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RESUMO: Jerusalém tem sua titularidade demandada tanto por palestinos como por
israelenses, estando sob controle dos últimos, em sua totalidade, desde 1967. Partindo
das normas convencionais e costumeiras vigentes à época das guerras de 1948 e 1967,
bem como contemporaneamente, esse trabalho analisa a quem pertence a soberania
sobre a cidade histórica. Em sequência, trata da ilicitude da conquista territorial. Por
fim, com o acréscimo jurisprudencial de cortes internacionais e da Definição de
Agressão pela Assembleia Geral das Nações Unidas, será conferido se a unificação de
Jerusalém, a construção de assentamentos e do Muro da Cisjordânia podem configurar a
prática de atos de agressão do Estado de Israel contra o Estado da Palestina.
ABSTRACT: Jerusalem has had its ownership demanded by both Palestinians and
Israelis, but has been under control by the latter, in its entirety, since 1967. From the
perspective of conventional and customary rules in force at the time of the wars of 1948
and 1967 until the present moment, this paper analyzes to whom belongs the
sovereignty of the historical city. Then, it deals with the unlawfulness of territorial
conquest. Lastly, with the addition of the case-law from international courts and of the
Definition of Aggression by the United Nations General Assembly, it will be conferred
if the unification of Jerusalem, the construction of settlements and of the West Bank
Wall may classify the practice as an act of aggression from the State of Israel against the
State of Palestine.
* Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi
membro do corpo editorial da Revista de Direito dos Monitores da UFF (RDM-UFF).
INTRODUÇÃO
A cidade de Jerusalém é de enorme importância para três das maiores religiões
monoteístas do planeta. Para os judeus, a cidade era o centro dos antigos reinos de Davi
e Salomão, também abrigando local mais sagrado para a religião, o antigo Templo
judaico, até este ser destruído pelos romanos no ano 70 da Era Comum. Para os cristãos,
Jerusalém foi a cidade onde Jesus foi crucificado e onde posteriormente ressuscitou. Já
para os seguidores da fé islâmica, foi o último local onde Maomé esteve antes de
ascender ao céu. Diante de tamanha importância para tantos povos, a cidade foi objeto
de desejo de inúmeras nações em guerra.
Nos tempos contemporâneos, são dois os principais atores a reivindicar
propriedade sobre a cidade: israelenses e palestinos. Em meio aos argumentos jurídicos
ou políticos levantados por cada estado para defender sua soberania e, por outro lado, a
ilegitimidade do outro, para a sociedade internacional há algumas certezas. Em matéria
de jus in bello, Israel cometeu uma série de ilegalidades contra os palestinos no que se
refere aos assentamentos, ao Muro da Cisjordânia e à anexação de Jerusalém Oriental.
Tal posicionamento já foi afirmado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pelo
Conselho de Segurança, bem como pela Corte Internacional de Justiça.
No entanto, os mesmos atos não foram analisados à luz do jus ad bellum. Aqui,
no caso, não se está a tratar do início de uma guerra agressiva para buscar solucionar
uma controvérsia, dando início a um conflito armado. O foco, nesse caso, é a Definição
de Agressão e seus atos, conforme dispostos na Resolução 3314 da Assembleia Geral. O
objetivo desse trabalho será de conferir se os mesmos atos já condenados perante as
normas de direito internacional humanitário também configuram atos de agressão. Por
ocasião dos cem anos da Declaração de Balfour e cinquenta anos da vitória israelense na
Guerra dos Seis Dias, a temática ganha importância simbólica.
Para tanto, parte-se dos principais acontecimentos do último século em
Jerusalém para, então, conferir os detalhes envolvendo a soberania sobre a cidade. Em
seguida, empregando-se a técnica de pesquisa histórico-jurídica, se conferirá a evolução
da regulação jurídica da conquista territorial e da ilicitude da agressão para, ao fim, se
proceder especificamente com a investigação se os atos mencionados empreendidos
pelo Estado de Israel podem configurar atos de agressão contra o Estado da Palestina.
insatisfação tanto do Yishuv3 – que via no país europeu um entrave à maciça imigração
judaica para a região – quanto da população árabe palestina, que sentia sua própria
comunidade ameaçada pelo fluxo considerável de estrangeiros nas terras que habitaram
por séculos (HOURANI, op. cit., p. 435-436). Nos momentos ápices de tensão,
desencadeou-se a violência aberta, como demonstrado pela Revolta Árabe de 1936-
1939 e a Guerra Civil de 1947-1948, a qual culminou na independência de Israel e na
Nakba4 para os palestinos.
