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A escola como espaço de participação social


e promoção da cidadania: a experiência de
construção da participação em um ambiente
escolar
The school as a space for social participation and citizenship
promotion: the experience of building participation in a school
environment

Camila Giugliani1,2, Katia Teresa Cesa2, Eliane Maria Teixeira Leite Flores2, Vânia Roseli de Mello3,
Patrícia Genro Robinson4

DOI: 10.1590/0103-11042020S105

RESUMO O presente artigo tem como foco o desenvolvimento da intervenção construída no âmbito da
pesquisa do Movimento pela Saúde dos Povos ‘Engajamento da Sociedade Civil para Saúde para Todos’, em
uma escola estadual em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Por meio da experiência apresentada, objetiva-se
discutir sobre as possibilidades e as dificuldades da inserção de um movimento social no espaço escolar,
juntamente com outros atores do campo da saúde, para estimular a participação social. Trata-se de uma
intervenção direcionada à população jovem, no ambiente escolar, unindo vários segmentos: escola,
Unidade de Saúde da Família, conselho de saúde, movimento social e universidades. Tendo a proposta da
sistematização de experiências como método, a experiência é descrita por meio da sequência de atividades
realizadas, baseadas na concepção de Bem Viver, que cultiva o pertencimento e o respeito à natureza. A
revitalização da floresta abandonada da escola foi o eixo condutor das ações. A experiência demonstrou,
por um lado, a dificuldade de estimular a participação social vinculada ao controle social e de praticar ações
com forte interface entre escola e serviço de saúde. Por outro lado, possibilitou experimentar formas não
institucionalizadas de participação, baseadas no exercício constante da cidadania e nas ações solidárias.

PALAVRAS-CHAVE Participação social. Promoção da saúde. Saúde ambiental. Estratégia Saúde da Família.

ABSTRACT This article focuses on the development of the intervention built within the research of the
People’s Health Movement ‘Civil Society Engagement for Health for All’, in a public school in Porto Alegre,
southern Brazil. Through this experience, it was aimed at discussing the possibilities and difficulties of the
1 Universidade Federal do insertion of a social movement in the school environment, together with other actors in the health field,
Rio Grande do Sul (UFRGS)
– Porto Alegre (RS), Brasil. to stimulate social participation. This is an intervention directed at the youth, in the school environment,
giugli@hotmail.com uniting several segments: school, Family Health Unit, health council, social movement and universities.
2 Movimento
Referenced on the proposal of the systematization of experiences as a method, the experience is described
pela Saúde
dos Povos (MSP) – Porto through the sequence of activities performed, based on the conception Buen Vivir, which cultivates belonging
Alegre (RS), Brasil. and respect for nature. The revitalization of the school’s abandoned forest was the guiding axis of the set of
3 Universidade
actions. This experience has shown, on the one hand, the difficulty of stimulating social participation linked
Estadual do
Rio Grande do Sul (Uergs) to social control and of practicing actions with strong connection between school and health service. On the
– Porto Alegre (RS), Brasil. other hand, it made it possible to attempt non-institutionalized forms of participation, based on the constant
4 Escola
exercise of citizenship and solidarity actions.
de Saúde Pública
(ESP) – Porto Alegre (RS),
Brasil. KEYWORDS Social participation. Health promotion. Environmental health. Family Health Strategy.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Introdução encarar antigos desafios que permanecem


atuais: os efeitos decorrentes da institu-
A concepção de participação social, forjada cionalização, que acabam por restringir a
durante a efervescência política característica participação social em saúde aos espaços
das décadas de 1970 a 1990 no País, constitui-se dos conselhos e das conferências; a pouca
em um dos elementos estruturantes do Sistema autonomia com relação ao poder executivo;
Único de Saúde (SUS) e emerge alinhada a um as inúmeras questões relacionadas ao tema
conjunto de dispositivos que buscam fazer da representatividade, entre outros. Outro
valer, na prática, a efetiva participação da so- desafio a ser enfrentado diz respeito à difi-
ciedade nas políticas públicas. Nesse sentido, culdade de renovação dos participantes nas
refere-se ao direito de cidadania e ao exercício instâncias de controle social em saúde, uma
de democracia, que, nas palavras de Escorel e vez que são sempre os mesmos que partici-
Moreira, consiste no, pam e, em sua grande maioria, já o fazem há
muito tempo. Desde a década de 1990, quando
[...] exercício da democracia no cotidiano, o as conferências e os conselhos ganharam sua
que exige permanente reflexão sobre suas re- institucionalidade legal, a adesão da socieda-
gras, limites e possibilidades. É, portanto, um de tem sido feita quase que exclusivamente
processo de aprendizagem que se exerce no pelos mesmos sujeitos, herdeiros históricos
respeito às diferenças e na ampliação dos es- de uma militância que se inicia ainda na
paços de convivência e debate público1(1007). década de 1960, com os movimentos sociais
e eclesiais de base. Também contribui para
Nesse contexto, a participação social se isso a desmotivação dos jovens em participar
vincula à perspectiva democrática que, desde o desses espaços e a pouca expressividade de
início, inspirou a construção da política pública ações direcionadas especificamente a esse
de saúde brasileira. Saúde e democracia são, segmento populacional.
portanto, dimensões intrínsecas ao próprio SUS. Ao mesmo tempo que fica tão clara a ne-
Esse foi, inclusive, o tema da 8ª Conferência cessidade de renovação das representações,
Nacional de Saúde (CNS)2, em 1986, conside- indaga-se sobre os elementos que têm con-
rada um marco na história da construção das tribuído para esse cenário. A falta de ‘espíri-
conferências de saúde e do SUS. to comunitário’, cada vez mais marcante nos
A associação entre democracia e saúde mo- dias de hoje, contribui para a fragilização dos
bilizou a sociedade brasileira na defesa da vínculos sociais, assim como para o aumento
ampliação do conceito de saúde, elevando-a da violência e a consequente retração na ocu-
à condição de direito e servindo como ideia pação dos espaços públicos, sejam eles a rua,
norteadora para a construção das bases do a praça, a escola ou a cidade de modo geral,
capítulo de seguridade social na Constituição acabando por impossibilitar os sujeitos de
Cidadã de 1988, dando materialidade legal estabelecerem vínculos uns com os outros, de
para a ‘saúde como direito de todos e dever se reunirem em torno de uma causa ou de um
do Estado’. Trinta e três anos depois, em 2019, projeto comum. Cabe aqui citar um trecho de
a realização da 16ª Conferência Nacional de Eymard Vasconcelos: “O aumento do consumo
Saúde, que foi chamada de ‘8ª + 8’, trouxe como de bens, a agitação e a alienação, resultantes
tema central ‘Democracia e Saúde: Saúde como do sistema, dispersa as vontades, fragmenta
Direito e Consolidação e Financiamento do os sonhos e acomoda”3(99), que resume bem
SUS’, procurando resgatar, atualizar e reafir- o contexto de necessidade de (re)criação e
mar as proposições da 8ª CNS. agregação de vontades, e que tão bem se aplica
As mais de três décadas que separam a 8ª nos dias atuais.
da 16ª CNS apontam para a necessidade de Conforme Gohn:

