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RACISMO (HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/FOLHA-TOPICOS/RACISMO)

'Racismo delirante' é tratamento grotesco, Monteiro


Lobato merece respeito
Pesquisadora questiona coluna de Marcelo Coelho sobre autor brasileiro

15.fev.2021 às 20h25
Atualizado: 16.fev.2021 às 19h20

ERRAMOS

Ana Lúcia Brandão


Crítica literária especializada em literatura infantil e juvenil, é doutora em comunicação e
semiótica pela PUC-SP

O artigo de Marcelo Coelho nesta Folha,


(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2021/01/pode-ser-chato-saber-disso-mas-monteiro-lobato-era-de-

classificando Monteiro Lobato como “tremendamente,


um-racismo-delirante.shtml)

monstruosamente, escandalosamente racista —um racista delirante” deixou


a mim e a todos os estudiosos de sua obra literalmente escandalizados.

Para quem não me conhece, sou especialista em literatura infantil e juvenil,


ensaísta, resenhadora crítica da "Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil
e Juvenil" (SMC – PMSP) e do Uol Educação, doutora em comunicação e
semiótica pela PUC-SP e membro do grupo de Estudos em Cultura e
Literatura para Crianças e Jovens da USP. Trabalhei na Biblioteca Infantil
Monteiro Lobato por três décadas.

Sua assinatura vale muito.


Tenho, pois, a minha vida dedicada a Lobato e sei que a vida e a obra deste
ENTENDA
grande escritor são um verdadeiro jogo de espelhos, que exige muito fôlego e
capacidade de discernimento dos que desejem opinar sobre ela ou sobre o
escritor. Sugiro aos que desejem se aventurar a conhecer esta vida tão
intrigante a leitura da maior e mais completa biografia já escrita sobre ele,
realizada por Edgar Cavalheiro (dois volumes).

Quanto à primeira das duas questões apontadas de maneira extensa e pouco


representativa, ao meu ver, no artigo de Marcelo Coelho, para justificar sua
acusação de “racismo delirante” (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-
monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml) em Lobato, tenho a pontuar que a
obra “O Presidente Negro” (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/07/a-frustrada-tentativa-de-
monteiro-lobato-em-ganhar-mercado-nos-eua-com-livro-considerado-racista.shtml) destoa
em muito do
restante da obra adulta de Lobato, no geral marcada por contos curtos,
incisos e por vezes plenos de humor e ironia. Para completar o quadro, trata-
se de um romance de ficção científica (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/colecao-
recupera-obras-esquecidas-da-ficcao-cientifica-escrita-no-brasil.shtml) incipiente, gênero que ele não
dominava enquanto escritor.

Através do diálogo de três personagens, Lobato aborda neste livro a questão


do racismo, da miscigenação e da eugenia, que estavam fortemente em pauta
nos Estados Unidos, na década de 1920, a ponto de haver ou não pureza
racial ser considerado por muitos como a razão para o progresso ou para o
atraso de um país.

O livro fez um verdadeiro raio-x da questão racial nos Estados Unidos, tão
grave a ponto de levar, nesta ficção, a um verdadeiro “choque de raças”, aliás
o título original que Lobato deu ao livro. Porém, ao contrário do que
entendeu erroneamente, Marcelo Coelho, Lobato não encampa para si, como
autor, nenhuma fala racista de qualquer personagem do livro.

Apenas expõe, com muita ironia, os argumentos racistas dos personagens. E


revelando como a sua visão, como autor, era totalmente contrária ao racismo
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jorge-coli/2019/02/so-quem-nao-leu-ou-nao-entendeu-livros-de-lobato-pode-julga-

los-racistas.shtml),
no final do livro Lobato antecipa o que seria a grande “vingança”
dos negros americanos: a eleição de um presidente negro para os Estados
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Unidos. Algo tão inimaginável quanto escandaloso para os brancos naquela
ENTENDA
época, a ponto de Lobato ter datado este sonho no ano de 2228. Lobato
anteviu Obama em 2009 (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2009/09/619584-discurso-de-obama-de-
incentivo-ao-estudo-gera-polemica-nos-eua.shtml), errando só na data, antecipada em 219 anos
pela história real. “Mais do que um livro em prol da pureza racial, este
romance constrói uma metáfora sobre segregação e aculturação”,
escreveram Márcia Camargos e Wladimir Sachetta na abertura da reedição
do livro, de 2008.

Quanto à carta de Lobato “elogiando” a Ku Klux Kan, segundo argumento de


Marcelo Coelho para provar “o racismo delirante de Lobato”, ela é uma
“única” que aborda esse tema entre os dois volumes de cartas escolhidas, que
vão de cartas escritas entre 1895 a 1948, destinadas a setenta e quatro
correspondentes, dentre os quais encontramos parentes, amigos, escritores,
médicos, políticos, profissionais técnicos no beneficiamento do ferro e da
prospecção de petróleo etc.

E esta carta me parece inconsistente frente ao todo de sua saborosa


correspondência. Importante ressaltar que são volumes com cartas de foro
íntimo. Quem não as tiver escrito, inclusive se auto-ironizando, que atire a
primeira pedra. Fosse o tempo de hoje, elogiar a Ku Klux Klan numa rede
social, para um intelectual com senso de humor, seria boa resposta, tipo
"KKK", a um amigo dizendo que não irá tomar a vacina chinesa “para não
virar jacaré”.

