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*Texto publicado na página do Contemporary And (C&) América Latina. 9 nov, 2020.

Disponível em: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/more-desire-to-


measure-up-to-the-north-than-to-redefine-it/. Consulta realizada em 06.02.2021

À esquerda: Fotografia da exposição da África do Sul durante a IV Bienal de São Paulo. Sala Geral
União Sul-Africana. Registro do evento. Autor não identificado. Imagem cedia pela equipe do
Arquivo Wanda Svevo. À direita: VI Bienal de São Paulo. Sala Geral Nigéria. 1961. Fotografia
Athayde de Barros. Imagem cedida pelo Arquivo Histórico Wanda Svevo.

Bienais de São Paulo

“Mais desejo de se
igualar ao Norte do
que de redefini-lo”
Autora de dissertação sobre a participação africana nas primeiras seis
edições da Bienal de São Paulo, a curadora e pesquisadora Luciara
Ribeiro fala sobre a importância de olhar para os arquivos e suas
lacunas, a fim de pensar contranarrativas artísticas e revisões
históricas que questionem a colonização do pensamento.
por Nathalia Lavigne

Em 2019, Luciara Ribeiro defendeu a dissertação Modernismos Africanos nas Bienais de


São Paulo (1951-1961) sobre a participação de delegações africanas na Bienal nos
primeiros dez anos da mostra, de 1951 a 1961, resultado de uma pesquisa no Acervo
Histórico Wanda Svevo. Em entrevista, ela fala à Contemporary And América Latina
sobre a importância de rever os discursos hegemônicos que permeiam as artes e as elites
artísticas brasileiras.

C&AL: Na sua dissertação Modernismos Africanos nas Bienais de São Paulo (1951-
1961), sua escolha por analisar a presença de artistas africanos na Bienal de São
Paulo é justificada por coincidir com os processos de independência e com o início
de um pensamento incentivando as relações Sul-Sul. Como esses fatores
reverberaram na constituição de uma bienal que se definia como uma mostra
internacional, sem uma preocupação em se definir como um evento do Sul?

Luciara Ribeiro: Comecei a pesquisa tentando entender como se deu a


internacionalização da Bienal e o que ela entendia por internacional nas artes dos anos
1950. Eu pretendia saber como as produções africanas foram incluídas, visto que não
encontrei menção a essas produções artísticas na bibliografia dedicada a compor um
histórico da Bienal. As seis edições que estudei foram organizadas pelo Museu de Arte
Moderna de São Paulo e ficaram conhecidas como as “Bienais modernas”, o que casava
com meu interesse pelos modernismos e a formação dos sistemas das artes pelo viés da
internacionalização. Neste período, havia o interesse de Ciccillo Matarazzo, mesmo que
não de forma engajada, em apresentar a Bienal como um evento que partia de uma cidade
do Sul, que poderia ser um polo de circulação para as artes como eram os países europeus
e os Estados Unidos. Mas sinto que o interesse dele se limitava ao Sul como território,
não incluindo outras características para o debate como as relações sociais, raciais e
contranarrativas artísticas. Acredito que os fatores que contribuíram para essa
particularidade da Bienal tenham sido os discursos hegemônicos que permearam, e, de
certo modo, ainda permeiam, as artes e as elites artísticas brasileiras, tendo mais desejo
de se igualar ao Norte do que de redefini-lo.
V Bienal de São Paulo. Sala Geral República Árabe Unida. Registro com obras de Salah Abdel Kerin.1959.
Obras em destaque: Peixe; Maternidade; Gêmeos, 1959. Fotografia de Athayde de Barros. Imagem cedida
pelo Arquivo Histórico Wanda Svevo.

C&AL: Na América Latina e do Sul, a criação de bienais que propunham uma


alternativa ao discurso cultural hegemônico do Hemisfério Norte já era um processo
que acontecia desde os anos 1960, mas, no Brasil, isso se deu mais tardiamente. Por
que a Bienal de São Paulo não buscou se apresentar em uma perspectiva ideológica
como uma bienal do Sul?

LR: Essa foi uma questão que rondou minha pesquisa. O que houve com a Bienal de São
Paulo, que a fez manter o olhar mais ao Norte que ao Sul? Penso que tem uma relação
com o processo social, racial e artístico brasileiro. Mesmo que a Bienal de São Paulo
fosse em um território do Sul, sua organização foi realizada a partir das escolhas de uma
elite artística paulistana que se entendia mais próxima da Europa do que de um Sul
geopolítico. Isso revela as desigualdades brasileiras. Se olharmos para a história da Bienal
de São Paulo, veremos que ela nunca teve uma curadoria geral de autoria negra ou
indígena, seja de brasileiros ou estrangeiros. Em suas edições, artistas não-brancos
sempre foram minorias. Esses dados revelam que a Bienal, enquanto exposição, se
democratizou apenas na gratuidade do ingresso e não realizou uma mudança estrutural
que visasse a redefinição dos seus critérios organizacionais na base. Acredito que se
houver essa mudança de postura, a perspectiva ideológica que ainda está pautada por certo
eurocentrismo e branquitude seriam alterados e interferiria no modo como a Bienal olha
para o Sul.

