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A Homossexualidade em Questão

A n t ô n io de P á d u a L . B a r b o s a

A sexualidade e, em particular a hom ossexualidade, tem sido


um tem a escassam ente abordado pela literatura an tropológica.
P oucos são os trabalhos que, explicitam ente, versaram sobre este
im portante aspecto das relações hum anas. Entre eles, alguns tran s­
form a ram -se em etn ografías clássicas: “ A Vida Sexual dos Selva­
gens” (1929) e “ Sexo e R epressão nas Sociedades P rim itivas” (1927)
de M alinowski, e os livros de M argaret M ead, “ Sexo e T em p eram en ­
to ” e “ M ach o e F êm ea” , escritos em 1935 e 1949, respectivam ente.
O fa to é que o estudo da sexualidade esteve sem pre in co rp o ­
rado ao cam po da p sicologia e da m edicin a, p rin cipalm en te, a partir
dos m eados d o século X IX , co m o tão bem nos m ostra M ichel F ou ­
ca u lt n o seu livro “ H istória da S exualidade” .
Os livros de M argaret M ead surgem com o um prim eiro passo
n o sentido de trazer para o ca m p o das Ciências Sociais a sexua­
lidade, n um a ten tativa de rep en sá -la n ão apenas n o seu aspecto
fisiológico, m as tam bém o seu lado social, en ten dendo com o tal o
seu estudo num con texto cultural e p olítico m ais am plo.
É neste con tex to que gostaria de discutir o livro de Peter Fry
e Edward M acR ae, “ O que é a H om ossexualidade” .*
Para os autores, a “ hom ossexualidade é urna in fin ita variação
sobre um m esm o tem a: o das relações sexuais e afetivas entre pes­
soas do m esm o sexo” . Esta d efin içã o já nos in form a a proposta rela -
tivizante dos autores, que partem do pressuposto de que n ão há
‘“ verdade absolu ta” sobre o que é hom ossexualidade e que as idéias
e práticas sobre determ in ado com p orta m en to são ideologias p rod u -

* FRY, Peter e MAcRAE, Edward. O que é a Homossexualidade. S&o


Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1983.

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zidas em sociedades históricas e concretas, devendo ser vistas no
con texto geral destas sociedades.
O livro com p õe-se de varios artigos abord an do diferentes aspec­
tos da questão hom ossexual. Os artigos não obedecem a um a se­
qüência linear rígida, p od en d o ser lidos separadam ente sem que se
p erca sua con sistência teórico-m etodológica .
Não m e deterei em fazer um a síntese dos diversos artigos, mas
p rocu rarei esboçar os aspectos apresentados que ligam os artigos
ao tem a central.
Para um a análise m elhor, reagrupei os artigos em três tóp icos:
um a perspectiva histórica, um a perspectiva com parativa e um a pers­
pectiva fem inina.
Sendo assim, os artigos “ É P roibido P roib ir” , “ P ecado, Crime,
D oen ça e S em -V erg on h ice” e “ Nasce um a Estrela ou o Surgim ento
de um a C onsciência H om ossexual” , estão ligados pela m esm a pers­
pectiva: um a retrospectiva h istórica do hom ossexualism o sob as­
pectos diferentes.
Em “ É P roibido P roib ir” os autores m ostram com o se desenvol­
veu o questionam ento do com p ortam ento m asculino e fem in in o
con vencion al, n o Brasil, de 1968 a 1982. Segundo eles, o m arco in icial
se deu com C aetano Veloso e o M ovim ento T ropicalista em 1968.
No in ício da década de 70 surgem dois grupos m usicais que, vestidos
com roupas fem ininas, criticavam o dia a dia da sociedade brasi­
leira: “ Os Dzi Croquettes” e os “ Secos e M olh ad os” . A partir de
1978, com a abertura p olítica e a anistia, é la n ça d o o jo rn a l “ L am ­
pião da E squina” que p rocu ra abordar a questão hom ossexual sob
seus diferentes aspectos políticos, culturais e outros. O p on to cu l­
m inante do crescim en to de um m ovim en to h om ossexual brasileiro
se dá ocm o 1.° E ncon tro de G rupos H om ossexuais d o Brasil, em
1980, em São Paulo. Nesse en con tro são discutidas a “ identidade
hom ossexu al” e as relações entre os grupos e os partidos políticos,
bem com o as form as de atu ação e organização.
Em “P ecado, Crime, D oen ça e S e m -V erg on h ice” , os autores
m an têm um d iálogo im p lícito co m M ichel F ou cau lt ao discutirem
o papel da m edicin a n o cam po da sexualidade em geral e em
p articular da hom ossexualidade. Seguindo o pensam ento de F ou ­
cau lt de que a m edicin a construiu, ao n ível da representação, um
n o v o personagem , o hom ossexual sadio, eles vão mais além e c o n ­
sideram que h o je ainda persiste essa idéia.
O que se ten ta é um a d icotom ização da sexualidade, exigindo
que as pessoas se au toclassifiquem co m o h etero ou hom ossexual,

