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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Instituto de Educação Continuada

BIOPOLÍTICA

Simone Oliveira Damasceno

Arcos
Setembro/2010
Simone Oliveira Damasceno

Comentário do filme “A vida dos outros”

Trabalho entregue à disciplina “Biopolítica” do


Curso de Especialização em Saúde Mental da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito para a obtenção de créditos.

Professor: Geraldo Carozzi

Arcos
Setembro/2010
“A Vida dos Outros”, filme de Florian Henckel von Dommersmarck. Este filme
faz um recorte específico de um fato que se passa na Berlim Oriental por volta do início
da década de 1980, na época das Repúblicas Soviéticas. Época em que se pode observar
a utopia stalinista marcada pela censura, pelo controle social absoluto, pelos suicídios e
pela interdição intelectual.
Georg Dreyman (Sebastian Koch) é um dramaturgo em plena atividade artística.
Aquele que representa a sensibilidade, a boa consciência política.
Sua companheira, a atriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck) é também
amante de um alto funcionário do governo soviético, pois pensa ela que com este
subterfúgio sua carreira nunca será imaculada pela censura. A fim de eliminar a
concorrência amorosa o alto funcionário decide colocar Georg sob ferrenha investigação
política.
Acompanhando o trabalho do agente secreto Gerd Wiesler, funcionário
exemplar e incorruptível, no encalço de Georg, se desenrola a história. Wiesler invade a
privacidade de Georg e Christa. Ele é representante fiel do modelo fechado, à plena
carga, com controle total. O estado impõe, pelo monopólio do direito e da violência
legítima, a conformidade e cada um ao coletivo homogêneo

Os dias se passam e nada acontece que sirva para incriminar Georg, porém
Wiesler comete um erro fatal, ele cria laços sentimentais com Georg. Quando
finalmente Georg resolve se envolver com a militância anti-soviética, a partir do
suicídio de Jerska (o socialista sincero que sofreu punição implacável ao questionar o
regime) começa a reavaliar sua fidelidade ao sistema. Assim, Wiesler não é capaz de
entregar o ‘amigo’. Ao contrário de Wiesler, Christa aceita denunciar seu companheiro
em troca de sua carreira. Entretanto ela não consegue suportar o peso da denúncia em
sua consciência e se mata. Christa, vítima da banda podre do partido, acabou
atropelada pelos interesses do estado.

Finalmente, Georg não é preso porque Wiesler retira as provas do apartamento do


dramaturgo antes que a polícia soviética lá chegasse o que lhe custa um rebaixamento
de cargo, pois tal ato nunca é provado. Uma vez que Christa está morta e não há provas
contra Georg, o caso é encerrado.

As razões pelas quais Wiesler, funcionário padrão e especialista no que faz, subverte a
ordem são compreensíveis e humanas. Este funcionário representa o típico trabalhador
alienado, fiel a quem lhe paga o salário, simples seguidor de ordens. Mas Wiesler ele
faz parte do poder, ele pode decidir entre culpados e inocentes, talvez esse detalhe lhe
proporcione um momento de reflexão.

Wiesler provavelmente não ajuda Georg por estar revoltado com os rumos da política
soviética, mas porque ele fez de seu trabalho, sua única maneira de viver. Sozinho, sem
família, amigos ou distrações, seus momentos de espionagem resumem seu cotidiano.
Era um homem que acreditava no que fazia, sem deixar de ser só. Em certo momento do
filme, Wiesler está sozinho em sua casa quando recebe a rápida visita de uma prostituta,
antes de partida desta, um Wiesler humano e destituído de sua função de oficial
soviético implora para que a moça fique mais alguns momentos com ele, mas ela nega a
demanda porque sua agenda está lotada, por fim ela o aconselha a contratar um período
maior na próxima vez. Neste momento o que se vê é um garoto perdido, abandonado em
sua própria solidão.
Na segunda ida ao apartamento do dramaturgo, Wiesler apreende um livro de Brecht
(Erinnerung
an die Marie A., Recordação de Maria A.) e passa a lê-lo, como se o intelectual que deu
a alma ao
regime já estivesse esquecido. Quando a escuta clandestina ao apartamento inicia, a
vida amorosa
do vigiado, as conversas sensíveis com a atriz Christa-Maria Siegler, a execução da
Apassionata de
Beethoven ao piano abalam as resistências de Wiesler que chora, no esconderijo onde
abriga sua
solidão. Uma lágrima convulsiona o curso dos fatos a partir daí.

no encontro casual do inspetor com Christa, no bar onde ela tentará se recuperar do
assédio sexual por parte do ministro da cultura, a atriz chama o espião de guter Mensch
(boa pessoa), grande ironia que se relaciona antiteticamente com o que o oficial pensa
sobre si próprio e afirmativamente com a referência à peça brechtiana. Wiesler, que
começara a mudar desde que percebeu o mau-caratismo de seus superiores, agora é utro:
além de bom camarada, é uma boa pessoa. Forja os relatórios que deveriam conter
informações sobre o artigo de Dreyman tratando dos suicídios que deixaram de ser
contabilizados desde 1977, e será contrabandeado para a revista Der Spiegel. O
detetive de dissimulações e fraudes elabora relatos fictícios que inocentam as
sabotagens assumidas pelo intelectual.

