Você está na página 1de 33

EDIÇÃO 04 - JAN/FEV 2021

CAÇADOR CABOCLOS
DAS ARTES E OXÓSSI
Com a sua rotina, Aproximação dessas
o artista plástico duas figuras reforça
Wagner Santiago a valorização
mostra como política das origens
Oxóssi e a arte se africanas em terras
relacionam. brasileiras
EXPEDIENTE

MEU ORI
GABRIEL SORRENTINO

04 46
Diretor-geral
UMBANDA ESCULTURAS E
NAÍSE DOMINGUES EU CURTO RELIGIOSIDADE
Diretora de conteúdo

06 48
Oxóssi tem muitos significados para mim. Conhecimento, fartura,

TERREIRO E
EDUARDO BARTKEVIHI
CABOCLOS
coragem. Poderia escrever uma revista inteira só com palavras e

SOCIEDADE
Repórter expressões que definissem o rei das matas de uma forma particular.
Com Ele, conheci o orixá. Por Ele, renasci no orixá. E OXÓSSI
FLÁVIA PROENÇA
Diretora de marketing Justamente por ser uma divindade tão complexa, te convido a ler, nas

08 50
JUREMA: DE BEBIDA
próximas páginas, matérias que se aprofundam um pouco nos mistérios
do guerreiro de uma flecha só. Juntos, vamos entender como o orixá, que
A PRESENÇA DA
SAGRADA À CIDADE
FABIO MATEUS
CULTURA INDÍGENA
é africano, foi associado aos caboclos, espíritos de indígenas brasileiros
Diretor de arte
ENCANTADA
que hoje trabalham dentro dos terreiros.

VANESSA ALVES Para a matéria principal — ilustrada com fotos de Marco Alcântara

12 53
—, tive o prazer de conversar com Wagner Santiago, artista plástico e
BABA
Designer sênior
daimista, para analisar com a sua história como a arte se relaciona com

BRENO LOESER
Oxóssi. Acredite, isso acontece mais do que você imagina. RESPONDE HIBISCO
Ilustrador É impossível, portanto, falar sobre Oxóssi sem ao menos citar a Jurema

15 54
Sagrada, tradição religiosa tão presente nas regiões Norte e Nordeste do
MARCO ALCÂNTARA Brasil. Aqui, não apenas citamos. Produzimos uma matéria para mostrar
PENSAMENTOS JOIAS QUE
Fotógrafo ao restante do país essa cultura rica, que evidencia o sincretismo
DE ABIAN SIMBOLIZAM A
entre algumas crenças nativas do país e religiosidades de matrizes
africanas. Tema, inclusive, que pautou outro texto desta edição: como
REPRESENTATIVIDADE
TATIANE FALHEIRO
as religiões indígenas e afro-brasileiras se conectaram? Continue e leia

16 56 FÉ
Diretora de negócios e relacionamento
nas próximas páginas.

CAÇADOR DE
DAS ARTES ARUANDA
Acompanhe: Por fim, com o dois de fevereiro à vista, Iemanjá, nossa grande mãe,
@kobaexu também marcou presença nesta edição. Nosso time de colunistas focou
suas palavras à rainha das águas para você se emocionar e refletir.

59
Assine gratuitamente a revista:
Por si só, Oxóssi e Iemanjá são orixás que me emocionam. Como se
CANTIGAS PARA
www.kobaexu.com
não bastasse, pessoas importantíssimas da minha vida são regidas por

A revista KOBÁ é uma publicação on-line


ambos. Minha relação com a realeza, das matas e das águas, é muito
mais íntima do que eu poderia imaginar anos atrás. Obrigado, meu pai.
NAVALHA
e gratuita, venda totalmente proibida. Obrigado, minha mãe. Okê arô! Odoyá!

44 60 YORUBÁ
Envie sua pauta: A COROAÇÃO
koba.pauta@gmail.com DE OXÓSSI EM
TERRAS BRASILEIRAS
Anuncie na revista:
koba.comercial@gmail.com Gabriel Sorrentino Diretor-geral

02 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 03


UMBANDA
EU CURTO
Nas homenagens e comemorações a Iemanjá - seja em E este auxílio, sinto dizer, não será amplificado se você
dezembro ou em fevereiro, de acordo com a tradição de oferecer espelhinhos ou pentes de plástico para a nossa

Alexandre Negrini
cada localidade - uma das preocupações é assistirmos Grande Mãe. Ela não precisa de nada disso!
por:
multidões vestindo branco levando barcos de madeira, Vamos então falar de um assunto muito importante:
isopor e outros materiais para entregarem a Iemanjá, como “agradar” Iemanjá em seu dia comemorativo?
direto no mar. Nas lojas de artigos religiosos, além dos tradicionais bar-
Além dos barquinhos, um grande número de badulaques quinhos, encontramos taças, champanhes, além dos tra-
e objetos como pentes, sabonetes e outros adereços dicionais kits de Iemanjá. Mas tudo isso é matéria, se tor-
feitos de materiais não biodegradáveis são depositados nará lixo em nossos oceanos e com certeza não irá agradar
nas praias não apenas pelo povo de santo como também nossa Mãe Iemanjá. E saibam que não se trata de colocar
por simpatizantes, que pouco entendem sobre a Orixá da a fé de ninguém em dúvida, tampouco menosprezar tradi-
Criação ou sobre ritualística de oferendas e entregas. ções. Isso tem a ver com a forma que manifestamos nossa

IEMANJÁ,
Iemanjá é Orixá na Umbanda e uma das mais cultuadas devoção e não com o conteúdo da nossa fé.
em todo o Brasil. Sua principal atuação se dá no campo O mar (praias e oceanos), as matas (bosques e florestas),
da Geração, ligado à própria manutenção e continuidade a Terra (mangues, solo), as cachoeiras (rios e riachos),
da vida como um todo. É por este motivo que Iemanjá enfim, são pontos de força naturais para a Umbanda.

BADULAQUES E
é também chamada de Mãe da Vida ou ainda a Rainha Assim, se sujarmos as praias e oceanos nós estaremos
do Mar. De acordo com a ciência e com os estudos indo contra a própria vibração divina de Iemanjá, além de
evolucionários, é da água que surgiu a vida no planeta contribuir para a destruição da biodiversidade marítima.
Terra, sendo então Iemanjá associada ao surgimento da Então como agradar, agradecer, pedir ou oferendar a

A VERDADEIRA
vida de uma forma mais ampla. Iemanjá? Comece sendo uma pessoa do bem. E se
Este aspecto geracional de Iemanjá é também quiser presenteá-la, escolha itens orgânicos (flores,
representativo das forças criativas que todo ser humano ervas e alimentos). Alfazema (só o líquido), pétalas de

FÉ NA CRIAÇÃO
traz consigo. Assim, atua sobre nosso mental para que rosas, barquinhos feitos de folhas de plantas e, o mais
possamos gerar novas ideias, invenções, invenções importante: muita fé, oração, palmas e cantos. Todo tipo
criativas para o dia a dia sempre com o intuito de de oferenda, ou presentes para Iemanjá, começa primeiro
crescimento e expansão. Cada um de nós pode obter Seu na intenção, no mental, que transborda de dentro para

DIVINA
auxílio, desde que busque e vibre esta energia espiritual fora. Amor e respeito pelo meio ambiente é sinal de amor
irradiada por Ela. e respeito pelos Orixás!

Alexandre Negrini Turina


é jornalista e cientista social
formado pela Universidade de São
Paulo (USP). É cofundador do Umbanda Eu
Curto, maior portal agregador de conteúdo
umbandista na internet. Criado em 2011 como
uma fanpage, hoje está presente nas principais
redes sociais (@umbandaeucurto) e conta com o apoio de
colaboradores como Alexandre Cumino, Adriano Camargo, Engels
de Xangô, David Dias, David Veronezi, Rodrigo Queiroz, Taiane
Macedo e Rubens Saraceni (in memorian).

04 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO JANEIRO/FEVEREIRO 2021 05
CABOCLOS E OXÓSSI:
SIMILARIDADES E não descaracterizava a cultura afro-baiana,
a ligação entre o caboclo e o orixá aproxi-

DISTINÇÕES ESTABELECIDAS
mou outra questão: a assimilação da figura
indígena a Oxóssi, orixá iorubá da agricultura,

