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FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE

MARIANA
(COORDENADORA)

SOBRE ATUALIDADES DO
DIREITO
9ª Coletânea de ensaios e artigos

1ª Edição

MARIANA,
FUPAC-MARIANA
2021
FICHA CATALOGRÁFICA

SOBRE ATUALIDADES DO DIREITO: 9ª Coletânea de ensaios e artigos

Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (coordenadora).


Sobre atualidades do Direito: 9ª coletânea de ensaios e artigos. 1
edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2021. 560p.

ISBN: 978-65-88017-01-2

Coletânea de textos do 9º Concurso de Ensaios e de Artigos


Acadêmicos da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.

Capa, edição e diagramação: Magna Campos

1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. 2. Ensino Jurídico. 4. Direito:


contemporaneidade e ensino. 5. Interdisciplinaridade.

* As questões de autoria e de revisão textual são de


responsabilidade dos autores de cada texto do livro.
AUTORES

Ana Flavia Delgado Oliveira


Antônio César Pereira Bento
Bárbara Cândido de Carvalho
Cleberson Ferreira de Morais
Crovymara Elias Batalha
Dayanne Maris Oliveira Silva
Fabiano César Rebuzzi Guzzo
Francielly Rodrigues Almeida de Araújo
Gabriela Araújo Gois
Gabriella Pimenta
Israel Quirino
Karine de Paula Pinheiro
Kelly Christine Oliveira Mota de Andrade
Laís Cláudia Ferreira
Larissa Silva
Luiz Carlos Santana Delazzari
Magna Campos
Maria de Lourdes Faria
Maria Elisa Ferreira Rei
Raphael Furtado Carminate
Raquel Araújo
René Armand Dentz Junior
Saulo Camello
Vivian Moreira

PREFÁCIO:
PREFÁCIO
Tempos desafiadores! Com a Pandemia da COVID-19 e a
suspensão das aulas presenciais, o diálogo entre a comunidade
acadêmica migrou para o “mundo virtual”: aulas remotas, webinar,
trabalhos colaborativos, metodologias ativas, grupos do WhatsApp da
instituição, do período, das disciplinas... Toca o celular, uma nova
mensagem no WhatsApp. Abro o aplicativo de mensagem e percebo
tratar-se de mensagem encaminhada pela professora Magna Campos
com honroso convite para prefaciar esta obra “Sobre atualidades do
Direito: 9ª coletânea de ensaios e artigos”, coordenado pela
Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (FUPAC-MARIANA),
a quem agradeço por tamanha distinção.
Ao ler a obra coletiva, fruto do desenvolvimento de trabalhos
científicos da comunidade acadêmica desta Instituição de Ensino
Superior, na qual, desde 2011, tenho a satisfação de fazer parte do
seu quadro de empregados, constato a consolidação e o
amadurecimento de um projeto institucional ímpar de fomento a
produção e divulgação da pesquisa científica através de ensaios e
artigos de professores(as), alunos(as), ex-alunos(as) e
colaboradores(as) externos. Surge a lembrança das edições anteriores,
dos mais variados temas jurídicos, linguísticos, sociológicos e
filosóficos... Em todas as edições, destacam-se a interdisciplinaridade
e a transdisciplinaridade.
Nesta obra, o leitor continuará a se enveredar pelos mais
variados caminhos do saber, a partir do olhar crítico e questionador
dos(as) autores(as) na abordagem de temas e assuntos jurídicos e
sociais. A intensa dedicação dos(as) autores(as) e a consistência
teórica dos artigos e ensaios convida o leitor para pensar o papel
transformador do Direito para além das revisões bibliográficas, pois, é
notório o interesse dos(as) autores(as) na problematização dos
fenômenos jurídicos na dinâmica social.
Abre-se um amplo espectro de oportunidades de ampliação e
aprofundamento do conhecimento. Sem se descuidar da
fundamentação e base teórica, surgem pesquisas empíricas, ainda
escassas, porém, tão necessárias para o campo jurídico, ao permitirem
investigar as manifestações concretas do fenômeno jurídico, com a
apresentação de dados, muitas das vezes invisibilizados, de mazelas
sociais.
Há um forte e marcante conteúdo social na abordagem dos
textos. A questão étnico-racial e as ações afirmativas no Poder
Judiciário, apresentada por Elisa Ferreira Rei e René Dentz, com dados
do Censo do Poder Judiciário; a internação compulsória de
dependentes químicos, coautoria entre Cláudia Ferreira, Raphael
Furtado Carminate e Luiz Carlos Santana Delazarri; o reconhecimento
do nome social do sujeito trans, escrito por Gabriella Pimenta, Saulo
Camêllo e Magna Campos; a acessibilidade da pessoa com deficiência
física e a mobilidade urbana no contexto de cidades históricas é
delineado por Maria de Lourdes Faria e Israel Quirino.
É possível observar a diversidade e riqueza dos temas,
permeando áreas e institutos tradicionais e contemporâneas do
Direito. Tive o prazer de orientar Dayanne Maris Oliveira Silva, e
escrever um capítulo explorando a regularização fundiária no âmbito
da legislação municipal, articulando dados obtidos junto ao Poder
Executivo Municipal e ao Cartório de Registro de Imóveis de Mariana;
enquanto, Larissa Silva, Ana Flávia Delgado e Luiz Carlos Santana
Delazzari abordam o constitucional papel da Defensoria Pública no
acesso à justiça aos hipossuficientes. Já, no direito processual, o
incidente de resolução de demandas repetitivas é esmiuçado por
Karine de Paula Pinheiro e Ana Flávia Delgado com cuidadosa análise
da jurisprudência sobre o tema.
A argumentação em decisões judicias é tratada com atenção
por Vivian Moreira e Magna Campos com primorosa análise de uma
sentença judicial; e, Gabriela Araújo Gois e Bárbara Cândido de
Carvalho apresentam trabalho sobre as prisões provisórias e o direito
penal do inimigo. Francielly Rodrigues Almeida de Araújo e Raphael
Furtado Carminate realizam estudo sobre o biodireito, o
planejamento familiar e a autonomia privada da mulher; enquanto,
Antônio César Pereira Bento e René Dentz escrutinam a bioética e o
direito dos animas nos experimentos científicos.
É evidente a inquietude e a sensibilidade dos(as) autores(as),
impulso essencial para a compreensão dos múltiplos contextos e
dimensões do fenômeno jurídico. Busca-se, também, “iluminar” esse
cenário de incertezas e desequilíbrio durante a Pandemia da COVID-
19. Assim, a violência doméstica durante a Pandemia da COVID-19 é
tratada por Gabriela Araújo Góis, Raquel Araújo, Vivam Moreira e
René Dentz, sob duplo prisma: jurídico e psicanalítico; enquanto,
Vivian Moreira e René Dentz propõem uma análise quantitativa na
Região dos Inconfidentes. Já, Kelly Christine Oliveira Mota de Andrade
e Raphael Furtado Carminate alertam para as limitações, não
impedimento, do acompanhamento da gestante nesse período de
Pandemia da COVID-19.
E, se física e presencialmente nos afastamos das dependências
da FUPAC-MARIANA, a saudade, as experiências e os desafios
enfrentados diante do cenário de Pandemia, fez com que outros(as)
autores(as) voltassem seus estudos e análises para a própria “casa”, a
FUPAC-MARIANA. Seja explicitando dados acerca do estágio
supervisionado no curso de Direito e os desafios trazidos pelo
“contexto pandêmico”, como fizeram Magna Campos, Gabriella
Pimenta, Saulo Camêllo e Vivian Moreira em estudo de caso do nosso
Núcleo de Prática Jurídica (NPJ); ou através de relatos de experiência,
como em coautoria de Crovymara Elias Batalha e Fabiano César
Rebuzzi Guzzo, respectivamente, diretora e coordenador pedagógico
da FUPAC-MARIANA, traçam interessante resgate da gestão
educacional durante a Pandemia da COVID-19. Igualmente, assino
artigo em que relato minha passagem pela coordenação do NPJ da
FUPAC-MARIANA e cito Eduardo Galeano: “a utopia está lá no
horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso:
para que eu não deixe de caminhar”.
Se o tempo é desafiador? Muito! Mas, não paramos, não nos
rendemos... Resistimos, lutamos... Caminhamos! Parabenizo a
todos(as) autores(as) e desejo a você, leitor(a), uma prazerosa
caminhada pelas trilhas do saber e do conhecimento presente nessa
obra coletiva. Boa leitura!

Cleberson Ferreira de Morais


Mestrando em Direito, “Novos Direitos e Novos Sujeitos”, pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito Público
pela Universidade Cândido Mendes e Gestão de Políticas Públicas
pela Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Direito e
Administração pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professor da
Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Advogado.
A educação superior “ também não é questão de apontar o que
é certo ou provocar sua manifestação. É, em vez disso, uma
questão de incitar a dúvida e estimular a imaginação
desafiando, deste modo, o consenso prevalecente”.

Zygmunt Bauman (Vida Líquida)


SUMÁRIO

O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NO CURSO DE DIREITO E OS DESAFIOS


TRAZIDOS PELA PANDEMIA DE COVID-19 .................................................................. 18
Magna Campos, Gabriella Pimenta, Saulo Camêllo e Vívian Moreira
RESUMO: .............................................................................................................................. 18
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 19
A VERTENTE PRÁTICA DOS CURSOS SUPERIORES NO BRASIL
ASSOCIADAS AO ESTÁGIO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL: O CASO DO
DIREITO ................................................................................................................................. 21
O estágio no Brasil: breve histórico normativo ..................................................... 23
O estágio no curso de Direito ...................................................................................... 25
As perspectivas da prática jurídica trazidas pela DCN/2018 do Curso de
Direito .................................................................................................................................... 30
O estágio na Pandemia .................................................................................................. 34
Estudo de caso: estágio supervisionado na Fupac-Mariana/MG e as
adapções realizadas no período da Pandemia de Covid-19 ........................... 39
O NPJ da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana-MG: entrevista
com a coordenação do órgão ..................................................................................... 43
O estágio supervisionado no período de Covid-19: dados da entrevista .. 48
Dados de campo: a percepção dos estudantes .................................................... 53
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS: ................................................................ 62
REFERÊNCIAS: ..................................................................................................................... 66
APÊNDICE A: Questões De Entrevista Com A Coordenação Do Npj ............ 69
APÊNDICE B: Questionário De Pesquisa Com Os Estudantes ......................... 71
APÊNDICE C: Termo De Consentimento Livre E Esclarecido ........................... 81

SERVIDORES NEGROS PRESENTES NO PODER JUDICIÁRIO ANTES E APÓS A


RESOLUÇÃO 203/2015 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA ....................... 82
Maria Elisa Ferreira Rei e René Dentz
RESUMO ............................................................................................................................... 82
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 82
A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL ................................................................................. 83
Contexto histórico racial do Brasil .............................................................................. 84
Desigualdade social e racial no Brasil ....................................................................... 86
Mercado de Trabalho....................................................................................................... 87
Distribuição de rendimentos e condições de moradia....................................... 91
Educação .............................................................................................................................. 92
Violência ............................................................................................................................... 94
Representação Política .................................................................................................... 96
Desigualdade racial no poder judiciário .................................................................. 97
Das Ações Afirmativas....................................................................................................102
Ação Afirmativa no Poder Judiciário – Resolução 203/15 CNJ .....................103
Dados Oficiais após a implementação da Resolução 203/15 do CNJ ........108
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................109
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................111

A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS SEM PRÉVIA


AUTORIZAÇÃO JUDICIAL: ANÁLISE A PARTIR DA LEI 13.840 DE 05 DE JUNHO
DE 2019. ...................................................................................................................................114
Laís Cláudia Ferreira, Raphael Furtado Carminate e Luiz Carlos Santana
Delazarri
RESUMO .............................................................................................................................114
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................115
AUTONOMIA PRIVADA PARA QUESTÕES EXISTENCIAIS
RELACIONADAS À SAÚDE ...........................................................................................116
Modalidades de internação ........................................................................................123
Internação Voluntária ....................................................................................................126
Internação Involuntária .................................................................................................127
Internação Compulsória ...............................................................................................129
Contextualização Das Leis 10.216/2001 E 13.840/2019 ...................................130
A Internação Involuntária De Dependentes Químicos .....................................135
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................146
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................148

“THE LAST DANCE”: BALANÇO DA COORDENAÇÃO DO NÚCLEO DE PRÁTICA


JURÍDICA DA FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA
ENTRE SETEMBRO DE 2011 A MARÇO DE 2021. .....................................................151
Cleberson Ferreira de Morais
RESUMO .............................................................................................................................151
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................152
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA: EPICENTRO DO ENSINO, PESQUISA E
EXTENSÃO NOS CURSOS DE DIREITO ...................................................................153
O Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Presidente Antônio Carlos de
Mariana: reflexões da prática jurídica presencial a partir da coordenação
no ciclo 2011-2019 .........................................................................................................156
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................197
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................200

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL EM ÂMBITO JURÍDICO E


PSICANALÍTICO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 ......................................202
Gabriela Araújo Góis, Raquel Araújo, Vivian Moreira e René Dentz
RESUMO .............................................................................................................................202
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................202
DADOS ATUAIS DO AUMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA .......................206
Discussão sobre o tema com base no Direito .....................................................209
Discussão sobre o tema à luz da Psicanálise .......................................................212
Possíveis soluções para o problema........................................................................217
CONCLUSÃO .....................................................................................................................220
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................222

A DEFENSORIA PÚBLICA COMO PILAR DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO


ACESSO À JUSTIÇA AOS HIPOSSUFICIENTES............................................................226
Larissa Silva, Ana Flávia Delgado e Luiz Carlos Santana Delazzari
RESUMO .............................................................................................................................226
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................227
O ACESSO À JUSTIÇA ....................................................................................................228
Acesso à justiça como direito fundamental .........................................................229
A Defensoria Pública ......................................................................................................231
A Defensoria Pública na Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 ......................................................................................................................................232
Princípios institucionais da Defensoria Pública ...................................................233
Princípio da unidade ......................................................................................................234
Princípio da indivisibilidade ........................................................................................234
Princípio da independência funcional ....................................................................235
Objetivos da Defensoria Pública ...............................................................................236
A afirmação do Estado Democrático de Direito .................................................237
A prevalência e efetividade dos direitos humanos ............................................238
A garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do
contraditório .....................................................................................................................239
Forma de atuação da Defensoria Pública..............................................................241
Beneficiários ......................................................................................................................241
Assistência jurídica integral e gratuita ....................................................................245
A Defensoria Pública Como Pilar Da Garantia Constitucional Do Acesso À
Justiça Aos Hipossuficientes .......................................................................................248
Barreiras para a concretização da garantia constitucional de acesso à
justiça ...................................................................................................................................250
Apontamentos críticos sobre a ausência de estrutura estatal para o acesso
à justiça aos hipossuficientes .....................................................................................251
Papel da Defensoria Pública na concretização do Estado Democrático de
Direito ..................................................................................................................................255
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................256
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................258