Nas tentativas de solução para o conflito, Jerusalém recebeu especial atenção.
Na segunda metade dos anos 30 do século passado, a britânica Comissão Peel sugeriu
que o território do Mandato deveria ser dividido entre um estado árabe palestino e outro
judeu, ao passo que Jerusalém permaneceria permanentemente sob administração
britânica, como um corpus separatum. Com o insucesso da iniciativa, o destino da
Palestina como um todo novamente foi debatido, dessa vez pela recém-criada
Assembleia Geral das Nações Unidas, que em 29 de novembro de 1947 aprovou a
Resolução 1815, novamente separando a região em dois estados – sendo dessa vez o
estado judeu consideravelmente maior do que aquele proposto pela Comissão Peel – e
designou Jerusalém novamente como corpus separatum, mas agora englobando também
a cidade de Belém e sua administração ficando a cargo da própria ONU
(ARMSTRONG, op. cit., p. 463-466).
A Guerra Civil que começou ainda em 1947, todavia, garantiu que a partilha
nos moldes aprovados jamais fosse implementada. Em realidade, os principais atores do
conflito entraram em acordo para desrespeitá-la. Antes ainda do início do conflito
interno, Golda Meir, representando os interesses da Yishuv, se encontrou com o então
Rei da Transjordânia, Abdullah, para acertarem a neutralidade do país árabe em troca da
anexação, por ele, de grande parte do território alocado ao estado palestino pela
resolução6 (SHLAIM, 2007, p. 83-85). Apesar de acabarem por se enfrentarem
ocasionalmente, os objetivos do acordo em larga escala foram cumpridos, e os
3 Nome em hebraico dado à comunidade formada pelos judeus que imigraram à região antes da criação
do Estado de Israel.
4 Significando “catástrofe” em árabe.
5 O texto da resolução, em inglês, pode ser consultado na íntegra em:
<https://undocs.org/A/RES/181(II)>. Acesso em 7 nov. 2017.
6 Abdullah detinha a ambição de tornar-se rei de uma “Grande Síria”, tendo sido esse, inclusive, fator
de maior peso para que países como Síria e Líbano, inequivocamente ameaçados por tal perspectiva,
de intervirem no conflito, e não em razão de um sentimento de solidariedade árabe. Cf. SHLAIM,
2007, p. 81-82.
transjordanos não prestaram auxílio aos outros países árabes que combatiam Israel 7. Ao
fim, em abril de 1949, Israel e o renomeado Reino Hachemita da Jordânia assinaram o
Acordo de Armistício, ficando cada país com o controle sobre metade de Jerusalém. A
parte ocidental com israelenses e a parte oriental – incluindo a totalidade da Cidade
Velha – com jordanianos8.
Todavia, a Terra de Israel era vista como incompleta. Além da Cidade Velha de
Jerusalém, outros locais sagrados para o judaísmo – como Hebron – estavam fora do
controle israelense, e o sonho de uni-las permaneceu. Não por acaso, a Declaração de
Independência em 1948 não mencionava as fronteiras do novo país. Para muitos
israelenses, as linhas divisórias acertadas pelos Armistícios de 1949 de seu país
constituíam, em realidade, “zonas limítrofes flexíveis” (SAND, 2014, p. 290-291). Este
irredentismo alcançou seu ápice após a conclusão da Guerra dos Seis Dias em 1967.
Mesmo após o lançamento por Israel da Operação Moked e a destruição da
força aérea egípcia – que garantiu notável vantagem militar ao governo de Tel Aviv – a
Jordânia optou por intervir no conflito. Derrotado, o país árabe perdeu o controle sobre
todos os territórios situados a oeste do Rio Jordão (SHINDLER, 2013, p. 124-125).
Israel passou a ocupar as Colinas de Golã, a Península do Sinai9, bem como toda a
Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. No dia 28 de junho de 1967, poucas semanas
após o fim da guerra, o Knesset10 determinou que a “lei, jurisdição e administração”
israelense se estendia a Jerusalém Oriental, proclamando a unificação da cidade
(ARMSTRONG, op. cit., p. 486). Esse status foi reforçado em 1980, com a aprovação
da Lei Básica de Jerusalém, proclamando a cidade “completa e unificada” como capital
do Estado de Israel11.