Eduardo Bartkevihi
fartura e caça.
Oxóssi é considerado o rei da mata, protetor
por: dos caçadores e dos que se encontram na
floresta. Caboclo reside na mata, é caçador
e guerreiro. Oxóssi mantém ligação estreita
com Ossãe, deus das ervas e da medicina.
Aproximação dessas duas figuras reforça a valorização Caboclo carrega o conhecimento das proprie-
dades terapêuticas e medicinais das folhas.
política das origens africanas em terras brasileiras Ambos fazem uso de arco e flecha para
combate. Ambos gostam da liberdade. Oxóssi
transformou-se de caçador em orixá. Caboclo
transformou-se de caçador em Encantado.
Variadas são as características que esta-
belecem ligação entre os caboclos e o orixá
A apropriação de elementos da cultura indígena pelos po- trocas culturais e o reconhecimento destes como ances-
Oxóssi. No entanto, Jocélio Teles dos Santos
vos africanos deu início ao sincretismo afro-indígena que trais e originários da terra.
apresenta a teoria de que existe uma maior
conhecemos, tornando o culto aos espíritos nativos e a Dentre as diversas definições do termo caboclo – por
valorização à origem africana no panteão
prática de conhecimentos ancestrais presentes em diver- exemplo, homem do sertão ou Encantado, aquele que se
afro-baiano.
sas tradições religiosas afro-brasileiras. Contudo, a liga- encantou ao morrer –, há quem os caracterizem como es-
— Logo, parece haver uma distinção de cate-
ção dos caboclos com o orixá Oxóssi acontece a partir de píritos de indígenas brasileiros. O seu culto se iniciou nos
gorias tanto no nível geográfico quanto de um
uma série de construções histórico-culturais que envol- candomblés de Nação Congo-Angola, e também nos Can-
grupo sociocultural também marginalizado.
vem os dois povos distintos. domblés de Caboclo. Porém, o antropólogo Jocélio Teles
Se a categoria caboclo, inicialmente referida
O culto ao caboclo foi inserido no panteão africano através dos Santos, em seu livro “O Dono da Terra – Os caboclos
aos indígenas, ampliou-se no panteão afro-
do povo banto. Baseado no princípio Zambi, eles acreditam nos Candomblés da Bahia”, explica a importância de dife-
-baiano é porque se adequou de forma lógica
na ideia de que toda entidade pode assumir formas múlti- renciar esses dois:
a algo estruturado: a multiplicidade dos orixás
plas e que não há um arquétipo exato. É um povo hospita- — Há de distinguir, com efeito, entre os candomblés pura-
— defende o pesquisador.
leiro que estabelece forte ligação com a terra, como explica mente bantos e os chamados ‘de caboclo’, onde a mítica
A ligação, portanto, entre os caboclos e
o cientista social Ricardo Aragão: banto se encontra mesclada com a ameríndia. O que dis-
o orixá Oxóssi é baseada tanto em um
— Essa hospitalidade começa com os espíritos e as enti- tingue estes últimos é a vestimenta dos orixás e o apareci-
quesito histórico, tendo em vista os
dades dos outros povos sendo trazidas para a comunida- mento sempre crescente de novos orixás.
cultos aos caboclos e as suas diversas
de. E não foi diferente com os caboclos, que vêm do con- No entanto, os seus rituais geraram opiniões adversas en-
interpretações ao longo da história,
ceito de inquice¹ da terra, a energia da terra, os primeiros e tre praticantes de diferentes nações do Candomblé, o que
tanto no quesito cultural, baseado
os pioneiros. causou uma divisão em dois lados:
em suas respectivas características
Sendo uns dos primeiros povos a chegarem no Brasil, em — Temos uma diferença muito grande da noção de entida-
e representações. Dessa forma, ao
meados do século XVI, os bantos foram inseridos à zona de para o povo iorubá, tanto que as casas mais tradicionais
mesmo tempo em que as simi-
rural, onde trabalharam fortemente com o cultivo da cana- não fazem culto ao caboclo de forma pública. E as casas
laridades aproximam esses dois
-de-açúcar. Consequentemente, estabeleceram uma liga- que têm mais ligação com os terreiros Angola, com a an-
personagens, constituições pré-
ção com o desbravamento de novas terras e o povoamento cestralidade banto, é quem vai fazer esse culto ao caboclo
-estabelecidas os diferenciam,
das mesmas. Essa realidade fez com que instituíssem um — aponta Ricardo Aragão.
reforçando um paralelo entre o
primeiro contato com os indígenas, gerando uma série de Após o entendimento de que a presença dos caboclos
meio intelectual e religioso.

06 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER JANEIRO/FEVEREIRO 2021 07
JUREMA: DE
Nessa religião, todos os componentes das árvores são utilizados
pelos praticantes: as cascas, as raízes, as folhas e os frutos.
Assim, a sua ciência é constituída por tudo aquilo que faz parte
da natureza.

BEBIDA SAGRADA
No culto da Jurema Sagrada é possível reconhecer aspectos
de diferentes religiões convivendo harmoniosamente,
estabelecendo ligações culturais entre o Candomblé, a
Umbanda, a Jurema e o Catolicismo. Esse culto varia de acordo

À CIDADE
com a prática dos líderes e dos Encantados – nome dado aos
Mestres, às Mestras e aos Caboclos, divindades espirituais que
dominam os conhecimentos da Jurema. Porém, compreende-
se que existem diferentes rituais dentro da religião.

ENCANTADA
Os dois elementos que identificam o praticante da Jurema são
o cachimbo e o maracá. O cachimbo é considerado o maior
assentamento do juremeiro, pois a fumaça é a responsável pela

Eduardo Bartkevihi
limpeza e pela comunicação com o mundo espiritual. O maracá
é utilizado nos rituais, sozinho ou em harmonia com os ilús¹
por: para invocar as forças da Jurema.
— Os cânticos sagrados dos terreiros são um dos elementos
mais fortes de preservação do ser da matriz indígena, a
Religião da Jurema. Neles podemos ver a história desse povo
cantada sistematicamente, em linhas melódicas que revelam
A união de significados na palavra a sua filosofia e imaginário — afirma o juremeiro e historiador
Alexandre L’Omi L’Odò.
Jurema simboliza um ponto Estabelecendo forte ligação com a cultura popular cristã, a
denominada Mesa de Jurema é uma cerimônia que ocorre
importante da religião, a sua em torno de uma mesa coberta com uma toalha. Vestimentas
essência sagrada como uma só brancas, garrafas de água e cachimbos acompanham as
rezas, as cantigas e o barulho do maracá. Após a defumação,
os Mestres, as Mestras e os Caboclos são invocados para o
trabalho. Geralmente, as mesas são voltadas aos trabalhos de
cura e ao desenvolvimento das disciplinas da religião.
Importante resistência cultural brasileira, a Jurema Sagrada Considerada a força da doutrina, a Jurema de Chão carrega um
resgata a ancestralidade e mantém viva a sabedoria dos importante valor histórico-cultural. A forte repressão aos cultos
povos indígenas. Um culto originário da região Nordeste do indígenas fazia com que os povos tivessem que fugir para as
Brasil, a religião tem como divindade principal uma árvore: matas, onde se reuniam em torno de fogueiras para cultuarem
A Jurema-preta. Em constante relação com o sagrado, a as suas divindades.
árvore não só oferece insumos físicos, mas também é — Acredito que isso possa ter sido um resgate histórico, porque
considerada o centro do plano espiritual das Sete Cidades é o que mais se aproxima do fato de haver uma fogueira ao
da Jurema. centro, com todos sentados ao redor praticando a liturgia —
Peculiar do sertão nordestino, a Mimosa hostiles ou acredita Eric Assumpção, sacerdote do Terreiro de Jurema do
Mimosa tenuiflora, como é intitulada cientificamente, é Mestre João do Laço.
considerada uma árvore com fortes princípios medicinais. Levada para o contexto urbano, a cerimônia se adaptou. A
Inclusive, destacam-se até mesmo por conterem os liturgia acontece com os praticantes sentados no chão ou
elementos necessários para atenderem às necessidades em pequenos bancos, em rodas, onde são entoadas cantigas
do ser, gerando curas espirituais e físicas. e rezas acompanhadas dos maracás. Nela, os Encantados

08 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER JANEIRO/FEVEREIRO 2021 09
L’Omi L’Odò (Foto: Lucas Chagas)

também incorporam nos juremeiros para realizarem os


seus trabalhos. Assim como na Jurema de Mesa, o culto
Malunguinho:
à Jurema de Chão é reservado e direcionado tanto aos conscientização cultural
discípulos quanto ao público necessitado, geralmente
indicados pelos Mestres Espirituais. Há quinze anos, povos praticantes dessa religião criaram
A Jurema Batida, ou Toque de Jurema, é um ritual mais o projeto Kipupa Malunguinho. Anualmente, ocorre um
festivo onde os Encantados vêm à Terra para dançar e encontro no Quilombo de Catucá, terra onde habitou o
pisar o Toré², além de darem conselhos e orientações. líder. São realizados rituais em forma de agradecimento
As cerimônias são abertas ao público, que acompanha ao protetor e apresentações culturais com objetivo de
as cantigas com palmas, os barulhos dos maracás e dos promover a religiosidade indígena e africana. Realizado
ilús. Nelas, os habitantes da Jurema fazem uso de fumos, pelo Quilombo Cultural Malunguinho e pela Casa das
objetos que os caracterizam e bebidas. Considerada Matas do Reis Malunguinho, o evento vem crescendo a
sagrada para os povos indígenas, a bebida jurema é cada ano e, em 2019, reuniu cerca de 10 mil pessoas.
inserida nos cultos religiosos de forma responsável. O religioso Eric Assumpção ressalta a importância do
— Ela é utilizada para os discípulos e para os Encantados, evento para os juremeiros. Segundo ele, esses projetos
em todo e qualquer momento que for solicitado pelos fortalecem a identidade e ajudam a quebrar as barreiras
juremeiros ou pelos próprios Encantados. O que não do preconceito.
tem é o ato irresponsável de embebedar as pessoas — Eu acredito que o Kipupa Malunguinho é levado
— explicita Eric Assumpção, que acrescenta que o com responsabilidade, com seriedade, com aquilo
ritual também pode ser caracterizado por festas em que a Jurema tem de maior valor que é a humildade.
homenagem às entidades, onde os salões são decorados Realmente, é um evento que está fazendo história. Uma
e as cerimônias acontecem por horas. verdadeira valorização do nome Malunguinho, desse
As Setes Cidades Espirituais da Jurema são ícone divino e histórico da nossa Jurema Sagrada —
consideradas um importante elo entre os praticantes reforça Eric Assumpção.
e seus Encantados. Por sua vez, essas cidades têm O culto da Jurema tem crescido e despertado interesse
um protetor espiritual denominado Malunguinho. em adeptos de todo o país. Para Alexandre L’Omi L’Odò,
Recentemente, historiadores descobriram que ele foi os ideais trazidos pela religião são muito importantes
um líder quilombola que teve um importante papel na para a sociedade:
resistência contra a escravidão. Após o seu desencarne, — Encantamento é uma palavra pertinente quando se
foi consagrado e passou a se manifestar nos rituais da trata da Jurema. Uma religião que em si carrega o contra
Jurema, sendo considerado uma grande divindade que discurso hegemônico moralista de nossa sociedade
pode se manifestar na religião de três formas: como racista, machista, LGBTTIfóbica, classista e todos os
caboclo, como Mestre ou como exu. demais “istas”, merece atenção — conclui Alexandre.

¹Ilú: Tipo de tambor afro-brasileiro


usualmente utilizado em rituais
religiosos, sobretudo na Região Nordeste

²Toré: Ritual indígena que envolve performance


corporal e música, e se reveste de um sentido mágico-
espiritual. Reconhece o chão como sagrado, onde
todos devem pisar descalços nos momentos de culto

JANEIRO/FEVEREIRO 2021 11
BABA
RESPONDE
Babalawô Ivanir dos Santos
por:

ODOYÁ!
O professor doutor Babalawô Ivanir dos Santos é coordenador de área de pesquisa no
Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(LHER/UFRJ), membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e conselheiro
de estratégia do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP). Em 2019, recebeu
um prêmio do Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos pela sua atuação na luta
contra a intolerância às religiões de matrizes africanas no Brasil. Em toda edição, o professor
elucida dúvidas sobre Candomblé e religiosidade de matriz africana.