O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS E O PRINCÍPIO


DA ISONOMIA: ANÁLISE DE DECISÕES DO TJMG ..................................................261
Karine de Paula Pinheiro e Ana Flávia Delgado
RESUMO .............................................................................................................................261
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................262
O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS .......................265
O problema de demandas repetitivas no poder judiciário brasileiro .........265
Introdução ao novo Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas – IRDR...........................................................................................................268
Fundamentação Constitucional Do Incidente De Resolução De Demandas
Repetitivas - IRDR ...........................................................................................................269
Segurança Jurídica E Isonomia No Tratamento De Demandas Repetitivas
................................................................................................................................................269
Segurança Jurídica No Tratamento De Demandas Repetitivas .....................270
A Isonomia Jurídica No Tratamento De Demandas Repetitivas ...................275
IRDR Como Ferramenta De Racionalidade E Eficiência Da Prestação
Jurisdicional .......................................................................................................................279
Admissibilidade, processamento e julgamento ..................................................280
O IRDR e o Common Law e Civil Law ......................................................................282
Análise de Decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais- TJMG ..........285
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................292
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................295

O PROGRAMA MUNICIPAL DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA (PROMORAR):


IMPACTOS E DESAFIOS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DO MUNICÍPIO DE
MARIANA - MG .....................................................................................................................300
Dayanne Maris Oliveira Silva e Cleberson Ferreira de Morais
RESUMO .............................................................................................................................300
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................301
A INFORMALIDADE URBANA E OS DESAFIOS DA REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA NO BRASIL .................................................................................................303
O papel do município e a Lei Municipal nº. 1.750/2003 - Programa
Municipal de Regularização Fundiária (PROMORAR).......................................306
O PROMORAR e a Regularização Fundiária No Município De Mariana –
Mg: o caso do loteamento do São Gonçalo ........................................................311
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................318
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................320

DA NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO ART. 10 DA LEI n. 9.263/1966 À


AUTONOMIA PRIVADA DA MULHER ...........................................................................324
Francielly Rodrigues Almeida de Araújo e Raphael Furtado
RESUMO .............................................................................................................................324
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................324
CONTEXTO HISTÓRICO ................................................................................................325
Breve Considerações Sobre O Biodireito E O Planejamento Familiar ........329
Breves Considerações Sobre A Autonomia Privada ..........................................331
Dispositivos Da Lei N. 9.263/1996 Que Se Contrapõem À Autonomia
Privada Da Mulher ..........................................................................................................335
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................341
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................344

GESTÃO EDUCACIONAL NA PANDEMIA DO COVID-19: A EXPERIÊNCIA DO


CURSO DE DIREITO DA FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE
MARIANA – ANO 2020 .......................................................................................................347
Crovymara Elias Batalha e Fabiano César Rebuzzi Guzzo
RESUMO: ............................................................................................................................347
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................348
ENCAMINHAMENTOS INICIAIS – SISTEMÁTICA DE COMUNICADOS:......349
Sistemática De Aulas: ....................................................................................................361
Sistemática De Avaliações: ..........................................................................................364
Sistemática Dos Trabalhos De Conclusão De Curso: ........................................369
Eventos: ...............................................................................................................................370
Sistemáticas De Atividades Práticas – Estágio Npj: ...........................................372
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................377
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................379

A ARGUMENTAÇÃO EM DECISÕES JUDICIAIS: ANÁLISE DE UMA SENTENÇA


.....................................................................................................................................................381
Vivian Moreira e Magna Campos
RESUMO .............................................................................................................................381
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................381
ARGUMENTAÇÃO ...........................................................................................................384
Persuadir e convencer ...................................................................................................385
Raciocínio Lógico Jurídico ...........................................................................................387
Análise Da Decisão Judicial .........................................................................................389
Argumento de autoridade ...........................................................................................389
Argumento de prova concreta ..................................................................................395
Argumento de explicação ............................................................................................396
Argumento de Oposição ..............................................................................................397
Raciocínio Lógico ............................................................................................................398
Raciocínio Indutivo .........................................................................................................399
Raciocínio Dedutivo .......................................................................................................400
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................401
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................402

TODOS IGUAIS, TODOS IGUAIS... MAS ALGUNS MENOS IGUAIS QUE OS


OUTROS: O RECONHECIMENTO DO NOME SOCIAL DOS SUJEITOS TRANS
.....................................................................................................................................................404
Gabriella Pimenta, Saulo Camêllo e Magna Campos
RESUMO .............................................................................................................................404
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................404
A luta pela cidadania por meio do reconhecimento do nome social dos
sujeitos trans .....................................................................................................................406
A longa espera pelo reconhecimento: o caso Roberta Close .......................408
A legislação nacional .....................................................................................................409
Direito à identidade pessoal como direito fundamental ................................411
Identidade de gênero: transgeneridade e nome social ...................................412
Direito ao nome como uma garantia a personalidade ....................................416
Reconhecimento legal do direito de mudança de nome social das pessoas
trans: a luta pela cidadania .........................................................................................417
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................422
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................423
ACESSIBILIDADE ENQUANTO DIRETO FUNDAMENTAL: OS DESAFIOS NA
EFETIVAÇÃO DO DIREITO À LOCOMOÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
FÍSICA E A PRESERVAÇÃO DO TRAÇADO URBANO EM UMA CIDADE
HISTÓRICA...............................................................................................................................426
Maria de Lourdes Faria e Israel Quirino
RESUMO .............................................................................................................................426
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................427
Estudo da Legislação sobre o direito de ir e vir da pessoa com deficiência
física (Lei 10.098/2000) .................................................................................................430
Contexto Histórico do Direito da Pessoa com Deficiência Física ................430
Desafios a serem vencidos pela Lei 10.098/2000 ...............................................434
Mobilidade Urbana, Patrimônio Histórico e PcD: propostas de convivência
................................................................................................................................................442
As formas encontradas pelo município de Mariana para diminuir o conflito
entre a lei 13.146/2015 e o Decreto Lei 25/1937. ..............................................445
O que é o Plano Diretor do Município de Mariana e o Plano de
Mobilidade Urbana? ......................................................................................................447
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................452
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................455

A PRISÃO PROVISÓRIA NO BRASIL E AS IMPRESSÕES ACERCA DO DIREITO


PENAL DO INIMIGO ............................................................................................................459
Gabriela Araújo Gois e Bárbara Cândido de Carvalho
RESUMO .............................................................................................................................459
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................460
PRISÃO PROVISÓRIA E DIREITO PENAL DO INIMIGO .....................................463
A Superlotação Das Penitenciárias Brasileiras Ocasionada Pela Prisão
Provisória ............................................................................................................................468
Implicações Da Lei 12403/11 Na Prisão Provisória ...........................................470
Audiências De Custódia E Medidas Cautelares Alternativas: Uma Possível
Solução ................................................................................................................................473
CONCLUSÃO .....................................................................................................................474
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................476

O DIREITO AO ACOMPANHANTE DA GESTANTE COMO FORMA DE


EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE SAÚDE BASEADA NA DIGNIDADE HUMANA E
SUAS LIMITAÇÕES FRENTE À PANDEMIA OCASIONADA PELO SARS-COV-2
.....................................................................................................................................................479
Kelly Christine Oliveira Mota de Andrade e Raphael Furtado
Carminate
RESUMO .............................................................................................................................479
INTRODUÇÃO...................................................................................................................480
A saúde como tutela da dignidade da pessoa humana e seu conceito
amplo ...................................................................................................................................481
O direito ao acompanhante e sua regulamentação .........................................485
As limitações e impedimentos trazidos pelas instituições hospitalares ao
exercício do direito ao acompanhante e sua legitimidade ............................493
O direito ao acompanhante e sua limitação pela pandemia ocasionada
pelo SARS-COV-2 ...........................................................................................................498
CONCLUSÕES ...................................................................................................................503
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................507

O DEVER DE MITIGAR O SOFRIMENTO CAUSADO AOS ANIMAIS EM


EXPERIMENTOS CIENTÍFICOS ..........................................................................................512
Antônio César Pereira Bento e René Dentz
RESUMO .............................................................................................................................512
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................513
Implicações Históricas e Sociais ................................................................................516
Direitos dos Animais ......................................................................................................525
Bioética ................................................................................................................................528
Alternativas à Experimentação com Animais .......................................................531
CONCLUSÕES ...................................................................................................................535
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................538

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA REGIÃO DOS INCONFIDENTES NA


PANDEMIA DO COVID-19 ................................................................................................542
Vivian Moreira e René Dentz
RESUMO .............................................................................................................................542
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................542
TIPIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ...........................................544
Violência psicológica .....................................................................................................544
Violência moral ................................................................................................................545
Violência patrimonial .....................................................................................................545
Violência física ..................................................................................................................545
Violência sexual ...............................................................................................................545
A Ideia Pré-Concebida Do Feminino .......................................................................546
Análise Quantitativa Da Violência Doméstica Na Região Dos Inconfidentes
................................................................................................................................................548
CONCLUSÃO .....................................................................................................................552
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................553
17
O ESTÁGIO SUPERVISIONADO NO CURSO DE DIREITO E OS
DESAFIOS TRAZIDOS PELA PANDEMIA DE COVID-19
Magna Campos1
Vivian Moreira2
Gabriella Pimenta3
Saulo Camêllo4
RESUMO:
Este estudo se centra no aprofundamento sobre o regramento
nacional do estágio supervisionado, como componente obrigatório
em alguns cursos universitários, especialmente no curso de Direito,
com vistas a expandir tal investigação aos desafios que o período de
ensino remoto emergencial, advindo da Pandemia de Covid-19,
trouxe às práticas jurídicas relacionadas ao estágio, no contexto da
Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Neste sentido, além
da legislação que rege as diretrizes do estágio supervisionado e da
perspectiva temática de alguns estudos voltados ao assunto, realizou-
se um estudo de caso, por meio de entrevista e de aplicação de
questionários on-line, a fim de se conhecer a realidade institucional
vivenciada e as perspectivas para tal componente do curso.

Palavras-chave: Estágio Supervisionado. Legislação. Diretrizes


Curriculares Nacionais do Curso de Direito. Práticas Jurídicas.
Pandemia.

1
Professora universitária, Mestre em Letras e escritora.
2
Graduanda do 3° período do curso de Direito pela Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana- MG. Mestre em Relações Internacionais pela
PUC Minas.
3
Graduanda do 8° período do curso de Direito pela Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana- MG.
4
Graduando do 9° período do curso de Direito pela Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana- MG
18
INTRODUÇÃO

O estágio supervisionado não é uma prática presente nos


cursos de graduação brasileiros desde sempre. Estabelecido
inicialmente no âmbito do ensino industrial, na primeira década do
século passado, foi na década de 1960 que surge a relação desta
atividade prática com a questão pedagógica, atrelando-se mais
especificamente ao Ensino Superior somente nos anos de 1970.
Desde então, foram várias as legislações tanto no âmbito
acadêmico quando no âmbito do mercado de trabalho, uma vez que,
no Brasil, somente em 2008 foi promulgada a Lei 11.788, conhecida
como Lei do Estágio, a qual regulamenta essa atividade
estabelecendo regras claras, com direitos e deveres prescritos na
relação tríplice entre a instituição educacional, a/o concedente do
estágio e o/a estagiário/a. Tal legislação estabelece, de forma mais
contundente e precisa que as legislações anteriores, algumas
garantias quanto ao aspecto formativo do estágio supervisionado, a
possibilidade de remuneração nos casos cabíveis, na tentativa de
desvincular o estágio da prática comum de recrutamento de “mão de
obra barata”, erroneamente adotada por muitas organizações, que se
aproveitavam das brechas das legislações anteriores.
No curso de Direito, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
de 2004 e de 2018, juntamente com algumas normativas da OAB,
estabelecem orientações e determinações específicas para a oferta e
o funcionamento do estágio supervisionado obrigatório no curso,
com vistas ao aprendizado das práticas jurídicas.
Mas, em um contexto disruptivo como esse vivenciado no ano
de 2020 e 2021, ao menos até o momento, devido à Pandemia da
Covid-19, impõe a essas práticas de estágio já estabelecidas no curso
de Direito, várias necessidades de adaptação, de reinvenção e/ou de
alternativas, haja vista as medidas sanitárias relacionadas ao
19
distanciamento social a que todas as instituições educacionais, e aí
dentro, as de Ensino Superior, estão sujeitas desde o “decreto” no
país da situação pandêmica, em março de 2020.
Neste sentido, esta pesquisa investiga além do histórico do
estágio supervisionado, com vistas a entender com mais
profundidade como a proposta de estágio supervisionado, hoje
estabelecida nos cursos de Direito, foi engendrada socio
historicamente, bem como se aproveita a oportunidade para explorar
também os novos entendimentos ou esclarecimentos que a Nova
DCN (2018) do curso acrescenta às atividades relacionadas tanto às
práticas jurídicas como um todo, quanto ao estágio supervisionado
em si, sem dúvida item que merece reflexão institucional, ao que este
estudo pode contribuir. E, por fim, busca-se conhecer, por meio das
perspectivas dos cursistas e da coordenação do Núcleo de Prática
Jurídica (NPJ), a realidade e os desafios que o estágio supervisionado
da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana tem
experimentado e enfrentado neste período de Ensino Remoto
Emergencial, para continuar ofertando aos estudantes o aprendizado
de práticas jurídicas relevantes para a formação de conhecimentos,
habilidades e competências essenciais à profissão e ao mercado de
trabalho.
Desta forma, este estudo desenvolve inicialmente um percurso
histórico acerca da temática do estágio e do estágio supervisionado,
adentrando, mais adiante, no estágio supervisionado dentro dos
cursos de Direito, resgatando e explorando as principais legislações aí
aplicáveis, bem como levantando reflexões importantes sobre as
práticas jurídicas trazidas pela Resolução nº 05 de 2018 (Novas
Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito). Na sequência,
realiza-se um estudo de caso, acerca do estágio supervisionado no
curso de Direito da instituição investigada, explorando desde o
regulamento interno do estágio supervisionado até os dados
20
coletados e discutidos na pesquisa de campo, por meio entrevista
com coordenadores do estágio supervisionado e de questionário on-
line respondido pelos estudantes-estagiários do 7º ao 10º período do
curso.

