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FELINA
e outras poesias
A Rodolfo Machado
Embora queira
dar-lhe nome, não sei como se chama
esta viçosa trepadeira
que de alvas flores se recama;
sei que, às vezes, suponho uma aranha invisível
ande tecendo viridente trama
do meu telhado ao nível...
— Incansável fiandeira —
ei-la que, prestes,
no largo tear do espaço fios lança,
todo o telhado encobre,
alonga-o em glauco teto,
pelas paredes pende... e a minha choça
já não tem aquele aspecto
avelhantado e pobre,
como que se enriquece e se remoça;
e ó minha choça como ficas prazenteira,
e com que garbo, embora velha, vestes
esse fato verde que te torna criança!
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o meu olhar se estanca, Seu perfume é meloso,
ante essas flores de pelica branca, tem qualquer cousa que emacia,
nas quais ela resume qualquer cousa sutil de luxuriante gozo;
a beleza da forma e o encanto do perfume; nos meus sentidos de tal forma atua,
flores cuja corola que a minha pele (incrível cousa!) fica fria:
não resiste do vento aos mais leves açoutes. como que me unto na fragrância sua.
Quando agoniza o Dia,
Talvez fugindo aos investigadores põem-se os meus sentidos a gozar
olhos do Sol, de lume causticante, esse perfume doce e lamuriento,
só pela noute escura alvo como luar,
ou quando a luz discreta mole como unguento.
do luar na treva rola,
ela a flórea brancura Assim, se, à sua sombra, a meditar repouso,
na escuridão projeta. frequentemente seus viçosos braços,
num gesto langoroso,
Sua sensual fragrância, pendem pelos espaços...
qual magnético fluido, e, à sensação de cada
entra o meu abandono, o meu descuido, galho que me roça pelo frágil busto,
chama, mesmo à distância, apavorada a espio,
o meu olfato, num rápido arrepio
que, ao seu apelo, de susto!
sente, Do meu sossego, súbito, arrancada
qual pachorrento gato, à sugestiva solidão do ambiente,
o prazer emoliente creio nela se encontre disfarçada
de uma enluvada mão a acariciar-lhe o pelo. uma ignorada
e vegetal serpente.
Mal principia a enoutecer,
caminho, como que instintivamente, Vi-a nascer,
para o seu pálio redolente, crescer
buscando de aspirá-la o espiritual prazer; e florescer;
e às vezes o silêncio é tão pleno, é tamanho, cuidosa mão plantou-a um dia,
a solidão tão grande, para visual alegria
que ela, suponho, ao meu olhar se expande, do meu ser.
sinto-a se elastecer Nesta ausência total do meu próprio prazer,
e vejo-a — polvo estranho — buscam sempre os prazeres exteriores,
os tentáculos verdes distender! estes olhos cansados de fitar
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minhas íntimas dores; Sensual
e que gozo estender pelas manhãs o olhar
no suspenso tapiz dos seus verdores!
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada Sono! da tua taça brônzea e fria
para os gozos da vida: a liberdade e o amor; dá que eu possa sentir o éter, a anestesia.
tentar da glória a etérea e altívola escalada, Eis-me: corpo e alma — inteira,
na eterna aspiração de um sonho superior... para essa tua orgia.
Busco esquecer a minha hipocondria
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada na tua bebedeira.
para poder, com ela, o infinito transpor; Quero sentir o teu delíquio brando
sentir a vida triste, insípida, isolada, apoderar-se do meu ser,
buscar um companheiro e encontrar um senhor... e cochilando,
bamboleando,
Ser mulher, calcular todo o infinito curto ir, lentamente, escorregando
para a larga expansão do desejado surto, pelo infinito do prazer.
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
Vem, meu lânguido amante,
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza! deixa-me, no teu suave e remansoso seio,
ficar na vida qual uma águia inerte, presa no teu seio gigante,
nos pesados grilhões dos preceitos sociais! sem ânsias, sem pesar, sem dores, sem receio,
repousar um instante.