Uma nova geração de palestinos, formados em universidades dos países árabes
e empenhados em buscar a autodeterminação de seu povo, começou a surgir já nos anos
seguintes à Guerra de 1948, criando várias organizações a partir do fim da década de 50
7 No decorrer da guerra, o monarca tentou, inclusive, convencer seus pares árabes de que manter o
conflito contra Israel seria desastroso e que era preferível reconhecer a incorporação do restante da
Palestina árabe ao seu país. Sua proposta foi rechaçada. Cf. Ibid., p. 94-96.
8 O texto do Acordo de Armistício, em inglês, pode ser conferido em:
<http://mfa.gov.il/MFA/ForeignPolicy/MFADocuments/Yearbook1/Pages/Israel-
Jordan%20Armistice%20Agreement.aspx>. Acesso em 9 nov. 2017.
9 Por meio dos Acordos de Camp David de 1979, Israel devolveu gradualmente a península para o
Egito, e ambos os países estabeleceram relações diplomáticas. Cf. SHINDLER, 2013, p. 161.
10 Nome do parlamento israelense.
11 Israel não possui uma constituição, mas sim um conjunto de Leis Básicas disciplinando as matérias
de maior importância para o Estado. Acesso ao texto da Lei Básica, em inglês, é possível em:
<http://knesset.gov.il/laws/special/eng/BasicLawJerusalem.pdf>. Acesso em 9 nov. 2017.
dos povos. Da mesma feita, a Liga das Nações não poderia ser compreendida como um
“mandante” na concepção de direito interno. Como a Corte esclareceu, os beneficiários
do mandato eram seus habitantes14. Não há interpretação a ser depreendida que permita
afirmar ter-se passado a soberania sobre Jerusalém ao Reino Unido e tampouco à Liga.
Qual a resposta, então, para tal indagação? Como menciona Michael Dumper,
uma outra possibilidade seria a de ter surgido um “vácuo de soberania” sobre a região
(2011, p. 118). A Palestina teria se tornado uma espécie de res derelicta internacional.
Essa é, justamente, a posição oficial israelense. O país afirma que, visto que desde o
Tratado de Lausanne não há um soberano reconhecido sobre os territórios palestinos,
não podem eles ser considerados ocupados, mas sim “em disputa”15. No entanto, essa
posição é defendida em relação ao restante da Cisjordânia, mas não em relação a
Jerusalém Oriental, considerada pelo país como parte integrante de seu território, bem
como sua capital.
A tese de vácuo de soberania apresenta alguns problemas insuperáveis. Por
mais que contendo inúmeras peculiaridades de ordem não-jurídica, ao Mandato para a
Palestina se aplicava a mesma principiologia desse sistema de tutelagem aplicável aos
demais. O artigo 22 do Pacto da Liga das Nações foi o responsável por trazer os
objetivos do mandato, afirmando que:
Àquelas colônias e territórios que, em consequência da última guerra,
deixaram de estar sob a soberania dos Estados que anteriormente os
governaram, e que são habitados por povos ainda incapazes de sustentar-se
por si mesmos, nas estrênuas condições do mundo moderno, deverá ser
aplicado o princípio de que o bem-estar e o desenvolvimento de tais povos
formam um sagrado encargo de civilização, e que garantias para o
cumprimento deste encargo deverão fazer parte deste Covenant.
14 International status of South-West Africa, Advisory Opinion: I.C.J. Reports 1950, p. 131-132.
15 Tal posicionamento pode ser visto em:
<http://mfa.gov.il/MFA/ForeignPolicy/Issues/Pages/FAQ_Peace_process_with_Palestinians_Dec_20
09.aspx>. Acesso em 10 nov. 2017.
16 Texto em português retirado do apêndice de CATTAN, 1973, p. 181. O texto em inglês pode ser
conferido em: <http://avalon.law.yale.edu/20th_century/leagcov.asp>. Acesso em 7 nov. 2017.
17 The Mavrommatis Palestine Concessions (Greece v. United Kingdom), Objection to the jurisdiction
of the Court made by His Britannic Majesty’s Government, Judgement of 30 August 1924, p. 12.