A vertente prática dos cursos superiores no Brasil associadas ao


estágio de formação profissional: o caso do Direito

A relação entre teoria e prática é uma premissa essencial para


o desenvolvimento de conhecimentos, competências e habilidades
dos estudantes, em qualquer curso de ensino superior. Essa relação
pode e deve se dar tanto no âmbito das próprias disciplinas e
ocorrerem do início ao fim do curso, com atividades que inter-
relacionem práticas reais ou simuladas às teorias, quanto em ações
que pressupõem a prática como sua essência, como é o caso dos
estágios supervisionados obrigatórios.
Todavia, a inclusão de atividades práticas obrigatórias no
currículo dos mais variados cursos de graduação não foi uma
constante considerada, especialmente em cenários de ensino
centrado no repasse de informações e em aulas expositivas, como
vigorou e vigora na educação brasileira. Fora isso, a prática
educacional que extrapole as paredes das salas de aula e se deem em
ambientes reais da profissão, como é o caso dos estágios, nem
sempre foi uma preocupação basilar na formação educacional
universitária. Nota-se, pelo conjunto de normas brasileiras, uma
trajetória que teve vários percalços e lacunas até chegar-se ao que
hoje se entende por estágio e/ou estágio supervisionado.
Entretanto, antes de prosseguir para a parte normativa é
salutar diferenciar “atividades práticas” de “estágio supervisionado”,
ao menos, preliminarmente, a fim de evitar equívocos ou sinonímias
comuns ao entendimento corriqueiro no meio acadêmico.
21
Pode-se entender, a partir dos esclarecimentos realizados por
Rodrigues (2007), que atividades práticas se referem ao aprendizado
e desenvolvimento de competências e habilidades que extrapolem o
campo da teoria, para sua aplicação, análise, avaliação ou criação a
partir dela. Tais atividades práticas podem e devem ser desenvolvidas
no âmbito de toda e qualquer disciplina, indiferentemente de se
tratar de disciplinas introdutórias ou mais avançadas no curso,
podendo se dar tanto em situações reais quanto simuladas. E, não
raro, são mais associadas, quando não exclusivas, no caso do curso de
Direito, ao âmbito das disciplinas de prática, como em Direito
Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Processual do
Trabalho.
Já o estágio supervisionado,

também se caracteriza por ser um conjunto de atividades


práticas voltadas ao aprendizado e desenvolvimento das
competências e habilidades atinentes às respectivas
profissões, mas é necessariamente realizado em ambiente real
e de forma supervisionada; ou seja, é inerente à natureza do
estágio supervisionado que ele seja uma atividade prática,
mas necessariamente desenvolvido em ambiente real e
acompanhado de supervisão, pedagógica e profissional.
(RODRIGUES, 2007, p. 201)

Nota-se nestas duas acepções de prática direcionamentos


diversos sobre o enfoque, a dinâmica e o desenvolvimento de
conhecimentos, competências e de habilidades. Mais adiante nesta
pesquisa será retomada essa distinção para mais aprofundamento, ao
se tratar do disposto na Resolução CNE/CES nº 05/2018, que
estipulou as novas Diretrizes Curriculares Nacional para o curso de
Direito.

22
O estágio no Brasil: breve histórico normativo

Conforme expõe Nogueira (2018), no Brasil, a ideia do estágio


voltava-se inicialmente ao ensino industrial, como se pode
depreender do disposto nos decretos nº 7.566/1909, que criou a
Escola de Aprendizes Artífices, a qual inaugurou a política de
educação profissional no país, o decreto nº 4.073/1942, que instituiu
a Lei Orgânica do Ensino Industrial e o decreto nº 4.048/1942, que
cria o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários (SENAI).
A autora explica que os três decretos mencionados eram
direcionados à formação técnicas das indústrias, não à formação
acadêmica, e não se referiam a relação entre teoria e prática, pois não
era requisito que se fosse estudante de qualquer nível educacional
para participar dessa aprendizagem prática.
O primeiro documento normativo sobre estágio, que
apresenta caráter pedagógico, é a Portaria nº 1.002/1967, do
Ministério do Trabalho, e que passou a exigir que houvesse vínculo
entre estagiário, faculdades ou escolas técnicas e empresas
concedentes do estágio. Entretanto, não havia nenhuma previsão
legal sobre a forma como os estagiários deveriam cumprir os estágios
(NOGUEIRA, 2018).
Em 1970, surge o decreto nº 66.546, que institui a
Coordenação do Projeto Integração, destinado “à implementação de
programa de estágios práticos para estudantes do sistema de Ensino
Superior de áreas prioritárias [...] de engenharia, tecnologia, economia
e administração” (NOGUEIRA, 2018, p. 21), fruto da estratégia
desenvolvimentista do governo militar.
A Lei Diretrizes e Bases da Educação, nº 5.692/1971, impôs a
profissionalização a toda escola secundária e instituiu o estágio como
elemento complementar à formação. Já em 1982, o decreto nº 87.497,
por falhas na regulamentação que não definia as responsabilidades
23
quanto aos objetivos do estágio e não valorizava os interesses
educacionais, acabou tornando o estagiário uma mão-de-obra barata
para as empresas, já que este poderia realizar atividades como um
trabalhador comum.
Só em 2008 surgiu, de fato, um marco regulatório na questão
do estágio, com a Lei 11.788/2008, conhecida como Lei do Estágio,
que trouxe profundidade sobre o estágio em si e proteção ao
estagiário, no que se refere ao seu direito de aprender, respeitando o
que a Instituição de Ensino Superior (IES) exige para a formação. Pois,
como disposto no art. 1º,

§ 1o O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso,


além de integrar o itinerário formativo do educando.
§ 2o O estágio visa ao aprendizado de competências próprias
da atividade profissional e à contextualização curricular,
objetivando o desenvolvimento do educando para a vida
cidadã e para o trabalho. (BRASIL, Lei 11.788, 2008)

Desta forma, o itinerário formativo do estudante é definido


conforme a necessidade do projeto pedagógico, por isso o Termo de
Compromisso e o Plano de Atividades ganham importância
fundamental, haja vista que “§ 1º O estágio, como ato educativo
escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo
professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da
parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios (BRASIL, Lei
11.788, 2008)”. Tal dispositivo, propicia que tanto a instituição de
ensino quanto a instituição concedente do estágio convirjam para a
formação do estagiário.
E o descumprimento, por parte da instituição concedente do
estágio, “de qualquer dos incisos deste artigo ou de qualquer
obrigação contida no termo de compromisso caracteriza vínculo de

24
emprego do educando com a parte concedente do estágio para
todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária (BRASIL, Lei
11.788, 2008)”. O não estabelecimento do Termo de Compromisso,
como prevê a lei, em seu art. 3º, II, assinado entre a parte concedente
e a instituição de ensino, transformará a relação em vínculo
empregatício.
Segunda tal Lei do Estágio, Prevê-se a existência do estágio
obrigatório, aquele definido no projeto do curso, como requisito para
obtenção do diploma; o estágio não obrigatório, aquele desenvolvido
como atividade opcional pelo estudante. E ainda, o estágio
remunerado ou não remunerado.
Como pré-requisitos para o estágio universitário, não há idade
mínima prevista, mas a necessidade de vinculação com IES com
matrícula e frequência regulares, jornada de atividades compatível
com carga horária acadêmica, podendo apresentar jornadas de 4 a 8
horas diárias, devendo ter carga horária reduzida nos períodos do
semestre que tenham avaliações acadêmicas, pode ter duração
máxima de 02 anos por instituição concedente, cabendo ao estagiário
entregar à instituição de ensino, em prazo não superior a 06 meses, o
relatório de atividades desenvolvidas no estágio (BRASIL, Lei 11.788,
2008).

O estágio no curso de Direito

O estágio no curso de Direito começa a ter mais relevância


com a Resolução nº 3/1972, do Conselho Federal de Educação, que
passa a exigir dos cursos a prática forense sob a forma de estágio
supervisionado, pois embora constasse nos currículos jurídicos
anteriores, foi esta resolução que lhe deu caráter disciplinar,
expandindo para além do ensino de Teoria e Processo, conforme

25
expõe Brüggemann (2009).
Ainda em 1972, a Ordem dos advogados no Brasil (OAB), por
meio da Lei nº 5.842, estabelece um sistema alternativo ao exame da
ordem, instituindo o Estágio Forense e de Organização Judiciária,
oferecido pelas faculdades de Direito, mas supervisionado pela OAB,
com carga horária mínima de 300 horas, conforme expõe a autora.
Em 1977, a Lei 6.494, posteriormente regulamentada pelo
Decreto nº 87.497/1982, passa a exigir os órgãos intermediadores do
estágio entre empresa e instituição de ensino.
Desta forma, até 1995, estas duas modalidades de estágio
participavam do cenário jurídico:

a) o estágio supervisionado (matéria do currículo mínimo,


denominada de Prática Forense, sob a forma de estágio
supervisionado, prevista na Resolução CFE nº 003/72), de
caráter obrigatório; e b) o estágio de prática forense e
organização judiciária (Lei nº 5.842/72 e Resolução CFE nº
15/73), de caráter facultativo e que, uma vez cursado pelo
aluno com aprovação lhe dava o direito de inscrição na OAB,
independentemente da prestação do Exame de Ordem.
(RODRIGUES, 20025 citado por BRÜGGEMANN, 2009, p. 149)

A existência destas duas práticas acarretou, no entender de


Rodrigues (2002), um equívoco na associação prática unicamente
com a profissão da advocacia. Realidade que, não raro, ainda persiste
nos cenários de estudos jurídicos atuais.
O Estatuto da OAB, Lei 8.906/1994, em seu art.9º, estabelece
algumas normas específicas para o estagiário na área jurídica, que vai
se somar, posteriormente, à Lei do Estágio, Lei 11.788/2008.

5
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. In: Ensino do direito no Brasil: diretrizes
curriculares e avaliação das condições de ensino. RODRIGUES, Horácio
Wanderlei, JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Florianópolis: Boiteux, 2002.
26
Mas é com a Resolução CNE/CES nº 09/2004, que institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Direito (DCN), que a
relação teoria e prática no curso se solidificam, devendo dar-se
através do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), onde são realizadas
atividades reais de atendimento aos clientes carentes, como
ajuizamento de ações e defesas, sob a orientação de um professor
responsável. Assim, o art. 7º desta Resolução especifica que:

§ 1º O Estágio de que trata este artigo será realizado na


própria instituição, através do Núcleo de Prática Jurídica, que
deverá estar estruturado e operacionalizado de acordo com
regulamentação própria, aprovada pelo conselho
competente , podendo, em parte, contemplar convênios com
6

outras entidades ou instituições e escritórios de advocacia;


em serviços de assistência judiciária implantados na
instituição, nos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública ou ainda em departamentos
jurídicos oficiais, importando, em qualquer caso, na
supervisão das atividades e na elaboração de relatórios que
deverão ser encaminhados à Coordenação de Estágio das IES
, para a avaliação pertinente. (BRASIL, Resolução CNE/CES nº
09, 2004)

Desta forma, os NPJ’s, além de servirem como locus de estágio


supervisionado para os estudantes de Direito, também servem de
instrumento de acesso à justiça, por meio da prestação de assistência
jurídica gratuita à comunidade carente.
Importa ainda saber que 50% do estágio deveria ser cumprido
na IES, em seu Núcleo de Prática Jurídica, não podendo se dar
exclusivamente nas instituições a ela conveniadas concedentes de

6
Grifo nosso. Redação que fez com que algumas seções estaduais da OAB
entendessem possuir competência para autorizar o NPJ, porém para o MEC,
esta disposição sempre se referiu aos conselhos internos a IES.
27
estágios. (RODRIGUES, 2007, p. 204)
Todavia, essa resolução foi alterada por meio da Resolução
CNE/CES nº3 de 2017, apenas nesse art. 7º, que tratava a prática
jurídica, estágio e NPJ, o qual passou a dispor que:

§ 1º O estágio de que trata esse artigo poderá ser realizado: I


- Na própria Instituição de Educação Superior, por meio do
seu Núcleo de Prática Jurídica, que deverá estar estruturado e
operacionalizado de acordo com regulamentação própria,
aprovada pelo seu órgão colegiado competente7, podendo
ser celebrado convênio com a Defensoria Pública para
prestação de assistência jurídica suplementar; II - Em serviços
de assistência jurídica de responsabilidade da Instituição de
Educação Superior por ela organizados, desenvolvidos e
implantados; III - nos órgãos do Poder Judiciário, do
Ministério Público, da Defensoria Pública e das Procuradorias
e demais Departamentos Jurídicos Oficiais; IV - Em escritórios
e serviços de advocacia e consultorias jurídicas. (BRASIL,
Resolução nº 3, 2017)

Essa alteração abriu a possibilidade de a prática jurídica ser


realizada integralmente fora da IES. Essa alteração, inclusive, deu
origem a uma interpretação equivocada de que o NPJ não era mais
uma exigência aos cursos de Direito. Equívoco que foi extinguido com
as novas Diretrizes Curriculares Nacional do Curso de Direito de 2018,
que reforçou a obrigatoriedade do NPJ, que deverá constar do
Projeto Pedagógico do Curso (PPC).
O esquema a seguir ajuda a compreender as principais
alterações ocorridas nas práticas jurídicas, conforme as legislações de
1827 a 2018:

7
Correção da ambiguidade anterior, mencionada na nota 2.
28
1827 – Prática do processo adotados pelas leis do Império
(junto com a teoria)
1891 – Prática forense
1962 – Prática forense (como conteúdo de Direito Judiciário)
1972 – Prática forense (obrigatório, sem carga horária
definida)
1994 – Prática jurídica (obrigatório, mínimo 300 h/a) NPJ
2004 – Prática Jurídica obrigatória no NPJ, podendo ser em
parte realizada mediante convênios, sendo obrigatória a
supervisão. Duração: até 20% da Carga horária do curso, em
conjunto com as Atividades Complementares.
2017 – Prática Jurídica obrigatória no NPJ, podendo ser
integralmente realizado mediante convênios, sendo
obrigatória a supervisão. Duração: até 20% da Carga horária
do curso, em conjunto com as Atividades Complementares.
2018 – Prática jurídica deve ser obrigatoriamente oferecida
pela IES no seu NPJ, mas permite também que seja realizada
mediante convênios, sendo então obrigatória a supervisão.
Não estabelece percentual a ser realizado na IES e nem quanto
pode ser realizado externamente. Duração: até 20% da Carga
horária do curso, em conjunto com as Atividades
Complementares.
Esquema comparativo da prática jurídica de 1827 a 2018.
Adaptado de: RODRIGUES (2019, p. 439)

No tópico a seguir, será pormenorizada a questão do estágio


na Novas Diretrizes Curriculares do Curso de Direito, promulgadas em
2018, e que previam dois anos de adaptação dos cursos para atendê-
29
la, todavia, acredita-se que, em virtude das inúmeras intercorrências e
mudanças no formato das aulas e funcionamento das instituições, em
virtude da Pandemia do Covid 19, esse prazo de adapatação possa
ser dilatado.

