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Recensão crítica à

publicação de

Teresa de Jesús Portador García

Los retos de la seguridad


humana frente al cambio
climático
Relaciones Internacionales,
Universidad Autónoma de Madrid,
2020, 19 páginas
ISSN 1699 - 3950

Os desafios da segurança
humana perante as alterações
climáticas
Bruno Casteleiro
s alterações climáticas são hoje, mais do que um fenómeno do domínio
científico, um fator determinante no horizonte da vida planetária. O artigo
assinado pela doutora Teresa de Jesús Portador García, cujo itinerário
científico se tem detido neste âmbito, tem como objetivo avaliar e relacionar o conjunto
das transformações do fenómeno climático, que marcam a atualidade internacional, com
a evolução da segurança humana, enquanto conceito teórico mutado pelo tempo.
Analisam-se as respostas e posições seguidas pelos diversos atores internacionais, onde à
cabeça se posiciona a ONU, na ação de inverter um processo que culminará na inevitável
vulnerabilização das populações, em particular das mais pobres, e do inequívoco
comprometer do ambiente propício ao desenvolvimento e paz global. A estrutura inicia-
se com a noção de segurança, desde a perspetiva tradicional até ao estabilizar como
dimensão global. Aqui, dentro da nova multidimensionalidade do conceito, empreenderá
explorar os vários âmbitos em que ele se pode decompor e, atingindo o ponto medular do
artigo, fará a articulação entre este e as alterações climáticas. Depois, analisa-se a
governança climática global, sintetizando as principais adversidades e consequências com
que se debatem países desenvolvidos e emergentes, reflexão que se ligará ao caso
amazónico. Há ainda um olhar sobre a agenda global, com destaque para as COP, tecendo,
por fim, conclusões sobre o estudo, com enfoque no papel da ONU. O artigo divide-se
assim em 3 partes: a primeira, em que se apresenta o grosso das ideias em análise, com
enfâse para as consequências da inação perante as transformações climatéricas; a
segunda, ocupa-se de dissecar o conceito de segurança humana; a terceira, por fim,
relaciona a construção feita na parte anterior com o fenómeno das alterações climáticas.
Desta forma, a estrutura parece bem-sucedida, pois, se numa primeira etapa se sensibiliza
(e cativa) o leitor para o risco inerente, é a abordagem seguinte, ao conceito de segurança
humana, que permite compreender a sua progressiva transnacionalização e consequente
chamada de mais atores a convergir no objetivo comum de mitigar e eliminar
comportamentos de risco, que não se esgotam na emissão de GEE.

Problema global, resposta global

Ameaças como as que referimos no corpo anterior impuseram à agenda internacional


preocupações, que, até há muito pouco tempo, só estavam ao alcance de um conflito
armado de larga escala. Hoje, a fatalidade das alterações climáticas não só ultrapassa, em
emergência, a influência de um conflito bélico para a segurança humana, como encerra
as condições para abalar toda a perspetiva de vida no planeta. O objetivo da autora

https://revistas.uam.es/relacionesinternacionales/article/view/11446/11889 1
encontra nessa sensibilização um dos maiores propósitos da sua exposição e, de um
prisma de um público comum a eminentemente técnico-científico, parece lográ-lo. O
consenso que reúne, no grosso da sociedade, a urgência de resultados efetivos no combate
às alterações climáticas, parece não estar a encontrar respaldo nos líderes - estatais ou não
- do referido “modelo económico neoliberal”1. Como bem expõe, o fator económico, que
corporiza a essência do argumento “neoliberal”, procura soluções a curto prazo e
estabelece-se como prioridade, indiferente à ocorrência de efeitos negativos. Contudo, se
por um lado considera a existência desta conjuntura, e a própria conivência da ONU, por
outro, a autora não promove qualquer estratégia de estímulo ou de alternativa sustentada
e idónea a «entusiasmar» uma mudança de paradigma, dirigida aos agentes que acusa de
manterem uma posição comprometedora no âmbito climático, antes engrossando as suas
críticas naquele organismo, cujo papel reconhece estar aquém do desejado e sem uma
posição firme2. Por outro lado, as críticas às administrações Trump e Bolsonaro, que
marcam boa parte da análise, contrastam com uma súbita ausência de referências ao
governo de Xi Jinping. A China, desde 2007 a nação mais poluente do globo3, passa
totalmente marginal à análise da autora, à exceção de duas referências em todo o artigo4,
de caráter meramente indicativo. Poder-se-ia aqui argumentar, a título de defesa da linha
seguida, que ao invés das economias ocidentais, a China não se retirou do AP. Porém,
não só esta nação lidera a lista de países emissores de GEE, como mantém essa taxa de
crescimento, embora registe no último ano valores inferiores à média do período 2010-
20195. As alterações climáticas, pela sua multipolaridade de origens e efeitos, motivaram
uma nova conceção de segurança humana, necessariamente global e multidimensional,
relegando para o passado a ideia tradicional de proteção dos cidadãos dentro das fronteiras
do Estado, paradigmática da visão realista. Para tal, muito contribuiu o papel da ONU,
em especial através do PNUD, que estabelece, no relatório de 19946, uma abordagem que
passa a abarcar vários eixos7. A autora explana os vários estádios pelos quais o conceito