18 Como as cidades de Acre, Lida e Beersheva, originalmente alocadas ao estado árabe.
19 Mais comum é a negação da legitimidade israelense como um todo. Henry Cattan, por exemplo, se
dedica a explicar por que – segundo o autor – não há soberania israelense seja sobre os territórios
tomados em excesso ou mesmo aqueles alocados ao país pela Resolução 181. Cf. op. cit., p. 79 e ss.
20 O texto da Resolução 242 está disponível em:
<http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/242(1967)>. Acesso em 13 nov.
2017.
Este princípio foi, inclusive, reforçado pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas especificamente quando da anexação de Jerusalém Oriental por Israel por
inúmeras vezes após 1967. A supracitada Resolução 242 é enfática em logo em sua
segunda cláusula preambular ao afirmar estar “[e]nfatizando a inadmissibilidade da
aquisição de território pela guerra, e a necessidade de trabalhar por uma paz justa e
duradoura em que todo Estado da região possa viver em paz e segurança”.
34 Como exemplos de Estados que foram totalmente anexados e tiveram a restauração de sua
soberania plena posteriormente, Henry Cattan cita a Etiópia e a Albânia, anexadas pela Itália em 1936
e 1939, respectivamente. Cf. op. cit., p. 61.
35 Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of
America), Merits, Judgment: I.C.J. Reports 1986, p. 121.
36 Este trecho e o anterior foram traduzidos da versão original em inglês da resolução, disponível em:
<http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/3314(XXIX)>. Acesso em 14 nov.
2017.
40 Traduzido do inglês. Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the
Congo v. Uganda), Separate Opinion of Judge Elaraby: I.C.J. Reports 2005, p. 330.
41 Certain expenses of the United Nations (Article 17, paragraph 2, of the Charter), Advisory Opinion
of 20 July 1962: I.C.J. Reports 1962, p. 163.
42 No original, em inglês: “a juridical fact must be appreciated in the light of the law contemporary with
it, and not of the law in force at the time when a dispute in regard to it arises or falls to be settled.”
The Island of Palmas Case (or Miangas) (United States of America v. The Netherlands). Award of the
Tribunal. Arbitrator M. Huber. 4 abr. 1928.
É certo que, apesar de a soberania sobre Jerusalém ter sido passada ao povo
palestino desde o fim da Primeira Guerra, o estado palestino somente nasceu em 1988.
A Organização para a Libertação da Palestina (doravante, OLP), nascera em 1964
(KIMMERLING & MIGDAL, op. cit., p. 248) e somente tornou-se uma entidade
observadora nas Nações Unidas na década seguinte43, quando intensificou-se o debate
sobre a existência de personalidade internacional de movimentos de libertação nacional
(SHAW, op. cit., p. 245-246).
Por uma leitura contemporânea da Definição de Agressão trazida pela
Resolução 3314 da Assembleia Geral, não aparenta ser possível a prática de um ato de
agressão contra um movimento de libertação nacional, tendo em vista de que tal forma
intraestatal de recurso à força não está inserido na lógica do jus ad bellum, mas somente
do jus in bello e as normas que regulam conflitos armados, se um for configurado.
Sendo assim hodiernamente, também o era em 1967, quando sequer havia uma
codificação mais autorizativa do que configuravam atos de agressão – a Definição
somente seria aprovada sete anos após o conflito – e que o estudo da responsabilidade
internacional do estado ainda se pautava na imprescindibilidade do dano causado por
um estado a outro, como desenvolvido por Anzilotti no início do século XX
(SLOBODA, 2017, p. 447-448).
Dessa feita, é certo que a “Palestina” como estado – que ainda não existia – não
poderia sofrer um ato de agressão em 1967. Isso não significa que a anexação de
Jerusalém Oriental não tenha sido ilícita, conforme foi definido pelo Conselho de
Segurança. Mesmo considerando a ressalva acima feita sobre a análise da
responsabilidade a partir do direito vigente àquele tempo, a conquista como meio legal
de aquisição territorial já havia sido banida havia décadas, como visto anteriormente.
No entanto, a inexistência, à época, da Palestina como estado impede que o país, quando
da unificação da cidade, tivesse sofrido um ato de agressão.
43 Isso se deu por meio da Resolução 3237 da Assembleia Geral, cujo texto está disponível em:
<http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/3237(XXIX)>. Acesso em 17 nov.
