Você está na página 1de 16

Gilka Machado

FELINA

e outras poesias

Edições Quem Mandou?


Curral del Rey, 2018
Aranhol verde

A Rodolfo Machado

Embora queira
dar-lhe nome, não sei como se chama
esta viçosa trepadeira
que de alvas flores se recama;
sei que, às vezes, suponho uma aranha invisível
ande tecendo viridente trama
do meu telhado ao nível...

Não tem um ano ainda,


mas já completamente o meu quintal ensombra,
e, por ser nova, inda é mais linda
no seu virgem verdor veludoso de alfombra.

— Incansável fiandeira —
ei-la que, prestes,
no largo tear do espaço fios lança,
todo o telhado encobre,
alonga-o em glauco teto,
pelas paredes pende... e a minha choça
já não tem aquele aspecto
avelhantado e pobre,
como que se enriquece e se remoça;
e ó minha choça como ficas prazenteira,
e com que garbo, embora velha, vestes
esse fato verde que te torna criança!

Por uma destas noutes


teve ela o parto das primeiras flores;
e, dessa noute em diante,

1
o meu olhar se estanca, Seu perfume é meloso,
ante essas flores de pelica branca, tem qualquer cousa que emacia,
nas quais ela resume qualquer cousa sutil de luxuriante gozo;
a beleza da forma e o encanto do perfume; nos meus sentidos de tal forma atua,
flores cuja corola que a minha pele (incrível cousa!) fica fria:
não resiste do vento aos mais leves açoutes. como que me unto na fragrância sua.
Quando agoniza o Dia,
Talvez fugindo aos investigadores põem-se os meus sentidos a gozar
olhos do Sol, de lume causticante, esse perfume doce e lamuriento,
só pela noute escura alvo como luar,
ou quando a luz discreta mole como unguento.
do luar na treva rola,
ela a flórea brancura Assim, se, à sua sombra, a meditar repouso,
na escuridão projeta. frequentemente seus viçosos braços,
num gesto langoroso,
Sua sensual fragrância, pendem pelos espaços...
qual magnético fluido, e, à sensação de cada
entra o meu abandono, o meu descuido, galho que me roça pelo frágil busto,
chama, mesmo à distância, apavorada a espio,
o meu olfato, num rápido arrepio
que, ao seu apelo, de susto!
sente, Do meu sossego, súbito, arrancada
qual pachorrento gato, à sugestiva solidão do ambiente,
o prazer emoliente creio nela se encontre disfarçada
de uma enluvada mão a acariciar-lhe o pelo. uma ignorada
e vegetal serpente.
Mal principia a enoutecer,
caminho, como que instintivamente, Vi-a nascer,
para o seu pálio redolente, crescer
buscando de aspirá-la o espiritual prazer; e florescer;
e às vezes o silêncio é tão pleno, é tamanho, cuidosa mão plantou-a um dia,
a solidão tão grande, para visual alegria
que ela, suponho, ao meu olhar se expande, do meu ser.
sinto-a se elastecer Nesta ausência total do meu próprio prazer,
e vejo-a — polvo estranho — buscam sempre os prazeres exteriores,
os tentáculos verdes distender! estes olhos cansados de fitar
2
minhas íntimas dores; Sensual
e que gozo estender pelas manhãs o olhar
no suspenso tapiz dos seus verdores!

Mas, talvez por muito amá-la,


uma ideia pressaga
todo o meu ser abala...
é que há na planta que me delicia Quando, longe de ti, solitária, medito
amplamente estendida, neste afeto pagão que envergonhada oculto,
a consistência de uma fantasia: vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
é um fio a sua vida... que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.
Assim aberta, totalmente expansa,
numa alegria alvissareira, A febril confissão deste afeto infinito
vejo-a reproduzir minha seca esperança, há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
tecendo a trama da ilusão primeira. pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
à minha castidade é como que um insulto.
(Não tenhas tu, formosa trepadeira,
a curta duração Se acaso te achas longe, a colossal barreira
dessa minha ilusão...) dos protestos que, outrora, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
Quando, pelas caladas
da noute, os olhos ergo à sua renda espessa, Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
e alvas, esféricas, paradas, e sinto da volúpia a ascosa e fria lesma
contemplo as flores suas minha carne poluir com repugnante baba...
(talvez porque o seu cheiro me entonteça),
cuido esteja a florir sobre a minha cabeça
um verde céu cheio de luas!

