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Médica Assistente. Divisão de Imunologia. 2Docente. Divisão de Dermatologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medi-
cina de Ribeirão Preto - USP.
CORRESPONDÊNCIA: Profa. Dra. Ana Maria F. Roselino. Divisão de Dermatologia. Hospital das Clínicas da FMRP – USP. Av. Bandeirantes
3900 CEP 14048-900 - Ribeirão Preto – SP - Fax: 55.16.6366695 - e-mail: amfrosel@fmrp.usp.br
SILVA LM & ROSELINO AMF. Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia). Revista Medicina,
36: 460-471, abr./dez. 2003.
A hipersensibilidade a drogas compreende um volvida deve ter estrutura química capaz de provocar
subgrupo da categoria denominada reações adversas resposta imunológica. Dada a especificidade da imu-
a drogas. A maioria das reações adversas a drogas nidade, a reação não corresponde a um efeito farma-
não se constitui em resposta de hipersensibilidade, re- cológico universal e à dose-dependência da droga.
presentando efeito colateral, superdosagem, interação Assim sendo, as reações de hipersensibilidade
de drogas ou outros efeitos relacionados com a dose e a drogas são inerentes à resposta imunológica do indi-
com a farmacologia da droga. As reações de hiper- víduo e são classificadas de acordo com Gell e Coombs
sensibilidade envolvem resposta imunológica indi- (Quadro I).
vidual e diferem da intolerância a drogas ou de rea-
ções idiossincrásicas, que são mediadas por proces- REAÇÕES DE HIPERSENSIBILIDADE DO
sos não imunológicos de fisiologia ou metabolismo. TIPO I
Várias características clínicas auxiliam na defi-
nição de reação de hipersensibilidade. Os sintomas e As reações de hipersensibilidade do tipo I são
sinais devem corresponder a possíveis mecanismos de desencadeadas pela ligação da droga ou do hapteno a
resposta imunológica. Em geral, a reação não ocorre duas moléculas de IgE específica, que, por sua vez,
na primeira exposição ao medicamento, pois a memó- ligam-se aos receptores Fcε nos mastócitos. Algumas
ria imunológica específica não costuma existir antes drogas são passíveis de causarem reação de hiper-
da primeira administração. A reação deve se manifes- sensibilidade por tal mecanismo, como, por exemplo,
tar após re-exposição à droga, e a resposta desenca- a penicilina, que pode se ligar às proteínas humanas e,
deada depois da segunda exposição, tipicamente, tem como haptenos, suscitar reação alérgica. Outras dro-
estabelecimento mais rápido. Além disso, a droga en- gas que causam esse tipo de reação, geralmente, são
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
Quadro I - Sinops e das re açõe s de hipe rs e ns ibilidade a drogas , s e gundo a clas s ificação de Ge ll e Coombs
C l assi fi cação da
Mani fest ações
re a ç ã o d e Mecani smo envol vi do D ro g a s e n v o l v i d a s
cl í ni codermat ol ógi cas
h i p e rse n si b i l i d a d e
proteínas de alto peso molecular, como: globulina sensibilização se inicia com a entrada da droga em
antitimócito, quimopapaína, anti-soro heterólogo, insu- uma célula apresentadora de antígeno (APC - antigen
lina, protamina, GM-CSF (Fator estimulador de colô- presenting cell).