2017.
Palestina foi proclamada baseada nas previsões do Pacto da Liga das Nações e no
Tratado de Lausanne, e ainda anunciando Jerusalém Oriental como a capital do país.
Pouco após, a Assembleia Geral aprovou a Resolução 43/177, afirmando a “necessidade
de permitir que o povo palestino exerça sua soberania sobre o território ocupado desde
1967” e determinou que a designação oficial da Organização de Libertação da Palestina
nas Nações Unidas passaria a ser “Palestina44”. A situação fática de Jerusalém, todavia,
era a mesma desde 1967 à luz do direito interno israelense, e ainda fora “aprimorada”
pela Lei Básica de 1980. Era possível falar que agora havia um estado agredido?
Inicialmente, é necessário avaliar a natureza do ato ilícito perpetrado por Israel.
A anexação tratou-se de um ato instantâneo de efeitos contínuos ou um ato contínuo? A
resposta para essa pergunta é de suma importância, visto que, caso a primeira alternativa
esteja correta, por mais ilícito que o ato seja, uma vez consumado não há como revertê-
lo. Ambas as formas de violação do direito internacional são trazidas no artigo 14 do
Projeto de Artigos sobre Responsabilidade Estatal da Comissão de Direito Internacional,
cujos dois primeiros parágrafos dispõem:
1. A violação de uma obrigação internacional por um ato de um estado não
tendo uma natureza contínua ocorre no momento quando o ato é praticado,
ainda que seus efeitos continuem.
2. A violação de uma obrigação internacional por um ato de um estado tendo
uma natureza contínua estende sobre o período durante o qual o ato continue
e permaneça em desconformidade com a obrigação internacional.
processo legal internamente, ao passo que atos contínuos são a ocupação ilegal do
território de outro estado, a detenção de reféns ou a manutenção de uma dominação
colonial (Ibid., loc. cit.).
Crawford afirma que a percepção de um ato como contínuo ou consumado
dependerá da obrigação primária e das circunstâncias do caso concreto (Ibid., loc. cit.).
Um caso analisado pela Corte Europeia de Direitos Humanos também tratou, em última
análise, dos efeitos de uma alteração de controle territorial com base no uso da força
estatal, no caso a invasão do Chipre pela Turquia e posterior fundação da República
Turca do Chipre do Norte. No Caso Loizidou v. Turquia, a requerente afirmava que o
país demandado estava a violar a Convenção Europeia de Direitos Humanos por não
permiti-la acesso às suas propriedades localizadas na parte da ilha sob controle do
hipotético novo país do Chipre do Norte. O estado turco, por sua vez, argumentou que
as terras em questão haviam sido expropriadas conforme as normas trazidas pela
constituição do Chipre do Norte. Em resposta, a Corte trouxe a reação do Conselho de
Segurança à proclamação de independência, a qual seria “legalmente inválida”,
demandando ainda o fim da ocupação do território cipriota. Assim, concluiu que diante
da ausência de validade jurídica da lei fundamental citada, a expropriação se
caracterizava como um ato ilícito contínuo48.
Como encaixar um ato de agressão nessa lógica? Como visto anteriormente, a
proibição de praticar um desses atos constitui uma norma de jus cogens e obrigação
erga omnes. A lógica do caso acima também se aplica ao caso palestino, e a linguagem
usada pelo Conselho de Segurança inclusive é muito similar àquela usada quando da
condenação da anexação de Jerusalém Oriental. O texto da Resolução 25249, além de
declarar a incorporação inválida, conclamou ao estado judeu que rescindisse todas as
medidas tomadas e que se abstivesse de novas ações que visassem alterar o status da
cidade. Como Jerusalém Oriental permanece anexada desde o fim da Guerra dos Seis
Dias, o ato ilícito se mantém continuamente desde então. Nesse sentido, afirma Yoram
Dinstein que “[a] execução de atos de agressão é um crime contínuo” (op. cit., p. 144).
