea



 (HTTPS://WWW.INSTAGRAM.COM/CULTREVISTA/)  (HTTPS://PT-BR.FACEBOOK.COM/REVISTACULT)

 (HTTPS://TWITTER.COM/REVISTACULT)

ASSINANTE DIGITAL (HTTPS://REVISTACULT.UOL.COM.BR/HOME/LOGIN)

ASSINE AQUI » (HTTPS://WWW.CULTLOJA.COM.BR/CATEGORIA-PRODUTO/REVISTA-

CULT/EDICOES/ASSINATURA/)

GRUPO CULT

E D I Ç Õ E S ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / E D I C O E S / )

D O S S I Ê S D I G I TA I S ( H T T P S : / / W W W . C U L T L O J A . C O M . B R / C AT E G O R I A - P R O D U T O / R E V I S TA -

C U L T / D O S S I E S - D I G I TA I S / )

C O L U N I S TA S ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / C O L U N I S TA S / )

S E Ç Õ E S ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / N O S S A S - S E C O E S / )

A N U N C I E ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / A N U N C I E / )

C O N TAT O ( H T T P S : / / R E V I S TA C U L T . U O L . C O M . B R / H O M E / C O N TAT O / )

UtT T PaS : os
SOBRE (H / / Rcoo esTA
EVIS esse
C U LcT a
. UsOeLtec
. C OoMog
. Bas
R/HOME/SOBRE/)
semelhantes de acordo com a nossa Política de
Privacidade
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de-
Home (https://revistacult.uol.com.br/home) • Exclusivo do Site OK
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
(https://revistacult.uol.com.br/home/categoria/exclusivo-do-site/) •
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 1/10
03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)

A ficção do real: as esquivas relações entre a


literatura e o mundo
Artur de Vargas Giorgi 
2 de outubro de 2020

A cena originária que articula a estética e a política é contemporânea: trata-se do nosso mundo, hoje (Foto: Ryoji Iwata)

1.Como numa cena originária em que são enredadas a estética e a política, lemos na
Arte poética de Aristóteles que “imitar é natural ao homem desde a infância” e que, por
meio da imitação, que se apresenta a todos como uma experiência prazerosa, segundo
o filósofo, também os conhecimentos são adquiridos.

No cerne desse argumento encontramos, por um lado, a problemática equiparação das


noções de mímesis e imitação: espécie de domesticação conceitual que é, aliás,
indissociável da tradição romana e de reinterpretações do texto aristotélico no período
renascentista, como mostrou Luiz Costa Lima
(http://revistacult.uol.com.br/home/max-martins-luiz-costa-lima/). Por outro lado,
e fundamentalmente, reconhecemos a proposição legitimadora dos fazeres miméticos:
trata-se de um salvo-conduto concedido às artes da representação; um gesto que se
contrapõe à censura imposta por Platão, para quem, como sabemos, a mímesis é
degradante, e mesmo subversiva, já que perturbadora das disposições, das emoções e
da razão: um obstáculo, portanto, ao conhecimento franqueado pela contemplação
filosófica e à ordenação ideal da sua república.

Mas afinal oUtquea Aristóteles salienta


os coo es esse casa respeito
e tec o og asda mímesis/imitação? A pergunta é
mesmo crucial. Debates
semelhantes ao longo
de acordo com do último
a nossa século
Política de parecem ter consolidado uma
Privacidade
interpretação para a mímesis que a diferencia da simples imitação da natureza. Em
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de- OK
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 2/10
03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)

jogo há algo talvez mais complexo e interessante; algo distinto da mera referência a
um exterior já dado, ou ainda, algo diverso da cópia ou da reprodução especular de
uma realidade factual prévia e que, desse modo, estaria garantida a priori.

2.A Arte poética afirma que “aqueles que imitam, imitam pessoas em ação”, e que a
tragédia, ápice na hierarquia dos gêneros aristotélicos, “é imitação, não de pessoas,
mas de uma ação, da vida, da felicidade, da desventura; a felicidade e a desventura
estão na ação e a finalidade é uma ação, não uma qualidade”. Destacar que o foco da
mímesis é uma ação nos permite recolocar os termos da discussão a respeito das
esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo).