De Cristais partidos (1915) De Cristais partidos (1915)


3
Ser mulher... Invocação ao Sono

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada Sono! da tua taça brônzea e fria
para os gozos da vida: a liberdade e o amor; dá que eu possa sentir o éter, a anestesia.
tentar da glória a etérea e altívola escalada, Eis-me: corpo e alma — inteira,
na eterna aspiração de um sonho superior... para essa tua orgia.
Busco esquecer a minha hipocondria
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada na tua bebedeira.
para poder, com ela, o infinito transpor; Quero sentir o teu delíquio brando
sentir a vida triste, insípida, isolada, apoderar-se do meu ser,
buscar um companheiro e encontrar um senhor... e cochilando,
bamboleando,
Ser mulher, calcular todo o infinito curto ir, lentamente, escorregando
para a larga expansão do desejado surto, pelo infinito do prazer.
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
Vem, meu lânguido amante,
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza! deixa-me, no teu suave e remansoso seio,
ficar na vida qual uma águia inerte, presa no teu seio gigante,
nos pesados grilhões dos preceitos sociais! sem ânsias, sem pesar, sem dores, sem receio,
repousar um instante.

............................

Vem! já de mim se apossa um sensual arrepio,


todo meu ser se fica em total abandono...
Dá-me o teu beijo frio,
Sono!
Deixa-me espreguiçar o corpo esguio,
sobre o teu corpo que é, como um frouxel, macio.

De Cristais partidos (1915) ............................


4
Eis-me, lânguida e nua, Particularidades...
para a volúpia tua.

............................

Faze a tua carícia,


como um óleo, passar pela minha epiderme;
essa tua carícia, umectante e emoliente, Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
que no corpo me põe coleios de serpente os meus gostos crimino e busco, em vão, torcê-los,
e indolências de verme. é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... os pelos...
............................
Amo as noutes de luar porque são de veludo,
A vida delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
é uma descida; meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo,
mas tu, Sono, me dás a inefável delícia em carícias subtis, rolarem-me os cabelos.
de ensaiar a escalada
para a Morte — a ascensão à glória ambicionada; Pela fria estação, que aos mais seres erriça,
mas tu, Sono, és a calma, és a mudez propícia andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
à suave antevisão da ampla Canaã do Nada. às luvas de camurça, às boas, à peliça...

Quem, como eu, da existência, apenas, sente O meu tato se estende a todos os sentidos;
a dor atroz, a realidade bruta, sou toda languidez, sonolência, preguiça,
e traz numa agonia persistente se me quedo a fitar tapetes estendidos.
a alma e, em vão, onde mora a ventura perscruta,
só na tua embriaguez acha conforto.
Lança-me agora e sempre essa tua blandícia,
deixa-me descansar o corpo semimorto
e a alma desiludida...
Faze com que, da tua paz fictícia,
à paz eterna me transporte,
Sono — morte da Vida!
Sono — vida da Morte!

De Cristais partidos (1915) De Estados de alma (1917)


5
Comigo mesma

Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma, Numa nuvem de renda,


e flexuosa me torna e me torna felina. Musa, tal como a Salomé da lenda,
Amo do pessegueiro a pubescente poma, na forma nua
porque afagos de velo oferece e propina. que se ostenta e estua,
— sacerdotisa audaz —
O intrínseco sabor lhe ignoro; se ela assoma para o Amor de que és presa,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina! rasgando véus de sonho, dançarás
gozo-a pela maciez cariciante, de coma, nesse templo pagão da Natureza!
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina.
Dançarás por amor das cousas e dos seres,
Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno, e por amor do Amor
saboreio-a num beijo, evitando um ressábio, tua dança dirá renúncias e quereres;
como num lento olhar te osculo o lábio morno. faze com que desfira
tua lira
E que prazer o meu! que prazer insensato! gargalhadas de gozo e lamentos de dor,
— pela vista comer-te o pêssego do lábio, e possas em teu ritmo recompor
e o pêssego comer apenas pelo tato. tudo que viste extática, surpresa,
e a imprevista beleza,
a beleza incorpórea
dos perfumes e sons indefinidos
de tudo que te andou pelos sentidos,
de tudo que conservas na memória.