Dessa feita, diante da conclusão de que um ato de agressão possui natureza
contínua, o fato do soberano legítimo sobre dado território nascer após um ato ilegal de
anexação do mesmo, além de não interferir em sua licitude, também não o desqualifica
48 Case of Loizidou v. Turkey. Application no. 15318/89. Judgment. Strasbourg. 18 december 1996.
49 Aprovada após a unificação administrativa de Jerusalém, em maio de 1968, e disponível em:
<https://undocs.org/S/RES/252(1968)>. Acesso em 28 nov. 2017.
como vítima do referido ato. Assim sendo, não há óbice para que o Estado da Palestina
seja vítima de atos de agressão iniciados em 1967, visto que os mesmos se mantém até
os dias atuais.
Após essa análise prévia necessária, agora serão analisados os principais atos
executados por Israel que, de alguma forma, afetaram Jerusalém Oriental, e se os
mesmos configuram atos de agressão à luz da Resolução 3314 da Assembleia Geral. As
ações consideradas serão a unificação da porção oriental com a porção ocidental de
Jerusalém, bem como a construção de assentamentos e do Muro da Cisjordânia que, por
mais que se estendam ao restante do território palestino, seus reflexos são bastante
perceptíveis na Cidade Santa, uma área não somente densamente povoada como
habitada por muitos árabes palestinos, os mais afetados por tais ações.
nulo um tratado cuja conclusão foi obtida pela ameaça ou o emprego da força em
violação dos princípios de Direito Internacional incorporados na Carta das Nações
Unidas50”. Aquisição territorial pelo agressor sempre será ilícita.
Pouco após o conflito e a imediata condenação pelo Conselho de Segurança da
anexação da cidade, o jurista americano – que posteriormente viria a ser juiz da Corte
Internacional de Justiça – Stephen M. Schwebel defendeu que Israel adquirira título
sobre a cidade em virtude das circunstâncias sui generis que a cercavam. Partindo da
tese de “vácuo de soberania”, trazida anteriormente, defendeu haver uma distinção entre
“conquista agressiva” e “conquista defensiva”, esta a qual seria lícita (1970, p. 344-
347). Schwebel defendeu o poder do agredido, unilateralmente, após fazer uso de sua
legítima defesa e “em nome da segurança”, expandir suas fronteiras com o território que
passasse a ocupar. Comentando a situação de Jerusalém Oriental, afirmou que o título
israelense sobre a cidade seria “superior” ao jordaniano, visto que a anexação da
Cisjordânia por esse país em 1948 foi ilícita e a ocupação israelense se deu após o lícito
exercício de legítima defesa (Ibid., loc. cit.).
Se o uso da força por Israel se configurou em lícito exercício da legítima
defesa, seja em 1967 ou mesmo em 1948, não é objeto desse trabalho. O jurista
americano tem razão ao dizer que a anexação da Cisjordânia – incluindo Jerusalém
Oriental – pela Jordânia foi ilícita. No entanto, tal ilicitude está pautada, principalmente,
na real titularidade sobre a soberania do território e, por esse viés, a anexação israelense
foi igualmente ilícita. Como explicado anteriormente, a Cisjordânia não se tornou res
derelicta após a Guerra de 1948. Além disso, quanto à tese de “conquista defensiva”
promovida por Schwebel, nessa hipótese o agredido faria uso de sua legítima defesa
para “lucrar” com a guerra, o que, além de ir contra o princípio da inadmissibilidade de
aquisição territorial pelo uso da força51 – não havendo distinção entre “agressiva” ou
“defensiva” – também significaria uma subversão dos parâmetros da necessidade e
proporcionalidade, intrínsecos à legítima defesa. Não por outra razão, assim entendeu o
50 Trecho em português retirado do texto da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados como
promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 7.030 de 14 de dezembro de 2009, disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm>. Acesso em 28 nov.
2017.
51 O próprio Schwebel reconhece que sua tese não está de acordo com a doutrina dominante, ao
mencionar que a tese de impossibilidade absoluta da conquista “requer modificações”. Cf. 1970, p.
346.
ii. Assentamentos
Outros atos praticados na Cisjordânia, mesmo ilícitos, não têm sua
classificação como atos de agressão tão autoevidente como a anexação territorial. Esse é
o caso dos assentamentos construídos dentro do território palestino ocupado como um
todo. Sua contrariedade perante o direito internacional – particularmente face à Quarta
Convenção de Genebra de 1949 – foi enunciada tanto pelo Conselho de Segurança,
como pela Assembleia Geral e ainda pela Corte Internacional de Justiça. Todavia, assim
como a anexação de Jerusalém Oriental, para conferir se constituem atos de agressão à
luz da Definição trazida pela Resolução 3314 da Assembleia Geral, deve ser
demonstrado o animus aggressionis.