Isso porque, a partir daí, a mímesis/imitação pode ser entendida como uma
articulação, um encadeamento, um arranjo de processos; arranjo não verdadeiro, mas
sim verossímil, e que, não existindo previamente, é produzido com a própria técnica
mimética, vale dizer, com a ação da linguagem. Nesse sentido, imitar uma ação é
efetivamente uma questão de arte poética, já que em sua etimologia poiesis
(http://revistacult.uol.com.br/home/poiesis-pharmakon/) remete à potência do que é
fabricado, construído, produzido ou preparado, como afinal é a manufatura de um
texto: sua costura, sua trama.

Afastada dos tributos identitários à idealidade da ideia ou da natureza, a mímesis se


maquina em montagem, sintaxe, composição; envolve, de fato, a criação de uma
realidade absolutamente contingencial, por isso provisória, cuja validação repousa, em
suma, não em um suposto referente essencial ou objetivo, seja ele modelo primeiro ou
último, mas em certos sentidos e efeitos que são possíveis em razão do próprio artifício
que os organiza e dissemina, muitas vezes à revelia do controle do autor (ou de
qualquer autoridade). Em poucas palavras:

com a literatura (com as artes), a reprodução


da identidade dá lugar à produção da diferença.
 

Com isso poderíamos afirmar que, para além dos estritos gêneros aristotélicos, a
realidade apresentada com o verossímil da representação é, verdadeiramente, e a cada
vez, a realidade não-hierárquica da linguagem em processo; e ainda que, em suas
manifestações mais heterogêneas, e valendo-se, cada uma a seu modo, da
mobilização de recursos narrativos e descritivos muito plurais, as ficções realistas (ou
que assim poderiam ser chamadas) ocupariam, afinal, o vértice do artificialismo.

3.O fantasma naturalista parece já ter sido bem analisado. Assim, o recobrado fôlego
realista que atravessa parte considerável da ficção contemporânea pode partir de
proposições que assumem seus próprios artifícios. Claro, há muitíssimas narrativas
que retomam as fórmulas realistas consagradas pela literatura moderna (ordenação
cronológica ligada ao princípio da causalidade, clara caracterização espacial e
histórico-social, personagens-tipo, onisciência seletiva, estabilidade na perspectiva,
valorização estilística do discurso indireto livre, fatura textual com poucos
ornamentos etc.).
Ut a os coo es esse c a s e tec o og as
Mas existem tambémdeexperimentações
semelhantes acordo com a nossaque desdobram
Política de as rupturas propostas pelo
novo romance e o entendimento da escrita como vertiginosa produção de um lugar
Privacidade
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de- OK
atópico, onde ecoa uma voz impessoal, sujeita a todos os atravessamentos, sem início
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 3/10
03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)

ou fim. E há ainda as performances críticas em torno da indecidibilidade entre arte e


vida, com variados efeitos de sentido e sobreposições de presença e ausência. Assim
como há as escrituras tateantes do paroxismo ou dos “restos do real”, como escreveu
Florencia Garramuño, desprendidas da “pretensão de pintar uma ‘realidade’ completa
regida por um princípio de totalidade estruturante”; textos que operam como
apresentações de realidades elusivas ou descontínuas, com as quais toda reprodução
da “natureza” (seja biográfica, humana, social, nacional, cultural) é minada e ao
mesmo tempo exposta como uma construção. E há também as escrituras
“traumáticas”, que articulam a possibilidade da diferença com a repetição compulsiva
de um elemento simbólico reconhecível, mas com o qual emerge, enfim, um real
sempre resistente à simbolização.