1 García, Teresa. (2020) Los retos de la seguridad humana frente al cambio climático. Relaciones Internacionales,
N.43, p. 204. Disponível em https://revistas.uam.es/relacionesinternacionales/article/view/11446/11889;
2 Idem. Ibidem. p. 205;

3 BBC News. (2019, dezembro 21). Os 15 países que emitiram mais CO2 nos últimos 20 anos (e em que posição está

o Brasil). Consultado em novembro 22, 2020, em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50811386.


4
García, Teresa. Op. cit. p. 196 e p. 203;
5 Reuters. (2020, março 18). China's greenhouse emissions rise 2.6% in 2019: research group. Consultado em

novembro 21, 2020, em https://www.reuters.com/article/us-china-environment-carbon-emission-idUSKBN2150YY;


6 Human Development Report 1994. (1994). Chapter 2 - New dimensions of human security (versão eletrónica) p.

22-46. Disponível em http://hdr.undp.org/sites/default/files/reports/255/hdr_1994_en_complete_nostats.pdf;


7 Económico, alimentar, sanitário, ambiental, pessoal, comunitário e político;

https://revistas.uam.es/relacionesinternacionales/article/view/11446/11889 2
passou, relacionando-os com cada contexto histórico-social que os definia, permitindo
assim ao leitor uma adequada perceção da instância para onde encaminha a sua reflexão.
Estabelecer-se-á uma natural e necessária relação da medida da resposta ser igual à da
ameaça: global. Para tal, impõe-se uma mudança de paradigmas políticos globais, mas de
aplicação casuística. Impõe-se, como a autora também acentua, maior assertividade e
imparcialidade pela parte da ONU. Contudo, entende-se que esse caminho não deve
passar apenas pela criação de mecanismos de sanção, como sugerem as linhas da
publicação8, mas também pela criação de estímulos a uma verdadeira corrida científica e
tecnológica - na medida do que foi em tempos o ultra desenvolvimento e corrida ao
armamento - à descoberta de novos métodos de produção e municiamento energético,
capaz de animar os grandes centros de influência económica.

O caso da Amazónia

Os incêndios que flagelaram “o pulmão do Mundo” em 2019, e outros comportamentos


de risco neste ponto do globo, são o exemplo de bandeira da publicação. A floresta
tropical, contígua com 9 países, desempenha uma função de equilíbrio determinante: num
plano micro, garante padrões de chuvas vitais para o centro e sul da américa; num plano
macro, ao retirar da atmosfera o dióxido de carbono e «devolver» em oxigénio, a floresta
tropical contém o efeito de estufa global, responsável pelo progressivo aumento médio da
temperatura do planeta. A escolha do exemplo a tratar parece, assim, deveras hábil, já que
estabelece também, in loco, uma ligação científico-emocional entre aquilo que são as
repercussões da não preservação de um ecossistema geoestratégico e, por outro lado, a
própria exploração emocional da representação da sua devastação na consciência do
leitor. Numa sociedade internacional cada vez mais sensível aos temas ambientais, a
representação gráfica de uma floresta tropical em chamas e a maior reserva de
biodiversidade mundial em perigo, em contraposição com astutos empresários que nessa
equação encontram o seu lucro, redundará numa espontânea condenação. Não obstante,
também neste trecho se mantém algum entorpecimento face às responsabilidades
chinesas. A autora sublinha o impacto que tem naquele ecossistema o crescimento da
indústria de cultivo de soja, responsável pelo desmatamento em larga escala, mercado
onde destaca a presença de “três gigantes de produtos estado-unidenses”9. Porém, não