C&AL: Um ponto interessante que você traz é sobre o convite feito ao Egito e à
África do Sul (na época União Sul-Africana) para a primeira Bienal, apontando esse
interesse possivelmente ao fato de ambos já serem independentes e por serem os
primeiros países do continente a terem uma Escola de Belas Artes, que seguia
modelos de ensino europeu. O que isso revela sobre o interesse no Brasil por esses
países naquele período?

LR: Em 1950, ano em que Ciccillo Matarazzo começou a organizar a primeira Bienal,
apenas quatro países africanos eram independentes: África do Sul, Egito, Etiópia e
Libéria. Desses, apenas a África do Sul e Egito possuíam escritórios diplomáticos no
Brasil – e como a Bienal era intermediada pelo Ministério das Relações Exteriores, apenas
os dois países foram convidados. A meu ver, o interesse do Brasil pelos dois países era
sobretudo o de criar vínculos econômicos. Nesse processo, algumas questões ideológicas
e políticas, aparentemente, se contrapunham. No caso da África do Sul, que já estava sob
o regime oficial do Apartheid, o Brasil continuou sendo um dos seus principais parceiros,
mesmo aqui prevalecendo oficialmente a defesa pela democracia racial. A relação com
os dois países, por parte da Bienal de São Paulo, também foi marcada por relações com a
população étnico-racial branca e de origem europeia, característica que também marca as
elites artísticas brasileiras. Porém, cabe mencionar que o aceite desses países não se deu
de primeira. O anúncio da participação do Egito como primeiro país africano durante a
segunda Bienal de São Paulo revelou certa preocupação e receio por parte de Matarazzo
de que as obras provindas de tal país fossem, nas palavras dele, “verdadeiramente
modernas”. Apenas após uma ida de Mário Pedrosa ao país Matarazzo pareceu sentir
confiança em aceitá-las. Isso revela que, mesmo ambos países terem sido convidados, o
fato de estarem fora do território europeu e estadunidense era motivo para desconfiança
acerca do valor artístico de suas obras.
Luciara Ribeiro. Foto: Ricardo Miyada.
C&AL: No capítulo sobre a 6ª Bienal (1961), você destaca que a atuação de Mario
Pedrosa como diretor foi importante para a participação da Nigéria e da Costa do
Marfim, ao mesmo tempo em que aponta uma visão essencialista do crítico sobre
esses países quando ele define sua arte como “de culturas menos polidas.” O que esse
olhar revela sobre a leitura dessas culturas mesmo entre pensadores atentos à
democratização da arte como ele?

LR: Pedrosa foi um grande crítico, pesquisador e gestor das artes que demonstrou sua
preocupação e engajamento em tornar as artes um campo mais participativo. Entretanto,
fazer essa crítica a ele é um exercício que nos auxilia a rever a história para não
reproduzirmos ideologias e valores que não coincidem mais com o momento. Por
exemplo, o discurso de Pedrosa na 6ª Bienal revela um pensamento hierárquico,
evolucionista e primitivista direcionado às produções africanas. Esse modelo de
pensamento não pode mais ser tolerado e nem reproduzido na atualidade. Rever
criticamente agentes como Pedrosa contribui para a formação de um campo de pesquisa
mais rigoroso, engajado e atento.

C&AL: De que maneira você acha que sua pesquisa reverbera atualmente, tendo
em vista o Black Lives Matter e outros movimentos de decolonização institucional?

LR: Acredito que a minha pesquisa traz contribuições relevantes para que olhemos e
ativemos os arquivos das artes. É necessário que façamos perguntas a eles, vejamos suas
lacunas, pensemos novas estratégias de como contar narrativas para as artes. A pesquisa
é uma contribuição, mas a mudança real só virá quando todos se comprometerem. Tanto
as instituições (museus, galerias, universidades), quanto os agentes (curadores, gestores
culturais, críticos, historiadores de arte) precisam rever suas políticas, suas escolhas, suas
classes, suas racialidades, seus gêneros, suas territorialidades etc. Se não houver esse
empenho, nunca quebraremos o ciclo vicioso da exclusão e da colonização.

Nathalia Lavigne é jornalista, pesquisadora e curadora, mestre em Teoria Crítica e


Estudos Culturais pela Birkbeck, University of London, e doutoranda pela Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP).

Luciara Ribeiro - nascida em Xique-xique, Bahia, em 1989, atua como educadora,


curadora e pesquisadora sobretudo acerca de temas como descolonização da educação e
das artes e estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afro-brasileiras e
ameríndias. É mestre em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL,
Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP). Luciara Ribeiro integrou a equipe de educação da
Bienal de São Paulo, do Museu da Cidade de São Paulo e do Museu Afro Brasil, entre
outros, e também atuou na equipe de educação e de curadoria do Instituto Tomie Ohtake.
É integrante do Grupo de pesquisa e extensão Áfricas nas Artes do Centro de Artes
Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),
do Grupo de pesquisa Arte, História e Crítica da Universidade de São Paulo e da Rede de
Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição – UFMG, UEMG, MAMAM, UFPE e
UNILAB – onde desenvolve um mapeamento sobre as curadorias negras e indígenas
brasileiras. Atualmente é diretora de conteúdo da Diáspora Galeria.

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