(E com esse largo gesto – algo anárquico ou genérico, por certo insuficiente em seu
contorno – poderíamos apontar, no Brasil, poéticas tão díspares como as de Clarice
Lispector (https://revistacult.uol.com.br/home/tag/clarice-lispector), Ana Cristina
Cesar (http://revistacult.uol.com.br/home/uma-possivel-ana-cristina-cesar/), Waly
Salomão, Silviano Santiago (http://revistacult.uol.com.br/home/a-comedia-das-
letras-de-silviano-santiago/), Cristóvão Tezza
(http://revistacult.uol.com.br/home/cristovao-tezza-tensao-superficial-do-tempo/),
João Gilberto Noll (http://revistacult.uol.com.br/home/dois-ingressos-joao-gilberto-
noll/), Evandro Affonso Ferreira, Veronica Stigger, Ricardo Lísias…).

Agora, em outros textos, se o realismo é igualmente um ponto de partida, o


procedimento, diverso, consiste em reeditá-lo, como sugere Luz Rodríguez Carranza
em “O efeito Duchamp”: apropriando-se do imaginário mais estereotipado, dos seus
clichês mais imediatos, como um ready made, tais ficções parecem reforçar o
artificialismo do processo, mas de tal modo que ele opera esvaziado, sem lastro ou
profundidade, numa espécie de produtividade improdutiva que, no entanto, designa o
vazio do presente, não raro de forma risível.

Vale dizer: é como se a produção da diferença fosse


tensionada, nesses casos, por um excesso
inassimilável, ou seja, pela produção da indiferença.
 

4.Dois exemplos, apenas. No livro Reprodução, de Bernardo Carvalho, a narrativa


começa com um “estudante de chinês” que “decide aprender chinês” – pois essa seria
“a língua do futuro”. E o que esse estudante de chinês gostaria de dizer em chinês –
“só que não pode, porque não chegou a essa lição” – é o seguinte: “É um lugar-
comum viajar para esquecer uma desilusão amorosa, mas é impossível escapar ao
lugar-comum”.

Após essa primeira página, e já perfeitamente advertidos do seu inescapável


funcionamento, entramos na máquina anestésica que é – digamos dessa maneira – o
wikimaginário desse personagem, o perfil do “estudante de chinês”. Ele é interrogado
pela Polícia Federal de um aeroporto, e nós acompanhamos, por páginas seguidas, seu
quase-monólogo, repleto de perversas platitudes:
Ut a os coo es esse c a s e tec o og as
semelhantes de acordo com a nossa Política de
Privacidade
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de- OK
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 4/10
03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)

“Se a gente pudesse, também acabava com a privacidade pra combater o terrorismo;
também se aliava com Arábia Saudita, Bahrein e o escambau; também defendia
tortura fora das nossas fronteiras, em nome da democracia. Vai dizer que não
defendia? Agora, peguei o senhor! Eles estão certos. O problema é a porra da
contradição. A contradição é uma merda. Desculpe. Na Arábia Saudita, ladrão é
amputado; aqui, é deputado. Não preciso de ladrão pra me representar. Tenho opinião
própria. É só o que o senhor tem a dizer? Eu já esperava por isso. Ninguém aguenta
contradição. É isso aí. Ninguém quer se ver no espelho. A contradição é a força e a
fraqueza da democracia. Por isso é que não pode durar. Por isso é que a democracia
está condenada a degringolar em fascismo e religião. Leia os colunistas. A gente só
não faz porque não pode. Eu, se pudesse escolher, ficava com os americanos. Mas
agora é a vez dos chineses.”

Luiz Ruffato, por sua vez, escreveu uma abertura que é, em certo sentido, didática. Em
Eles eram muitos cavalos – essa sorte de livro-série, livro-instalação, livro-constelação,
livro-caleidoscópio, talvez, em que a cidade de São Paulo é arranjada – encontramos
não o estudo, mas sim, ao que parece, a lição já aprendida com uma pedagogia da
indiferença, a começar do começo:

1. Cabeçalho

São Paulo, 9 de maio de 2000.


Terça-feira.

2. O tempo

Hoje, na Capital, o céu estará variando de nublado a parcialmente nublado.

Temperatura – Mínima: 14°; Máxima: 23°.

Qualidade do ar oscilando de regular a boa.

O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27.

A lua é crescente.