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Quem, como eu, da existência, apenas, sente O meu tato se estende a todos os sentidos;
a dor atroz, a realidade bruta, sou toda languidez, sonolência, preguiça,
e traz numa agonia persistente se me quedo a fitar tapetes estendidos.
a alma e, em vão, onde mora a ventura perscruta,
só na tua embriaguez acha conforto.
Lança-me agora e sempre essa tua blandícia,
deixa-me descansar o corpo semimorto
e a alma desiludida...
Faze com que, da tua paz fictícia,
à paz eterna me transporte,
Sono — morte da Vida!
Sono — vida da Morte!
Lá fora, o mar é um largo e líquido arrepio; O teu carinho de tal forma cresce,
as árvores, em sono, embrulham-se nos ramos; e os sentidos me assume,
as estrelas estão tiritando de frio. que, em momentos, uma árvore parece:
hauro-lhe o flóreo e lânguido perfume;
Almas, não sei por que no inverno tanto amamos!... gosto-lhe os frutos de rubente messe;
sinto roçarem-me suas franças,
São pelos bastos, são veludos quentes em distensões longas e mansas.
os teus carinhos, nestas hibernais e fecho os olhos para vê-lo, muito lindo,
noutes longas e umentes. interiormente olhando-me e subindo.
Alheia ao frio que nos mais E escuto nele, qual num folhedo,
atua, o teu beijo vibrar canções de passaredo.
eu me deixo ficar, imóvel, nos ambientes,
toda enrolada na lembrança tua! Teu carinho — estas mãos breves e esguias
que adormecem as minhas agonias.
Na ausência, na tristeza Teu carinho — a doçura
que me invade, do paladar da minha Desventura.
os teus carinhos, meu Amor, Teu carinho — um aroma íntimo e brando,
têm mais sabor, em meu olfato se esticando
e mais macieza, e enrodilhando,
e mais espiritualidade. serpentinamente.
Por minha cisma silenciosa e queda, E a melodia
teus dedos úmidos e esguios, macia
como lagartas, da mais fina seda, e quente
fiam finos, fluidos fios... que eu ouço, quando tudo silencia.
e os gestos que ficaram palpitando
Vezes algumas, nos meus gestos retidos,
sinto, meu belo ausente, os teus abraços, e o olhar que eu olho, dos meus olhos dentro.
como boas de plumas, Teu carinho — os sentidos
contornarem-me o busto atando-me em seus laços. do silêncio em que toda me concentro.
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Por estas hibernais No cavalo
noutes de pelos fluidos,
estranham meus descuidos
e andam de frio tiritando os mais;
é que a recordação
dos teus carinhos
cobre-me o corpo de uma profusão
de plumas e de arminhos. Belo e heroico, agitando as veludosas crinas,
meu árdego animal, tens a sofreguidão
Lá fora, o Vento, trêmulo de frio, do infinito — o infinito haures pelas narinas —
procura se envolver das frondes nos recamos: e, sem asas obter, buscas fugir do chão.
há no próprio silêncio um gélido arrepio.
Domino-te; entretanto, és tu que me dominas.
Foi numa noute assim que nos amamos. É um desejo que espera a humana direção
a tua alma, e, transpondo os valos e as campinas,
meu sentimento e o teu se compreendendo vão.
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda.
Força inféria ou divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustico, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Edição preparada exclusivamente para os alunos de Lit Bras I e de ‘Poesia
Extemporânea’ da Faculdade de Letras da UFMG. Seleção feita pelo editor
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas, ignoto a partir das primeiras edições.
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à ideia emprestas Terminou-se de compor na oficina de D. Leopoldina a 13 de junho de 2018,
e pelas frases mudas que proferes quinta-feira. Aniversário de apenas Fernando Pessoa, e Dia de Santo Antônio.
nos silêncios de Amor!.. Corrigida na mesma casa e-tipográfica no sábado, dia 16, Bloomsday.
De Meu glorioso pecado (1928) AS EDIÇÕES QUEM MANDOU? PRATICAMENTE NÃO EXISTEM!