Dize da Natureza em que à luz vieste,


dize dos seus painéis encantadores,
dize da pompa, do esplendor celeste
das suas noutes; dos seus dias,
e animiza com teus espasmos e agonias
De Estados de alma (1917) as expressões com que a expressando fores.
6
Alma de pomba, corpo de serpente, de maneira tal
enche de adejos que eles se fiquem pelos séculos dispersos,
e rastejos com os ritmos da existência universal.
teu ambiente,
caiam em torno a ti pedras ou flores E a dançar,
de uma contemplativa multidão: a dançar,
de lisonjeiros e de malfeitores num delicioso sacrifício,
cheias as sendas da existência estão. patenteia a nudez desse teu ser puníceo
Toda de risos tua boca enfeita ante o sereno altar
quando te surja um ser sincero, irmão; do deus que te domina.
e sejas sempre pura, espelhante, perfeita, Que importa a injúria hostil de quem te não compreenda?
na verdade da tua imperfeição. dança, porém, não como a Salomé da lenda,
a lírica assassina:
Musa satânica e divina dança de um modo vivificador;
ó minha Musa sobrenatural, dança de todo nua,
em cujas emoções, igualmente, culmina mas que seja a nudez sensual da dança tua
a sedução do Bem, a tentação do Mal! a imortalização do teu glorioso Amor!
em teus meneios lânguidos ou lestos
expõe ao Mundo que te espia
que assim como há na Dança a poesia dos gestos,
há nos versos a dança da Poesia.

Dança para esse gozo,


o grande gozo maternal
da Terra,
que te fez sem igual,
e, envaidecida,
em seu amor te encerra,
amando em ti a sua própria vida,
sua vida carnal
e espiritual.

Torce e destorce o ser flexuoso


e estuoso
ó Musa emocional!
maneja os versos De Mulher nua (1922)
7
Pelo inverno Teu carinho é animado;
sem que estejas ao meu lado,
ele vive e palpita em minha calma;
concluo sempre, por senti-lo assim:
o teu carinho é o pólen da tua alma
que fica a germinar dentro de mim.

Lá fora, o mar é um largo e líquido arrepio; O teu carinho de tal forma cresce,
as árvores, em sono, embrulham-se nos ramos; e os sentidos me assume,
as estrelas estão tiritando de frio. que, em momentos, uma árvore parece:
hauro-lhe o flóreo e lânguido perfume;
Almas, não sei por que no inverno tanto amamos!... gosto-lhe os frutos de rubente messe;
sinto roçarem-me suas franças,
São pelos bastos, são veludos quentes em distensões longas e mansas.
os teus carinhos, nestas hibernais e fecho os olhos para vê-lo, muito lindo,
noutes longas e umentes. interiormente olhando-me e subindo.
Alheia ao frio que nos mais E escuto nele, qual num folhedo,
atua, o teu beijo vibrar canções de passaredo.
eu me deixo ficar, imóvel, nos ambientes,
toda enrolada na lembrança tua! Teu carinho — estas mãos breves e esguias
que adormecem as minhas agonias.
Na ausência, na tristeza Teu carinho — a doçura
que me invade, do paladar da minha Desventura.
os teus carinhos, meu Amor, Teu carinho — um aroma íntimo e brando,
têm mais sabor, em meu olfato se esticando
e mais macieza, e enrodilhando,
e mais espiritualidade. serpentinamente.
Por minha cisma silenciosa e queda, E a melodia
teus dedos úmidos e esguios, macia
como lagartas, da mais fina seda, e quente
fiam finos, fluidos fios... que eu ouço, quando tudo silencia.
e os gestos que ficaram palpitando
Vezes algumas, nos meus gestos retidos,
sinto, meu belo ausente, os teus abraços, e o olhar que eu olho, dos meus olhos dentro.
como boas de plumas, Teu carinho — os sentidos
contornarem-me o busto atando-me em seus laços. do silêncio em que toda me concentro.
8
Por estas hibernais No cavalo
noutes de pelos fluidos,
estranham meus descuidos
e andam de frio tiritando os mais;
é que a recordação
dos teus carinhos
cobre-me o corpo de uma profusão
de plumas e de arminhos. Belo e heroico, agitando as veludosas crinas,
meu árdego animal, tens a sofreguidão
Lá fora, o Vento, trêmulo de frio, do infinito — o infinito haures pelas narinas —
procura se envolver das frondes nos recamos: e, sem asas obter, buscas fugir do chão.
há no próprio silêncio um gélido arrepio.
Domino-te; entretanto, és tu que me dominas.
Foi numa noute assim que nos amamos. É um desejo que espera a humana direção
a tua alma, e, transpondo os valos e as campinas,
meu sentimento e o teu se compreendendo vão.