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com o se a sexualidade pudesse ser dividida em com partim en tos
estanques.
O ou tro artigo que segue esta m esm a lin h a é “ Nasce um a Es­
trela ou o S u rgim en to de um a C onsciência H om ossexual” on de eles
p rocu ram m ostrar com o surgiram os m ovim en tos hom ossexuais nos
Estados U nidos e E uropa e a sua in flu ê n cia n o m ovim en to brasi­
leiro. Ao m esm o tem po, con sid era -os com o a base do desenvolvi­
m en to de um a n ova identidade social e sexual do hom ossexual.
M ais d o que um a perspectiva h istórica de alguns aspectos p er­
tinentes ao hom ossexualism o, os autores procu ram d em on strar nesta
abordagem que as idéias e representações sobre a hom ossexu ali­
dade são con stru ctos sociais e estão intim am ente ligados ao c o n ­
texto mais am plo da sociedade. E isto eles o fazem m uito bem .
T om em os com o exem plo o artigo sobre o Brasil. Não é por
acaso que se observa um crescente rom pim en to na fron teira m as­
cu lin o /fe m in in o , ju stam ente no períod o mais repressivo p ó s -re v o -
lu ção e em p len o auge do Ato In stitu cion al n .° 5. Se não é possível
con testar a p olítica n acion al, algum a outra form a de se posicionar
con tra o sta tus quo deve surgir para atenuar as tensões exercidas
pelo m esm o. Nesse sentido, o M ovim ento T ropicalista, “ Os Secos e
M olh ados” e C aetano Veloso, surgem de form a irreverente questio­
n an d o o cotid ia n o e os valores sociais e m orais sem, n o entan to,
deixarem de ser m enos políticos. P or ocasião da ch am ada A bertura
P olítica, já existia um espaço e um clim a não apenas para o ex ­
pansion ism o de um a su b-cu ltu ra hom ossexual, m as tam bém p ara
u m m ovim en to h om ossexual m ais p olítico e atuante. O m esm o se
observa na análise do papel da m ed icin a sobre a sexualidade, papel
este que se torn a m ais forte e atuante n u m m om ento em que a
reprodu ção e m an u ten ção da fa m ília se fazia necessária.
No artigo “ M ulheres, B erdaches, B ich as e Sapatões” , os autores
desenvolvem um a com p a ra çã o entre o B rasil P opular e a Sociedade
dos G u aiaqui n o Paraguai, estudada p or Pierre Clastres. O ob je tiv o
é m ostrar que em am bas as sociedades as n oções e representações
sobre m asculinidade e fem in ilidade são bastante sem elhantes.
Nessa sociedade, a m asculinidade é sim bolizada pelo uso do arco
e o papel ativo n a relação sexual. A quebra de um a dessas regras
n ão é bem vista pelos m em bros da sociedade. Clastres con ta que
dois índios, n ão tendo a rco e n ã o sabendo caçar, a ju d avam as
m ulheres nas tarefa s dom ésticas. M as en qu an to u m deles era m al
visto, o ou tro conseguiu recuperar u m lugar n a estrutura social ao
adotar o p apel social e sexual da m ulher. Os h om en s que se rela -

