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A Transposição da Dicotomia entre o Público e o


Privado
Publicado 25 de Setembro, 2015
Por Bruno Ricardo Bioni
Pesquisador da FAPESP e do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para Acesso à Informação/GPoPAI da USP

Por Marcio Moretto Ribeiro


Professor doutor da Escola de Artes Ciências e Humanidades da USP e membro do GpoPAI da USP.

Primeiro o site “Nomes Brasil”, e mais recentemente, o site “Tudo sobre Todos” tensionaram
a questão da proteção de dados pessoais no cenário nacional. O “Nomes Brasil” permitia que
o usuário pesquisasse, a partir do nome de uma pessoa, o seu número perante o cadastro
nacional de pessoas físicas/CPF e, inclusive, o status de regularidade do contribuinte.
Enquanto que o “Tudo sobre todos” alcançava uma gama de informações maior, viabilizando,
por exemplo, o acesso à data de nascimento, local de trabalho, endereços e nomes de
parentes e vizinhos, cujo critério de pesquisa poderia ser o nome ou o número do CPF de uma
pessoa.

Em ambas situações, a discussão foi orientada pelo fato de que tais dados seriam públicos. O
CPF é o número identi cador do cidadão brasileiro para a realização de operações
nanceiras. Ele deteria, assim, essa funcionalidade pública para individualizar alguém no
trato dessas relações sociais em especí co. Ao passo que a justi cativa do responsável pelo
site “Tudo sobre Todos”, centrou‐se na argumentação de que todas as informações
disponíveis seriam, igualmente, públicas, tendo sido coletadas de cartórios, processos
judiciais, diários o ciais, redes sociais, consultas em sites públicos e etc. Nesse sentido, tal
plataforma “apenas” reuniria tais dados públicos dispersos, sendo esse o argumento em favor
da sua legalidade.

A condução do discurso e do próprio debate em torno desses casos revela a importância de


uma lei geral de proteção de dados pessoais, tal como propõe o Ministério da Justiça. Ao
contrário do direito à privacidade construído em torno da liberdade negativa do direito de
“estar só”, a salvo de interferências alheias e, en m, da faculdade da pessoa retrair aspectos
de sua vida ao domínio público; o direito à proteção de dados pessoais baliza‐se por uma
liberdade positiva de exercer sobre eles controle, pouco importando se eles são informações
públicas ou privadas. Veja‐se, portanto, a importância da proteção de dados pessoais angariar
autonomia em relação ao direito de privacidade, já que ele não é calibrado por essa dicotomia
entre público e privado.

Nesse sentido, o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais/APLPDP do Ministério da


Justiça visa empoderar o cidadão com o controle sobre seus dados pessoais. Pouco importa se
este dado é público ou privado, o seu titular deverá consentir para o uxo dessas informações
(artigo 7°, caput), sendo esta a regra geral para legitimar qualquer atividade de tratamento de
dados que podem identi cá‐lo (artigo 5°, inciso I). Essa lógica contará com normas e
princípios correlatos, tal como o “princípio da nalidade” (artigo 6°, inciso I) pelo qual o seu
titular deve ser informado sobre um propósito especí co, explícito e legítimo para o
tratamento de seus dados para, justamente, exercer uma esfera de controle sobre seus dados
pessoais. A sua utilização fora daquele contexto autorizado por seu titular implica na sua
ilegalidade. Essa chave de leitura é, ao mesmo tempo, essencial e simpli ca o entendimento
em torno da dinâmica própria da proteção de dados pessoais.

No caso dos “Nome Brasil” a disponibilização dos números de CPF deu‐se em um outro
contexto que o de identi cação do cidadão para operações nanceiras. De forma similar, o
site “Tudo sobre Todos”, valeu‐se de dados que foram utilizados para nalidades especí cas
de um determinado ato notarial, ato judicial, de uma rede social e assim por diante com
relação às demais fontes de coleta dos dados pessoais. Em outros termos, tais plataformas
trataram os dados pessoais dos cidadãos à revelia do seu consentimento e fora do contexto
donde eles foram extraídos, o que determinaria a ilegalidade de tais aplicações.

Se por um lado, o APLPDP pode ser um divisor de águas para regulamentar a proteção de
dados pessoais, tal como se extrai das normas acima referenciadas que superariam a
dicotomia entre o público e o privado. Por outro lado, ainda existem nele resquícios desse
pensamento binário que podem empolar a lógica própria da proteção de dados pessoais. No
texto do APLPDP, os dados de acesso público irrestrito seria uma das exceções à necessidade
de colher o consentimento do cidadão para o tratamento de seus dados pessoais (artigo 11,
caput, e 12, inciso I).