KOBÁ | Sabendo que o culto a Iemanjá na África é feito KOBÁ | O que o senhor teria a dizer sobre a imagem
em rios, por que a orixá foi relacionada ao mar no Brasil? de Iemanjá em que ela é retratada como uma mulher
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | De fato, é um rio que fica branca?
na cidade de Abeokuta, no Estado de Ogun, na Nigéria. BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Uma questão que
Iemanjá é reverenciada neste rio. O povo originário do é muito delicada, mas que é explicada pelo fato da
culto de Iemanjá fica nessa cidade. O que se configurou ocidentalização e embranquecimento das culturas
foi a relação entre Brasil e África pelo Atlântico. Não africanas. Além disso, deve-se também ao sincretismo e
podemos esquecer que Iemanjá é filha de Olocum, o catolicismo popular aqui no Brasil. Iemanjá é um rio! Ela
oceano. não é uma figura branca. Se for se transfigurar em uma
mulher, seria em uma mulher negra.
KOBÁ | Por que Iemanjá é conhecida como a senhora de
todas as cabeças? KOBÁ | Na tradição religiosa do senhor, quais são as
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | A primeira coisa é que principais oferendas a Iemanjá?
está ligada à estória que diz que Iemanja é mãe dos BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Depende muito. Tem
orixás. E também por causa do Bori, ritual que se faz aqui muitas oferendas que podemos fazer para Iemanjá, mas
no Brasil, onde não se dá comida à cabeça, ao ori, sem nas casas tradicionais de candomblé e na cultura iorubá
dar comida para Iemanjá. não se dá comida ao orixá por intuição. A gente consulta a
orixá sobre o que ele quer comer. Não dá para classificar

12 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO JANEIRO/FEVEREIRO 2021 13
PENSAMENTOS
DE ABIAN
uma grande oferenda para Iemanjá. Dá para o orixá aquilo identidade dos cultos afro-brasileiros. Uma grande
que ele pede. Não se deve dar oferenda a nenhum orixá festa pública que dialoga com as datas importantes

Tatiane Falheiro
sem antes fazer a consulta para ver o que o orixá quer. do catolicismo. A festa de Iemanjá virou uma das mais
por:
populares do Brasil. Uma prática que teve início com
KOBÁ | Na opinião do senhor, qual a melhor forma de fazer Tatá Tancredo da Silva Pinto e hoje é disseminada pelo
entrega do barquinho de Iemanjá sem correr o risco de Brasil. Uma prática extremamente importante que precisa
poluir a natureza? ser preservada principalmente em momento de tanta
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Biodegradavel, claro! intolerância religiosa no Brasil.
Precisamos pensar em uma forma de fazer as oferendas
sem poluir e nem sujar o Sagrado. Todo cuidado é KOBÁ | E qual é a importância da própria Iemanjá para a
extremamente importante. cultura brasileira?

IEMANJÁ, MINHA MÃE


BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | É extremamente
KOBÁ | Qual é a importância da famosa Festa de Iemanjá importante para a preservação do culto afro-brasileiro.
para a cultura brasileira? Iemanjá é um dos orixás mais populares do Brasil. É

AMOR PROFUNDO!
BABALAÔ IVANIR DOS SANTOS | Virou uma grande símbolo da prosperidade, da fartura, da alimentação.

Lembro que, ao colocar a primeira oferenda a Iemajá, disse a seguinte frase ao contar a ele minha insegurança:
fiquei bastante apreensiva de como seria. Afinal, agradar — Ela sabe do seu coração. Sabe do seu amor. Se você
orixá é um ato de amor, uma forma de demonstrar sua fé arriar uma flor ou uma oferenda grande ela receberá com
por ele. Mas será que ela iria gostar? alegria. Eu sei que fez o melhor que pode - e ela também.
Meu pai de santo tem um marinheiro pelo qual sinto muito Iemanjá é uma das minhas grandes devoções, junto
carinho, respeito e devoção. Na hora em que eu estava com meu pai Oxóssi, e sei que os dois me protegem e
colocando a oferenda - que a princípio seria na praia me guiam - sempre juntos! A eles devo todo amor que
mas que, no dia, caiu uma chuva torrencial e fiz dentro carrego pela Umbanda.
do terreiro -, este marinheiro veio me ajudar. Seu Martim

Tatiane é abian de uma casa de Omolokô


em Niterói, na Região Metropolitana do
Rio. Abian é o começo. Essa é a pessoa
que se interessou pelo culto de matriz
africana e faz parte de uma comunidade
O tema da nossa próxima edição será GÊNERO. de terreiro, mas ainda não passou
pelos rituais de iniciação.
Envie sua pergunta para koba.babaresponde@gmail.com e participe!

14 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 15


PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER
CAÇADOR
DAS ARTES
Gabriel Sorrentino
por:

Com a sua rotina, o artista plástico Wagner Santiago


mostra como Oxóssi e a arte se relacionam

Oxóssi, dono das matas, orixá caçador. Normalmente elaborado trabalho arquitetônico. Além disso, ele
é relacionado a assuntos ligados às florestas, também rege a inspiração, a contemplação e a arte
animais e fartura. Contudo, em algumas de filosofar. Várias características que conseguimos
tradições religiosas de matrizes africanas, identificar, inclusive, na personalidade dos criadores
o orixá também é o guardião das artes da arte. Tendo influência de Oxóssi ou não, o que
e está presente desde a inspiração, se pode ter certeza é que, pelo menos, ela sempre
o que pode ser relacionado ao Trono esteve presente na vida do artista curitibano Wagner
do Conhecimento regido por Oxóssi Santiago, que é filho do orixá das matas.
nas vertentes de Umbanda Sagrada, até
a finalização de todas elas: na pintura, Filho de uma ítalo brasileira do interior do Paraná e
escultura, arquitetura, dança, teatro, um indígena de Guaraqueçaba, no litoral do estado, o
música, poesia, literatura. tatuador começou a ter contato com a arte — aptidão
inata para aplicar conhecimentos usando talento
Há quem diga que em toda a arte há ou habilidade na demonstração de uma ideia ou um
um toque de Oxóssi — desde o canto pensamento, segundo o dicionário —, ainda criança,
e a dança das aves e insetos até o mais em casa, com dona Jacira.

Esta galeria de fotos é oferecida pelo

JANEIRO/FEVEREIRO 2021 17
— Minha mãe, artesã. Crochê, bordado, macramê, Entre 2005 e 2012, Wagner trabalhou como pedagogo
costura desde fazer barra em calça até criar um bichinho em um presídio, onde conseguiu desenvolver com
de pelúcia. Sempre com muita aptidão manual. Ela alguns internos trabalhos relacionados à arte. De
recortava uns anúncios de jornal e desenhava à mão. Eu acordo com ele, lá, inclusive, criou mais repertório
achava isso fantástico — lembra Wagner. do que produziu.

Porta de casa afora, o paranaense também estava — Aprendi muito mais sobre a marginalidade,
cercado por arte: até os 18 anos de idade, morou no bairro sobre a educação enquanto processo
do Xaxim, onde o grafite nasceu na cidade. Durante o transformador, onde é o papel da arte nisso.
boom dessa arte urbana, era comum, de acordo com ele, Contudo, chegou um momento em que eu
que os artistas de Curitiba trocassem fotos dos primeiros estava cansado. Estava em um ambiente
grafites com outros profissionais de São Paulo. extremamente opressor e muitas vezes, por
isso, me sentia cansado — revela. Na época,
— Eu tinha entre 13 e 14 anos e aquilo começou a me tentou buscar outro caminho, quando
chamar a atenção. Por sorte, ou ironia, estava no berço tentou a área da fotografia.
do grafite em Curitiba. Eu estava com grandes nomes e
hoje posso afirmar que sou fã dessas pessoas. Tive a Ele lembra que, apesar de ter produzido
oportunidade de estar ali — conta o tatuador. bons trabalhos, não conseguiu engatar
na profissão. Ainda estava, inclusive,
De acordo com Wagner, ele chegou até mesmo a ser conciliando-a com o trabalho no
reprimido em casa. Afinal, essa arte era — e continua presídio. Porém, um dia, foi convidado
sendo — marginalizada pela sociedade. Na verdade, para por um amigo para abrir uma ateliê e,
ele, estava apenas tentando levar a arte de dois lugares então, trabalhar com tatuagem.
que normalmente estavam antes, a galeria e o artesanato,
até as ruas. — No primeiro mês, tatuei 30 pessoas.
No segundo mês, consegui o mesmo
— Então, a gente começou a pintar na rua. Depois, passou valor que ganhava como pedagogo e,
a beber a água da fonte, em São Paulo. E de repente por fim, saí do meu antigo emprego
chegou às revistas, à internet e surge a explosão. O e pude voltar à arte. Larguei uma
grafite está em tudo — narra. Contudo, em determinado carreira com estabilidade para tentar
momento, Wagner acabou saindo da casa dos pais e não viver da arte com a tatuagem. Cheguei
pôde mais se dedicar à arte. Passou pela Publicidade, a um momento em que pude ser muito
História, Design, mas no fim das contas se apegou à mais eu, dono do meu tempo e de mim
Pedagogia. mesmo. Principalmente para saber respeitar minhas
próprias escolhas para tornar minha vida um pouco mais
Na época, queria trabalhar com alfabetização. Se agradável — conta Wagner.
especializou em educação para jovens e adultos. Só
quando pôde se restabelecer consigo mesmo voltou a Desde então, como ele diz, está batendo cabeça para
pintar. Ele pensava: “Agora tenho dinheiro para comprar viver da arte, pintando telas, grafite, fazendo direção
o material. Tenho liberdade, tenho espaço e um pouco de de arte para cinema, curadoria para outros artistas e
experiência”. também para algumas agências de publicidade.