As perspectivas da prática jurídica trazidas pela DCN/2018 do


Curso de Direito

Em estudo publicado no livro “Educação Jurídica no Século


XXI”, de 2019, Thiago Fernando Cardoso Nalesso desenvolve uma
reflexão pormenorizada e bastante provocativa a respeito das práticas
jurídicas e de sua relação com os NPJ e a DCN/2018, expostas no
capítulo, “Novas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de
Direito e as Práticas Jurídicas”. Desta forma, como algumas das
questões levantadas pelo estudioso podem impactar ou provocar
debates relacionados à questão dos estágios no curso de Direito,
resolveu-se dar especial atenção a tal estudo, nesta pesquisa, bem
como à DCN/2018.
A Resolução nº 05, de 2018, institui as novas Diretrizes
Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito. Nela, no
art. 5º, III, trata-se especificamente da formação prático-profissional,
assim como os art. 6º e 7º.
Nela, conforme explica Nalesso (2019), é possível observar
mais de uma acepção da expressão prática, assim, prática aparece
como “prática realizada sob a supervisão do NPJ, não mais como
sinônimo exclusivo de estágio supervisionado”; como “estágio
supervisionado” propriamente dito; como “instrumento pedagógico”
associada à resolução de problemas e às metodologias de ativas de
aprendizagem; e, também, à “formação prática”, que faz referência
aos conjunto de competências e habilidades necessárias às profissões

30
da área jurídica.
Uma mudança sutil, mas significativa acorre na nomenclatura
do NPJ, pois passa a ser chamado de Núcleo de Práticas Jurídicas,
cujo plural acrescentado à palavra “prática”, faz referência às diversas
atividades profissionais ligadas à área jurídica e suas distintas práticas.
Desta forma, a resolução prevê, em seu art. 6º, § 1º, que “é obrigatória
a existência, em todas as IES que oferecem o curso de Direito, de um
Núcleo de Práticas Jurídicas, ambiente em que se desenvolvem e são
coordenadas as atividades de prática jurídica do curso” (BRASIL,
Resolução nº 05, 2018) (grifo nosso).
Uma especificação terminológica importante, presente no
documento, é em relação à(s) prática(s) jurídica(s), estas sim, deverão
ser realizadas sob a supervisão dos NPJs. Desta forma, é interessante
observar que não mais se diz atividades de estágio supervisionado,
mas sim de prática(s), eliminando inclusive a confusão das legislações
anteriores (Portaria 1.886/1994 e Resolução CNE/CES nº 09, 2004),
pois prática é algo bem mais amplo que o estágio, assim, como se lê
no art. 6º, § 5º, “as práticas jurídicas podem incluir atividades
simuladas e reais e estágios supervisionados, nos termos definidos
pelo PPC.” (BRASIL, Resolução nº 05, 2018). Assim, o estágio é sem
dúvida um tipo de prática jurídica, mas nem toda prática jurídica
constitui estágio, há uma diversidade de práticas jurídicas que podem
desenvolver os conhecimentos, as competências e habilidades
necessárias ao profissional da área jurídica e que podem e devem ser
realizadas ao longo do curso de Direito.
Neste contexto, resgatar o conceito de estágio pode ajudar a
esclarecer a confusão das legislações anteriores, pois o estágio é “um
negócio jurídico celebrado entre estagiário e concedente, sob a
supervisão da instituição de ensino, mediante subordinação do

31
primeiro, visando a sua educação profissional” (MARTINS, 2010, p. 108
citado por NALESSO, 2019, p.405). grifo nosso
Inclusive, tal resolução pressupõe, em seu art. 5º, § 1º, que “as
atividades de caráter prático-profissional e a ênfase na resolução de
problemas devem estar presentes, nos termos definidos no PPC, de
modo transversal, em todas as três perspectivas formativas” (BRASIL,
Resolução nº 05, 2018). Perspectivas estas que são de formação geral,
formação técnico-jurídica e prático-profissional. Desta forma,
observa-se que a relação teoria e prática foi ampliada, devendo
perpassar todas as dimensões do curso e não se restringir a
atividades do NPJ e/ou às disciplinas específicas de prática, mas ser
uma constante que atravesse todo o curso, devendo estar associadas
à resolução de problemas e ao emprego de metodologias ativas,
como frisado na resolução em análise.
Além disso, frisa-se que as atividades de prática jurídica
deverão incluir “práticas de resolução consensual de conflitos e
práticas de tutela coletiva, bem como a prática do processo judicial
eletrônico” (BRASIL, Resolução nº 05, 2018), três tendências do Direito
atual, mas que implicarão uma remodelagem das abordagens do
NPJs, ao menos, aos que ainda não tratavam destes elementos, já que
são agora componentes obrigatórios. Estas previsões devem ser
aprovadas pelos colegiados dos cursos e fazerem parte Regulamento
de Práticas Jurídicas, algo mais amplo, portanto, que o anterior
Regulamento de Estágio Supervisionado, adotado até então pela
maioria das instituições. Pois, neste sentido,

diversas atividades podem ser entendidas como práticas


jurídicas, como as atividades de monitoria e iniciação
científica, que preparam o profissional que irá exercer a

8
MARTINS, Sérgio Pinto. Estágio e relação de emprego. 2.ed. São Paulo:
Atlas, 2010.
32
docência e a pesquisa científica em Direito; as atividades de
extensão, não apenas as relativas ao atendimento da
comunidade em escritórios jurídicos universitários, clínicas ou
serviços de assistência ou assessoria jurídicas, mas também
aquelas de cunho social e humanitário; as competições
universitárias de técnicas de argumentação, de julgamentos
internacionais, de Tribunais de Júri; a simulação de
negociação empresarial ou sindical, de arbitragem nacional
ou internacional, apenas para dar alguns exemplos.
(NALESSO, 2019, p. 407)

Ressalte-se que, conforme o disposto na Lei do Estágio,


11.788/2008, art. 2º, § 3º, “as atividades de extensão, de monitorias e
de iniciação científica na educação superior, desenvolvidas pelo
estudante, somente poderão ser equiparadas ao estágio em caso
de previsão no projeto pedagógico do curso” (BRASIL, Lei 11.788,
2008) grifo nosso. Portanto, o Regulamento de Práticas Jurídicas deve
trabalhar com essa previsão, e cuidar para estar alinhado ao PPC do
curso.
Nalesso (2019) chama atenção para uma distinção que deve
impactar os cursos de Direito e o estágio, propriamente dito.
Segundo o autor, há uma confusão comum entre o estágio e a prática
de atividades reais desenvolvidas nos NPJs, por meio do atendimento
ao público, das clínicas ou de outras atividades desenvolvidas nestes
ambientes, porém sem vínculo com o estágio. O autor esclarece que
o estágio exige “necessariamente a participação de pelo menos três
agentes: estudante, tomador de estágio e instituição de ensino,
podendo ainda contar a participação de um quarto elemento: os
agentes de integração” (NALESSO, 2019, p. 407), nota-se daí a
necessidade de relação formal entre esses três agentes. E, no caso de
“atividades jurídicas reais ou simuladas desenvolvidas nos Núcleos de
Práticas Jurídicas organizadas pela própria IES, com ou sem convênios
33
com o Poder Público, na maioria das vezes não se trata de estágio”
(NALESSO, 2019, p. 408), mas somente de atividades práticas, pois
lhes falta a configuração formal do negócio jurídico.
Como exemplo, o autor menciona que uma IES pode ter, em
seu NPJ, convênio com o Tribunal de Justiça, Juizado Cível ou Centro
Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), em que se
poderia ter dois cenários de atividades de práticas jurídicas: aquela
em que os estudantes vinculados ao NPJ celebram o Termo de
Estágio, que pode ser orientado e supervisionado pela IES, desde que
previsto no convênio, e entram como estagiários não remunerados
do órgão em pauta e aquela em que os estudantes desenvolvem
atividades de prática real, mas sem a vinculação de estágio com o
órgão, que é a situação mais comum de ocorrer nos cursos. Segundo
Nalesso (2019, p. 408), nada impede que o estudante realize o estágio
na própria instituição, “situação em que a IES desempenha dois
papéis, o de tomador de estágio e o de supervisor educacional, mas
para tanto existe a necessidade de formalização como em qualquer
outra relação de estágio”.
Em suma, observa-se uma distinção entre práticas jurídicas e
estágio supervisionado que implica a necessidade de os colegiados
dos cursos de Direito repensarem suas práticas de forma a adequá-las
ao previsto na nova DCN.
Além disso, faz-se relevante destacar ainda que 20% da carga
horária do curso deve ser destinada às atividades práticas e atividades
complementares, conforme alinhamento previsto no PPC do curso.

O estágio na Pandemia

O ano de 2020 trouxe ao mundo todo um desafio de grande e


graves proporções humanitárias, econômicas e sociais: a Pandemia de

34
COVID-19. Até o momento de escrita deste trabalho, são mais de 310
mil mortes e de 12,5 milhões de casos confirmados9, no país. O Brasil
assumiu, na última semana, o posto preocupante e desalentador de
nação com mais mortes diárias no mundo, lugar até então ocupado
pelo Estados Unidos.
Desde o início da Pandemia, devido às medidas sanitárias, as
escolas de Ensino Básicos e de Ensino Superior foram fechadas, como
tentativa de frear a propagação do vírus e a ocorrência das infecções
pelo SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19.
Uma solução temporária com vistas a propiciar a continuidade
da oferta das atividades educacionais do Ensino Superior no país,
instituída pela Portaria do MEC de nº 343, de 17 de março de 2020,
foi a autorização do Ensino Remoto Emergencial em lugar do Ensino
Presencial, até que se tivesse condições seguras de retorno às salas
de aula presenciais – o que ainda não aconteceu na maioria das
cidades do país. Conforme o texto legal, seu intuito era:

Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das


disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem
meios e tecnologias de informação e comunicação, nos
limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição
de educação superior integrante do sistema federal de
ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de
dezembro de 2017. (MEC. PORTARIA Nº 343, 2020)

Atente-se para o fato que a substituição frisa a questão das


aulas e não apenas do ensino. O que fez surgir o Ensino Remoto
Emergencial e não simplesmente reprodução de modelos de ensino
EAD já existentes pelo país.
No que tange ao estágio supervisionado, essa portaria vedava

9
Dados de 28/03/2021. Fonte: https://covid.saude.gov.br/
35
às práticas de estágio e de laboratórios os recursos das atividades
remotas. Assim, no parágrafo 3º, do art. 1º, “fica vedada a aplicação
da substituição de que trata o caput aos cursos de Medicina bem
como às práticas profissionais de estágios e de laboratório dos
demais cursos” (MEC. PORTARIA Nº 343, 2020) grifos nossos. Essa
portaria foi prorrogada por duas vezes, por meio das portarias de nº
395, de 15 de abril de 2020 e nº 473, de 12 de maio de 2020, as quais
não se referiam apenas à substituição das disciplinas em andamento,
tal qual Portaria 343, além de agregar, à autorização, a substituição
para a modalidade remota das disciplinas teóricas-cognitivas do
curso de Medicina.
Interessante observar, que apenas após Nota Técnica Conjunta
nº 17, do Ministério da Educação/CGLNRS/DPR/SERES, de 18 de
junho de 2020, esclareceu-se interpretação que havia gerado dúvidas
referentes estágio desde a Portaria nº 343, de março de 2020. Neste
quesito, esclarece a nota técnica quanto ao correto entendimento do
parágrafo 3º, art. 1º da Portaria nº 343:

Também, havia a interpretação inadequada do § 3º, do art. 1º,


da Portaria nº 343/2020, que tratava da vedação da
substituição dos estágios e práticas profissionais. A intenção
da portaria foi de vedar a substituição dessas atividades
práticas, que devem ser realizadas de forma presencial
nas instalações das IES, assim entendia-se que o período da
suspensão dessas atividades fosse por um prazo em que os
alunos depois pudessem realizar as reposições. As práticas
profissionais fora do estabelecimento educacional, nunca
foram vedadas, pois não dependem da regulamentação
da SERES. Por exemplo, estágios em empresas, hospitais
particulares, e outros que se realizem fora da instituição,
seguem as regras locais e trabalhistas, cabendo a instituição o
reconhecimento dessas atividades como atividade
complementar ou estágio regular, dentro dos convênios ou
acordos celebrados e conforme o Projeto Pedagógico do
36
Curso, portanto não cabe imputar à portaria possíveis
rescisões de estágios profissionais por parte das empresas. Os
alunos nestes casos deverão retornar aos estágios oferecidos
nas IES ou encontrar novo estágio profissional para finalizar
as horas necessárias à conclusão de seus cursos. (MEC. Nota
Técnica Conjunta nº 17/2020/CGLNRS/DPR/SERES/SERES,
2020) grifos nossos