Amas o movimento, o perigo, as distâncias;


meigo, sentimental, tens arrojadas ânsias,
em tuas veias corre um férvido calor.

Quando em teu corpo forte o frágil corpo aprumo


eu me sinto disposta a lançar-me, sem rumo,
às conquistas da Glória e às conquistas do Amor!

De Mulher nua (1922) De Mulher nua (1922)


9
Felina A uma lavandeira
À minha gata

Minha animada boa de veludo,


minha serpente de frouxel, estranha, Minha vizinha lavandeira,
com que interesse as volições te estudo! mal nasce o Sol, põe-se a cantar.
com que amor minha vista te acompanha! Canta a manhã, a tarde inteira:
mais me parece uma rendeira
nivosos sons esfiando no ar.
Tens muito de mulher, nesse teu mudo,
lírico ideal que a vida te emaranha, Quando ela vai ao coradouro
pois meu ser interior vejo desnudo finas cambraias estender,
se te investigo a mansuetude e a sanha. olhos azuis, cabelo louro,
tudo em seu corpo canta em coro,
Expões, a um tempo langorosa e arisca, pela alegria de viver.
sutilezas à mão que te acarinha,
garras à mão que a te magoar se arrisca. Horas a fio, o olhar estanco
e estanco o ouvido ao seu labor;
lembra um tecido muito branco
Guardas, ó tato corporificado! seu canto suave, ingênuo e franco,
a alta ternura e a cólera daninha a se alongar do espaço à flor.
do meu amor que exige ser amado!
Cantar, cantar é sua vida;
quando, ao palor crepuscular,
ela se vai, a indefinida
canção, embora emudecida,
por longo tempo fica a ecoar.

Se a Lua, sobre os silenciados


campos, do luar abre os lençóis,
não mais, então, lhe ouço os trinados,
mas cuido ver, por sobre os prados,
dormir, sonhar a sua voz.
De Mulher nua (1922)
10
Cantando sempre, ela mergulha
no rio as mãos feitas de luar;
e, por senti-la, ri, marulha
o rio; aos dedos seus, de agulha,
a água é uma renda sobre um tear.

E dessas mãos o alvor é tanto


que, às vezes, tenho a convicção Tua voz... Meus ouvidos
de que, talvez por um encanto, têm sempre fome de tua voz
alvo se torne tudo quanto que lembra a carne dos recém-nascidos.
os dedos seus tocando vão. Quando te quedas num silêncio atroz,
unhas aguçam, têm indefinidos
Embalde o espírito perscruta, tateios meus ouvidos,
de onde lhe vem esse poder, ansiando tua voz.
de, sem possuir a força bruta,
assim tornar clara, impoluta, Parece vir de muito longe
roupa que às mãos lhe venha ter. e para muito além se encaminhar;
devera ser a voz de um monge,
Não poderei, por mais que o queira! própria para sermões de lágrimas, ao luar.
dado me fosse e, dos desvãos
da minha dor tirara inteira A tudo quanto dizes,
esta alma, ó linda lavandeira! com tuas inflexões várias e estranhas,
para o crisol das tuas mãos. aprestam a audição astros, montanhas,
abismos e raízes.
Ao teu labor, que assim depura,
tenho este anseio singular: Falas tão pouco, mas te exprimes tanto,
pudesses tu, leda criatura, meu pensativo Amor,
lavar minha alma da amargura falas tão pouco e tua voz é meu encanto,
e pô-la ao Sol para secar!... no seu curso sensual de torrente de odor!...

Voz que de sonhos minha mente touca,


a fluir dos teus mais íntimos refolhos,
não parecendo vir de tua boca,
mas dos lábios de seda dos teus olhos.
Falas e fico-me a sonhar,
De Mulher nua (1922) com a vista alheia a tudo,
11
que tua voz me veste de veludo,
que estou ouvindo teu olhar
falar.