18 NOVEMBRO/DEZEMBRO
JANEIRO/FEVEREIRO 2021
2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO
JANEIRO/FEVEREIRO 2020
2021 19
Santa fé
Outra característica comum em muitos artistas é daimistas. Nestas funções, passou a ter, então, contato
relacionar seu trabalho, a arte, à espiritualidade. Afinal, com a sua própria espiritualidade.
ambas podem ser consideradas como formas de
externalizar sentimentos. Não à toa, Wagner conta que, — Estamos falando sobre a força da natureza, evocando
no assunto religião, já bebeu de várias fontes. a força da natureza. Com a ayahuasca, passei a sentir
essa força. Passei a ter isso correndo no meu corpo,
— Fui de pentecostal até o que hoje me move, que é onde dominando minha cabeça, trabalhando comigo em
trabalho minha espiritualidade, que é na força do Santo processo de cura, de limpeza, e mesmo fora dos
Daime. Mas como colecionador de experiências que sou, trabalhos na igreja, como chamamos o espaço religioso,
comecei a conhecer várias fés e as que mais me atraíram passei a entender: ah, sim, isso é orixá. Depois que você
foram as de matrizes africanas e, também, puramente conhece, que percebe, que tem o despertar para essa
brasileiras. Os cultos à natureza, aos campos santos, às força, ela passa a ser muito mais nítida pra você. Em tudo
vibrações sem nome — revela Wagner, acrescentando — acredita Wagner, que começou a frequentar casas de
que chegou a passar também pela Umbanda. Umbanda e Santo Daime aproximadamente em 2011.

Ali, o filho de Oxóssi não chegou a ser membro de uma Neste momento, para o tatuador, a maior questão foi o
casa, mas trabalhou em correntes dando força. Ele conta chamado para consciência do Sagrado. Ele afirma que,
que, ao chegar à religião, passou a fazer relações do que na época, sentia a necessidade de sentir uma força.
vivia ali à sua vida cotidiana, pensando até mesmo na Hoje, conta que quando vai à Umbanda e começam os
infância. tambores, o corpo não responde à cabeça. Quando vai
ao Candomblé, sente um respeito que chega a pesar sua
— Eu percebi que eu fazia Umbanda desde que eu me cabeça. Segundo ele, fica em um estado de contemplação,
entendo por gente. Enquanto conexão com a natureza, meditativo, mas sempre de olhos abertos.
musicalidade, com os hábitos. Isso foi uma grande
epifania talvez para algo maior — explica o artista, — E com o Daime eu me senti familiarizado. Passei a
que também afirma que, neste momento, o orixá frequentar, a gostar daquele ambiente e de conhecer um
verdadeiramente surge em sua vida e então passou a pouquinho mais a fundo. Comecei então a fazer trabalhos
trabalhar mais a linha do Santo Daime em suas práticas mais específicos em datas específicas, trabalhos
religiosas. em mata, trabalhos de cura. E a partir daí comecei a
desconstruir tudo que o é religião. Afinal, todas as forças
Ele conta que, nesta época, conheceu o orixá, resumido estão trabalhando no contexto de segurar a força entre
por ele como força, grandeza e potência, e, com isso, nós — conclui.
passou a se aprofundar ainda mais nas correntes

EU PERCEBI QUE EU FAZIA UMBANDA DESDE QUE EU


ME ENTENDO POR GENTE. ENQUANTO CONEXÃO
COM A NATUREZA, MUSICALIDADE, COM OS HÁBITOS

- Wagner Santiago

JANEIRO/FEVEREIRO 2021 21
Filhos de Odé: caçadores de arte?
Talvez, estar rodeado de arte seja comum para os filhos de Oxóssi. Pelo menos, é o que
parece acontecer na casa onde Wagner mora junto a outros dois filhos do orixá das
matas — Rafael, que também é artista plástico, e Enzo, seu filho.

Para Rafael, arte é expressão, assim como a fala. Ou mímica, de repente. Ele acha,
inclusive, que é a maneira mais livre de se expressar já que não exige que ninguém saiba
pintar ou desenhar.

— Ela não exige nada de você. Basta você querer. Se você disser: “Eu quero começar
a pintar, produzir arte ou esculpir, mas eu não consigo”, ou olhar para outro trabalho e
achar que nunca conseguirá fazer igual, na verdade, você precisa aprender o que é que
você faz — opina Rafael, que continua:

— Se isso te incomoda muito, você vai atrás da técnica, porque aí a arte vira escolha.
Depois, você descobre a maneira que você gosta de fazer. Aí você só faz. Só se comunica.
E não é uma comunicação de um para um. É de um para incontáveis — conclui.

Na opinião do artista, arte e espiritualidade, portanto, vibram na mesma energia, mas se


materializam de formas diferentes já que possuem propostas diferentes. Segundo ele,
ambas podem ser de cura e sempre se comunicam.

Fruto das matas


Enquanto isso, Enzo, de 12 anos, filho de Rafael, também interpreta que arte é um jeito
de se expressar. Em um caderno que fica na cabeceira de sua cama, desenha algumas
coisas aleatórias, segundo ele, quando está feliz, quando está triste — sempre variando
de acordo com seu humor. Nos desenhos, cartoons e monstros japoneses, dragões, o
Goku, Pokemon. Tudo a partir da sua própria interpretação de arte e a sua forma de se
expressar.

Depois que Naíse Domingues, diretora de conteúdo do coletivo KOBÁ, perguntou a ele se
era, então, meio-artista, Enzo respondeu:

— É. Sou meio-artista.

JANEIRO/FEVEREIRO 2021 23
KOBÁ | Para você, o que é arte?

WAGNER SANTIAGO | Expressão corporal,


independente da plataforma, independente
da técnica, o corpo expandindo para uma
nova dimensão crítica, de sensibilidade,
beleza, denúncia. É isso.

24 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 25


KOBÁ | O que Oxóssi representa para você?

WAGNER SANTIAGO | Oxóssi representa pra


mim a força da natureza. Eu, por exemplo, gosto
desse contato imediato. Eu sinto a presença,
sinto a força como um guia que já esteve antes
numa vida passada e que lá no futuro será a
flecha que se lançou. Mas desconstruindo uma
vida linear cronologicamente.

É difícil falar, eu até entro numa demanda


muito específica porque a presença e a força
de Oxóssi são a natureza em primeiro contato
comigo. É essa força que eu sinto quando eu
encosto numa pedra, quando toco numa árvore,
quando estou remando. É o meu momento de
conexão, e eu acho que o que vira essa chave é
a presença de Oxóssi.

26 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 27


KOBÁ | Na sua opinião, como espiritualidade e arte se
relacionam?

WAGNER SANTIAGO | Duas retas que se cruzam


apenas no infinito. A interferência espiritual na arte,
falando sobre mim, vem da meditação, do silêncio.
Mas quando falo de meditação, não falo de passar
horas em silêncio. Digo tomar um café em silêncio
e me preparar para montar uma tela. Conseguir
montar uma mesa para que ela esteja minimamente
atraente para proporcionar um bom trabalho. Colocar
a caneta no lugar certo. Isso para mim é ritualística.
Espiritualidade, disciplina, quase uma doutrina de vida.

28 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 29


KOBÁ | Como que Oxóssi influencia sua
rotina artística?

WAGNER SANTIAGO | A vibração.


Quando pede explosão, quando pede
denúncia, quando pede um ataque. É aí
que ele vem, aí que ele solta sua única
flecha. E o resto a gente já sabe.

30 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 31


KOBÁ | Quais são as maiores dificuldades dos produtores
de cultura diante do cenário de desvalorização artística do
governo?

WAGNER SANTIAGO | Viver de arte no Brasil já é um grande


privilégio. Naquele momento em que ela vive do trabalho
artístico dela, que ela vende, seja ela uma pessoa do
teatro, seja artista plástica, dançarina. Você percebe que,
normalmente, a galera tem que atuar em várias frentes e
não consegue focar só no trabalho. E isso para o artista é
muito frustrante. É doloroso. Essa é a dificuldade em um
país que não favorece um artista, que trata a cultura como
um subproduto. Estamos na batalha, no dia a dia, para
sobreviver. Comer, pagar um aluguel. É difícil.

32 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 33


KOBÁ | Qual é o papel político da arte?

WAGNER SANTIAGO | Não se calar. Estar na


trincheira vivo. Quase morto. Mas quase morto ainda
é vivo. Estou aqui! Um artista de rua está pintando.
Ele sofre repressão, mas ele está lá. Hoje sofre
repressão e amanhã está de novo. O hippie da praia
ganhou espaço, vai abrindo trincheira. Você está
mostrando seu trabalho para pessoas diferentes da
sua bolha. Galgando, dia a dia, escavando.

34 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 35


KOBÁ | E do orixá: qual é o papel político, para você?

WAGNER SANTIAGO | Está intimamente ligado à


resistência. Da gente se posicionar enquanto vida
espiritual. Temos vida financeira, amorosa. E quando
você cuida da sua vida espiritual? Quem vai definir
o que é certo o que é errado? Quem vai invadir seu
templo? Quem é essa pessoa que vai privar de ter uma
experiência com um Deus que não o dele? Então a
gente tem que bater tambor. Bater cabeça. Orixá é o
que nos move. É quem deixa a gente inquieto em casa
para a gente buscar dividir essa energia de maneira
limpa. Fazer uma troca justa.

36 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 37


KOBÁ | O que vem à sua cabeça ao relacionar arte e natureza?

WAGNER SANTIAGO | Acho que a gente pode fugir de fazer um espelhamento do


trabalho artístico da natureza quanto mata. A gente pode falar da arte e da natureza do
artista, que reflete a natureza de um tempo. Com isso a gente foge do senso comum de
ligar arte ao cara que pinta folhas. Não é isso. A gente está falando de uma natureza
mais profunda, mais peculiar, de vivências reais. Essa natureza, nesse momento da
criação artística, até se sobrepõe à outra, para num momento seguinte se juntarem e a
arte ser, de fato, essa epifania que esperamos que seja.

38 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 39


KOBÁ | Na sua casa, como você representa a sua espiritualidade?