Levar ao pé da letra palavras ou frases de uma mensagem pessoal entre


amigos, para classificar um deles como “racista” revela uma enorme
incompreensão do que significa a crítica literária. Aliás, no prefácio do
primeiro volume de cartas, Edgar Cavalheiro aponta que estes dois volumes
estão longe de representar um décimo da sua produção no gênero.
Cavalheiro então cita Antônio Cândido —que aponta o gênero epistolar
como raro na produção literária brasileira— e afirma que ”temos um pudor
irremediável, um inexplicável sentimento de inferioridade ante o público”.
Cavalheiro termina seu prefácio dizendo: “os volumes que ora incorporamos
às 'Obras Completas' constituem subsídio inestimável para a compreensão
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ENTENDA
do homem e do escritor que ele foi. (...) Nada do grande homem é sonegado
nestas cartas”.

Agora é momento de nos concentrarmos na questão do racismo, que vou


abordar sob o ponto de vista estético, literário e do humor, o humor
caricatural, do qual o grupo Porta dos Fundos
(https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2021/01/porta-dos-fundos-e-acusado-de-preconceito-etario-por-video-de-humor.shtml)

é um grande exemplo atual e do qual Lobato, se descesse numa mesa branca,


iria querer assistir e dar suas gargalhadas.

A obra infantil de Monteiro Lobato (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/bisneta-de-


monteiro-lobato-quer-apagar-o-racismo-de-sua-obra-com-novas-edicoes.shtml), que apresenta 17 volumes,

foi ilustrada por vários artistas. Um deles, a quem Lobato delegou a criação
visual de seus personagens, foi Belmonte
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/11/veemencia-das-charges-de-belmonte-irritou-ate-o-regime-nazista.shtml).

Benedito Barros Barreto é o nome deste ilustre homem negro, conhecido


como Belmonte, que Lobato convidou para ilustrar sua obra. Belmonte foi
um grande chargista e como todo chargista sempre exagerou nos traços das
personagens, realçando-lhes ao extremo as suas características físicas a
ponto de tirar risadas de seu público com sua crítica mordaz e hilariante.

Gonçalo Junior, na sua biografia sobre Belmonte, conta como Lobato o


incentivou a criar seus próprios personagens infantis, que apareceram na
Folha da Manhã e se chamavam Bastinho e Bastião, um branco e outro
negro, amigos inseparáveis, que com a ajuda da magia de um saci, partem
para as aventuras, na série chamada “As Viagens Fantásticas de Dois
Garotos”.

Ora, um “racista delirante” nem ao menos dirigiria a sua atenção a um


homem como Belmonte, não é mesmo? Portanto, vale pontuar que entre
1929 e 1937, Belmonte ilustrou cinco livros da saga do "Picapau Amarelo". De
Belmonte a Alcy Linnares, tia Nastácia mantém seus traços. Um caso a se
pensar —a força e acalanto da imagem da mulher negra no nosso imaginário.

Como sou literata de formação e atuação profissional, acho necessário


apontar a linguagem humorística criada vale
Sua assinatura por muito.
Lobato para parte de sua obra
ENTENDA
adulta e para a infantil como um todo. A linguagem criada por ele é prenhe
de rebeldia e criatividade inusitadas e utiliza-se largamente de um registro
coloquial e tom de oralidade capazes de surpreender até hoje o leitor, por ser
lúdica e original ao extremo.

Portanto, a obra infantil de Monteiro Lobato é modernista em essência e


justamente por isso, por registrar a oralidade da época em que foi escrita,
Lobato hoje é criticado ao extremo. Ora, entra aí a presença do mediador de
leitura, quem lê com a criança, que naturalmente revela o contexto de época
do escritor e da obra.

O "Sítio do Picapau Amarelo" é uma criação que põe em diálogo o universo


da cultura oral brasileira representada com maestria por Tia Nastácia, tio
Barnabé (com quem Pedrinho e as demais crianças obtêm todo o
conhecimento sobre a mata e seus animais e plantas) e claro, o ser mais
mágico desse universo oral que é o Saci. Tia Nastácia é a deusa que criou a
boneca Emília e o Visconde de Sabugosa, os dois encantos que vivem as
aventuras do sítio e fora dele.

Dona Benta representa a cultura escrita e por vezes formal, sempre


rechaçada pela boneca Emília e pela cultura brasileira como um todo. A
riqueza da voz do povo que se exprime por meio da oralidade é de um
virtuosismo lingüístico, literário e simbólico muito grande. Já dizia a
escritora Sylvia Orthof sobre Tia Nastácia, que a encantou desde criança:
"Sempre imaginei Tia Nastácia como uma noite estrelada”.

Se há algo que Emília não suportava era a injustiça. E eu, como Emília,
afirmo que Monteiro Lobato não foi um “racista delirante”. Foi um homem
do seu tempo, um humanista que realmente realizou o projeto de formar um
país de leitores, mas que como toda personalidade ousada e visionária,
eternamente provocará impasses e novos questionamentos. Este é o papel de
toda obra clássica de uma determinada cultura.

Mas Lobato foi também um homem que foi preso por querer que o governo
explorasse suas riquezas e deste modo proporcionasse educação e bem-estar
para o povo e que teve a coragem de denunciar a tortura no auge do Estado
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Novo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/03/em-briga-por-petroleo-monteiro-lobato-ve-burrada-imensa-
ENTENDA
no-pais.shtml). Por tudo que representa, Monteiro Lobato tornou-se memória e
marca indelével na cultura brasileira e não merece nem de longe um
qualificativo tão injusto e deletério como este de “racista delirante”,
colocando, como no “index” da Inquisição, ele mesmo e toda sua obra,
inclusive e especialmente a infantil. Vida longa para a obra de Monteiro
Lobato!

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tratamento-grotesco-monteiro-lobato-merece-respeito.shtml

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