A política de construção de assentamentos teve início logo após a Guerra dos
Seis Dias (MORRIS, 2014, p. 116), e foi fruto de condenação permanente – mesmo por
parte de aliados israelenses, como os Estados Unidos – da sociedade internacional ao
longo dos anos. Alheios a isso, as autoridades israelenses permitiram – e patrocinaram –
a expansão dos assentamentos. Segundo dados da ONG B’Tselem, ao fim de 2014 eram
cerca de 205 mil colonos israelenses que viviam em Jerusalém Oriental54. A sua
principal contrariedade, como mencionado, é perante a Quarta Convenção de Genebra,
cujo artigo 49 enuncia que “[o] Poder Ocupante deverá não deportar ou transferir partes
de sua própria população civil para os territórios que ocupa55.” No Caso Construção de
um Muro, a Corte ainda esclareceu que tal proibição não se refere somente às
transferências forçadas, mas também ao incentivo público para que tais transferências
ocorram56. Independente do partido que comandasse o governo israelense, a política de
assentamentos prosseguiu. Comentando as diferenças entre a esquerda e a direita
israelense, Shlomo Sand destaca que a primeira comandava um colonialismo hesitante e
a segunda um colonialismo acelerado (op. cit., p. 302-304).
De todo o exposto acima, é evidente a ilegalidade dos assentamentos, mas sua
construção pode ser considerada um ato de agressão? Inequivocamente, é certo que sua
manutenção atinge a soberania, integridade territorial e a própria independência política
da Palestina, estado o qual nada pode fazer contra a entrada de colonos em seu país. No
entanto, não é somente isso que deve ser demonstrado para a configuração de um ato de
agressão. O artigo 1 da Definição fala em “uso de força armada”. No caso dos
assentamentos, este evidentemente não é o caso. A sua construção ocorre por uma
ausência de real capacidade de resistência do estado palestino, e não pelo uso de força
armada. Além disso, dos atos listados no artigo 3 da Definição, nenhum se aproxima da
construção de assentamentos. É inegável a violação, por parte de Israel, de normas de
direito internacional humanitário, mas a construção de assentamentos não constitui um
ato de agressão à Palestina.
56 Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory, Advisory
Opinion: I.C.J. Reports 2004, p. 183.
57 Foi utilizado o termo “muro”, o mesmo adotado pela Assembleia Geral. Legal Consequences of the
Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory, Advisory Opinion: I.C.J. Reports 2004,
p. 164.
força armada também não fica evidente neste caso. Por essas razões, assim como a
construção dos assentamentos, tem-se que a construção do muro na Cisjordânia
representa mais uma violação às normas de direito internacional humanitário, mas não
um ato de agressão.
CONCLUSÃO
Apesar de o povo palestino permanecer sem a reparação que lhe é devida,
alguns órgãos internacionais, organizações não-governamentais e internacionalistas em
geral se dedicaram a estudar e denunciar atos ilícitos cometidos contra esse povo. No
entanto, a grande maioria dessas iniciativas centrou-se em violações a normas de direito
internacional humanitário ou crimes contra a humanidade, tendo sido algumas delas
mencionadas ao longo do texto. O objeto desse trabalho, a possível prática de atos de
agressão por parte de Israel envolvendo Jerusalém, é tema sobre o qual ainda não havia
muito material, sendo uma das motivações por trás desse trabalho.
Em razão dos limites que cercam e distinguem o jus ad bellum do jus in bello,
a maioria das ações consideradas se inserem exclusivamente no âmbito do direito
internacional humanitário, não sendo passíveis de resultar no cometimento de um ato de
agressão. Ainda assim, dos atos estudados, chegou-se a um que, de fato, representa um
ato de agressão: a anexação de Jerusalém Oriental. Por sua natureza de ato ilícito
contínuo, respondendo a indagação que guiou este trabalho, deve-se afirmar: Há,
efetivamente, responsabilidade internacional do Estado de Israel pelo cometimento de
um ato de agressão contra o Estado da Palestina, devendo, portanto, incidir sobre aquele
país as normas que ditam a responsabilidade estatal pelo cometimento de atos ilícitos
perante o direito internacional público.
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