WAGNER SANTIAGO | Para mim está intimamente ligado à


ritualística. Eu sou muito apegado a rituais, sejam eles quais forem.
Desde tirar o primeiro pé da cama, a primeira fala do dia, como
posiciono as canetas, como gosto que elas estejam. Não começo
a fazer enquanto tudo não estiver colocado no seu devido lugar.
Ao contrário do Rafa, ele é mais fluido. Eu não. Eu passo cinco dias
montando uma mesa para fazer um trampo no último. Quando tudo
isso está numa conexão: passei meu café, acendi uma vela, ouvi um
ponto, a mesa está perfeita. Vai começando o furor das coisas. É
tudo lindo. Tudo nos é dado, só nos falta fé.
KOBÁ | Então uma ritualística espiritual faz parte do
seu processo para criar?

WAGNER SANTIAGO | Faz parte. Não tem como fugir.


Até porque a demanda de arte que me invade hoje
está muito ligada ao povo preto. Então se eu estudo
isso minimamente já estou de cabeça nos orixás. E
estando de cabeça nos orixás eu não tenho para onde
correr. O que eu pinto é essa força da espiritualidade,
por isso faço essa ritualística, que é minha, peculiar,
única. Mas ela que é a faísca para me deixar
confortável ou inquieto para depois externalizar, seja
numa fotografia, num grafite, numa tela, num vídeo,
fazendo direção de arte, fazendo curadoria.

FICHA TÉCNICA:
Fotos: Marco Alcântara
Reportagem: Gabriel Sorrentino
Produção: Flávia Proença
Beleza: Bárbara Dembicki e Vanessa Alves
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER

A COROAÇÃO DE
como referência, como um rei. Pertencente ao panteão nagô, o culto a Oxóssi acontece
apenas na nação de origem. Contudo, a influência das tradições iorubás fez com que
deuses caçadores cultuados em outras nações do candomblé também estabelecessem

OXÓSSI EM TERRAS
relações de semelhança com Oxóssi. Logo, Oxóssi é considerado um orixá que ultrapassa
essas barreiras. Para o sacerdote, a associação do orixá à realeza de Ketu acontece da
seguinte forma:

BRASILEIRAS
— Oxóssi é rei de Ketu, mas mais por um processo de reinvenção do que por ter reinado
na cidade, muito embora a gente tenha elementos que deem conta de que, de fato, houve
um rei caçador em Ketu e ele fazia parte dessa dinastia onde as famílias se alternavam

Eduardo Bartkevihi
no poder. Então, Oxóssi é ligado a tudo isso, mas não temos documentos datados que
nos permitam afirmar com precisão — elucida o candomblecista, que também é autor do
por: livro Apropriação cultural, da coleção Feminismos Plurais.

Um desses indicadores se baseia na formação do Terreiro do Alaketu, apresentado pelo


professor Renato da Silveira no livro “O Candomblé da Barroquinha”. A fundação do
A ressignificação dos orixás africanos foi Terreiro do Alaketu, um dos mais antigos do Brasil, aconteceu em 1616 por Iyá
Otampé Ojarô e sua irmã, Iyá Gogorisa. Otampé era descendente da linhagem real
de extrema importância para que os povos africana Arô, do antigo reino de Ketu. No entanto, compreende-se que o reino
de Ketu era dividido entre cinco famílias que se intercalavam na sucessão
continuassem cultuando os seus deuses do trono. Eram elas: Alapini, Magbo, Arô, Melsla e Mefu. O nome dado à
família apresenta ligação com a saudação a Oxóssi, conhecida como
Oke Arô, estabelecendo assim alguma ligação entre Oxóssi com o
Entendendo as divindades como seres existentes em um reino de Ketu.
contexto cultural e social, Oxóssi sai de uma posição onde era
reverenciado como orixá secundário para adquirir uma certa Embora não existam registros que considerem Oxóssi um
primazia no Brasil e se tornar um orixá ainda mais destacado: obá¹ do reino de Ketu, no Império de Oyó, o tema demanda
o caçador e protetor das matas. Sendo assim, Oxóssi passa a pesquisas aprofundadas sobre a cultura africana. No
representar mais fortemente todas as lutas pela alimentação, entanto, a importância dada ao orixá e a coroação de
sendo consagrado o grande orixá da fartura. Oxóssi no candomblé Ketu em terras brasileiras
parecem ser suficientes para os adeptos da
Esse fato ocorreu em um momento de resistência onde a união religião.
por uma luta comum era de extrema necessidade para os povos
africanos. A intensa relação com Oxóssi e a identificação como — Para nós não faz a menor diferença se Oxóssi era
um grande rei, por sua vez, também se associa ao fato da mata o rei de Ketu ou Alaketu na África. Ele foi estabelecido e
ser considerada um refúgio. coroado rei de Ketu aqui no Brasil devido à importância que
ele assumiu nesse processo — relata Pai Rodney.
— Acredito que havia um rei caçador, um provedor. E que era
importante, na maneira como o Candomblé se estruturou, ter Oxóssi desempenha um papel importante na sociedade nos dias
esse rei caçador e provedor, uma vez que a mata era o refúgio, atuais, sendo responsável por alimentar um ideal de revolução que
o lugar do aquilombamento. E ter essa proteção desse senhor tem por objetivo unir o povo contra todo o tipo de desigualdade que
Oxóssi, que comandava a mata, era importante — explica o insistem em impor. Como grande protetor que é, o orixá cuida dos
babalorixá Pai Rodney de Oxóssi. seus, garantindo a fartura e a prosperidade em tempos difíceis.

O Candomblé de Nação Ketu, de origem nagô, foi configurado


pela presença de muitos sacerdotes e sacerdotisas consagrados ¹Obá: Rei em iorubá
a Oxóssi. Essas grandes casas passaram a identificar o orixá

44 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 45


ESCULTURAS E
achar os detalhes, os instrumentos e os acessórios. O mais endido os próprios idealizadores, que ressaltam uma das
real possível — acrescenta, revelando que, para a confecção principais intenções da iniciativa: tornar as coisas mais le-

RELIGIOSIDADE:
das bases das esculturas, a profissional utiliza uma base ves. A artista afirma que, no contato com os clientes, seja
simples de acrílico ou de MDF. preciso estabelecer um momento de paz, de tranquilidade,
A umbandista chama a atenção para um ponto muito im- de acolhimento e de abraço. Para o futuro, Manuella espe-
portante no seu ritual de produção: a limpeza. Para isso, ra que as pessoas possam voltar às suas rotinas de uma

AS REPRESENTAÇÕES
ela reafirma a importância de manter os pensamentos ele- forma diferente, com um maior autoconhecimento e uma
vados, a energia num padrão vibratório bom e os banhos maior proximidade com a espiritualidade. Portanto, reafir-
de ervas em dia. Antes de iniciar a confecção, ela prepara ma o desejo de crescer cada vez mais, de acordo com o seu
sua mesa de trabalho com uma vela branca e um copo de merecimento e propósito.

SAGRADAS
água, pedindo o auxílio de seus guias e permissão para se
conectar com os guias dos seus clientes. Incensos também
são utilizados, tanto no momento da produção, realizada

Eduardo Bartkevihi
em um ateliê em um dos seus cômodos, quanto nas
por: firmezas na casa da umbandista. Ela con-
ta, inclusive, que destinou um espaço
do ateliê para os caboclos:
— Dentro do ateliê, a gente deixa
Em meio à pandemia, uma nova empresa tem um cantinho de caboclo porque a

ganhado espaço com a qualidade dos seus produtos gente acredita muito que o Pedri-
nha teve o auxílio desses falan-
geiros. Então sempre peço aque-
la ajudinha, né — brinca.
O período de isolamento social foi responsável por entrega, entre outros. Manuella, por sua vez, é quem
O sucesso da loja tem surpre-
diversas iniciativas dentro da comunidade afrorreli- confecciona as esculturas, fotografa e divulga nas
giosa. Iniciado no mês de abril, o Pedrinha D’Aruanda, redes sociais da loja. O material utilizado nas peças
um projeto desenvolvido por um casal de umbandis- também é escolhido pela artista, que tem o costume
tas, Manuella Saadi e Bruno Campello, tem crescido de garimpar e procurar por novos itens.
e conquistado os seus clientes com esculturas feitas — Eu não faço todas as estruturas de uma vez só
com muito amor e dedicação. para depois ir fazendo especificamente cada deta-
A procura dos seus irmãos de santo por peças volta- lhe. Se eu começo uma encomenda, eu faço do início
das às religiões de matrizes africanas já existia antes ao fim para depois começar outra, porque eu preciso
da loja abrir, explica Manuella, que trabalhava com a estar conectada com a energia daquela pessoa para
produção desses materiais para festas infantis. poder fazer a peça de forma que seja única, especial
— Quando chegou a pandemia, tudo foi cancelado. e significativa — ressalta.
As festas infantis, as comemorações. E aí, eu pude A confeccionista explica que as características prin-
fazer essas encomendas. À medida em que eu fui cipais são enviadas pelos clientes, deixando assim
postando, eu fui tendo sucesso e tive um estalo: vou a inspiração para os detalhes das peças. Além de
fazer um Instagram separado para poder comercia- utilizar bastante a sua intuição, ela conta que alguns
lizar e divulgar o meu trabalho fazendo os guias, os guias se apresentam e outros aparecem em sonhos.
orixás, realmente me dedicando à religião. Quando Dependendo do tamanho e do modelo das escultu- PEDRINHA D’ARUANDA
eu criei e pensei no nome, veio automaticamente na ras, as estruturas dos materiais variam entre por-
@pedrinhadaruanda
minha cabeça: Pedrinha D’Aruanda. Eu tenho certeza celana fria e isopor. As roupas são feitas tanto com
que foi através da espiritualidade — conta a empre- porcelana quanto com outros materiais como tecido,
(071) 98679-2321
endedora. fitas e aviamentos. Depois da estar peça pronta, a ar-
CONHEÇA AS PEÇAS
Com a divisão das tarefas entre o casal, Bruno ficou tista acrescenta elementos de vários materiais.
responsável por todo o processo burocrático da em- — Tem peça que leva pedra natural, palha, tecido,
presa, incluindo atendimento aos clientes, estabele- coisinhas de metal, pingentes. Cada peça é realmen-
cimento de contratos, postagens dos produtos para te muito específica e a gente procura cada vez mais

46 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE JANEIRO/FEVEREIRO 2021 47
TERREIRO E
SOCIEDADE
por:
Obalera

Lembrar desse itan, contado e revivido dentro dos terreiros de Candom-


blé, enquanto pensava no que escrever diante da tristeza e insegurança
coletiva, me parece tão certeiro como a própria flecha. Evidencia o valor

O CAÇADOR
de prostrar-se diante do Sagrado, ainda mais em momentos em que a
vida entra em desequilíbrio, que o sol deixa de brilhar.