8
García, Teresa. Op. cit. p. 205;
9
García, Teresa. Op. cit. p. 201;

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alude ao papel cada vez mais preponderante da economia sino na região e, em particular,
ser esta a principal importadora de soja brasileira10. Também na alusão às consequências
desta devastação para as comunidades “indígenas, mais frágeis e isoladas”11, passa ao
lado de um elemento fundamental, bem patente no estudo levado a cabo pela doutora
Diana Aguiar, onde queda claro que “(…) a dimensão da geopolítica chinesa e as
agroestratégias dos exportadores de soja, incidirá sobre o ordenamento territorial na
Amazônia brasileira”12, tanto mais, quando já é a China o maior investidor no Brasil13. A
economia sino, através da empresa China Railway Eryuan Engineering Group, anunciou
a viabilidade de um megaprojeto ferroviário na região, com uma extensão de 3,5 mil km,
que atravessará diversas áreas protegidas da selva tropical e os próprios Andes, e inclui a
intenção de transportar 37% da carga de grãos de soja do Mato Grosso14. Ao descartar
referências pertinentes como estas, em dissonância com o que fez com a economia norte-
americana, padroniza uma linha de ação muito mais concertada em examinar esta última
e frustra uma útil oportunidade para defender os direitos das “sociedades indígenas,
frágeis e isoladas”, que refere15. Assim o é, pois “(…) uma das estratégias de resistência
mais utilizadas por comunidades insurgentes em situação de conflito ambiental é formar
alianças com organizações e movimentos dos países de origem dos investimentos para
sensibilizar a opinião pública e constranger os investidores diante das violações
cometidas em nome dos lucros. A possibilidade de que este tipo de estratégia faça sentido
em relação a investimentos chineses é mínima.”16. Em face destas linhas, entende-se de
assaz validade científica o contributo da doutora Teresa García, não podendo, contudo,
deixar de se apontar que, firmando a autora uma preocupação que se deve elevar à escala
global, juízo do qual não restam dúvidas, não fará então sentido que mantenha uma linha
de escrutínio dissonante com as responsabilidades traduzidas no atual sistema
internacional. O dragão asiático é cada vez mais um ator presente em todas as frentes e a
selva amazónica não representa uma exceção.

10
Diálogo Chino. (2019, fevereiro 18). Demanda chinesa por soja empurra rota do agronegócio para a Amazônia.
Consultado em novembro 28, 2020, em https://dialogochino.net/pt-br/infraestrutura-pt-br/23265-demanda-chinesa-
por-soja-empurra-rota-do-agronegocio-para-amazonia/;
11
García, Teresa. Op. cit. p. 200;
12 Aguiar, Diana. (2017). A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do

Tapajós na Amazônia brasileira. p. 43. Disponível em https://fase.org.br/wp-content/uploads/2017/06/A-geopolitica-


de-infraestrutura-da-china-na-America-do-Sul.pdf;
13
Idem. Ibidem. p. 64;
14
Idem. Ibidem. p. 43 e p.44;
15
García, Teresa. Op. cit. p. 200;
16
Aguiar, Diana. Op. cit. p. 70.

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Siglas e acrónimos

AP: Acordo de Paris sobre as alterações climáticas


COP: Conferências das nações unidas sobre as mudanças climáticas
GEE: Gases com efeitos de estufa
ONU: Organização das Nações Unidas
PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

Lista de referências

Aguiar, Diana. (2017). A geopolítica de infraestrutura da China na América do Sul: um


estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia brasileira. Disponível em
https://fase.org.br/wp-content/uploads/2017/06/A-geopolitica-de-infraestrutura-da-
china-na-America-do-Sul.pdf

BBC News. (2019, dezembro 21). Os 15 países que emitiram mais CO2 nos últimos 20
anos (e em que posição está o Brasil). Disponível em
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50811386

Diálogo Chino. (2019, fevereiro 18). Demanda chinesa por soja empurra rota do
agronegócio para a Amazônia. Disponível em https://dialogochino.net/pt-
br/infraestrutura-pt-br/23265-demanda-chinesa-por-soja-empurra-rota-do-agronegocio-
para-amazonia/

Human Development Report 1994. (1994). Chapter 2 - New dimensions of human


security (versão eletrónica). Disponível em
http://hdr.undp.org/sites/default/files/reports/255/hdr_1994_en_complete_nostats.pdf

Reuters. (2020, março 18). China's greenhouse emissions rise 2.6% in 2019: research
group. Disponível em https://www.reuters.com/article/us-china-environment-carbon-
emission-idUSKBN2150YY

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