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Os movimentos sociais são fontes e agências ano 2000’, firmada na Conferência Mundial
de produção de saber. O contexto escolar sobre Cuidados Primários de Saúde, em Alma-
é um importante espaço para participação Ata, em 19785. O MSP, entre outras ações, está
na educação. A participação na escola gera comprometido com a produção e a dissemina-
aprendizado político para a participação na ção de conhecimentos que contribuam para
sociedade em geral4(347). um ativismo cada vez mais efetivo na busca
da saúde para todos e todas. No marco desse
A autora destaca, ainda, que as aprendi- compromisso, foi desenvolvido o programa
zagens no interior de um movimento social de pesquisas ‘Civil Society Engagement for
são múltiplas, durante e depois de uma ação Health for All’ – ‘Engajamento da Sociedade
específica, tanto para o grupo como para os Civil para a Saúde para Todos e Todas’.
sujeitos singulares4. Nessa perspectiva, surge a Esse programa, com o objetivo de compre-
ideia de conciliar a autonomia e a criatividade ender como a sociedade civil pode ser mais
do movimento social com o compromisso e efetiva na sua atuação em busca da saúde para
a solidez da política pública, para trabalhar todos e todas, em termos de mecanismos,
a motivação dos jovens para o exercício da processos e práticas, envolveu seis países de
participação social no cotidiano. quatro continentes: Brasil, Colômbia, Itália,
Assim, o objetivo deste artigo é compar- República Democrática do Congo, África do
tilhar as experiências de um projeto de pes- Sul e Índia. Cada país, organizado em torno
quisa/extensão cuja intenção foi sensibilizar do seu círculo do MSP, desenvolveu a pesquisa
e envolver a juventude nos espaços de partici- localmente, de acordo com as características
pação social em saúde e estimular a formação e necessidades do contexto em que está inse-
de novos sujeitos políticos a partir da inte- rido. A pesquisa se desenrolou em duas fases:
gração com as ações do Programa Saúde na a primeira, de exploração e compreensão do
Escola (PSE). Partindo de uma pergunta mais contexto de ativismo local (dimensão explora-
ampla – ‘Como o engajamento da sociedade tória); e a segunda, de ação, trazendo propostas
civil pode ser mais efetivo na conquista da de intervenção para fortalecer o ativismo pela
saúde para todos e todas?’ –, pretende-se, por saúde (dimensão participativa).
meio da experiência descrita, discutir sobre No Brasil, três núcleos regionais do MSP
as possibilidades e as dificuldades da inserção participaram (Maranhão, Sudeste e Porto
de um movimento social no espaço escolar, Alegre), cada um pondo em prática a pesqui-
juntamente com outros atores do campo da sa de acordo com a sua realidade. Em Porto
saúde, para estimular a participação social. Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a pes-
quisa teve como objeto a participação social
na saúde como expressão de ativismo. Na pri-
Contextualização meira fase, investigando o contexto do controle
social, a exploração prévia com atores-chave
A intervenção que será apresentada neste evidenciou a necessidade de sensibilizar e
artigo foi concebida no contexto de uma envolver a população jovem nos espaços de
pesquisa-ação do Movimento pela Saúde dos participação social. Dessa forma, definiu-se
Povos – MSP (People’s Health Movement – o foco da segunda fase, que se constituiu na
PHM), uma rede de organizações e pessoas construção de uma intervenção no espaço
comprometidas com a realização do direito à escolar, que será apresentada neste artigo. O
saúde no mundo. Sua fundação, no ano 2000, local da intervenção foi escolhido em função
deu-se mediante a conjunção de movimentos da disponibilidade e do interesse das pessoas
populares do mundo todo, preocupados com o que estariam envolvidas, levando em conta
distanciamento da meta ‘Saúde para Todos no as relações construídas com os sujeitos da