É o poder da magia, da reza, do ebó, dos saberes ancestrais que elevam

E SUA MAGIA
o caçador de uma flecha e o faz acertar o coração do mal que abatia a
comunidade.

Até mesmo o grande caçador precisou se recolher e silenciar-se para


escutar e saborear a Imensidão da Existência que habita em nós para
então compreender e realizar os bons caminhos, que irão possibilitar a
restituição do equilíbrio de toda a sua Comunidade-Terra.
Ainda aflito pela pandemia que assola todos nós com mortes, Que assim como Oxóssi, tenhamos a sensibilidade e a sábia capacidade
adoecimentos, desemprego, terreiros que seguem sendo alvos de de se silenciar para escutar a Imensidão da Existência que habita em
ataques racistas, operações policiais nas periferias que só geram nós - Orixás, Voduns, Inquices, Entidades e Encantados - e desse modo,
sangue e tristeza... sigo buscando uma escrita ritmada por nossa preta encontrar nossos caminhos de reequilíbrio, proteção e saúde. Ainda é
oralidade. Desta vez, foram nos passos cadenciados do agueré de “Tempo do Silêncio”!
Oxossi que busquei a inspiração para dar hun a estas palavras.
Ọdẹ Nlá gbá wa o! (O Grande Caçador nos projeta!) Oke Aro!
Os antigos contam que num tempo imemorial, um enorme pássaro
pairou sobre o céu de Ketu tapando a luz do sol e provocando uma
grande tristeza e desequilíbrio àquela sociedade. Três caçadores
foram convocados pelo Alaketu. Os dois primeiros miraram, mas suas
flechas não acertaram. Já o terceiro caçador, o mais jovem, antes de
ir caçar, consultou o oráculo e em seguida realizou um ebó (oferenda)
aos ancestrais, saudou as energias da Mãe Terra e às pediu proteção,
firmeza, equilíbrio e precisão em suas mãos para que assim tivesse Homem negro de Candomblé, Obalera é cientista
social formado pela PUC-Rio e pesquisador-ativista na
uma boa caça e, desse modo, seu povo voltasse a ter a necessária
área de relações raciais. Como escritor e poeta, desenvolve
segurança, alegria, paz e prosperidade. trabalhos autorais sobre racismo religioso e também que buscam
afirmar e difundir os valores e a beleza das religiões de matriz
Vocês podem imaginar o desfecho dessa história? Odé, o caçador, africana. É colunista da comunidade Ataré Palavra Terapia. Em
se silencia de frente para o grande pássaro, mira e com sua única 2019, publicou o ebook “Por uma perspectiva afrorreligiosa:
flecha acerta o seu coração. Dessa forma, o sol volta a brilhar e toda a estratégias de enfrentamento ao racismo religioso”,
publicado pela Fundação Heinrich Böll. Atua
comunidade se alegra e festeja a vitória de Oxossi e a volta do equilíbrio
também como educador popular e brincante
da vida em Ketu. na Companhia de Aruanda.

48 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER JANEIRO/FEVEREIRO 2021 49
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER

A PRESENÇA DA CULTURA
— Se eu preciso da folha para rezar o orixá e eu não conheço da folha, como é que eu vou fazer? Eu
penso que aí entra a contribuição indígena, porque os povos originários passam a ensinar — explica
Bruno Klemmer, sacerdote do Terreiro de Umbanda Caboclo Tupinambá e fundador do Guata Porã

INDÍGENA NAS RELIGIÕES


Eté, um espaço de debates, divulgação de trabalhos, pesquisas e outras formas de conhecimentos
sobre práticas xamânicas.

AFRO-BRASILEIRAS
Portanto, a troca de conhecimentos entre esses dois povos fez com que as práticas
de seus respectivos cultos sofressem influências entre si. Além disso, é possível

Eduardo Bartkevihi
também encontrar o culto às religiosidades indígenas dentro da Umbanda e do
por: Candomblé.
Surgido na Bahia, o termo “Candomblé de Caboclo” nasceu entre o povo
de santo ligado à nação Ketu, com o objetivo de reforçar a distinção em
relação aos terreiros que cultuavam caboclos. A princípio, foi bastante
praticado nos candomblés de Nação Angola pois, historicamente, o
culto aos ancestrais faz 0parte da cultura do povo bantu. Nos dias
Na formação da Umbanda e o atuais, adaptou-se de diferentes formas aos cultos do Candomblé
e dificilmente encontra-se um Candomblé de Caboclo funcionando
Candomblé, os caboclos enfatizam independente de outras nações.

a relação afro indígena e transmitem Nestas tradições, o culto às entidades espirituais de diferentes
origens míticas – como indígenas, boiadeiros, marinheiros e
os seus conhecimentos marujos – ocorre separadamente, em paralelo às divindades
africanas. As cerimônias se dividem em consultas, onde há uma
maior proximidade das entidades com o público, e celebrações
festivas, onde os caboclos são homenageados. Nessa primeira,
há uma ênfase na cura dos males do corpo, tendo em vista que
Os europeus foram os responsáveis pela diáspora africana – os caboclos detêm a sabedoria das matas e o conhecimento das
fenômeno caracterizado pela imigração forçada – que resultou folhas para remédios e banhos medicinais.
na reunião de diferentes povos em terras brasileiras. Esse Na Umbanda, as identidades indígenas assumem outra posição.
processo gerou uma miscigenação étnica e cultural entre os Com participação direta em episódios importantes para a
povos colonizadores, os povos indígenas e os povos africanos. A história da religião, com as primeiras manifestações do Caboclo
convergência cultural se manifestou de diversas formas, inclusive das Sete Encruzilhadas, os caboclos são considerados grandes
no aspecto religioso. Dentre essas fusões, temos a relação afro- mentores que se apresentam como linha de frente na crença. A
indígena. cultura indígena tem uma forte presença dentro da Umbanda,
Segundo o historiador Luiz Claudio do Nascimento Dias, os manifestada principalmente no uso de ervas, de elementos
primeiros africanos que chegaram ao Brasil, em meados do século característicos – como maracás e cocares – e em rituais como
XVI, tiveram contato direto com os indígenas, desenvolvendo o Xamanismo e o Catimbó-Linha da Jurema.
o mesmo trabalho. Ele ressalta o estabelecimento de relações — Dentro da Jurema e do Catimbó há uma troca de valores
afetivas e de solidariedade entre esses povos: muito grande com a Umbanda, haja visto a presença de Zé
— As primeiras formas de compreensão de uma religiosidade Pelintra. É uma presença que veio da Jurema para a Umbanda.
africana reelaborada no Brasil se deu com o africano e a presença Então, existe muita Umbanda no Catimbó e muito Catimbó na
do brasileiro nativo. Quem é que passa as informações sobre as Umbanda, há uma troca cultural que é riquíssima — afirma o
propriedades terapêuticas e curativas das folhas, do ponto de vista escritor e também sacerdote de Umbanda Alexandre Cumino.
religioso, para os africanos? Os indígenas. O ritual da Jurema assemelha-se, em partes, ao da Umbanda.
A necessidade das folhas para a realização dos cultos aos orixás, Os Mestres Espirituais – indígenas, pretos-velhos, baianos,
antes realizado na África, foi de grande importância para que os entre outros – são seres que vêm ao plano físico para auxiliar
povos, de diferentes estruturas indígenas e africanas, se unissem os necessitados. Logo, é possível encontrarmos entidades
por um ideal comum. espirituais que transitam entre as religiões.

50 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 51


Xamãs umbandistas
O Xamanismo é uma prática que também se faz bastante — Existe o sincretismo para sobreviver e existe o HIBISCO
presente na Umbanda e no Candomblé, tanto por meio
do auto olhar voltado à complexidade das estruturas
sincretismo que acontece quando você quer estar
sincretizado. Essa cultura angola-congo é inclusiva,
Clara Nery
por:

internas quanto no estabelecimento de diálogo com a muito sincrética, que absorve outras culturas e quando

IEMANJÁ
natureza e com o tempo. isso acontece faz de acordo com um entendimento para
— A gente encontra o xamanismo em várias práticas. aumentar o axé.
Se formos pensar no Candomblé: é Xamanismo. Se A identidade indígena é presente nas religiões afro-
formos pensar na Umbanda: é Xamanismo. Talvez essas brasileiras seja por meio das práticas histórico-culturais
estruturas não se reconheçam xamânicas, porque a ou por manifestações espirituais. Essa troca demonstra
gente tem uma ideia equivocada de que o xamanismo a resistência da cultura dos povos nativos do Brasil,
é coisa de indígena. A gente tem essa ideia muito forte reafirmando a sua importância. Filha das águas, oceanos e marés.
porque os nossos povos xamânicos são os indígenas, — Tem uma frase indígena que diz assim: “Percorri por Transbordo vida em cada partícula.
mas por todo o mundo a gente encontra essas tradições, vários caminhos, sofri, venci, e andei nos quatros caminhos. Ligações irrompíveis,
inclusive porque Xamanismo é um termo antropológico e E onde eles se encontram, santo é o lugar”. E a gente Olhos marejados dispostos a sentir ao extremo.
não espiritual — elucida Bruno Klemmer pensa que onde eles se encontram é o rezo. Porque são os
Especificamente na Umbanda, de acordo com Alexandre quatro caminhos, as quatro direções, as quatro fases da O outro que aprenda a nadar,
Cumino, existe uma rica diversidade cultural que faz com lua, as quatro estações do ano, os quatro pontos cardeais, Ou não sobrevive ao navegar no mar que sou.
que existam diversas vertentes dentro da religião. Por os quatro elementos. E onde eles se encontram, santo é o
isso, existe uma pluralidade de Umbandas. lugar — conclui Bruno Klemmer, resgatando o conhecimento Se não andou
— É possível encontrar terreiro de Umbanda mais ancestral indígena. Sobre as aguas que andei,
sincrético, menos sincrético, mais católico, mais Não verás o que eu vi,
pajelança, mais africano, mais europeu, mais exotérico, Muito menos tudo que senti.
entre outros. Então, há uma diversidade, e isso depende
do dirigente e das entidades que comandam aquele Me orgulho de continuar mergulhando
terreiro — opina Alexandre Cumino. e transbordando amor.
O sincretismo fundamentado entre as religiões de Me divido em mil, milhão, trilhões de mim.
matrizes africanas e o catolicismo também se faz Não é preciso repor o infinito.
presente nos dias atuais. A representação de santos
católicos associados aos deuses africanos se deu numa Falo de Janaina ,
estratégia de resistência à forte repressão aos cultos aos Marabô, Princesa de Aióca,
orixás e por influência da cultura banto na Umbanda. Minha dona,
Cumino relata que é comum essa cultura aparecer bem Minha mãe,
sincretizada: Mãe d’água,
Dona Iemanjá.