Ainda em junho de 2020, porém, tendo em vista a


continuidade das condições impeditivas de retorno às aulas e
atividades presenciais, o MEC edita nova portaria, a Nº 544, de 16 de
junho de 2020, prorrogando o Ensino Remoto Emergencial até 31 de
dezembro de 2021, a qual trouxe autorizações excepcionais para a
substituição das práticas profissionais presenciais de estágio. No
texto, no parágrafo 3º, do art. 1º, agora se lê:

No que se refere às práticas profissionais de estágios ou às


práticas que exijam laboratórios especializados, a aplicação da
substituição de que trata o caput deve obedecer às Diretrizes
Nacionais Curriculares aprovadas pelo Conselho Nacional de
Educação - CNE, ficando vedada a substituição daqueles
cursos que não estejam disciplinados pelo CNE. (MEC.
PORTARIA Nº 544, 2020)
E complementando, dispõe o parágrafo 4º que:

A aplicação da substituição de práticas profissionais ou de


práticas que exijam laboratórios especializados, de que trata o
§ 3º, deve constar de planos de trabalhos específicos,
aprovados, no âmbito institucional, pelos colegiados de
cursos e apensados ao projeto pedagógico do curso. (MEC.
PORTARIA Nº 544, 2020)

Esses novos direcionamentos vão ao encontro do proposto no

37
Parecer CNE-CP10 nº 5, de 28 de abril de 2020, que tratava da
“Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo
de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga
horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19”. Neste
âmbito, o parecer em questão entendia que:

Se o conjunto do aprendizado do curso não permite, neste


período excepcional de Pandemia, aulas ou atividades
presenciais, é de se esperar que as atividades de estágio,
práticas laboratoriais e avaliações de desempenho de
aprendizado possam ser cumpridas também de forma não
presencial, desde que devidamente regulamentado pelo
respectivo sistema de ensino. [...] Neste sentido, as novas
formas de organização do trabalho, em particular as
possibilidades de teletrabalho, permitiriam também
considerar atividades não presenciais para estágios e outras
atividades práticas, sempre que possível, de forma on-line,
como o uso de laboratórios de forma remota e outras formas
devidamente justificadas no projeto pedagógico do curso.
(MEC. Parecer CNE-CP nº 5, 2020)

Até então, algumas instituições de ensino continuavam


desenvolvendo os estágios internos, de forma remota, como o caso
das atividades de alguns NPJs, mas repletas de dúvidas quanto à
validade.
As determinações da Portaria nº 544 foram revogadas pela
Portaria nº 1.038, de 7 de dezembro de 2020, todavia as autorizações
para a substituição de atividades presenciais por atividades remotas
continuam valendo, incluindo para os estágios que se adequem a esta
determinação, conforme disposto na Portaria 544.

10
Conselho Nacional de Educação (CNE) e Conselho Pleno (CP).
38
Estudo de caso: estágio supervisionado na Fupac-Mariana/MG e
as adapções realizadas no período da Pandemia de Covid-19

Nexte estudo de caso, será realizada a apresentação dos


principais elementos do Regulamento de Estágio Supervisionado da
Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana, bem como
analisados os dados da pesquisa de campo realizada por meio de
entrevista estruturada com a coordenação do Núcleo de Prática
Jurídica (NPJ) e de questionário estruturado on-line respondido pelos
estudantes do 7º ao 10º período do curso.
Contextualização, regramento e adaptações do Estágio
Supervisionado na Fupac-Mariana
O estágio supervisionado na Faculdade Presidente Antônio
Carlos ocorre nos quatro últimos semestres do curso de Direito (7º,
8º, 9º e 10º períodos), sendo um componente curricular obrigatório,
tendo carga horária global de 360 horas, com acompanhado do
Núcleo Docente Estruturante (NDE) e pelo coordenador(a) do Núcleo
de Prática Jurídica (NPJ).
Neste contexto o discente deve desenvolver diversas
atividades, conforme institui o Regulamento de Estágio Obrigatório
da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Neste quesito, é
indicado que o estudante realize o estágio externo nas seguintes
áreas profissionalizantes:

I- Área Cível
II- Área da Infância e Juventude;
III- Área de Execuções;
IV- Promotorias Públicas;
V- Defensorias Públicas;
VI- Área Pública. (FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO
CARLOS DE MARIANA, 2019)
39
Ainda, tal dispositivo menciona, em seu art. 5º, as atividades
que constituirão atividades dos estagiários, entre outras:

a) Estudos de autos findos ou visitas a presídios;


b) Elaboração de peça profissional;
c) Ajuizamento de ações;
d) Solução de caso extrajudicial;
e) Comparecimento à audiência;
f) Assistência Judiciária;
g) Participação ou assistência em júri simulado;
h) Participação ou assistência em audiência simulada;
i) Estudos Dirigidos e Seminários; e
j) Realização de Conciliações. (FACULDADE PRESIDENTE
ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA, 2019)

São consideradas as condições necessárias e os estudantes


elegíveis para o estágio supervisionado no NPJ, conforme o disposto
nos art. 12, 13 e 14:

Art. 12. São considerados aptos a inscreverem-se no Estágio


Supervisionado os alunos que estiverem matriculados no 7º
período do curso de Direito.
Art. 13. O ingresso de aluno no Estágio Supervisionado será
feito somente em períodos regulares e determinados, a serem
fixados pela Coordenação do Curso de Direito.
Art. 14. – São considerados alunos estagiários os acadêmicos
matriculados na disciplina “NPJ I a IV”, do 7º ao 10º períodos.
(FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA,
2019)

40
A computação das horas necessárias é instituída pelo art. 23
do Regulamento do estágio obrigatório:

Art. 23. A carga horária global estipulada no artigo anterior


deverá ser cumprida, semestralmente, da seguinte forma:
§ 1º. 40 horas que serão dadas no formato de orientação em
grupo, em sala de aula, e que deverão ser cumpridas,
obrigatoriamente, por todos os alunos matriculados no
Estágio Supervisionado;
§ 2º. 15 horas que serão, obrigatoriamente, cumpridas no NPJ,
na forma do inciso I, art. 6º deste Regulamento;
§ 3º. 35 horas que serão cumpridas, no NPJ ou fora dele, por
meio da realização das atividades descritas no art. 6º e 17
deste Regulamento. (FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO
CARLOS DE MARIANA, 2019)

Conforme salienta o dispositivo supracitado, em seu parágrafo


2º, para alcançar a carga horária global obrigatória (360 horas) e
concluir este componente curricular, os discentes, a partir do 7º
período, até o fim do curso, serão matriculados nas disciplinas de
prática jurídica simulada (NPJ - I, II, III, IV), que é ministrada através de
aulas síncronas e assíncronas. Nestas disciplinas, a previsão
regulamentar é de 90h aulas. Cada período terá 40 horas computadas
para fins de carga horária do estágio supervisionado obrigatório,
através da presença nas aulas.
No 7º e 8º período, a cadeira de NPJ Módulo Simulado tem
foco na área civil, já no 9ª na área criminal, e por fim, no último
período a matéria se volta à área trabalhista. Somando assim 200
horas com o cumprimento regular das quatro disciplinas.
Para quem faz estágio externo, semestralmente, o cursista
deve entregar, à coordenação do NPJ, formulário preenchido pelo seu
41
supervisor de estágio da instituição conveniada, informando as
atividades exercidas para que se lhe possa atribuir nota
correspondente à avaliação do coordenador sobre o desenvolvimento
do estagiário. A entrega do relatório independe da carga horária que
de fato lhe compete cumprir em sua função na instituição em que
realiza o estágio. Para fins de computação de horas obrigatória do
estágio supervisionado, valerá 35 horas, conforme o parágrafo §3º do
art. 23 (FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA,
2019). O discente que não realiza o estágio externo, deve cumpri-lo
integralmente estagiando no próprio Núcleo. Assim, soma-se 140
horas que serão computadas também na instituição.
Desta forma, o discente alcança 340 horas, portanto, ainda
não alcançará o total exigido de carga horária global, como disposto
no art. 23, parágrafo §2º do regulamento. Para complementação da
carga horária, o estagiário deve assinar folha de frequência
demonstrando as hora em que esteve no NPJ, sendo obrigatório o
cumprimento de 15 horas, na forma do parágrafo §2º do art. 23 do
regulamento. O restante se dará, pelas alternativas: (i) participação em
audiências simuladas (02h apuradas), (ii) visitas técnicas de caráter
jurídico (01h apurada), (iii) participação em júri simulado (04h para
quem assistir e 08h para quem atuar), (iv) publicações de artigos (04h
apuradas) e (v) conciliação feita pelo NPJ próprio (04h para
conciliação feita, 02hrs para as tentativas de conciliação) (FACULDADE
PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA, 2019). Essas atividades
precisaram ser adequadas, no período da Pancdemia de Covid-19,
para as realidades possíveis de serem realizadas virtualmente.
De uma forma geral, com a Pandemia da Covid-19, as
atividades do estágio no NPJ precisaram ser reorganizadas e
reconfiguradas de forma que pudessem ser desenvolvidas de forma

42
remota, com a mediação da tecnologia11. Com isso, adotou-se o
sistema encontros ou aulas síncronos com os estagiários matriculados
nas disciplinas do Núcleo, valendo-se das plataformas institucionais,
Portal Blackboard e do Google Meet, e para os clientes, o Google
Forms. Os materiais e atividades obrigatórias passaram a ser
disponilizadas aos estudantes via portal e os atendimentos aos
clientes passaram a se dar de forma virtual, pelo Google Meet. Bem
como, a participação em audiências e conciliações também está se
realizando de forma virtual, dado o atual cenário dos atendimentos
na Pandemia.
Desta forma, no período de ensino e de práticas remotas,
passou-se então a promover encontros virtuais, que ocorrem
quinzenalmente, nos quais os discentes devem participar para suprir
as 15 horas que se referiam à participação obrigatória nas demandas
do NPJ, dispostas no artigo 6º, inciso I e artigo 23º, parágrafo §2º.

O NPJ da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana-MG:


entrevista com a coordenação do órgão

Para alcançar o objetivo da presente pesquisa, qual seja,


conhecer mais de perto a realidade do estágio supervisionado do
curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana,
especialmente no contexto da Pandemia de Covid-19, foi realizada
uma entrevista conjunta, por escrito, conforme preferência dos
entrevistados, com a atual coordenadora e o ex-coordenador do
NPJ12. Ambos conhecem a realidade e atividades desenvolvidas no

11
Informações obtidas em entrevista escrita com a coordenação do NPJ da
faculdade.
12
Observa-se, no entanto, nas respostas recebidas, que são escritas em 1ª
pessoa do singular, o que leva a entender que os coordenadores discutiram
43
NPJ da instituição há vários anos, o que lhes possibilita falar de suas
percepções com vasta experiência tanto de antes quanto de durante
a Pandemia.
Optou-se por entrevista estruturada com 10 questões
discursivas (apêndice a). As indagações realizadas permitiram
conhecer as peculiaridades e efetividade do estágio supervisionado,
conforme perspectiva da coordenação das atividades, bem como os
detalhes do estágio supervisionado no período da Pandemia da
Covid-19.
As questões foram enviadas por e-mail aos respondentes
junto com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (apêndice
c), no dia 23 de março de 2021. Os entrevistados responderam ao
questionário e o enviaram aos integrantes da pesquisa no dia 26 de
março.

Experiência e percepção dos entrevistados com relação as


peculiaridades e efetividade do estágio supervisionado

Ao indagar se os estudantes valorizam as disciplinas de


estágio supervisionado como sendo importantes para o
desenvolvimento de habilidades e competências relacionadas às
práticas profissionais jurídicas, os respondentes, ou o/a respondente
(R,) disseram que há estuadantes que valorizam, assim como há os
que não valorizam, como pode ser observado no trecho da entrevista
a seguir:

R: Não dá para generalizar, há estudantes que valorizam


muito, bem como há os que não valorizam, ou seria melhor
dizer que há os que não conhecem o funcionamento e toda

as questões e as respostas, mas um deles a redigiu e dá voz ao texto-


resposta final.
44
dinâmica trabalhada no NPJ e partem de um prejulgamento 13.
Segundo relato dos entrevistados, alguns estudantes
desconhecem a dinâmica do NPJ, e, por prejulgamento, acabam
julgando tal perspectiva de estágio como sendo “inferior” ao estágio
externo à faculdade. Desta forma, julgam mais interessante o estágio
em instituições conceituadas, tais como o Fórum, o Poder Legislativo,
o Poder Executivo ou os escritórios de advocacia. Soma-se a isso a
falta de mais conhecimento sobre a dinâmica do NPJ, por parte dos
cursistas:

R: Levando em consideração este vasto período de atuação


junto ao NPJ, percebo e também ouço relatos dos alunos, no
sentido de que é mais interessante e até mesmo uma questão
de “status" fazer estágio em Instituições conceituadas como
Fórum, Poder legislativo, Poder executivo, escritórios
renomados, entre outras instituições. Tal percepção é desde
minha época de graduação mesmo. Ademais, quando o aluno
realmente procura o NPJ, consegue aproveitar o máximo, faz
o estágio fixo por exemplo, os relatos são positivos e muitos
satisfatórios. Posto isso, eu concluo que, muitas das vezes a
não valorização de parte dos alunos, estão intimamente
ligada à falta de informação, não somente por culpa do
discente, mas também pela equipe do NPJ.
Ainda, neste contexto, os entrevistados citaram dois possíveis
fatores para maior valorização, por alguns estudantes, do estágio
realizado em instituições conveniadas, sendo esses a remuneração
das bolsas de estágio e o contato com profissionais/carreiras jurídicas
consideradas por tais cursistas como sendo mais valoradas. É o que
pode ser lido neste trecho da entrevista:

R: O “status” do estágio realizado na instituição conveniada,


seja pela remuneração das bolsas de estágio, pelo contato

13
Mantivemos as respostas tal qual redigidas no questionário.
45
com profissionais/carreiras jurídicas consideradas de maior
relevo, pelos casos concretos abordados ou do perfil do
público atendido realmente impacta na percepção do(a)
aluno(a), novamente, torna-se importante um estudo
aprofundado para esclarecer se verdadeira (ou não) a nossa
percepção.