nias de granulócitos) recombinante, estreptoquinase e Drogas compostas por proteínas de alto peso
toxóide tetânico. molecular podem ser processadas diretamente, en-
Após a ligação de IgE aos receptores de mas- quanto aquelas com proteínas de baixo peso molecu-
tócitos, ocorre sua degranulação e ativação, com libe- lar podem necessitar de haptenização em proteínas e
ração de histamina e outros mediadores de inflama- peptídeos, para serem reconhecidas como antigênicas
ção pré-formados e neoformados, responsáveis pelas (ou alergênicas). No compartimento do endossomo da
manifestações clínicas: urticária, angioedema, bron- APC, os fragmentos de peptídeos da droga, proces-
coespasmo e anafilaxia. sados, são ligados a moléculas do complexo principal
Os mecanismos propostos para esse tipo de de histocompatibilidade de classe II (MHC - major
reação envolvem um período de exposição à droga, histocompatibility complex), sintetizadas “de novo”
que, provavelmente, favoreça a resposta de linfócitos e transportadas para a superfície da célula. Os com-
do subtipoTh2 e a produção de IgE. O processo de plexos formados pela união das moléculas do MHC e
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do antígeno, na superfície da célula, são apresentados cária, em alguns pacientes, ou ser a manifestação ex-
juntamente com moléculas de coestimulação aos clusiva da reação à droga, sendo usualmente secun-
linfócitos T CD4+, que produzem citocinas, como a dário ao uso de antiinflamatórios não esteroidais e ini-
interleucina-4 (IL-4), que, por sua vez, estimulam a bidores da enzima conversora da angiotensina.
produção de IgE pelos linfócitos B (Figura 1). As reações generalizadas ou anafiláticas (Fi-
Um dos exemplos mais comuns de reação de gura 3) representam o grau máximo da reação do tipo
hipersensibilidade é a urticária. Ocorre com maior fre- I, e os sintomas estão listados no Quadro III.
qüência devido à reação do tipo I, embora a do tipo III
e reações pseudo-alérgicas podem ocorrer. Nas rea-
ções anafilactóides, determinadas drogas podem cau- Quadro II - D rogas caus adoras de re açõe s anafilac-
tóide s (não me diadas por IgE), com de granulação
sar a degranulação direta dos mastócitos sem a parti-
dire ta dos mas tócitos
cipação de IgE e de uma primeira exposição ou
sensibilização prévia (Quadro II). - Vancomicina
Usualmente, as lesões são constituídas por pá-
pulas eritematoedematosas, pruriginosas, cujo eritema - Ácido acetilsalicílico
desaparece à digitopressão. As lesões são evanescen-
tes e, em geral, desaparecem ou alternam de lugar em - Inibidores da ciclooxigenase
24 horas. Iniciam-se, rapidamente, após o início da medi-
- O piáceos
cação e involuem quando a droga é retirada (Figura 2).
Vale ressaltar que o angioedema, conhecido - C ontrastes iodados
antigamente por edema angioneurótico ou edema de
Quincke, pode, freqüentemente, acompanhar a urti-
Figura 1- Mecanismo da reação do tipo I da classificação de Gell e Coombs, aliado à produção de IgE.
(APC: célula apresentadora de antígeno; MHC: molécula do complexo principal de
histocompatibilidade; TCR: receptor de célula T; célula Th2: linfócito T helper 2; IL-4: interleucina 4;
IL-5: interleucina 5; IgE: imunoglobulina E).
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
B C
Figura 2 - Urticária nas suas várias apresentações. A) Urticária figurada: lesões anelares, eritematosas, de contorno
policíclico. B) Lesões eritematoedematosas numulares e em placa. C) Lesões numerosas, com predomínio do edema.