Clara Nery é jornalista, atriz, poetisa,


repórter da Band TV e fundadora do
Hibisco Poesias. A página foi criada em
2014 como um espaço para divulgar
poemas, textos e citações autorais por
meio do Facebook, Twitter, Instagram
BRUNO KLEMMER NA OCA (@hibiscopoesia) e blog.
GUATA PORÃ ETÉ, EM CAMPO
LARGO DA ROSEIRA, SÃO JOSÉ
DOS PINHAIS, NO PARANÁ

52 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO JANEIRO/FEVEREIRO 2021 53
JOIAS QUE SIMBOLIZAM para que o produto seja avaliado, lixado e limado da
Representatividade

A REPRESENTATIVIDADE
forma correta. Feito isto, é dado o polimento para que
o adorno fique pronto para a venda. afro-brasileira
por:
Eduardo Bartkevihi A loja trabalha com produtos de ouro e de prata de
lei, a prata mais pura para se fazer joias. No entanto,
a prata é disponibilizada à pronta entrega e o ouro é
A ideia de produzir artigos religiosos tem a ver com
a representatividade dos religiosos tanto da Umbanda
quanto do Candomblé. Carla explica que, como objetivo
trabalhado sob encomenda, com prazo de entrega para o futuro, elas esperam que possam continuar a
de, no máximo, dez dias úteis. Além das coleções produzir joias que signifiquem tanto para as pessoas.
Resgatando a ancestralidade, o empreendimento no ramo da ourivesaria idealizadas e desenhadas pelas artistas, a loja também — Para 2021, a gente quer continuar produzindo joias
trabalha as particularidades desejadas por cada cliente trabalha com pedidos específicos dos clientes. lindas inspiradas no orixás, para que cada criação
nossa carregue toda a ancestralidade, emoção e amor
— As inspirações que a gente tem são do nosso dia que nós temos por eles. E continuar fazendo projetos
a dia, com a religião mesmo, e pesquisando também. individuais, que a gente tem muito também. Nós
Inaugurada em 2018 por duas moradoras do Rio desenvolvimento de uma ideia, a impressora gera
Nós temos joias que nós já fizemos, que o cliente disse não só aprendemos com esse cuidado, mas ficamos
de Janeiro, a loja Dandarrô Artefactos tem como o um protótipo em resina. Esse molde se transforma
que queria de determinada forma porque a qualidade felizes por poder suprir essa ansiedade que a pessoa
seu principal objetivo empoderar o Sagrado através numa borracha, na qual é injetada uma cera e, a partir
do orixá pede tal elemento. E a gente fez — explica a tinha de ter alguma coisa tão dela, tão a ver com o seu
das joias produzidas. O cuidado com as peças é o disso, o projétil é enviado para a fundição, processo
ourives. orixá dela, que ainda não tinha encontrado no mercado
diferencial da ourives Giseli Vieira e da designer de joias terceirizado pela loja, onde é gerado um molde de
— conclui.
Carla Carvalho, que procuram entregar produtos que gesso onde a prata derretida é injetada. Ao final, tem-
atendam tanto na qualidade quanto na especificidade. se a joia formada.

Unidas pela religião, elas se dividem no processo O segundo momento de produção é realizado por
de produção das joias, realizado em uma oficina na Giseli, ourives há mais de 30 anos - e essa etapa é de
casa de uma delas. Responsável por estruturar cada grande importância para a qualidade dos produtos. O
peça, Carla trabalha com design 3D para tal. Após o trabalho manual é feito de forma bastante minuciosa

DANDARRÔ ARTEFACTOS
www.dandarroartefactos.com.br
@dandarroartefactos
(21) 96987-9830

CONHEÇA A LOJA

ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE


PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO

FÉ DE
ARUANDA
por:
Letícia Freddi e Bruna Lima

NA CALMARIA E NA
FÚRIA DO MAR...
ODOYÁ!
Iemanjá é a representatividade da família. É o seio de Por isso, ao lembrar de Iemanjá, fuja dos padrões já
Mãe. É a simbologia feminina... É a força da mulher. estabelecidos. Enxergue a força de iabá agindo em
Tantos significados rondam Janaína, mas o que de seu cotidiano, os campos de ação dela são mais
fato ela representa? latentes do que simplesmente o mar. Iemanjá está
Hoje, olhando com uma perspectiva além dos conosco em cada detalhe: basta que estejamos
estereótipos de sereia, Mãe d’Água e afins que abertos a compreendê-la.
carregam nossa doce orixá, Iemanjá é aquela que Em tempos difíceis que vivemos, saudamos nossa
recebe o nome de “Dona das Cabeças”, conforme Rainha e pedimos em oração para que nos cuide
os itans, em sua riquezas, nos contam. Orixá que como Mãe que és: dos braços quero abrigo, do teu
possui os domínios do pensamento como um todo: amor o acalanto e do teu conselho o discernimento
raciocínio, sonhos, ideais. para manter a espinha ereta e a saúde mental em
Mais do que a dona das águas salgadas, Inaê traz dia. Porque mar bravo não assusta o bom marinheiro O portal Fé de Aruanda foi criado
consigo a criatividade. Já pensou por esse lado? O que - principalmente aquele que tem Iemanjá como em maio de 2017 por Letícia Freddi e
seria de nós sem o poder da ideia? Sem o organizar protetora. Bruna Lima com o simples intuito de levar ao
dos pensamentos? O corpo não é nada sem a mente. Que sejamos guiados pelos mares da vida de mãos mundo toda palavra de amor e fé em homenagem
à Umbanda. De conteúdo totalmente autoral,
É o comando da mente que movimenta e leva o corpo dadas com Iemanjá. Odoyá!
além de textos poéticos e reflexivos, traz também
para onde quiser.
aprendizados adquiridos dentro do solo sagrado:
Forte, não é? Nem sempre na força da guerra e do
ensinamentos, rezas, todas as experiências que
corpo está a maior fortaleza: a mente é nosso lar, Na página 58, confira algumas interações um médium em desenvolvimento atravessa a partir
refúgio e nossa zona de estratégias para seguirmos com o portal Fé de Aruanda no Instagram do momento em que inicia sua jornada espiritual.
em frente. Inspiradas pela intuição e guiadas pela
fé: a fé que me guia.

56 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 JANEIRO/FEVEREIRO 2021 57


Iemanjá representa para mim... CANTIGAS
PARA NAVALHA
@brandaomaris
@kelly.acardoso
@lecamapu por:
Naíse Domingues
Parceira do coletivo, a loja Fio de Ouro
cedeu seu espaço físico para transmitir
axé para os seguidores do KOBÁ
Mãe geradora, Iemanjá representa Na grandeza de suas águas As águas de Mãe Iemanjá
o início, a vida. Dona das cabeças, reencontramos o equilíbrio representam as fases de nossa
te trouxe tranquilidade e equilíbrio espiritual, paz e amor. vida. Às vezes turbulência, às vezes
Quem acompanha o KOBÁ no Instagram já sabe que du- quanto nossas cantigas sequer são ouvidas com naturali-
para seguir em frente. calmaria. Que tenhamos a sabedoria
rante o mês de dezembro foi exibida a primeira temporada dade — explica Gabriel Sorrentino, apresentador do circuito
de nossa mãe para passar pelas
do programa Cantigas do Axé. Com o mesmo nome de uma de lives.
adversidades do dia a dia
das colunas digitais do coletivo, o circuito de lives, ofereci- Louvar os orixás, pretos-velhos, caboclos e exus, temas
do pela loja Fio de Ouro, trouxe muita curimba e conversa escolhidos para a primeira temporada, é também uma for-
para as noites de quinta-feira. ma de propagar a cultura de terreiro.
E falando na coluna musical, o ogã Hugo de Oxóssi, que já Para o jornalista, os pontos são músicas tão sagradas
@cah_santoz
@safreiremaria @lucianaschwarzbach trazia pontos cantados para a página do KOBÁ, comandou quanto as que tocam na missa ou nos cultos evangélicos.
os atabaques ao lado do também ogã Vitinho de Oxóssi. Ele afirma: tudo é lindo demais e merece ser tratado com
— O Cantigas do Axé chegou para mudar o meu 2020. Foi naturalidade por todos.
um ano conturbado, mas a cada episódio da semana eu — Me senti extremamente conectado à Camila, à Duda e
tentava pensar que dias melhores chegariam. Pude me aos ogãs. Parecia que estávamos batendo uma curimba
conectar mais com o nosso público alvo, o que me possi- juntos. Acho que fizemos um grande trabalho espiritual,
bilitou fazer grandes amizades dentro da religião — avalia mesmo que on-line. E isso foi lindo! — finaliza.
Hugo.
Nos braços de Mãe Iemanjá Quando falamos da importância do Mãe Iemanjá é sinônimo de Quem comandou a conversa ao lado dos ogãs e da filha
nos entregamos e sentimos a Sagrado Feminino, aí está… assim força, vitalidade, dona das Duda foi Camila Abreu, proprietária da Fio de Ouro. Um-
imensidão de seu amor. Que suas como as outras iabás, a força cabeças, nos ajuda a manter bandista e devota de Maria Navalha — entidade homena-
águas lavem nossas tristezas e feminina nos fortifica, auxilia e nossa mente em dia geada no nome da loja —, ela definiu a temporada como
momentos de agonia. ilumina. A força feminina CURA! uma experiência única e gratificante. Camila explica que o
programa significou a confirmação que a loja é o canal que
a permitirá propagar a religião e honrar a entidade que ela
tanto ama.
— Foi a certeza que estou no caminho certo e ainda tenho
muito que estudar e fazer pelo Sagrado, mostrando nossa
@tatasinhagatti @catynha_melo
cultura e nossa realidade. Homenagear nossa ancestrali-
@_joaofernando_
dade é o que mais amo e pudemos fazer isso através da
curimba, tocando e louvando.
O entendimento do ponto cantado como uma demons-
tração pública de afeto pelas religiosidades de matrizes
africanas motiva cada vez mais a inclusão deste conteúdo
no KOBÁ. E a internet pode — e deve — ser usada como
Para nós também! Rs Que a nossa fé nos conduza nos Para muitos de nós, a Umbanda instrumento para a propagação de tal cultura, já que os es-
momentos de aflição e que nossos foi e é um recomeço. Muitos paços em mídias hegemônicas de televisão e rádio ainda
amados orixás nos confortem conheceram a religião em são muito escassos.
sempre. momentos de dificuldade — O programa é extremamente necessário porque a músi-
ca gospel é presente no Brasil e em todos os lugares, en-
58 JANEIRO/FEVEREIRO 2021
YORUBÁ em muitas outras comunidades de Yemoja. Então, en- Yemoja se torna a mãe espiritual de Sango após Torossi,