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clon avam sexualm ente com este índio n ão perdiam a sua co n d i­
ção m asculina, desde que exercessem um p ap el ativo na relação
sexual. A regra da m asculinidade está m an tid a n a m edida em que
as pessoas socialm ente m asculinas se relacion am co m as pessoas so­
cialm ente íem ininas.
P eter F ry e Edw ard M acR ae com p a ra m este com p ortam ento
sim bólico com o que a con tece n o Brasil P opular, on de som ente é
con siderado hom ossexu al aquela pessoa que atua passivam ente na
relação sexual. O que a con tece nestas sociedades é que, sim bolica­
m ente, o que determ ina se um a relação é hom ossexual ou h ete­
rossexual é o uso de sím bolos m asculinos (o arco, caçar, n ã o usar
batom , etc.) e o p ap el exercid o sexualm ente. C om pleta o livro o
artigo “A s lésbicas, um a pedra n o ca m in h o das fem inistas e das
bich a s” , no qual são delineadas algum as con siderações sobre os
m ovim en tos hom ossexuais m ascu lin o e fem in in o, apon tan do os tra­
ços com u n s e suas diferenças. Aqui os autores m ostram que, se
in icialm ente h ouve um a ten tativa no Brasil, co m o grupo S om os/S P ,
de form a r-se um ú n ico grupo hom ossexual, con g reg a n d o ta n to h o ­
m ossexuais m asculinos e fem in in os, em p ou co tem po a ruptura
ocorreu, origin an d o dois grupos indpendentes.
Para P eter Fry e Edward M acR ae, a causa deste rom pim en to
foi, prin cipalm en te, a d iferen ça da p roblem ática h om ossexual m as­
culina e fem inina. D esta form a, os hom ossexuais fem in in os ten d e­
ram a se id en tifica r m ais co m as fem inistas do que com os h o ­
m ossexuais m asculinos. Não houve, é claro, um a a ceitação im ediata
p or parte das fem inistas, fa to h o je já superado. Outros aspectos
im portantes na d ificu ld ad e do relacion am en to entre hom ossexuais
m asculinos e fem in in os seriam : “ o d iferen te sig n ifica d o atribuído
à sexualidade p or h om en s e m ulheres” e “ a d iferen te edu cação a
que são subm etidos quando crian ças".
P or ou tro lado, a própria su b-cu ltu ra hom ossexual forn ece m eios
de desencontros en tre am bos. Os hom ossexuais m asculinos têm a
seu fa v or tod a um a rede de bares, “ b oites” e saunas onde, fa c il­
m ente, p od em en con trar u m p arceiro sexual, en quan to o m esm o
n ã o acon tece com os hom ossexuais fem in in os. No que diz respeito
à afetividade, é com u m se ou vir que os hom ossexuais m asculinos
são m ais prom íscuos, n ã o d eixan do passar um a op ortu n idade de
fazer sexo, en quan to os hom ossexuais fem in in os são mais fiéis, m a n ­
ten do relacion am en tos m ais duradouros. Estas diferen ças podem to r­
n a r-se m ais com preensíveis se n os voltarm os para o con tex to mais
am plo da sociedade, pois n ão devem os esquecer que ta n to h om os­

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sexuais quanto heterossexuais com p artilh am a m esm a sociedade e
a m esm a cultura. Se, p or um lado, a sociedade não exerce um
con trole efetivo nas relações antes do casam ento para os hom ens,
em relação às m ulheres esta prática recebe severas sanções sociais.
Os autores con clu em lem brando que, apesar das d iferenças entre
hom ossexuais m asculinos e fem ininos, am bos têm em com u m o fa to
de ocu p arem a m esm a posição desviante e m arginal na estrutura
social. Qualquer generalização feita sobre hom ossexuais m asculinos
e fem in in os deve levar em con sid eração que num a sociedade tan to
hom ens quanto m ulheres n ão “ form a m um b lo co h om ogên eo, e que
as variações dentro de cad a grupo social p od em ser tão grandes
quanto as que existam dentro do p róp rio gru p o” .
P ara finalizar, ach o im portan te frisar os aspectos que coloca m
o livro de Peter Fry e Edward M acR ae den tro de um con tex to mais
geral dos estudos an tropológicos. Se, anteriorm ente, a h om ossexu a­
lidade sem pre esteve revestida de um caráter m é d ico/b io ló g ico , o
livro “ O que é a H om ossexualidade” tem o m érito de resgatar o lado
social da questão hom ossexual, n um a tentativa de in corp ora r este
estudo às ciên cias sociais. Em n enh u m m om ento, os autores fo r ­
necem as respostas para o problem a. O que eles p ropõem são novas
alternativas teórico-m etod ológ ica s de abord á-los. Nos diversos a r­
tigos estam os dian te de questões im portan tes sobre os vários as­
pectos da hom ossexualidade, cu ja sugestão de resp on d ê-las está
n um a análise da hom ossexualidade através dos con textos sociais,
p olíticos e culturais da sociedade e dos fatores internos e externos
que a afetam .
A o reivind icar o estudo da h om ossexualidade para o ca m p o das
Ciências Sociais, ab ord a n d o-a “ a n trop ológ ica m en te” com o um fa to
socTair os autores estão con scien tes de que esta é apenas um a dás
opções possíveis. O próprio pensam en to dos autores é um a con se­
qüência de sua própria posição socia l e suas idéias acerca da h o ­
m ossexualidade, que tam bém são produzidas socialm ente, o que de
form a algum a invalida as questões p or eles colocadas. O a n tro ­
pólogo ao exercer o seu o fíc io n ão está isento d o envolvim ento co m
o seu o b je to de pesquisa, sendo m esm o necessário para que ele
possa tran sform a r o seu “ fa m ilia r” em “ e x ó tico ” e o “ e x ó tico ” n o
seu “ fa m ilia r” , n a busca con stan te d e com preen der a si e sua so­
ciedade.

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