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pesquisa na primeira fase. O projeto foi apre- principais das ações desenvolvidas, vem ali-
sentado inicialmente para a equipe de uma das nhado ao do Bem Viver. Criado pelos austra-
Unidades de Saúde da Família (USF), que havia lianos Bill Mollison e David Holmgren, nos
manifestado especial interesse em participar. anos 1970, é um conjunto de conhecimentos de
Em conjunto com a equipe da USF, tendo o PSE sociedades tradicionais que traz técnicas ino-
como ação de base, escolheu-se uma escola vadoras, com o objetivo de criar uma ‘cultura
estadual do território, a partir da avaliação de permanente’, sustentável, baseada na coope-
que havia afinidade com a proposta dos autores ração entre os homens e a natureza. Um dos
de promover saúde e cidadania com atividades princípios fundamentais da permacultura é o
de caráter colaborativo e que privilegiariam respeito pela sabedoria da natureza, que guia
a participação ativa da comunidade escolar. o desenvolvimento de um sistema próprio e
Para desenvolver a intervenção, partiu-se de adequado para cada lugar7,8. Da estratégia de
marcos conceituais alinhados com os ideais do observar e copiar a natureza, podem surgir
MSP como um todo, especialmente com a rede inúmeras técnicas para planejar a sustenta-
latino-americana do Movimento. O primeiro bilidade de espaços verdes, como a pequena
deles é o Bem Viver, do espanhol Buen Vivir, floresta da escola onde o trabalho aconteceu.
ou Sumak Kawsay6, expressão que vem dos
povos ancestrais da América Latina, segundo
a qual o ‘sentir-se bem’ se traduz como um Métodos
sentimento de pertencimento e de respeito à
natureza, à Mãe Terra, e a toda forma de vida Para subsidiar o desenrolar da construção e
em um ecossistema onde o ser humano é a da implementação da intervenção na escola,
vida no interior da vida. É uma vivência cidadã optou-se pela proposta da sistematização de
para com a natureza e, também, um projeto experiências, elaborada por Jara9, cujas ca-
civilizatório ou uma utopia em permanente racterísticas principais estão apresentadas no
recriação. Nessa concepção, as relações entre quadro 1. Todas essas características puderam
os seres humanos e a natureza podem ser de ser, de alguma forma, experimentadas em
respeito e de cuidado, contradizendo a prática diferentes momentos, considerando as pos-
hegemônica de hoje em dia, marcada pelo sibilidades e as dificuldades impostas pelo
utilitarismo, pela competição e pela ganância. processo, o que está sintetizado no quadro 1.
O conceito de permacultura, um dos eixos

Quadro 1. Características da sistematização de experiências segundo referencial teórico de Jara (2013)

Característica Forma de desenvolvimento na pesquisa


Produção de conhecimentos a Todas as atividades que constituem a intervenção foram pensadas de acordo com as
partir da experiência experiências de todos os participantes: ativistas do MSP, comunidade escolar, equipe
da USF, conselho local de saúde e universidades. As novas experiências produzidas
com as atividades, predominantemente vivenciais, geraram novos conhecimentos
sobre os temas trabalhados.
Reconstrução histórica do À medida que as atividades iam se somando, os fatos iam se encadeando, juntamen-
sucedido, para interpretá-lo e te com os elementos contextuais sociopolíticos que os permeavam, gerando reflexão
obter aprendizagens e possibilitando uma compreensão mais abrangente da realidade.
Valorização dos saberes das A dinâmica coletiva e participativa adotada pressupõe a valorização dos saberes das
pessoas que são sujeitos das pessoas envolvidas, acolhendo, também, a transformação desses saberes a partir da
experiências vivência das experiências.

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Quadro 1. (cont.)
Característica Forma de desenvolvimento na pesquisa
Identificação das tensões entre Os planos e projetos inicialmente pensados geraram processos reais, que se cons-
o projeto e o processo tituíram em experiências para todos os participantes. Qualquer atividade realizada,
considerando a dinâmica da intervenção, desencadeava um processo vivo e dinâmico,
que refletia no que estaria por vir, trazendo imprevistos ao planejado. Nesse processo,
várias tensões puderam ser identificadas, que também foram fonte de aprendizados.
Identificação e formulação de As atividades, ao valorizarem os saberes dos sujeitos e a produção de conhecimentos
aprendizados a partir da experiência, tinham como consequência a geração de novos aprendizados,
aspecto que pode ser especialmente destacado em um ambiente escolar.
Documentação das experiên- Foram realizados: filmagens, material fotográfico, registros escritos, oficinas com
cias e elaboração de materiais produção de materiais artísticos e outros itens, construção de uma encenação teatral
e produtos comunicativos de e elaboração (ainda inacabada) de um vídeo.
utilidade para os participantes
Fortalecimento das capacida- A dinâmica de construção coletiva adotada poderia favorecer o fortalecimento das
des individuais e de grupo capacidades, porém,a integração insuficiente entre os participantes e as dificuldades
de outras naturezas comprometeram esse processo.
Presença do protagonismo Esta característica ficou prejudicada pelas dificuldades enfrentadas no processo,
dos sujeitos envolvidos na principalmente pela desagregação entre as pessoas e os grupos.
experiência também na sua
sistematização

Este trabalho foi desenvolvido com a inten- A seguir, são apresentadas as atividades
ção de integrar as ações do PSE, política inter- realizadas em um processo que se desenrolou
setorial instituída em 2007 pelos Ministérios durante dois anos e meio, de setembro de 2016
da Saúde e da Educação10. O PSE tem como a dezembro de 2018.
objetivo contribuir para a formação integral
dos estudantes por meio de ações de promoção, Uma intervenção na escola com a
de prevenção e de atenção à saúde, a fim de escola
enfrentar as vulnerabilidades que comprome-
tem o pleno desenvolvimento de crianças e de A escola em questão, localizada em uma região
jovens da rede pública de ensino11. As ações do de alta vulnerabilidade social, abrange o ensino
PSE nas escolas são realizadas pelas equipes fundamental, do primeiro ao nono ano. Está
de saúde da família do território correspon- em funcionamento desde 1985, possui 260
dente. Assim, desde o planejamento da inter- alunos e 24 funcionários. Segundo dados do
venção, estabeleceu-se a interface com a USF Censo de 2017, possui oito salas de aula, quadra
Santo Alfredo, localizada no distrito sanitário de esportes aberta, pracinha de brinquedos
Partenon. A seguir, foram criados projetos de (interditada), banheiros, cozinha, refeitório,
extensão universitária, envolvendo professores sala de professores e direção. Suas dependên-
e estudantes de duas universidades públicas: cias incluem uma grande área externa, pouco
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul explorada, com uma pequena floresta, que a
(Uergs) e Universidade Federal do Rio Grande comunidade escolar chama de mato.
do Sul (UFRGS). Ambos os projetos foram O trabalho foi sendo construído na medida
aprovados pelas suas respectivas Câmaras em que se mostrava oportuno interligar os
de Extensão (códigos: 899, na Uergs; e 36283, conhecimentos e práticas sobre cidadania,
na UFRGS). direitos humanos, Bem Viver, permacultura,