Georg com seu drama pessoal, cativa Wiesler e faz dele mais do que um mero repetidor
de fatos, faz dele um indivíduo atuante. Por um momento Wiesler encontra um Outro
que imprime algum sentido a sua existência mecânica.

Alguns anos após a queda do regime comunista, Georg descobre ter sido alvo de sérias
investigações policiais e vai a procura de uma parte desconhecida de sua vida. Desta
descoberta Georg escreve um livro dedicado a Wiesler. No momento no qual Wiesler
compra o livro e se vê projetado naquelas páginas ele tem a confirmação de sua
existência real. No final, sua maior necessidade fora suprida. Wiesler tinha em Georg
um amigo, um companheiro de vida real e atuante que fazia dele um eu permanente e
social.

Mas o filme é mais do que um drama, envolvendo denuncismo e desilusão política:


ajuda a compreender a figura estruturalmente divida do intelectual de esquerda, esse
quase pleonasmo, não fossem os esquemas repressivos e a burla de direitos
universais, nos regimes de força. Esse intelectual é um ser dividido em três aspectos:
em seu estatu-
to, está inserido na divisão social do trabalho e paira acima dela; em seu contexto
social, porque,

depois do interrogatório no qual Christa informa a Wiesler, representando o que ele já


não é, o local exato onde estava escondida a máquina de escrever, o próprio Wiesler se
incumbe de subtrair a prova incriminatória do local indicado: assume o contraditório ao
sistema. A verificação inócua ao apartamento pelos fiscais da STASI resulta,
entretanto, na certeza (frustrada por intervenção de Wiesler) da cooperação
de Christa (ela é o Frischfisch – inscrição na lataria da caminhonete camuflada que a
leva ao prédio
da polícia e de lá para casa – “peixe fresco”, que caiu na rede pela necessidade de
remédios que ela
comprava ilegalmente e pelo medo do ostracismo); na certeza da cooperação de
Wiesler (o rebai-
xamento profissional corresponde a uma punição mítica: ele, que descerrava os
segredos mais cabu-
losos, passa a funcionário dos correios condenado a abrir envelopes com vapor,
violando corres-
pondências sem corromper o envelope); na lavratura da falsa inocência de Dreyman
(ele quer ser
lido além do muro).
Christa, vítima da banda podre do partido, acabou atropelada pelos interesses do
estado.
Dreyman, dois anos após a queda do muro, vê a nova montagem da peça outrora
estrelada por C-
hrista. Os tempos mudaram: a protagonista negra ocupa o cenário enxuto, não mais
uma fábrica,
mas apenas portas, que evocam as escadas e a modernidade cenográfica de Jessner, a
era conceitual,
sem o páthos da produção, o teatro de Brecht... De novo o leste, onde a cidade sempre
pulsou mais
forte. Mais uma vez o mapa mental dos berlinenses mudou.
Dreyman não consegue superar o choque do confronto com a polícia, da morte de
Christa, da
morte do estado. Brecht nunca esteve mais perto: o intelectual engajado se sente infértil,
“nada con-
tra o que se rebelar”. A última parte do filme continua surpreendente. O mesmo ex-
ministro que
abriu a investigação contra Dreyman lhe fala do dossiê “Lazlo7
”, que reúne todas as informações

Pensando em Jerska, que se enforcara, mas também em Lênin, o pianista indaga:


“Alguém que ouve essa
música pode não ser boa pessoa?”
7
O nome se reporta ao legendário austro-húngaro László E. Almásy, que, enquanto
cartografava o Saara
oriental, agia como espião nazista. Lazlo é o codinome de Dreyman, na investigação da
Stasi. XI Congresso Internacional da ABRALIC
Tessituras, Interações, Convergências
13 a 17 de julho de 2008
USP – São Paulo, Brasil

sobre a ação. Rasto atrás, Dreyman reabre arquivos, vasculha pastas, descobre as
instalações clan-
destinas em seu apartamento e seu benfeitor.
A última cena do filme avança dois anos, tempo necessário para que o escritor lance um
novo
livro, a sua Sonata da boa pessoa, dedicado a HGW XX/7, código do outrora agente,
senha que
protege agora o protetor. Numa única sonata, dois tributos: a Jerska (que lhe deu o
mote) e a Wies-
ler (que lhe serve de personagem). O diálogo final entre o vendedor de livraria
e o clien-
te/protagonista do relato literário (“–Embrulho para presente?”, “– Não, é para mim”)
sela a mudan-
ça de perspectiva na fixação de um topos berlinense – a vida dos outros é, sempre foi,
sempre de-
terminará a dinâmica societal. A Berlim pós-muro permanece em contínua
confrontação com seus
outros: os estrangeiros, os exilados do leste, os turistas, os artistas, os Obdachlose
(sem-teto), os
Arbeitslose (desempregados), os intelectuais.
O sonho de Brecht também se mantém, no imaginário da cidade, porque ela
sempre foi o
grande palco. O outro encenado está no mesmo que assiste, “duas almas num só peito”,
tão estrei-
tamente ligadas quanto política e literatura – de novo, a vida de um, na órbita do outro.
A cultura
pautando o ambiente babélico. O intelectual roubando a cena.

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