A falta de percepção da contribuição do estágio durante o


curso também é algo marcante na fala dos respondentes, na
percepção destes, a valorização do estágio superviosionado, por
vezes, ocorre somente com o término do curso, ao ingressar no
mercado de trabalho. O que evidencia uma falta da percepção, por
parte dos estudantes, do papel do estágio na construção de
habilidades relacionadas às várias práticas jurídicas necessárias ao
campo profissional, ainda durante o próprio curso:

R: Acrescenta-se ainda que a valorização do estágio


supervisionado se dá mais após o término do curso, quando
efetivamente os egressos entram no mercado de trabalho,
por certo, trata-se de uma percepção baseada no senso
comum, que requer uma pesquisa empírica para confirmação,
ou refutação da hipótese.
Tem-se ainda, que, na percepção dos entrevistados, os
cursistas atribuem maior valorização ao aprendizado profissional que
a preparação para o Exame da Ordem, mas que, sem dúvida, as
atividades voltadas para a prática profissionais servem também a uma
preparação para tal exame, uma vez que nos estágios, especialmente
no NPJ, os estudantes são orientados à elaboração de peças
processuais para os casos reais que acompanham e isso é ponto
favorável à segunda fase da Prova da Ordem, tal como é ressaltado
nos trechos da entrevista aqui dispostos:

R: O aprendizado profissional, o que não deixa de ser uma


46
preparação para o Exame de ordem, tendo em vista que a
segunda fase do exame de ordem é uma peça prático
profissional, algo que se faz o tempo todo no NPJ.
[...]
Além de serem situações complementares, o aprendizado
profissional com a preparação para o Exame de Ordem,
acredito que a maior valorização varia de aluno(a) para
aluno(a), suas demais experiências acadêmicas, pessoais e
profissionais, bem como seus objetivos após a conclusão de
curso.
Além disso, ressalta-se que, dentre as atividades práticas, o
atendimento aos clientes, é uma prática que tende a agradar aos
cursistas haja vista a experiência de se sentirem “advogados”:

R: A justificativa é pelo fato dos(as) alunos(as) gostarem da


parte de contato com cliente, a autonomia dada a cada um
torna tudo muito prazeroso. Afinal, depois de tanta teoria, o
aluno tem a oportunidade de se sentir um “advogado”,
fazendo as perguntas pertinentes ao caso, encaixando cada
fato ao direito.

Percebe-se também diferença na adesão às propostas do


estágio supervisionado no NPJ entre os estudantes que já fazem ou
fizeram estágio externamente à instituição, como se observa nos
destaques feitos na entrevista:

R: Nitidamente. E eu entendo, quando já se tem um estágio


fora da Instituição, obrigar o aluno a outro estágio, torna a
caminhada mais dolorosa, acredito que por isso há uma
resistência desses alunos no princípio.
Outrossim, acredito que a jornada desses alunos no NPJ
devem ser mais flexíveis, de modo que eles não vejam a
disciplina como um peso. Por esse motivo, eles tem a

47
faculdade de participar de todas as atividades, sendo
obrigatórias apenas algumas atividades.
Lado outro, muitos alunos que fazem estagio externamente
optam por participar de tudo no NPJ para melhor
aproveitamento e engajamento na área, os relatos desses
alunos são muitos positivos também. O estágio no Fórum, por
exemplo, não possibilita que o estudante exerça ainda que de
maneira supervisionada, atividades privativas da advocacia, e
é o que muitos almejam.
Percebe-se, no trecho final anterior que, ainda que os
estudantes estejam ou tenham feito estágio externo, àqueles que se
engajam nas atividades obrigatórias do NPJ tendem a aproveitar
ainda mais das práticas jurídicas e acrescentar importante
complementação à suas formações, o que evidencia o valor das
atividades desenvolvidas no NPJ.

O estágio supervisionado no período de Covid-19: dados da


entrevista

Os entrevistados relataram os principais problemas


enfrentados para a implantação da prática por meio de aulas remotas,
dentre eles, o fato de, inicialmente, o MEC ter restringido a
substituição das atividades práticas presenciais, conforme já
abordado no item 2.3 deste trabalho. Conforme os entrevistados,
após sair a permissão normativa para a substituição da prática
presencial para formato remoto, foi necessário a realização de
adaptações tanto de infraestrutura, quanto na forma de abordagem,
velendo-se de novas ferramentas tecnológicas para que o
atendimento ao cliente e as audiências de conciliação pudessem ser
realizadas em ambiente on-line:

R: A migração das aulas e atividades presenciais para as aulas


48
remotas trouxeram muitos desafios, especialmente, no que se
refere as aulas e atividades práticas. Em um primeiro
momento, havia a vedação pelo próprio MEC da continuidade
e/ou substiuição das atividades práticas presenciais para o
formato remoto (Portarias 343 e 345). De todo modo, ciente
das peculiaridades do nosso corpo discente e da prática
jurídica, com apoio da direção, coordenação e outros
docentes, mantivemos constante diálogo e decidimos pelo
retorno de forma gradativa das atividades relacionadas ao
estágio supervisionado, tanto em relação aos(as) discentes
que continuaram e/ou retornaram a desempenhar suas
atividades nas instituições conveniadas, quanto os(as)
discentes que realizam toda carga horária no NPJ. Logo, a
questão do estágio supervisionado foi tratado com especial
atenção pela faculdade. As principais mudanças realizadas
para adaptação dos procedimentos da prática profissional ao
ensino remoto se deu com a adaptação da equipe do NPJ,
dos(as) discentes e dos(as) clientes quanto a necessidade de
utilizar novas ferramentas de comunicação, como o
formulário do google, atendimentos e conciliações por meio
de plataforma

Sobre o acesso da comunidade carente a assessoria jurídica ou


os demais serviços ofertados pelo NPJ, no período de Pandemia,
verifica-se que foram necessárias adaptações, tal como a forma de
atendimento aos clientes na modalidade remota, entretanto, as atuais
circunstâncias não alteraram a quantidade e o tipo de demanda da
comunidade, pois [as pessoas carentes] continuam nos procurando
bastante. Quanto ao tipo de demanda, são sempre da área cível
(DADOS DA ENTREVISTA).Tendo em vista que as ferramentas de
comunicação e de colaboração passaram a ser a base para realização
de um atendimento ao cliente, tornou-se necessário um investimento
da faculdade em recursos que permitam um ambiente remoto seguro

49
e acessível:

R: Desde o início, quando o MEC proibiu a substituição da


atividades práticas presenciais pelo formato remoto, o acesso
da comunidade carente, seja clientes, já atendidos, ou os(as)
novos(as) clientes que procurariam atendimento (até mesmo
devido a ser esperado um aumento na demanda ocasionado
pelas consequências da Pandemia da COVID-19). Para tanto
foram tomadas algumas medidas práticas, a aquisição de
linha de telefonia móvel (Claro) própria e específica para o
NPJ, a criação de conta comercial no whatsapp e de
formulário do google. Desse modo, o contato com os(as)
clientes foi dinamizado e tornou-se remoto, preservando à
saúde da equipe e dos(as) clientes, bem como seguindo as
recomendações das autoridades competentes.
Em relação aos processos judiciais ativos, movimentados pelos
estagiários do NPJ, houve mudanças no modus operandi da justiça
que demandaram alterações na dinâmica do NPJ, dentre as mudanças
está o projeto de virtualização dos processos que “consiste na
digitalização dos processos físicos, transformando-os em eletrônicos,
como forma de viabilizar a continuidade da prestação jurisdicional
remotamente”(TJMG, 2020)14.

R: Houveram muitas mudanças, os processos ativos que antes


eram trabalhados no NPJ presencialmente, agora são
baixados do PJE e anexados ao Portal Blackboard para que os
alunos façam a leitura e as movimentações pertinentes a cada
caso. Em outras situações marcamos reuniões por
videoconferência na plataforma meet, para discutimos os
processos e encontrarmos juntos a saída para cada situação.
Além disso, cumpre salientar que os processos físicos em

14
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Virtualização. Disponível em:
https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/servicos/faq-Covid-19/virtualizacao-de-
processos/#.YGSJ51VKjIV acesso em: 28 mar. 2021.
50
tramitação puderam ser virtualizados, o que oportunizou a
continuidade do acompanhamento processual sem prejuízo
as partes atendidas pelo NPJ e da participação dos(as)
alunos(as).

Na percepção dos entrevistados, em que pese a grande


mudança e os desafios enfrentados, atualmente, há também pontos
positivos, como maior participação dos aluno em audiências, as quais
passaram a ser realizadas de forma virtual. Vale mencionar a
perceptível praticidade causada pelo ensino remoto, considerando
que o aluno poderá participar das aulas práticas de onde estiver,
bastando estar munido de um dispositivo que lhe dê acesso a
internet, essa praticidade pode ter sido um fator contributivo para o
aumento da participação dos cursistas, principalmente em relação aos
que possuem o horário reduzido, como por exemplo, os estudantes
que conciliam o estudo e o trabalho.
Além disso, conforme questionário estruturado respondido
pelos estudantes da faculdade elegíveis para a fase do estágio
supervisionado, que será exposta no item 3.3 do presente trabalho,
mais da metade dos alunos que realizaram o estágio externo
afirmaram que este foi suspenso no período de Pandemia do Covid-
19, esses dados traduzem claramente a dificuldade de realização de
estágio em instituições conveniadas no período em questão,
podendo esse, ser outro motivo para o aumento da participação dos
alunos nas atividades do NPJ.

R: Na nossa percepção, apesar de ser uma mudança drástica e


que no primeiro momento nos leva a pensar em algo muito
negativo ou ao menos deficiente, com relação ao estágio,
conseguimos perceber maior participação dos alunos neste
período. Muitos alunos conseguiram participar de
atendimentos ao público, que são nossos clientes reais, bem

51
como participação em audiências de conciliações, nas quais
antes (presencial) participavam 3 alunos no máximo, em cada
atendimento/conciliação, hoje chega a participar cerca 25
alunos, variando para mais ou para menos.

Todavia, a presença virtual de um número maior de alunos nas


atividades propostas pelo NPJ, nem todos demostram o engajamento
necessário, conforme respondentes, pois muitos mantêm-se passivos,
portando-se como meros ouvintes. Dentre os fatores apontados, a
timidez na participação ao vivo, a dificuldade em adaptar-se às novas
formas de interação e comunicação entre as pessoas, a falta de
destreza no uso de dispositivos tecnológicos ou a própria capacidade
do dispositivo tecnológico disponível, tendo em vista que o ensino
remoto demanda boa capacidade de internet e dos aparelhos
empregados pelos estudantes:

R: Com isso, os alunos mais presentes, ou seja, a reação tem


sido positiva. Houve uma maior presença dos(as) alunos nas
atividades, atendimentos, reuniões e conciliações. Todavia,
observa-se que a participação efetiva ainda se restringe a
alguns(mas) alunos(as), tendo em vista que parte dos(as)
discentes participam de forma passiva, como ouvintes. Vários
podem ser os motivos para tal situação, seja a timidez, os
problemas com os equipamentos tecnológicos
(câmera/microfone), a internet de baixa qualidade, etc.
Portanto, percebe-se que o alcance das práticas de estágio
aumentaram, há uma maior presença discente, especialmente,
dos(as) alunos(as) que conciliam as ativdades acadêmicas e
profissionais.

Em razão do atual cenário de Pandemia, foram implementadas


medidas que buscaram reduzir o contato físico, entretanto, tais
medidas trouxeram um sobrecarga de atividades sobre os professores
52
responsáveis pelo seu desenvolvimento. Neste ínterim, os
respondentes mencionaram que um dos pontos negativos da nova
realidade é a sobrecarga de trabalho, dada a necessidade de estar
conectado “o tempo todo”, para responder às solicitações que
chegam pelos meios de comunicação como Whatsapp ou e-mail,
quer sejam advindas dos vários estagiários matriculados no NPJ quer
seja dos clientes, por exemplo.
Na modalidade home office e/ou teletrabalho, um dos
grandes desafios do trabalho é diferenciar qual é o período de
trabalho, qual é o período da realização de outras tarefas e até qual é
o momento de descanso, devido essa dificuldade em fazer essa
distinção, os encargos laborais passaram a demandar mais tempo que
anteriormente demandavam. Ou seja, os limites que estavam
claramente definidos se liquefizeram e o labor passou a invadir os
espaços destinados á descanso, lazer, relaxamento mental e outros:

R: Toda comunicação se tornou remota e online, o que levou


a uma sobrecarga de trabalho, devido a necessidade de se
sentir “o tempo todo” conectado”

Sem dúvida, esse é um aspecto importante de ser considerado


e que vem sucitando debates sobre o direito de descanso e de
desconexão dos empregados em regime de teletrabalho e/ou home
office. É preciso tentar estabelecer acordos entre coordenadores,
professores, estudantes e clientes de forma a resguardam a saúde
mental dos empregados.

Dados de campo: a percepção dos estudantes

Para a realização da pesquisa com os estudantes, entre os dias


18 e 22 de março de 2021, foi elaborado um questionário, no formato
53
de formulário on-line, no Google Forms, visando a mensuração da
experiência e percepção dos alunos do 7º, 8º, 9º e 10º períodos da
FUPAC-Mariana com relação ao estágio supervisionado em Direito e
as peculiaridades deste processo no contexto da Pandemia do Covid-
19. Esses períodos foram selecionados tendo em vista o regimento
institucional que dispõe sobre ser o estágio supervisionado
obrigatório nesta fase do curso, conforme exposto no item 3.1 deste
estudo.
Importante mencionar que a faculdade conta, no presente
período letivo, com os respectivos números de matriculados elegíveis
para o período do estágio obrigatório: 38 estudantes no 7º período,
11 estudantes do 8º período que estudam conjuntamente com os 51
alunos do 9º período (62 estudantes na turma), e mais 19 estudantes
do 10º período15, mas que estão cursando disciplinas de períodos
variados uma vez que estão completando os estudos com as
disciplinas pendentes para a conclusão do curso. Portanto, são 119
estudantes no total. Destes, alguns do 10º já podem ter terminado a
carga horária do estágio obrigatório, uma vez que estão fazendo
apenas algumas disciplinas como estudos independentes. No NPJ
estão matriculados, no 1º semestre letivo de 2021, o total de 101
alunos, distribuídos nas disciplinas NPJ I e NPJ III, conforme
disciplinas ofertadas no período letivo vigente.
O questionário de pesquisa (apêndice b) contou com 30
questões objetivas, dispostas em quatro seções, no formulário on-
line:

1. Identificação dos alunos - 02 questões

15
No atual semestre letivo, não há turma do 10º período regular. A
faculdade conta com uma turma do 1º período, uma do 3º, uma do 5º, uma
do 7º e uma do 9º.
54
2. Experiência dos alunos em estágio de Direito - 13 questões
3. Experiência e percepção dos alunos com relação ao estágio
em Direito no período da Pandemia do Covid-19 – 07
questões
4. Experiência e percepção dos alunos com relação ao estágio no
Núcleo de Prática Jurídica da FUPAC – Mariana -07 questões

Entre os dias 22 e 26 de março os estudantes responderam às


questões, cujos resultados serão demonstrados a seguir.
Dos 54 respondentes, correspondentes a 56,5% do total de
cursistas que estão matriculados nas disciplinas de estágio
supervisionado, 56% são do sexo feminino e 44% do sexo masculino
e estão distribuídos por período de acordo com gráfico 01 abaixo:

Gráfico 01: Dados da pesquisa.