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alimentação saudável e promoção da cultura desejos com relação à maior participação co-
de paz. A partir daí, as conexões estabelecidas letiva no cuidado com a escola. A partir disso,
poderiam gerar reflexão sobre outras formas delineou-se o caminho para uma primeira
possíveis de se viver na atual sociedade, que ação: a revitalização da floresta da escola como
incentiva o consumismo e o individualismo12. espaço de ensino/aprendizagem.
As rodas de conversas com as professoras e As ações que compuseram a intervenção
a direção da escola começaram em março de tiveram como foco a compreensão de que a
2017. Durante três meses, debateu-se sobre as saúde humana e a saúde do planeta são uma só.
possibilidades de ação conjunta, consideran- Alem disso, reforçamos a abordagem interdis-
do a diversidade de vivências que a presença ciplinar de saberes, bem como a sensibilização
de um movimento social poderia agregar no para a utilização de plantas medicinais, per-
espaço escolar. O ‘Dia da Solidariedade’, re- macultura e compostagem. A solidariedade, a
alizado na escola em maio daquele ano, foi cooperação no trabalho em equipe e a valoriza-
o primeiro encontro do grupo de pesquisa/ ção do consumo de alimentos saudáveis foram
intervenção com a comunidade escolar e elementos presentes em todas as atividades.
com o Conselho Local de Saúde (CLS). As No quadro 2, em ordem cronológica, estão
atividades nesse dia incluíram um mutirão apresentadas as atividades realizadas, seus
para limpeza do pátio e o registro em vídeo objetivos e os atores envolvidos. Em outra
de manifestações de pais, alunos, funcioná- publicação, uma descrição mais detalhada de
rios e professores sobre as suas expectativas e cada atividade pode ser encontrada13.

Quadro 2. Atividades desenvolvidas na escola, detalhando período de realização, participantes, objetivos e ações

Atividade Período/duração Participantes Objetivo Ações desenvolvidas


Reunião dos 2º semestre de MSP, coordena- Compartilhar o processo investiga- Escolha da escola no território da USF, encaminha-
pesquisadores 2016, durante 2 ção e trabalhado- tivo inicial e apresentar o projeto de mentos para o início das atividades e combinações
com a USF horas res da USF Santo intervenção proposto. com relação à integração do projeto com o PSE.
Santo Alfredo Alfredo e univer-
sidades
Rodas de con- 1º semestre de MSP, professores, Apresentar a concepção do projeto, Início de uma rede de conversação entre a comuni-
versas com a 2017, durante 3 direção da escola, suas bases conceituais e analisaras dade escolar, a atenção básica e os pesquisadores do
comunidade meses USF, CLS e univer- possibilidades de ações conjuntas e MSP por meio do PSE;
escolar sidades envolvimento com a comunidade. Apresentação da concepção de Bem Viver como um
campo de intercessão entre saúde e educação para a
formação e construção da cidadania.
‘Dia da solida- Maio de 2017, MSP, comunidade Conhecer e participar de uma Registro em vídeo com manifestações de pais, alu-
riedade’ durante um turno escolar e CLS atividade desenvolvida pela comu- nos, funcionários e professores;
nidade escolar. Delineamento do caminho para a primeira ação: a
revitalização da floresta da escola como espaço de
ensino/aprendizagem.
Visita a uma 1º semestre de MSP, 250 es- Despertar a sensibilidade e o inte- Diálogo sobre alimentos ultraprocessados, proble-
horta comuni- 2018, duas visitas tudantes e pro- resse dos jovenspela produção de matizando e valorizando o consumo de alimentos
tária de um turno cada fessores, CLS e alimentos agroecológicos a partir saudáveis e naturais;
universidades da aprendizagem pela experiência; Conhecimento e divulgação do cultivo das plantas
Conhecer o esforço coletivo e de alimentícias não convencionais (Pancs);
criação de um espaço público e o Produção de novas temáticas para debates em sala
seu papel na dinâmica urbana; de aula;
Oportunizar um olhar diferenciado Discussão sobre o conceito de solidariedade e valori-
sobre a natureza, os seres vivos, a zação do trabalho em equipe.
saúde e o bem viver.

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Quadro 2. (cont.)