Poderia se discutir que nos casos citados os dados tratados são públicos, porém não de acesso
irrestrito. Esse seria o caso, por exemplo, das redes sociais, já que, somente, seus usuários
podem acessá‐las e não o público em geral. Além do mais, existem con gurações de
privacidade para limitar tal acesso apenas aos usuários que são seus “amigos”. Estabelecer‐
se‐ia, assim, uma linha tênue entre as de nições de dados públicos e dados públicos de
acesso irrestrito, demandando‐se um certo esforço interpretativo.

De qualquer forma, não seria difícil imaginar um caso de compilação de dados pessoais
sensíveis, apesar de serem de acesso público irrestrito – indexados na rede por exemplo ‐
como a orientação política, sexual e religiosa. Por conseguinte, tais compilações de dados
estariam fora do escopo de controle dos cidadãos, abrindo‐se uma porta perigosa para a
desproteção de dados pessoais. Isto porque, no  nal das contas, pode haver um volume de
informações detalhado sobre uma pessoa a compor um per l muito preciso sobre a sua
personalidade.

Esse cenário torna‐se, ainda mais, preocupante se for levado em consideração que vivemos
em tempos de Big Data e data aggregation. Diferentemente da técnica “tradicional” de
mineração de dados, o Big Data é uma tecnologia que descarta a etapa prévia de estruturação
de dados, o que possibilita o processamento de dados em um volume, velocidade e variedade
maior (os seus três famosos “Vs”). Com base em tal progresso qualitativo e quantitativo
permite‐ se uma agregação descomunal de dados, inferindo‐se padrões de comportamentos e
preferência dos seus titulares que são revelados após tal tratamento de dados. Dito de outra
forma, outras informações pessoais podem ser extraídas de uma massa de dados, sendo este,
aliás, o desiderato último da mineração de dados. O conjunto agregado dessas informações
pode estruturar um per l bem detalhado a orientar decisões, seja elas automatizadas ou não,
sobre a pessoa de carne e osso, ora intermediado por seus dados pessoais. Sendo essas bases
de dados compostas por “dados de acesso público irrestrito”, os cidadãos estariam sujeitos a
tais processos de decisões à sua revelia, já que tal tipo de tratamento estaria fora da sua
esfera de controle por conta de tal exceção contida no APLPDP.

Possibilitar‐se‐ia a formação de verdadeiras “caixas‐pretas” sobre os cidadãos que retirariam


a prometida esfera de controle sobre seus dados pessoais. Essa falta de transparência é o que
norteia, aliás, a chamada indústria dos data brokers. Resumidamente, os data brokers são
organizações que processam dados pessoais de diversas fontes para vender e revender tais
informações com diferentes propósitos, o que perpassa desde a prevenção de fraudes até
marketing e publicidade direcionada. Essas fontes são as mais variadas possíveis, incluindo‐
se dados de acesso público, como, por exemplo, aqueles extraídos de base de dados
governamentais. No nal das contas, muitos cidadãos têm sido “catalogados”, sujeitando‐se a
um processo de tomada de decisões que nem sequer têm conhecimento a respeito. A exceção
disposta no APLPDP tem o potencial de ofuscar ainda mais essa indústria. Os data brokers
poderiam, em tese, valer‐ se de base de dados de acesso público irrestrito para continuar
operando às escuras, sem que haja qualquer intervenção (entenda‐se controle) do cidadão
sobre seus dados pessoais.

Veja‐se, pois, o risco de se operar na dicotomia reducionista entre o público e privado, ainda
que sob a nova dimensão do “acesso público irrestrito”. Corre‐se o risco de se esvaziar,
signi cativamente, a esfera de controle do cidadão sobre seus dados pessoais. Em tempos de
Big Data e de agregação de dados, faz‐se menos sentido, ainda, trabalhar dentro desse
pensamento binário. A premissa de que os dados pessoais – sejam ele públicos ou privados –
devem gozar da mesma proteção legal permanece sendo uma questão fundamental e da
ordem do dia, seja para a projeção de novas plataformas e modelos de negócio, seja para um
olhar crítico em torno do horizonte normativo que se aproxima no cenário nacional.

Bruno Ricardo Bioni é mestrando em Direito na USP. Pesquisador da Fundação de Amparo à


Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP e do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para
Acesso à Informação/GPoPAI da USP (Projeto Vigilância e Privacidade). Foi visiting
researcher do Centro de Pesquisa de Direito, Tecnologia e Sociedade da Universidade de
Ottawa.

Márcio Moretto Ribeiro é professor doutor da Escola de Artes Ciências e Humanidades da USP
e membro do Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas para Acesso a Informação/GpoPAI da
USP.

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