3. Hagiologia

Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um


mosteiro em Bolonha. No Natal de 1456, recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa
Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha, como única
preocupação, cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463.

Por um lado, a cidade surge como presença ausente no entremeio dos fragmentos:
tramada como uma cartografia de paixões apáticas ou insensíveis, híbrido de uma
poética do zapping com o mais errático e desejoso dos hiperlinks. Protagonista, ela é
fundamentalmente um efeito da ação em curso: um produto da articulação das
narrativas e das quase-narrativas do livro – do seu processo.

Não obstante, essa ação coordena: listas de emprego, de biblioteca, de garotas e


garotos de programa; cartas, horóscopo, mensagem em secretária eletrônica;
acidentes, migrantes, trabalhos, roubos, miseráveis, bandidos, burgueses; interior de
casa de periferia, de barraco, ratos, negro que bate, negro que apanha; rezas, orações,
Ut etc.
pragas etc. etc. a osNesse
coo es esse c anuma
sentido, s e tec miríade
o og as de clichês, a cidade já estava pronta,
semelhantes de acordo com a nossa Política de
parece dizer Ruffato: só faltava assinar.
Privacidade
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de- OK
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 5/10
03/10/2020 As esquivas relações entre a literatura (a ficção) e a realidade (o mundo)

5.As realidades produzidas pelas artes poéticas inevitavelmente retomam e modulam


a tensão originária entre estética e política. Não é um acaso, portanto, que tenhamos
herdado, na contemporaneidade, os impasses da representação que acompanham, lado
a lado, as crises da representatividade.

Com o realismo do século 19 processou-se a disseminação de uma estética


generalizada, altamente produtiva, que impugnou o regime hierárquico e normativo
dos gêneros clássicos, tributários da tradição restritiva da imitação. Mas não foi só
isso.

A emergência do protagonista “qualquer”, isto é, do sujeito singular ou mesmo


anônimo, que deve narrar a si mesmo num mundo em que deus se retirou, as
tradições estão fora do lugar e a razão tende a disciplinar todos e cada um; a
indistinção entre as ordenações narrativas da literatura e as ordenações narrativas dos
demais fenômenos históricos e sociais; a produção de formas de vida cada vez mais
dependentes dos meios de comunicação e exposição – em suma, entre muitas outras,
tais condições demarcam não somente a ruptura com um regime representacional
regulatório das artes; elas igualmente significam uma alteração nas formas de
entendimento e de exercício da representatividade política.

Ou seja, a cena originária que articula a estética e a política é uma cena


contemporânea: trata-se do nosso mundo, hoje; mundo que permanece fundado em
uma ficção que tende a apagar a divergência entre a igualdade das demandas mais
singulares e a máquina não igualitária que é o consenso democrático. As muitas
poéticas da produção, expondo e levando adiante essa tensão irresoluta, mobilizam
seus recursos para a proposição de realidades que possam ser verdadeiramente
comuns. Elas afirmam – diríamos – que o desejo se move entre restos e performances,
vertigens e vazios, repetições e reedições, escritas e leituras; e que se estamos
exaustos – como tantas vezes parecem estar exaustas as nossas palavras –, ainda
assim, seguimos narrando.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa


Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.

> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você
(https://www.cultloja.com.br/categoria-produto/revista-cult/assinatura/assinatura-cult-digital/)

D E I X E O S E U CO M E N TÁ R I O
Você precisa fazer o login (https://revistacult.uol.com.br/home/wp-login.php?itsec-
hb-token=painel-
cult&redirect_to=https%3A%2F%2Frevistacult.uol.com.br%2Fhome%2Fas-
esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo%2F) para publicar
um comentário.

Ut a os coo es esse c a s e tec o og as


semelhantes de acordo com a nossa Política de
Privacidade
(https://sobreuol.noticias.uol.com.br/normas-de- OK
seguranca-e-privacidade.html) e, ao continuar
d ê d di

https://revistacult.uol.com.br/home/as-esquivas-relacoes-entre-literatura-ficcao-e-realidade-o-mundo/ 6/10

Você também pode gostar