Atividade Período/duração Participantes Objetivo Ações desenvolvidas


Escolha do 1º semestre de MSP, professores, Engajar criativamente a comunida- Exposição de 43 trabalhos artísticos feitos pelas
mascote e do 2018, durante estudantes de de escolar ao projeto; crianças e jovens;
nome do pro- dois turnos todos os anos da Estimular a participação coletiva. Eleição do desenho e do nome mais votados;
jeto escola e universi- Impressão do desenho vencedor em adesivos, que
dades foramposteriormente colados nos baldinhos de
compostagem e nas composteiras.
Revitalização da 1º semestre 2018, MSP, permacultor Oportunizar outra convivência com Limpeza e revitalização da área verde abandonada;
floresta e per- oficinas e encon- contratado, estu- a floresta abandonada; Construção de sala de aula ao ar livre e espaços de
macultura tros quinzenais dantes do 3º, 6º e Aproximar as crianças e professo- convívio dentro da floresta;
9º anose profes- ras da natureza invisibilizada. Exercícios práticos de agricultura e cultivo de plantas
sores da escola, medicinais;
universidades Limpeza do pequeno arroio presente na escola;
Construção de uma ponte de madeira entre o pátio e
a floresta, facilitando o acesso.
‘A Revolução 1º semestre de MSP, estudantes, Envolver as famílias, em um pro- Confecção de composteiras;
dos Baldi- 2018, duração familiares, cozi- cesso de aprendizagem cooperati- Atividade prática de cooperação, na qual ascrianças
nhos’20 contínua nheira emeren- vana experiência de transformar o traziamde casa os resíduos orgânicos paradispor nas
deira da escola e resíduo orgânico em adubo; composteiras;
universidades Promover a compreensão sobre a Rodas de conversas sobre o tema, na sala de aula
diferença entre lixo e resíduo orgâ- construída ao ar livre na floresta;
nico, reforçando a importância da Oportunização de aprendizagens significativas sobre:
utilização deste no solo. permacultura, compostagem, disposição final de
resíduos orgânicos, saúde ambiental, água, alimenta-
ção saudável e cidadania.
Oficinas de 1º semestre MSP, duas turmas Estimular processos criativos em Práticas do Qigong, técnica milenar chinesa que
Qigong e cria- de 2018, duas de estudantes (2º conexão com a floresta, por meio busca a força vital por meio da atenção na respiração
tividade com oficinas com 50 e 6º anos), pro- do Qigong e de oficinas com argila; e em movimentos sincronizados;
argila minutos cada fessoras, artista Promover o Bem Viver e o cuidado Caminhadas até a floresta, em silêncio, onde todos
plástica convi- com o corpo, a nutrição e o am- voltavam a atenção para a escuta e observação da
dada biente escolar. floresta;
Sentados em roda, conversas sobre percepções e
sentimentos, com coleta de material encontrado
no entorno (folhas, galhos, terra) para introduzir na
argila;
Oficinas de produção de esculturas em argila, inspi-
radas nos elementos da natureza, com elaboração de
pigmentos naturais presentes na floresta;
Exposição dos trabalhos no refeitório da escola;
Após as oficinas, os estudantes do segundo ano con-
tinuaram usando a floresta para a prática do Qigong,
guiados pela professora da escola.
Oficina de sal 2º semestre de MSP, Grupo Trabalhar questões de promoção Oficina realizada por um grupo de usuários da USF
temperado 2018, durante um Hiperdia da USF da saúde aproximando o CLS, a Santo Alfredo, que compartilharam a receita e as
turno Santo Alfredo, USF e a Escola; ervas secas para que cada aluno preparasse o seu
CLS, diretora da Abordar os fatores de risco ligados próprio tempero. As crianças levaram para casa o
escola, professora ao consumo excessivo de sal e de tempero, com a função de despertar o interesse dos
efuncionária alimentos industrializados. familiares pelas questões abordadas;
Conversação sobre os fatores de risco ligados ao
consumo excessivo de sal e de alimentos industriali-
zados, como salgadinhos;
Encontro intergeracional, que ativou afetos e promo-
veu a aproximação entre crianças e pessoas idosas.

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Quadro 2. (cont.)

Atividade Período/duração Participantes Objetivo Ações desenvolvidas


Oficinas de 1º semestre de MSP, alunas e Desenvolver um projeto educativo Desenvolvimento de oficinas sobre promoção de
saúde bucal e 2018, 6 encon- professora de em saúde bucal e alimentação saúde bucal, alimentação saudável e sustentabili-
nutrição tros Odontologia da saudável, integrando MSP, universi- dade;
PUCRS, dentista dade, USF e escola; Criação de um painel demonstrativo da quantidade
preceptora da Integrar alunos de graduação de de açúcar contido em produtos consumidos pelos
USF, professores, Odontologia no projeto. estudantes, que ficou exposto no refeitório para
estudantes e reflexão e conhecimento de professores e alunos;
funcionárias da Construção de horta vertical, feita com pallets e gar-
escola rafas pet, para o cultivo de hortaliças pelos alunos;
Oficina culinária utilizando as ervas e saladas planta-
das na horta vertical.
Oficinas de 2º semestre de MSP, professores Exercitar a experiência do coletivo, Oficinas de expressão corporal e improvisação para
teatro ‘Dom 2018, 16 encon- eestudantes do estimulando a cooperação e o o desenvolvimento da criatividade, comunicação,
Lixote’ tros durante 4 8º ano; protagonismo juvenil; desinibição e memorização;
meses artista/oficineiro Promover reflexões sobre as ques- Elaboração de um projeto teatral (criação de roteiro,
convidado tões ambientais e a sustentabilida- cenografia, figurinos etc.), que abordou a problemá-
de do planeta. tica da sociedade de consumo, do lixo, da privati-
zação da água, da sustentabilidade e do respeito à
natureza;
Estímulo aos estudantes para serem agentes multi-
plicadores da causa ambiental;
Encenação e apresentação para a comunidade es-
colar.
Palhaço Baghe- 2º semestre de MSP, artista con- Produzir alegria e despertar a Performance teatral de palhaçaria, experiência lúdica
tinho na escola 2018, durante o vidado, estudan- cultura da paz como dispositivo de que trouxe a irreverência e o encantamento através
último dia de aula tes e professores novos afetos e encontros na escola. das ‘palhaçadas’ como modo de agir alegre e resis-
da escola tente (re-existente).

MSP: Movimento pela Saúde dos Povos; USF: Unidade de Saúde da Família; CLS: Conselho Local de Saúde; PSE: Programa Saúde na Escola; PUCRS: Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.

Para pôr em prática as ações de revitalização com a floresta se ampliou, por meio de vivências
da floresta, foi agregado à equipe um colabora- diversas, como oficinas de introdução à perma-
dor geógrafo e especialista em permacultura, cultura e à agrofloresta, princípios de susten-
que trouxe consigo dez anos de experiência nas tabilidade, cultivo de Plantas Alimentícias Não
escolas públicas da cidade. O ato de resgatar a Convencionais (Pancs) e construção de com-
área verde abandonada e transformar a flores- posteiras (figuras 1 e 2). As oficinas de teatro,
ta da escola em sala de aula oportunizou, na baseadas no livro ‘Dom Lixote e o Dragão que
prática, o cultivo e o uso de plantas medicinais, cospe lixo’14, que aborda a sustentabilidade e
bem como a utilização coletiva de um espaço o respeito à natureza, reforçaram, os aspectos
contemplativo e de interação. Assim, o contato trabalhados na floresta.

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Figura 1. Plantio de temperos, ervas e verduras na escola. À direita, visualiza-se uma das composteiras construídas pelos
estudantes e pelo permacultor

Fonte: Foto de Eliane Maria Teixeira Flores.

Figura 2. Mascote do projeto eleito na votação

Fonte: Foto de Kátia Teresa Cesa.