Com relação à realização de estágio, 85% dos alunos já


realizaram estágio jurídico ao longo da graduação, sendo 25% deles
apenas externo à faculdade, 36,5% apenas no NPJ e 38,5% realizaram
parte no Núcleo e parte externa à faculdade, conforme gráfico 02. De

55
onde se percebe a essencialidade das atividades do NPJ para o
estágio dos cursistas.

Gráfico 02: Dados da pesquisa.

Dos alunos que realizaram estágio externo à faculdade, 90,6%


deles são remunerados, e a maior representatividade foi em
escritórios de advocacia (32,4%), seguida da Assistência Judiciária
Municipal de Mariana (26,5%), Delegacia de Mariana (17,6%) e
Tribunal de Justiça no Fórum de Mariana (11,8%), conforme
demonstrado no gráfico a seguir:

56
Gráfico 03: Dados da pesquisa.

Quanto à forma de ingresso nos estágios jurídicos externos à


faculdade, a maioria foi via indicação (44,4%), seguido de iniciativa
própria, na procura por empresa, escritório ou órgão que os aceitasse
como estagiários (36,1%) e, por fim, via processo de seleção (19,4%).
De maneira geral, os estudantes entendem que há uma
relação adequada entre o conhecimento jurídico exigido e as
atividades realizadas (56,3%), e que o estágio atende às expectativas
em relação à aquisição de novos conhecimentos, habilidades e
competências práticas para a futura atividade profissional (71, 4%).
Ainda, indicaram que o estágio lhes proporciona:

a) atuar na resolução de problemas reais (89,7%);


b) interagir com outros profissionais e trocar experiências
(94%);
c) ampliar a visão de mercado (87,7%);
d) dedicar tempo suficiente às atividades práticas (89,6%);

Ainda, em relação ao elemento que mais valorizam em relação


57
às atividades práticas realizadas no estágio supervisionados, o
aprendizado para complementar o aprendizado teórico se sobressai
(51,1%), seguido da preparação para o mercado de trabalho (40,4%),
da preparação para o Exame da Ordem (6,4%) e estabelecer relações
com outros profissionais do Direito (2,1%), conforme gráfico 04.

Gráfico 04: Dados da pesquisa.

No que concerne ao contexto da Pandemia do Covid-19, mais


da metade dos estudantes que realizaram o estágio afirmaram que
este foi suspenso no período em questão. E atualmente, 38,1% deles
estão trabalhando em casa, por meio de tecnologias de informação e
comunicação, e 31% continuam na modalidade presencial. Outros
31% estão na forma híbrida, parte presencial e parte em casa.
Nesse sentido, as ferramentas mais utilizadas são16: Whatsapp
(79,6%), seguido de interlocução direta e pessoal (34,1%), Google
Meet (31,8%) e e-mail (29,5%).

16
Os valores ultrapassam 100%, pois era possível marcar mais de uma
opção.
58
Quanto ao impacto da Pandemia no estágio, a maioria julga
ter impacto negativo (53%) e apenas 18,3% vislumbram o lado
positivo, tal qual exposto no gráfico 05. A maioria dos alunos julga ter
dificuldades para solicitar orientações e obter os esclarecimentos
necessários para execução de suas atividades (72,7%).

Gráfico 05: Dados da pesquisa.

Mas apesar da interferência negativa da Pandemia no estágio,


conforme dados anteriores, os respondentes mencionam conseguir
realizar atuação e aproveitamento positivos no estágio, conforme se
observa no gráfico 06, com 68,9% dos estudantes assinalando que,
quase sempre, sempre ou frequentemente atingem as expectativas,
27% afirmam que algumas vezes atingem as expectativas e apenas
4,1% assinalam que raramente atinge as expectativas:

59
Gráfico 06: Dados da pesquisa.

Quanto à oferta de estágios, a maioria dos alunos (80,4%)


percebem que houve uma redução. E como um balanço geral, a
maioria considera que atinge as expectativas de aprendizado prático,
mesmo no contexto da Pandemia (62,5%) e 33,4% consideram que as
supera.
No tocante ao Núcleo de Prática Jurídica, atualmente 75% dos
alunos estão realizando estágio exclusivamente nesta modalidade,
sendo que a maioria deles foi por necessidade (48,7%), já que o
horário de trabalho e estudo são fatores limitantes, seguido de
escolha (30,8%) e falta de oportunidade (20,5%).
A maioria dos alunos indicaram que tem contato com:
a) casos reais (94,2%);
b) pessoas atendidas (73,1%);
c) autos processuais (92,3%);
d) participação em audiências (67,9%).
e) Sistema de Processo eletrônico (94,2%)

60
Quanto à integração suficiente entre as aulas teóricas e as
atividades práticas no estágio no NPJ, a maioria indicou
eventualmente (48%) e sim (42%), conforme gráfico 07:

Gráfico 07: Dados da pesquisa.

Comparativamente, quanto ao uso do Sistema de Processo


Eletrônico, os estagiários têm mais acesso a esse Sistema nos estágios
externos à faculdade (68,6%), enquanto no NPJ apenas 21,2% têm
acesso a este.
Vale ressaltar que alguns cursistas por questões de horário de
trabalho não conseguem participar das audiências de conciliação, por
exemplo, quando não há como serem alocadas em horários mais
propícios às suas realidades, tendo em visto a necessidade do cliente
atendido. O que faz com que este estudante participe em
oportunidades posteriores. Além disso, há os estudantes recém-
matriculados que ainda estão iniciando a disciplina de NPJ I e
começarão e ter contato com atendimentos ao público e com o
Sistema de Processo Eletrônico (PJe) terminada a introdução da
disciplina, o que deve ocorrer de final de março em diante.
61
Algumas considerações possíveis:

A formação de qualidade do profissional do Direito passa,


indubitavelmente, pelo melhor aproveitamento da relação das teorias
presentes ao longo do curso com as práticas diversas e com as
jurídicas, que podem ser desenvolvidas ao longo do curso,
ressaltando-se, é claro, o papel daquelas associadas ao estágio
supervisionado.
As Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de
Direito, de 2018, sem dúvida, provacarão ainda mais reflexão e novas
ações, na maioria das instituições de ensino, no sentido de reforçar e
avultar essa integração, bem como também delimitar o alcance e
propósito de cada conjunto de práticas dispostas no curso. Uma delas
se relaciona ao esclarecimento da distinção entre as várias práticas
jurídicas e o estágio supervisionado, propriamente dito, propondo o
estágio como uma das práticas jurídicas possíveis, mas não as
“igualando” em todas as circunstâncias, tal como exposto neste
estudo.
E, o fato de as novas diretrizes destacarem que as atividades
de cunho prático devem estar presentes em todas as disciplinas e não
apenas nas disciplinas de estágio, tal perspectiva faz eco com o
aspecto mais valorizado pelos estudantes pesquisados, uma vez que,
no estudo de caso desenvolvido, destacam-se o interesse pelo
aprendizado prático complementar à teoria e pela preparação para o
mercado profissional, bem mais evidente que pela preparação para a
prova da ordem. Tais aspectos podem ser trabalhados desde o
começo do curso, não se restringindo apenas ao estágio
supervisionado. Tendo, obviamente, no momento do estágio, ainda
mais espaço.
Possivelmente, muitos regulamentos de estágio, tal qual o da
faculdade em estudo, precisarão ser objeto de discussões provocadas
62
pelos órgãos colegiados, tal qual o NDE, as coordenações dos NPJs e
dos cursos de Direito, fim de se pensar as alterações que possam ser
necessárias. Não perdendo de vista que os NPJs deverão abarcar o
tripé representado tanto pelas práticas de resolução consensual de
conflitos e a prática do processo judicial eletrônico, o que na
instituição pesquisada já ocorre, mas pode ser mais desenvolvida,
quanto práticas de tutela coletiva que ainda precisam ser
implementadas.
Todavia, não bastasse essa premência de reorganização,
ampliação ou reconfiguração das práticas jurídicas advinda da NDCN
(2018), no contexto dos cursos de Direito, uma outra urgência se
interpôs neste entremeio: pensar-se o estágio supervisionado durante
a Pandemia de Covid-19. Por isso, uma pesquisa, tal qual a que foi
empreendida neste estudo, permite que seja possível conhecer, em
alguma medida mais pragmática, a percepção de dois focos de
interesse muito importantes quando se refere ao desenvolvimento do
estágio supervisionado: a de quem trabalha diretamente com essa
atividade, como o caso da coordenação do NPJ, e a dos estudantes,
que precisam cada vez mais terem sua percepção sobre as dinâmicas
institucionais e/ou externas investigadas, pois só assim as tomadas de
decisões institucionais e docentes conseguirão ser mais acertadas
quanto aos aspectos formativos do estágio, às aprendizagens que
podem fomentar e às necessidades ou interesses da comunidade
acadêmica quanto ao que esperam do estágio.
É uma percepção tranquilizante o fato de que, mesmo com a
redução da oferta de estágio, que é notada pelos estudantes
entrevistados, os cursistas estejam conseguindo realizar seu estágio
supervisionado por meio do NPJ. Isso dá ainda mais visibilidade a
este importante órgão do curso de Direito e evidencia sua
imprescindibilidade nas instituições. Entretanto, alguns estudantes
ainda têm dificuldade de compreender a dinâmica do estágio
63
supervisionado obrigatório, como é perceptível nos dados expostos
nesta pesquisa. Situação que merece atenção por parte da
coordenação do NPJ, a fim de se pensar novas estratégias de
divulgação tanto das regras quanto da dinâmica de funcionamento
das disciplinas e das práticas de estágio supervisionado.
Todavia, a passividade dos estudantes emerge no meio virtual,
como ressaltada na entrevista com a coordenação do NPJ, em época
de ensino remoto, mas é preciso salientar que essa não é uma
exclusividade destas circunstâncias pandêmicas. No ensino presencial,
a passividade dos estudantes pode ser também muito expressiva,
especialmente em cursos com o Direito, que por tradição, ainda
fazem largo uso das aulas expositivas quase que exclusivamente. O
que talvez este momento atípico vivenciado esteja fazendo,
contraditoriamente, é dar mais “visibilidade” tanto a tal passividade
dos educandos, quanto às demais falhas do processo educacional
como um todo, uma vez que as aulas virtuais explicitam mais os
silêncios, a falta de interação e a falta de compreensão efetiva do que
é trabalhado nas aulas e/ou encontros.
Passividade que não é apenas da instância do estudante, mas
pode ocorrer também com a instância dos professores que tentarem,
simplesmente, transportarem suas aulas pouco ativas para a realidade
virtual, preocupados com o cumprimento dos conteúdos. Realidade
que remete cada vez mais a reflexão sobre se considerar o processo
de aprendizagem dos alunos como um norteador em lugar do ensino
do conteúdo como fim em si mesmo.
Fora que a imprescindibilidade do letramento digital, ou seja,
o uso proficiente dos recursos tecnológicos, que hoje fazem a
mediação das aulas, não era e continua não sendo uma competência
bem desenvolvida em boa parte dos estudantes, atrelada ainda, não
raro, à falta de capacidade da internet usada e dos gadgets
necessários ao estudo. Quantos estudantes têm desenvolvido suas
64
atividades 100% por meio de smartphones e apenas com um pacote
limitado de dados móveis, não por opção, mas por ser este o único
recurso disponível.
Some-se a isso o fato de os cursos em geral estarem
instituindo um fazer educacional totalmente diferenciado na realidade
educacional brasileira, pois o Ensino Remoto, como muitas
instituições estão desenvolvendo, com aulas ao vivo constantes, uso
de ferramentas de interação e de avaliação, e salas de aula virtuais,
como as que estão sendo usadas pela FUPAC-Mariana, por exemplo,
não têm muitos precedentes no país até a Pandemia começar. Este
ensino, não se compara, em vários aspectos, ao que se convencionou
chamar de Educação a Distância (EAD), uma vez que prima pelas aulas
da disciplina com as turmas individualizadas propriamente, pela
interação do professor diretamente com os seus alunos e pela a
avaliação feita por ele próprio nos moldes que melhor atender à
dinâmica de suas realidades disciplinares, entre outros aspectos que
poderiam aqui ser mencionados, mas que por não serem o foco deste
estudo, não serão mais aprofundados.
Essa modalidade educacional, é algo que se está sendo
construindo com o próprio processo se desenvolvendo, por isso,
sujeito a várias falhas, mas também propiciador de muitas inovações
e renovações. E, aí inseridos, também estão os estudantes,
aprendendo a aprender neste novo ambiente, com uma nova
linguagem e procedimentos mediados o tempo todo pelas
tecnologia, desenvolvendo ou ampliando habilidades e competências
voltadas ao letramento digital, e não apenas aprendendo (ou não) os
conteúdos e práticas, como alguns acreditam se resumir o papel do
ensino remoto. Pode ser que este período mostre defasagens nas
aprendizagens diversas dos estudantes, mais adiante, quanto puder
ser comparado, mas não se pode negar as questões ressaltadas nesta
pesquisa.
65
REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei 11.788, de 25 de setembro de 2008. Brasília: Casa Civil,


2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11788.htm Acesso em: 18 mar. 2021.