Beijam-te a boca rúbida e fervente,


numa ternura de mulheres,
todas, todas as frases que proferes.
Através do meu sonho de demente, Beijas-me tanto, de uma tal maneira,
sinto que as gozas demoradamente, boca do meu Amor, linda assassina,
que não sei definir, por mais que o queira,
sinto que as gozas, uma de outra após... teu beijo que entontece e que alucina!
e, ao flâmeo ciúme que em meu sangue lavra,
que ânsia de ser palavra, Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,
para desfalecer dentro de tua voz!... e todo o senso aos lábios meus se inclina:
morre-me a boca, presa da tonteira
Tua fala... do teu carinho feito de morfina.
ah! pudesse nas mãos, um momento, apertá-la,
entre os dedos conter o seu corpo tremente, Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,
seu corpo esguio e de ti mesmo sofro a imensa falta,
e escorregadio no vasto voo de um delíquio infindo...
de sonora serpente!...
Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,
Tua fala... e toda me suponho uma árvore alta,
mas teu lábio cala cantando aos céus, de passarinhos cheia...
e no meu sonho uma certeza assoma:
se mergulhasse as mãos na tua voz,
para sempre as teria encharcadas de aroma,
incendiadas de sóis.

De Meu glorioso pecado (1928) De Meu glorioso pecado (1928)


12
me magoara o coração.

Meu corpo todo, no silêncio lento,


em que me acaricias,
meu corpo todo, às tuas mãos macias,
é um bárbaro instrumento
que se volatiliza, em melodias...
Tuas mãos são quentes, muito quentes e, então, suponho,
(mas que arrepios, à orquestral harmonia de meu ser,
minha carne, sentes, que teu grandioso sonho
aos seus macios diga, em mim, o que dizes, sem dizer.
dedos!...); tuas mãos são muito quentes,
mas teus afagos me parecem frios, Tuas mãos acordam ruídos
como os esguios na minha carne, nota a nota, frase a frase;
corpos das serpentes. colada a ti, dentro em teu sangue quase,
sinto a expressão desses indefinidos
Mãos leves, mãos fagueiras, silêncios da alma tua,
que por minha epiderme vêm e vão, a poesia que tens nos lábios presa,
num afã de rendeiras, teu inédito poema de tristeza,
través de horas inteiras. vibrar,
de serão. cantar,
Mãos leves, mãos fagueiras, na minha pele nua.
que tramam rendas verdadeiras
na, minha sensação.

Por essas mãos é que me dizes


todas as cousas
que não ousas
dizer com a fala,
as confidências que teu lábio cala
aos meus ouvidos infelizes.

Com essas mãos que de volúpia abrasas,


prendeste um dia minha mão:
— que desespero de asas! —
tua mão De Meu glorioso pecado (1928)
13
Dos teus olhos as bocas de veludo Lépida e leve,
falam mais que teus lábios ao meu gosto. em teu labor que, de expressões à míngua,
Ah! pudesses ouvi-los! dizem tudo o verso não descreve...
os poetas negros do teu lindo rosto. lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
Não saberás com que carinho estudo gostos de afago e afagos de sabor.
esses boêmios cantores do sol-posto,
que me fazem sentir, num suave e mudo És tão mansa e macia,
idioma as melopeias do desgosto. que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
Vejo-os, tressuando luz na treva acesa, como rítmica serpente,
como dois velhos ébrios da Beleza, e se faz menos rudo,
juntos vivendo uma agonia calma... o vocábulo, ao teu contato de veludo.

Vejo-os, a cambalear, pelos espaços, Dominadora do desejo humano,


e que ânsia de embalá-los nos meus braços, estatuária da palavra,
de adormecê-los dentro da minha alma!... ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá do tato,


ó língua-ideia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
De Meu glorioso pecado (1928) te hão deixado o louvor, a exaltação!
14
— Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
— Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!

Dás corpo ao beijo, dás antera à boca,


és o tateio do coração,
és o elastério da alma... ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
— tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,


que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...

Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda.
Força inféria ou divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustico, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Edição preparada exclusivamente para os alunos de Lit Bras I e de ‘Poesia
Extemporânea’ da Faculdade de Letras da UFMG. Seleção feita pelo editor
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas, ignoto a partir das primeiras edições.
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à ideia emprestas Terminou-se de compor na oficina de D. Leopoldina a 13 de junho de 2018,
e pelas frases mudas que proferes quinta-feira. Aniversário de apenas Fernando Pessoa, e Dia de Santo Antônio.
nos silêncios de Amor!.. Corrigida na mesma casa e-tipográfica no sábado, dia 16, Bloomsday.

De Meu glorioso pecado (1928) AS EDIÇÕES QUEM MANDOU? PRATICAMENTE NÃO EXISTEM!

Você também pode gostar