Reflexões e aprendizados como um dispositivo de criação de vontades e de


promoção de saúde. A ideia de criação de von-
A experiência do desenvolvimento dessa in- tades a que se refere aqui está relacionada com
tervenção na escola oportunizou muitas inda- as condições que tornaram possível, a partir do
gações, em especial: o que convoca as pessoas esforço de um conjunto de instituições (escola,
a estarem juntas nos dias de hoje? Que outros movimento social, universidades e serviços de
modos de estarmos juntos temos experimen- saúde), a abertura de espaços para novas pro-
tado? Quais são os fios que nos ligam para duções e aprendizados dentro de uma escola
continuarmos vivendo em comunidade? estadual que, assim como a grande maioria no
Pelo exposto, pode-se considerar que o pro- Brasil, sofre os efeitos do sucateamento de sua
cesso participativo que se busca construir operou estrutura física, da carência e desvalorização de

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A escola como espaço de participação social e promoção da cidadania: a experiência de construção da participação em um ambiente escolar 73

professores, e do desinvestimento na qualificação parte da própria dinâmica da vida e condi-


do corpo docente. ção de existência futura15. Um contraponto
Na esteira do desmanche das políticas pú- ao modelo atual de desenvolvimento, onde
blicas, objetiva e subjetivamente, estudantes, nada – a água, as florestas, os alimentos, a vida
pais, professores, trabalhadores da saúde e – escapa dos circuitos do capital.
comunidade escolar como um todo também O ponto de partida foi despertar a sensibi-
são afetados. Na interface saúde-educação, é lidade e o interesse das crianças pela natureza
possível perceber que boa parte da demanda que as cerca. Investiu-se na experiência de levar
de cuidado que chega até o serviço de saúde toda a escola para conhecer uma das mais tra-
provém dos espaços escolares. Questões como dicionais e reconhecidas hortas comunitárias
violência, uso abusivo de drogas, epidemia de de Porto Alegre, resgatando a sabedoria an-
obesidade infantil, entre outras, apontam para a cestral presente na concepção de Bem Viver.
importância da atuação conjunta da saúde e da Essa atividade possibilitou uma abordagem
educação no enfrentamento desses problemas. interdisciplinar de saberes, oportunizando um
Tendo ciência dessa dinâmica, a intervenção olhar diferenciado sobre a natureza, os seres
procurou impulsionar processos de invenção, vivos e a saúde, e que, na sequência, permitiu aos
criação e ousadia na relação com o espaço professores seguirem trabalhando em sala de
comum da escola, acionando um processo par- aula os conceitos trazidos pela vivência, como
ticipativo de construção, informação, aprendi- agroecologia, alimentação saudável, ervas medi-
zagem e crescimento. A partir da experiência cinais e outros temas relacionados ao Bem Viver.
envolvendo saúde e educação no espaço de uma A etapa seguinte foi planejar coletivamente a
escola pública, o pertencimento compartilhado apropriação e o pertencimento da comunidade
em torno de um ‘com(um)’ foi tramando outros escolar à proposta que surgia. Assim, a atividade
sentidos para o que foi vivenciado em conjunto. de criação de um nome e de um mascote para
Foi uma grande surpresa perceber, na pri- o projeto contou com 43 desenhos inscritos e
meira visita, que na escola escolhida havia produziu uma dinâmica criativa e participativa,
uma área verde com natureza abundante e onde todos os estudantes da escola exercita-
viva dentro dos seus muros, mas que, por estar ram o seu voto e se envolveram ativamente. O
abandonada, causava desprezo e até medo. Era nome escolhido pelos estudantes para o projeto
perigoso, quiçá proibido, entrar na floresta. foi ‘Nosso mundo mais verde’, e o desenho do
Porém, o que se viu, no decorrer do trabalho, mascote foi um baldinho com instrumentos de
foi um santuário com enorme potencial de jardinagem ( figura 2).
abrigar, em toda a sua diversidade, muitos O contato com a floresta se ampliou por
ensinamentos, diversão e resgate da cultura meio de oficinas de introdução à permacultura
ancestral. E assim se abriu a possibilidade e à agrofloresta, de argila ( figura 3), de cultivo
de uma agrofloresta, uma sala de aula verde, de Pancs, de compostagem e construção de
enfim, um espaço mágico de aprendizagem e composteiras, de Qigong, entre outras. A re-
vivências. A partir daí, indagou-se: quem sabe descoberta de um microambiente tão rico no
um trabalho cooperativo em torno da natureza espaço escolar trouxe entusiasmo aos esco-
poderia ser dispositivo de aprendizagem para lares, professores e pesquisadores. Muitos
a participação social? alunos, pela primeira vez, puderam mexer
Ao refletir sobre o eixo orientador que na terra. A alegria de plantar, podar e limpar
embasaria as atividades, concluiu-se que o a área era demonstrada pela disposição em
conceito de Buen Vivir permitiria exatamente participar das atividades desenvolvidas dentro
isto: um novo paradigma civilizatório, onde da floresta. Bastava um convite para surgirem
a natureza não seja considerada como algo muitos voluntários para colaborar em alguma
externo ou como uma ameaça, senão como atividade, entre as tantas que foram realizadas.

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Figura 3. Crianças trabalhando com argila e elementos da natureza

Fonte: Foto de Eliane Maria Teixeira Flores.