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
ca ou limitada às vênulas
ou arteríolas da pele. A ur-
ticariavasculite induzida por
drogas é semelhante à ur-
ticária do tipo I, mas as le-
sões são mais persistentes
e, quando involuídas, po-
dem deixar hipercromia lo-
cal. A púrpura de Henoch-
Schöenlein também pode
ser desencadeada por me-
dicamentos e, quando a sín-
drome é completa, com-
preende lesões purpúricas, Figura 5 - Síndrome de Stevens-Johnson (SSJ) por hipersensibilidade ao sulfametoxazol /
palpáveis em membros in- trimetropim. Observar lesões purpúricas na face e nos membros inferiores, além de lesões
feriores, às vezes, acome- vesicobolhosas sobre base eritematopurpúrica, em áreas predominantemente expostas ao
sol. Observar comprometimento de mucosa oral, com lesões purpúricas em lábios. Nas
timento ascendente para a mãos, as lesões adquirem aspecto disidrosiforme. O mecanismo de hipersensibilidade do tipo
região glútea, artrite, diar- II pode ser atribuído à SSJ, mas não se encontra totalmente esclarecido
réia e nefrite. Diferencia-
se das demais vasculites,
por apresentar depósito de IgA nas paredes de vasos. REAÇÕES DE HIPERSENSIBILIDADE NÃO
As drogas mais associadas com esse tipo de vasculite CLASSIFICADAS
são: alopurinol, fator estimulador de colônias de gra-
nulócitos, penicilina, propiltiouracil, sulfonamidas e Diversos mecanismos foram propostos para ex-
tiazídicos. plicar as reações com suspeita de hipersensibilidade,
que não se encaixam na classificação de Gell e
REAÇÃO DE HIPERSENSIBILIDADE DO Coombs (Quadro IV). Suspeita-se que muitos exan-
TIPO IV temas morbiliformes (máculo-papulares), comumente
observados após vários dias de administração da dro-
Na hipersensibilidade do tipo IV ou hipersensi- ga, sejam causados por respostas específicas de célu-
blidade retardada, a citotoxicidade
mediada por célula é a responsável
pelo quadro clínico. A resposta do
tipo IV é mediada por células T CD4+
e CD8+. O mecanismo proposto en-
volve a ligação de haptenos da droga
a proteínas intracelulares e extrace-
lulares para apresentação pelas mo-
léculas MHC às células T droga-es-
pecíficas. A liberação subseqüente de
citocinas pelas células T, juntamente
com a produção de outros media-
dores de citotoxicidade, gera a res-
posta inflamatória, observada nas der-
matoses de hipersensibilidade do tipo
retardada. Exemplos incluem rea-
ções alérgicas do tipo eczematoso, Figura 6 - Hipersensibilidade à droga do tipo IV. Observar quadro de eczema,
composto por eritema, pápulas e vesículas. À direita: observar maior
que lembra muito a dermatite de con- comprometimento do eczema em áreas expostas ao sol, conferindo quadro de
tato, causada por alérgenos tópicos fotodermatite
(Figura 6).
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Quadro IV - M e canis mos de re ação de hipe rs e ns i- mais notadas, e porque a pele é um órgão imunológico
bilidade não clas s ificados por Ge ll e Coombs
metabolicamente ativo. As síndromes clínicas inclu-
A- Exantema morbiliforme por respostas específicas em as mostradas no Quadro V. Uma mesma droga
de células T pode ser responsável por várias manifestações der-
matológicas, de acordo com a resposta imune do indi-
1- envolvimento de moléculas MHC de classe I
víduo. Por outro lado, uma síndrome dermatológica
2- ligação de drogas às proteínas intracelulares pode ser causada por várias drogas.
3- conjugados droga- peptídeo + moléculas
MHC de classe I
Quadro V - Síndrome s cutâne as , re s ultante s de hi-
4 - c é lula s T C D8 + me d ia m infla ma ç ã o c ito to - pe rs e ns ibilidade a drogas
xicidade
- Angioedema / urticária
B- Imunidade inata ativada por processos infecciosos
modula resposta imunológica contra as drogas - Eczema
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
Figura 8 - Eritema polimorfo. Observar variadas apresentações de lesões polimórficas, em indivíduos distintos.