Renata Barcelos
tendi que Yemoja é prioritariamente Orisa ligada ao rio. a mãe que dá à luz, morrer no parto. Sango fica órfão e,
por:
O rio Ògùn é um dos mais importantes de área iorubá: então, Yemoja o assume. Suas entoações engrandecem
fonte de água, alimento e também navegação. Sem a o fato de que a Orisa tem as costas fortes que carre-
água do rio Ògùn, a sobrevivência seria muito difícil ali. garam Sango - é comum os iorubás carregarem bebês
com um pano nas costas (oja). Sango veio a ser rei da
O rio Ògùn passa por três estados na Nigéria, tem inú- cidade de Oyo e começou o maior império iorubá.
meros afluentes e ainda um enorme reservatório - para

EEPA OMI O!
essas populações, cultuar Yemoja é cultuar a própria O outro mito narra que Yemoja foi casada com Okere¹
vida. O mar, distante, apenas uma pequena parte da Ni- da cidade chamada Saki no estado de Oyo. Neste casa-
géria tem ele em sua costa. O rio Ògùn deságua em uma mento, eles não podiam quebrar alguns tabus. Yemo-
lagoa chamada Lekki, no estado de Lagos. ja quebra um deles: entra em um quarto proibido para

EEPA YEMOJA O!
guardar algumas ferramentas de Okere e pegar medici-
Uma das mais lindas emoções que senti foi beber água na para seu filho que estava doente. Então, Okere desco-
do rio Ògùn e tocar nele. bre, eles começam a se ofender e dizem coisas que eram
parte de guardar o tabu. Yemoja foge com a medicina
Descobri nestas minhas andanças que é impossível cer- em um pote e com seu filho nas costas. No caminho,
tificar exatamente a origem da Orisa Yemoja. No norte a medicina do pote cai, se transforma em rio. Por isso
de Oyo, muitos dizem que ela tem a origem ali, tem seu o nome do rio de Yemoja é Ògùn: a palavra com essa
Este é um texto de declaração de amor e fé por Yemoja. locais de fonte de água e o mais interessante no caso de grafia significa medicina e assim acreditam os devotos
Yemoja Conheci Yemoja muito pequena, lembro da minha mãe Yemoja é que muitas famílias querem para si o mérito de que suas águas carregam até hoje poderes medicinais.
em Oyó comigo na praia indo levar flores para Yemoja todo Ano serem elas a etnia original. Pergunte aos oyo: dirão que Importante: a grafia Ògún é a do Orisa.
Novo. Conheci o Candomblé bem criança, mas foi só são eles. Pergunte aos egba: dirão que são eles. E ainda
adulta que acabei por fazer todos os ritos até tomar mi- pergunte aos ibaras, sub etnia de Abeokuta: dirão que Yemoja é também muito conhecida por comer canjica
nha independência. eles quem viram o rio Ògùn começar a dar peixes. En- branca - é até mesmo entoado em seus orikis.
tendendo essa dinâmica iorubá, cabe a mim respeitá-la.
Meu amor por Yemoja só cresceu e, então, a África
começou a me puxar e comecei a buscar cada pe- Sem dúvidas, há três aspectos sobre Yemoja que todo
queno culto existente na Nigéria. O culto de Orisa, iorubá conhece: Yemoja é do rio Ògùn, Yemoja é a mãe
em sua maior parte, está concentrado na Nigéria. espiritual de Sango e Yemoja foi casada com Okere de
Saki.

Estive em inúmeros cultos de Yemoja em área


iorubá. Acabei me iniciando novamente ali. Não
porque não gostava dos cultos da diáspora,
mas porque Yemoja tinha me puxado para
dentro de famílias que passavam o culto dela
de geração para geração. Famílias especia-
lizadas puramente em Yemoja e, muitas,
só nela. Essa é uma dinâmica comum:
ter famílias especializadas em um único
Orisa.

Com anotações marcadas, estive na


comunidade de Ibara, em Abeokuta,
citada por Verger. Também conheci
sacerdotisas de Ibadan. Dos regis-
tros de Matory, estive em Igbhoro e

Iniciação de
Yemoja em Oyó
Rio Ògùn em
Abeokuta

Hoje, ressignifico a palavra e digo que Yemojaismo é Se me perguntam hoje se é errado cultuar Yemoja no mar,
aquele que tem Yemoja no centro de culto como aquela eu digo: é errado não cultuar Yemoja. Ela pode ser cultua-
mais importante, assim como em famílias que conheci em da até no deserto. Saber como um iorubá a entende no rio
área iorubá. é parte de reconhecer a origem africana e valorizá-lo - o
que acho extremamente necessário. Mas, por favor, conti-
A minha conclusão de religiosa é que a Orisa queria ga- nue a cultuar Yemoja onde você se sente melhor.
nhar mais território e talvez tão importante como o rio
Ògùn em área iorubá, na diáspora, ela só encontrou o mar. Para finalizar, poderia deixar mais dois recados: primeiro,
melhor do que passar Yemoja do mar para o rio seria re-
Dada a compreensão de oportunidade, um iorubá não re- presentá-la com traços africanos e pararmos com escul-
duziria a glória de seu Orisa. Reduzir a glória de um Orisa turas brancas ocidentalizadas. A segunda coisa que pre-
em um contexto familiar seria como rebaixar o status da ciso dizer é para que se acabe com a poluição nos festejos
sua própria família – logo, se Yemoja do rio ganhou todo de Yemoja. Sem isopor, sem plásticos, sem vidros jogados
mar, seria incoerente que um iorubá nativo de uma família nas águas. Use apenas biodegradáveis.
Yemoja dissesse que seria melhor o culto dela ser menor
e ficar confinado a rios. Ainda mais hoje com tantos rios Desejo que Yemoja proteja a todos.
poluídos.

O texto é baseado na prática de Orixá


Yemoja é louvada para trazer todas as coisas a quem a Então, o que aconteceu na América? Por que Yemoja ficou
seguindo a tradição Yoruba - Esin Orisa Ibile
procura. Durante meu período de iniciação em Oyo, que conhecida como rainha do mar? Inúmeros fatores podem
(Òyó, Nigéria), e pensamentos e análises pessoais
durou 21 dias no total - 17 em confinamento -, vi muitas ter contribuído para tal feito, mas o que podemos dizer é
da autora. Renata Barcelos, Yemojagbemi Otan-
pessoas irem até minha casa pedir ajuda para Yemoja. E que as canções e louvação para Yemoja na América ain-
monle Arike, foi iniciada em Yemoja em Òyó e está
eram todos os tipos de coisas: problemas de relaciona- da dizem odò, que significa rio. A palavra para o mar em
há mais de 30 anos no culto de orixá no Brasil. É
mento, trabalho, doenças. Ali consultado o oráculo, ebos Yoruba é okun.
criadora do canal Orisa Brasil (@yemoja_arike),
eram feitos para atender os consulentes. Embora suas
que fala sobre a tradição Yoruba.
cantigas e orikis louvem muito a maternidade e o fato de O nome traduzido mais comum para Yemoja é yeye omo
ter filhos, Yemoja é chamada para todas as situações. eja, a mãe dos filhos peixes. Essa relação com peixes pode
ter facilmente a levado para adoração do local das amé-
O principal oráculo das casas de Yemoja é o jogo dos ricas com a maior zona pesqueira: o mar. Ou seja, a mãe
16 de búzios. Os cultos de Yemoja possuem sua própria dos peixes do rio foi facilmente associada à mãe dos pei-
hierarquia e diversos tipos de cargos sacerdotais e ritu- xes do mar, e assim há registros na praia do Rio Vermelho,
alísticos são preenchidos por determinações oraculares em Salvador, onde Yemoja começa a ganhar festas para
vindas de Yemoja. ajudar os pescadores. Antes disso, Nina Rodrigues e até
mesmo Jorge Amado fizeram registros de Yemoja sendo
É preciso dizer que a Orisa não possui relação com Olokun cultuada em rios, na própria cidade.
em inúmeras comunidades de área iorubá. Poucas delas
consideram algum tipo de filiação por serem deidades de O festejo de Yemoja na praia ganhou calor popular e reu-
água. No mito de Olosa, deidade da lagoa, e Olokun, dei- niu até aqueles que haviam anteriormente marginalizado
dade do mar, em Ile Ifé, Olokun fica brava porque Olosa os cultos africanos. Yemojaismo, dito em 1964 pelo jornal ¹Okere: Um tipo
tem filhos e Olokun não. Alguns ainda dizem que Yemoja o Cruzeiro, é um termo referente àquele que não era do de nome de coroa
então seria a mãe de Olokun, já que Yemoja é a mais velha cultos africanos mas que levavam flores a Yemoja. Eram,
deidade do rio e toda expansão de água teria surgido dela. portanto, adeptos sazonais de um Orisa.

Família de
Yemoja em
62 JANEIRO/FEVEREIRO 2021
Ejigbo, Lagos
www.kobaexu.com.br

Você também pode gostar