As oficinas abriram espaço para o exercício entre os jovens, fundamentais em uma comu-
da participação e da cidadania, que, de forma nidade escolar saudável.
geral, ainda são pouco experimentadas no am- Em sentido mais amplo, o conceito de ju-
biente escolar. É, no entanto, nesse espaço, ventude pode ser compreendido como um
construído em conjunto, que o senso de per- momento singular do ciclo de vida, simul-
tencimento coletivo dos jovens pôde despertar, taneamente às condições sociais e culturais
abrindo caminho para a alegria, a criatividade específicas nas quais o sujeito se encontra17.
e o protagonismo na participação social. Foram Muito se tem comentado a respeito do baixo
oportunizadas experiências inéditas, desper- engajamento dos jovens nas questões sociais
tando nos sujeitos envolvidos novos sentidos e políticas que os afetam. Entre os fatores que
e nutrindo a vontade de estarem juntos. podem estar contribuindo para tal situação,
A participação à qual se faz referência podemos considerar a inadequação das prá-
ao analisar esse processo vai muito além de ticas e dos espaços tradicionais e a sua in-
simplesmente fazer parte de uma atividade capacidade de dialogar com as necessidades
coletiva. Os jovens, ao vivenciarem um pro- reais desse grupo específico, o que convoca a
cesso colaborativo, participam constantemente considerar outras e novas formas de comuni-
de situações em que todos são estimulados a cação, organização e mobilização12. Enquanto
sugerir, opinar, contribuir. Ao terem parte ativa sujeitos de direito,
e liberdade nas atividades realizadas na escola,
percebem que sua participação é de fundamen- Adolescentes e jovens têm o desejo de ser
tal importância, mas não menos importante escutados e a necessidade de serem reconhe-
que a participação do outro. Aprendem que cidos em suas capacidades. [...] eles precisam
quanto maior for o empenho coletivo, tanto ser vistos de modo concreto como cidadãos,
melhor e mais gratificante será o processo capazes de posicionamento nos diversos ní-
como um todo16. A realização da atividade do veis do cotidiano em que estão imersos. Um
teatro, por exemplo, além de promover a am- grande número de pessoas jovens tem ide-
pliação cultural e o aperfeiçoamento pessoal, al de transformar a sociedade em algo mais
estimulou a troca de experiências, a busca de humano e justo, mas não tem ideia de como
soluções para situações-problema, a celebra- concretizá-la, nem recebe nenhum incentivo
ção da diversidade e o espírito colaborativo neste sentido18(52).

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Nesse sentido, Boghossian e Minayo17 de todo o processo geraram aprendizados, a


retomam o conceito forjado pelo educador partir da identificação de problemas, questio-
e ativista na área da infância e adolescência, namentos, tensões e contradições. As filma-
Antonio Carlos G. da Costa. Dizem as autoras: gens e os registros das conversas em forma de
diário, as oficinas, a construção de uma ence-
Em sua concepção, o protagonismo pressu- nação teatral, a elaboração (ainda inacabada)
põe a criação de espaços e mecanismos de de um vídeo, são materiais ricos que podem
escuta e participação dos jovens em situa- ser utilizados em outras experiências. Nesse
ções reais na escola, na comunidade e na vida sentido, existe tanto a perspectiva de seguir
social, tendo em vista tanto a transformação atuando na mesma escola, como de desenvol-
social como sua formação integral17(416). ver um novo trabalho em outra escola pública.
Os participantes, incluindo estudantes,
A perspectiva do protagonismo ou da par- professoras, diretora da escola, integrantes
ticipação dos jovens consiste, portanto, em do MSP, profissionais da USF, conselheiros de
promover junto a eles o desenvolvimento de saúde, universitários e a comunidade em geral,
autonomia, autoestima, assertividade e proje- cresceram e se fortaleceram com o processo,
tos de vida. Além disso, a participação juvenil onde as contribuições de cada um se articula-
se configura como uma estratégia potente de ram e se somaram para produzir algo relevante
promoção da saúde e prevenção da violência, para o conjunto das pessoas. Isso caracteriza a
do abuso de drogas e das infecções sexualmen- ação coletiva e participativa. Como exemplo, a
te transmissíveis/Aids. construção das composteiras e o uso dos bal-
Ainda, com base nas características da siste- dinhos envolveram, além dos estudantes, suas
matização de experiências (quadro 1)9, pode-se famílias, funcionários da escola, entre outras
afirmar que o trabalho realizado oportunizou pessoas, gerando conhecimento e prática para
uma melhor compreensão da prática, para a além do que havia sido inicialmente planejado.
partir dela gerar abertura para novas experiên- Acreditamos em exemplos como esse, onde a
cias Também oportunizou uma reconstrução participação comunitária opera como agente
histórica de todas as atividades realizadas, de transformação, onde a busca de um modo
junto com um exercício reflexivo constante de vida mais solidário e cooperativo pode ser
sobre a forma como os processos se deram, o disparador da mudança. Buscando mobilizar
razões e sentidos existentes, consequências o protagonismo juvenil na construção e no
e causas, contradições, coerências e incoe- fomento à participação social na saúde é que
rências, continuidades e rupturas, vínculos e se constrói a intervenção, inspiradora para o
ausências. Ao ordenar e recuperar o aconte- enfoque educativo dos movimentos sociais.
cido em nossa experiência particular, somos Além de estar presente nas atividades propos-
capazes de interpretá-lo e compreendê-lo em tas, o envolvimento dos integrantes do MSP
um contexto histórico e social que nos abarca, trouxe entusiasmo para praticar novas formas
mergulhando na conjuntura política atual e na de aprendizagem, constituindo-se em efeito
situação da participação social. Situação essa pedagógico multiplicador. Nesse sentido, vem
que se caracteriza como ameaçadora para a à tona a experiência da extensão universitária,
democracia e a participação das pessoas nas outro potente elemento dessa experiência:
esferas de decisão. Pode-se citar como exemplo
a publicação pelo Governo Federal, em abril A extensão universitária é o espaço mais li-
de 2019, do Decreto nº 9.759, que extingue e vre para a gestação de novas práticas peda-
limita a atuação de conselhos que preveem gógicas contra hegemônicas. É o lugar para o
participação da sociedade civil19. movimento social dentro da universidade. O
As reflexões críticas oportunizadas ao longo novo não é gerado apenas a partir da reflexão