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A C
Figura 9 - A. Eritema pigmentar fixo: lesão numular eritematoacastanhada. B e C. Eritrodermia ictiosiforme, causada por
anticonvulsivante
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
As lesões são muito típicas, pápulas eritematovinho- com reações imunológicas prévias a uma ou mais dro-
sas, achatadas e brilhantes, e muito pruriginosas. Tam- gas podem ter risco maior, especialmente se reagirem
bém se deve ter em conta o diagnóstico de líquen pla- à medicação quimicamente semelhante. Pacientes com
no propriamente dito, cuja etiologia ainda não se encon- maior risco também podem ter variação genética das
tra esclarecida, além da dermatite de contato liquenóide enzimas que metabolizam a droga. Infecção viral
causada por reveladores fotográficos. De mais atual, concomitante tem maior probabilidade de desenvolver
a erupção liquenóide pode estar associada a infecções hipersensibilidade. Um exemplo comum é o exantema
virais, como ao HIV e ao vírus da hepatite C. morbiliforme, observado em pacientes com mononu-
Existe uma dermatose particular, com depósito li- cleose infecciosa, tratados com amoxacilina. Pacien-
near de IgA, que pode ser causada pelo uso de captopril, tes com AIDS também apresentam reações de exan-
diclofenaco, glibenclamida, lítio e vancomicina. tema morbiliforme induzido por drogas, que, tipicamente,
Nesse sentido, deve ser lembrado que o penfi- ocorrem após uma a duas semanas de tratamento,
góide bolhoso, dermatose bolhosa auto-imune, tam- especialmente com sulfonamidas. A atopia por si, apa-
bém pode ser causado por drogas. rentemente, não é fator de risco de reações a drogas
Ainda, nas reações sistêmicas a drogas, além não protéicas, mas deve ser levada em conta, quando
da anafilaxia e das vasculites, não podemos deixar de o paciente já apresenta história pregressa de urticária.
mencionar o lúpus induzido por droga, com lesões
dermatológicas semelhantes às observadas no lúpus DIAGNÓSTICO DAS REAÇÕES DE HIPER-
cutâneo ou sistêmico, além de manifestações sistêmi- SENSIBILIDADE A DROGAS
cas, como serosites e alterações hematológicas. Re-
presenta forma incomum da doença, e está associado, A história e o exame físico são as ferramentas
mais comumente, ao uso de hidralazina, procainamida mais importantes para se chegar ao diagnóstico de
e minociclina. Também pode haver desencadeamento, hipersensibilidade à droga. Freqüentemente, há con-
pelo uso de betabloqueadores, clorpromazina, cimeti- fusão, porque a reação ocorre quando foram adminis-
dina, clonidina, isoniazida, sais de lítio, lovastatina, an- tradas muitas drogas. Deve ser feita uma relação com-
ticoncepcionais orais, metildopa, sulfonamidas e pleta de todos os medicamentos tomados pelo pacien-
tetraciclinas. A determinação dos anticorpos antinu- te na ocasião e das datas da administração. Devem
leares demonstra padrão homogêneo à imunofluores- ser colhidas informações relativas às reações anterio-
cência em substrato de fígado de camundongo ou em
células Hep2, e os auto-anticorpos são dirigidos con-
tra proteínas nucleares histonas. Outro subtipo de lúpus, Qua dro VI I I - R e a ç õ e s de hipe rs e ns ibilida de a
que pode estar associado com drogas, é o lúpus cutâneo drogas órgão-e s pe cíficas
subagudo, induzido por hidroclorotiazida. Há, também,
Ó rg ã o - C l í n i ca D ro g a s
associação com bloqueadores dos canais de cálcio,
a l vo
griseofulvina e terbinafina.
Existem drogas que causam reações de hiper- Pneumonia com Penicilina
sensibilidade, que afetam, predominantemente, um eosinofilia N itrofurantoína
único órgão ou sistema, além da pele (Quadro VIII). Ainhs
Pulmões Sulfonamidas
FATORES DE RISCO PARA A HIPERSENSI- Infiltrados alveolares Metotrexato
BILIDADE A DROGAS ou intersticiais Melfalan
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SILVA LM & ROSELINO AMF. Drug eruptions (hypersensitivity reactions). Revista Medicina, 36: 460-471,
apr./dec. 2003.
ABSTRACT - Emphasis is given for the hypersensitivity reactions to drugs associated to the
main immune mechanisms involved and to the cutaneous syndromes more commonly related.
For each type of immune reaction, as well as for each cutaneous manifestation, the main involved
drugs are related.
UNITERMS - Drug Hypersensitivity. Drug Eruptions. Drug Allergy. Gell and Coombs’Classification
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Reações de hipersensibilidade a drogas (farmacodermia)
.BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 4 - LITT JZ. Litt’s drug eruption reference manual. 10th ed,
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1998.
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