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de grandes intelectuais. Pelo contrário, é fruto atividades coletivas e comunitárias, incluindo


principalmente de movimentos sociais3(102). o PSE. Nesta experiência específica, houve re-
ceptividade e entusiasmo da equipe de saúde,
Assim, fica evidente a riqueza de agregar mas esta não teve condições concretas de dar
diferentes formas de produzir conhecimento sequência ao trabalho planejado.
a partir das vivências de diferentes sujeitos, Destaca-se, também, que nem todas as
que, na sua diversidade, convergiram neste pessoas envolvidas participaram da sua sis-
projeto, em construção de saberes no e para tematização, o que representa um desafio
o coletivo. A escola e sua comunidade, a uni- imenso no cenário em que se insere esta in-
versidade, a unidade de saúde, o conselho de tervenção. Mas, justamente, também é um
saúde, o movimento social, todos esses grupos sintoma da falta de vontades e da desagregação
e espaços podem aproveitar o que foi por eles encontradas ao chegar à escola, e que também
produzido. A riqueza do trabalho em rede precisa de tempo para se transformar no al-
também torna possível o redimensionamento mejado protagonismo coletivo. Na escola em
do agir local no pensamento e na articulação questão, no início do trabalho, os exemplos
globais. Essa ponte entre local e global encon- de participação se reduziam a ações isoladas
tra, na parceria com os movimentos sociais e de pais/mães de estudantes, usualmente com
com as universidades, uma potência enorme. o objetivo de superar carências de infraes-
Conforme Gohn4, as aprendizagens com trutura e deficiências econômicas da escola.
os movimentos sociais podem ser de várias No entanto, a concepção proposta na relação
ordens: prática (como se organizar, como escola-comunidade foi ampliando o espec-
participar, como se unir, que eixos escolher), tro dos sujeitos em ação, pois pressupunha o
política (conhecer quais são seus direitos), envolvimento de pais, professores, gestores,
cultural (saber quais elementos constroem funcionários, representantes de associações
a identidade do grupo), reflexiva (sobre suas de bairro e movimentos sociais. Porém, esse
práticas, geradora de saberes) e ética (a partir envolvimento ainda se mostrou incipiente e
da vivência ou observação do outro, centrada muito dependente da presença do MSP e das
em valores como bem comum, solidariedade e universidades. Também o contexto da escola,
compartilhamento), entre outras. Ao vivenciar caracterizado por longos períodos inativos –
a experiência aqui relatada, pôde-se operar férias, greves – e mudança de direção, além
diretamente com essas aprendizagens. do já referido sucateamento, não favoreceu a
No entanto, foram muitas as dificuldades implicação dos sujeitos de forma mais perene.
enfrentadas. No desenvolvimento das ativi- Com relação à participação social, nesta ex-
dades, na prática, o MSP e as universidades periência, a conexão entre a escola e os espaços
acabaram assumindo um papel muito central, institucionalizados de participação social não
uma vez que os demais grupos não foram tão aconteceu, o que levou à reflexão sobre outras
proativos, ficando a execução das ações na formas de participação advindas do prota-
dependência da disponibilidade dos primei- gonismo dos sujeitos envolvidos nas ações
ros. O desejo era de que a USF e a escola se coletivas do cotidiano, e da experimentação de
tornassem mais autônomas para dar anda- formas não institucionalizadas de participação
mento ao trabalho, mas isso não aconteceu. baseadas no exercício constante da cidadania e
Foi notável a sobrecarga dos profissionais da nas ações solidárias. Nesse sentido, a inserção
USF, que não conseguiam sair da unidade para do movimento social na escola abriu espaço
participar das atividades na escola, devido às para a criatividade, apresentou novos ares e
demandas assistenciais dentro do serviço. Isso possibilidades, ampliando a compreensão dos
reflete uma realidade difícil das equipes das conceitos de saúde e participação.
USFs, que compromete o seu envolvimento em

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Considerações finais atuação política dos jovens independentemente


dos espaços que venham a ocupar na sociedade.
O conjunto de ações realizado no âmbito da pes-
quisa do MSP ‘Engajamento da Sociedade Civil
para a Saúde para Todos’ em uma escola esta- Colaboradoras
dual em Porto Alegre demonstrou que a escola
pode ser um lugar significativo para o exercício Giugliani C (0000-0002-2652-5214)* con-
e o estímulo à participação social, por meio tribuiu para a concepção do projeto, partici-
de atividades coletivas que proporcionaram pou das reuniões de andamento do projeto,
vivências solidárias e de exercício da cidadania. guiou e contribuiu para a escrita do artigo
Ainda, com base nesta vivência, observou-se e aprovou sua versão final. Cesa KT (0000-
que a participação social é um modo de agir que 0003-1417-6026)* contribuiu para a concep-
se aprende/experimenta em diversos âmbitos ção do projeto, coordenou a realização das
da vida e que requer tempo para ser cultivado. atividades na escola, participou das reuniões
O desafio de fomentar processos de cidadania, de andamento do projeto, guiou e contribuiu
participação e democracia capazes de formar para a escrita do artigo e aprovou sua versão
cidadãos atuantes não se faz da noite para o dia final. Flores EMTL (0000-0002-9142-8058)*
e envolve, tal como no trabalho com a natureza, contribuiu para a concepção do projeto, coor-
um tempo de plantar e de colher, que exige denou a realização das atividades na escola,
dedicação, esforço e cuidado coletivo. participou das reuniões de andamento do
Por fim, levanta-se a ideia de que a parti- projeto, guiou e contribuiu para a escrita do
cipação social se insere no conceito de saúde artigo e aprovou sua versão final. Mello VR
conectado com as concepções do Bem Viver. (0000-0003-4801-624X)* contribuiu para a
Assim, é possível entender a participação a concepção do projeto, participou das reuniões
partir de ações coletivas no cotidiano, dando de andamento do projeto, guiou e contribuiu
maior ênfase ao exercício cidadão permanente, para a escrita do artigo e aprovou sua versão
desvinculando-a unicamente das instâncias de final. Robinson PG (0000-0002-5696-6010)*
controle social, espaço ainda muito marcado contribuiu para a concepção do projeto, parti-
pelas formas institucionalizadas de atuar. cipou das reuniões de andamento do projeto,
Acredita-se que, por meio de ações no micro- guiou e contribuiu para a escrita do artigo e
espaço da escola, é possível fazer germinar a aprovou sua versão final. s

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Recebido em 03/08/2019
Caderno do gestor do PSE. Brasília, DF: MS; ME; 2015. Aprovado em 29/11/2019
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
12. Giugliani C, Rocha CMF, Antunes D, et al. Ação Co-

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