BRASIL. Lei 8.906, de 4 de julho de 1994. Brasília: Casa Civil, 1994.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm
Acesso em: 18 mar. 2021.

BRASIL. Resolução nº 05, de 17 de dezembro de 2018. Brasília:


CNE/CES, 2017. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2018-pdf/104111-
rces005-18/file Acesso em: 19 de mar. 2021.

BRASIL. Resolução nº 09, de 29 de setembro de 2004. Brasília:


CNE/CES, 2017. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces092004direito.pdf
Acesso em: 19 mar. 2021.

BRASIL. Resolução nº3, de 14 de julho de 2017. Brasília: CNE/CES,


2017. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=dow
nload&alias=68081-rces003-17-pdf&category_slug=julho-2017-
pdf&Itemid=30192 Acesso em: 19 de mar. 2021.

BRÜGGEMANN, Sirlane de Fátima. Estágio de prática jurídica como


expressão do humanismo e instrumento transformador ao
direcionamento da cidadania pluralista. 293f. (Tese). Programa de
Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina,
2009.

MEC. CNE/CP. Parecer nº 05, de 28 abril de 2020. Disponível em:


https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Parecer-cne-cp-005-2020-
04-28.pdf Acesso em: 28 mar. 2021.

MEC. Nota Técnica Conjunta nº


66
17/2020/CGLNRS/DPR/SERES/SERES. Disponível em:
https://abmes.org.br/arquivos/documentos/notatecnica19-06-
2020.pdf Acesso em: 28 mar. 2021.

MEC. Portaria nº 1.038, de 07 de dezembro de 2020. Brasília: MEC,


2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-
mec-n-1.038-de-7-de-dezembro-de-2020-292694534 Acesso em: 28
mar. 2021.

MEC. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Brasília: MEC, 2020.


Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-
de-17-de-marco-de-2020-248564376 Acesso em: 28 mar. 2021.

MEC. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020. Brasília: MEC, 2020.


Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-544-
de-16-de-junho-de-2020-261924872 Acesso em: 28 mar. 2021.

NALESSO, Thiago Fernando Cardoso. As novas diretrizes curriculares


nacionais dos cursos de Direito e as práticas jurídicas. In: RODRIGUES,
Horácio Wanderlei (org.). Educação jurídica no século XXI: novas
diretrizes curriculares nacionais do curso de Direito – limites e
possibilidades. Florianópolis: Habitus, 2019. p. 399-418.

NOGUEIRA, Maria Rodrigues. O estágio acadêmico do curso de


Direito na Comarca de Palmas/TO: diagnóstico e proposições. 57f.
(Dissertação). Programa de Pós-graduação Stricto Sensu Mestrado
Profissional Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e Direitos
Humanos, da Universidade Federal do Tocantins, 2018.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Anexo A – Quadro comparativo dos


currículos dos cursos de Direito no Brasil – 1827 a 2018. In:
RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.). Educação jurídica no século
XXI: novas diretrizes curriculares nacionais do curso de Direito –
limites e possibilidades. Florianópolis: Habitus, 2019. p. 434-439.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Estágios e práticas simuladas: análise


global e especificidades nos cursos de Direito. In: Revista Sequência.
67
Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, n. 40, 2007. p. 199-210. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15075/13
741 Acesso em: 19 mar. 2021.

68
APÊNDICE A: QUESTÕES DE ENTREVISTA COM A COORDENAÇÃO
DO NPJ

Car@ respondente, estamos desenvolvendo uma pesquisa para


conhecermos mais de perto a realidade do estágio supervisionado na
Faculdade Antônio Carlos de Mariana, neste período de Pandemia
pela Covid-19. Desta forma, se você, que trabalha diretamente com
essa atividade, puder contribuir com este esforço investigativo nos
concedendo esta entrevista, será de grande valia para nossa análise.
Enviamos também o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido
para que possa assinar, autorizando o uso das respostas, na análise
de dados.
Questão 01: Há quanto tempo você atua no NPJ da faculdade?
Questão 02: Qual a sua função no NPJ da faculdade?
Questão 03: Como a faculdade tem tratado a questão do estágio
supervisionado, neste período do ensino remoto? Quais as principais
mudanças realizadas para adaptar os procedimentos da prática
profissional a esta nova realidade?
Questão 04: Em sua análise, como os estudantes dos períodos do
estágio supervisionado obrigatório, aqui na instituição, (7º, 8º, 9º e
10º), do ano de 2020 e deste início de 2021 têm reagido a estas
alterações necessárias? Justifique sua percepção.
Questão 05: Em sua análise, os estudantes valorizam as disciplinas de
estágio supervisionado como importantes para o desenvolvimento de
habilidades e competências relacionadas às práticas profissionais
jurídicas? Justifique sua percepção.
Questão 06: Como a comunidade carente tem conseguido acessar a
assessoria jurídica ou os demais serviços ofertados pelo NPJ?
Questão 07: Houve alteração quanto à quantidade e o tipo de
demanda da comunidade neste período de Pandemia? Se sim, pode

69
mencionar as principais alterações?
Questão 08: Em relação aos processos judiciais ativos, encabeçados
pelos estagiários do NPJ, houve mudanças no modus operandi da
justiça que demandaram alterações na dinâmica do NJ? Se sim, quais
eles e o que foi feito para atender a esta nova realidade?
Questão 09: Em sua percepção, o que os estudantes mais valorizam
no estágio no NPJ: o aprendizado profissional e/ou a preparação para
o Exame da Ordem? Justifique sua percepção.
Questão 10: Você percebe diferença de adesão às propostas do
estágio supervisionado no NPJ entre os estudantes que já fazem ou
fizeram estágio externamente à instituição? Justifique sua percepção.

70
APÊNDICE B: QUESTIONÁRIO DE PESQUISA COM OS
ESTUDANTES

Car@ respondente, estamos desenvolvendo uma pesquisa para


conhecermos mais de perto a realidade do estágio supervisionado no
Curso de Direito da Faculdade Antônio Carlos de Mariana,
especialmente neste período de Pandemia pela Covid-19. Desta
forma, se você, aluno do 7º, 8º, 9º ou 10º período, puder responder
atentamente a estas questões, contribuirá sobremaneira para nossas
análises e apontamentos.
Desde já agradecemos sua participação.
Ms. Magna Campos
Gabriella Pimenta
Saulo Camêllo
Vívian Machado

IDENTIFICAÇÃO:

1. Qual o período letivo em que você está matriculado?

a) 7º
b) 8º
c) 9º
d) 10º

2. Qual o seu gênero?

a) Masculino
b) Feminino

71
c) Outro

EXPERIÊNCIA

3. Você já realizou algum estágio na área jurídica ao longo da


graduação?

a) Sim
b) Não

4. Caso já tenha feito ou esteja fazendo o estágio


supervisionado, esse estágio é:

a) No NPJ
b) Externo à faculdade
c) Parte no NPJ e parte externo à faculdade

5. Se já fez ou está fazendo estágio externo à faculdade, informe


em qual destas instituições se deu ou se dá?

a) Mais de uma das instituições abaixo. Quais?


b) TJ/MG - Fórum Mariana
c) TJ/MG - Fórum Ouro Preto
d) Ministério Público - Mariana
e) Ministério Público - Ouro Preto
f) Defensoria Pública
g) Assistência Judiciária Municipal - Mariana
h) Assistência Judiciária Municipal - Ouro Preto
i) Delegacia - Mariana
j) Delegacia - Ouro Preto
l) Algum departamento ou órgão da Prefeitura de Mariana.
72
Qual? ______
k) Algum departamento ou órgão da Prefeitura de Ouro Preto.
Qual?
l) Empresa da região. Qual?
m) Escritório de Advocacia de Mariana
n) Escritório de Advocacia de Ouro Preto
o) Outro. Qual?

6. Caso esteja fazendo estágio externamente à faculdade, seu


estágio é remunerado?

a) Sim
b) Não

7. Se se aplicar a sua realidade, o fato de não conseguir um


estágio externo à faculdade lhe causa preocupação?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

8. Se já fez estágio supervisionado externo à faculdade, qual a


via de ingresso no estágio?

a) Via iniciativa própria procurando empresa, escritório ou


órgão.
b) Via concurso
c) Via processo de seleção
d) Via indicação
e) Outra. Qual?

73
9. Caso esteja estagiando externamente à faculdade, as
atividades que você desenvolve lá exigem níveis de
conhecimentos jurídicos adequados ao ano/semestre que
você está cursando?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não
d) Minhas atividades práticas lá não têm muita relação com as
questões jurídicas

10. O estágio atende às suas expectativas em relação à aquisição


de novos conhecimentos, de habilidades e competências
práticos importantes para a sua futura atuação profissional?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

11. Sua experiência no estágio tem lhe proporcionado atuar na


resolução de problemas reais da área jurídica, sozinho ou
como parte de uma equipe?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

12. Caso esteja realizando estágio externamente à faculdade, o


ambiente de estágio tem possibilitado a interação com outros
profissionais e a troca de conhecimentos e experiências?

74
a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

13. O que você mais valoriza em relação as atividades práticas


realizadas em seu estágio?

a) Preparação para o mercado profissional


b) Aprendizado das práticas jurídicas reais para complementar o
aprendizado teórico
c) Preparação para a 2ª fase do Exame da Ordem
d) Estabelecer relações com outros profissionais do Direito
e) Outra.

14. Em sua opinião, o estágio tem servido para ampliar sua visão
do mercado de trabalho relacionada aos vários campos de
atuação do profissional do direito?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

15. Você tem dedicado tempo suficiente para realizar as práticas


jurídicas em seu estágio?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

16. Caso fez ou faça estágio externo à faculdade, você fez/faz uso
do Sistema de Processo Eletrônico?
75
a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

PANDEMIA DE COVID-19

17. Se fez ou está fazendo o estágio durante a Pandemia da


Covid-19, em que modalidade está estagiando?

a) Presencial
b) Home office
c) Parte presencial e parte home office

18. Caso tenha ou esteja realizando o estágio, em algum


momento seu estágio foi suspenso em razão da Pandemia de
Covid-19?

a) Sim
b) Não

19. Na sua percepção, o contexto da Pandemia do Covid-19


provocou redução na oferta de estágio externo?

a) Sim
b) Não

76
20. Prioritariamente, por meio de qual ferramenta ou modalidade
estão sendo apresentadas, a você, as demandas do estágio
(ou seja, as atividades que você precisa desenvolver), neste
momento de Pandemia pela Covid-19?

a) Via interlocução direta e presencial


b) Via e-mail
c) Via WhatsApp privado
d) Via grupo de WhatsApp
e) Via Messenger
f) Via Skype
g) Via Google Meet
h) Via Plataforma digital própria. Qual?
i) Outros

21. Em sua análise, como a Pandemia da Covid-19 tem interferido


em seu aprendizado prático?

a) Interfere positivamente. Aprendi muito mais coisas


agora que antes da Pandemia.
b) Interfere positivamente. Aprendi a usar várias
ferramentas para o desenvolvimento e interação nas
atividades práticas.
c) Interfere positivamente. Ganhei mais autonomia na
realização das atividades práticas.
d) Interfere negativamente. Fico bastante “perdido” nas
atividades que preciso desenvolver no estágio.
e) Interfere negativamente. Tenho que dedicar mais
tempo que antes para desenvolver as atividades práticas.
f) Interfere negativamente. Precisaria de mais apoio do
supervisor do estágio para o desenvolvimento das atividades.
77
g) Não julgo que interfira.
h) Não sei opinar.

22. Durante a Pandemia, você tem encontrado dificuldade para


solicitar orientações durante o estágio e, quando as solicita,
obtém esclarecimentos suficientes?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

23. Pensando em seu grau de aproveitamento no estágio,


especialmente durante a Pandemia de Covid-19, como você
classifica sua atuação e desenvolvimento:

a) Raramente atinjo as expectativas


b) Algumas vezes atinjo as expectativas.
c) Frequentemente atinjo as expectativas
d) Quase sempre supero as expectativas
e) Sempre supero as expectativas

NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

24. No caso do estágio no NPJ, você tem contato com casos


reais?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

78
25. No caso do estágio no NPJ, você tem contato com as pessoas
atendidas na assessoria jurídica?

d) Sim
e) Eventualmente
f) Não

26. No caso do estágio no NPJ, você tem acesso aos autos


processuais?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

27. No caso do estágio no NPJ, você faz uso do Sistema de


Processo Eletrônico?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

28. Você já participou de alguma audiência de conciliação


realizada pelo NPJ?

a) Sim
b) Não

29. Caso esteja fazendo o estágio exclusivamente no NPJ:

a) Foi por sua escolha


b) Foi por falta de outra oportunidade
79
c) Foi por necessidade, já que seu horário de trabalho e estudos
são limitados

30. Em sua opinião, no caso do estágio no NPJ, as atividades


propostas têm conseguido integrar suficientemente o
desenvolvido nas aulas com as atividades concretas?

a) Sim
b) Eventualmente
c) Não

80
APÊNDICE C: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezad@ participante:
Eu, Magna Campos, professora do Curso de Direito da Faculdade
Presidente Antônio Carlos de Mariana, juntamente com os cursistas Gabriella
Soares Pimenta, Saulo Tette de Oliveira Camêllo e Vivian Machado
Magalhães Moreira, estamos realizando uma pesquisa com os alunos do 7º e
do 9º período do Curso de Direito, turmas ativas em período de realização
de estágio supervisionado, bem como intencionamos a participação, de ao
menos um profissional envolvido diretamente no Núcleo de Prática Jurídica,
a fim de conhecermos um pouco mais da realidade do estágio neste período
da Pandemia por Covid-19.
Sua participação envolve conceder-nos uma entrevista oral ou
escrita, conforme melhor lhe atenda. Caso prefira gravada, faremos a
gravação em áudio, para depois será transcrita a fim de se analisar os dados.
A participação nesse estudo é voluntária e se você decidir não
participar ou quiser desistir de continuar em qualquer momento, durante a
entrevista, tem absoluta liberdade de fazê-lo.
Mesmo não tendo benefícios diretos em participar, indiretamente
você estará contribuindo para a compreensão do fenômeno estudado e para
a produção de conhecimento científico. Quaisquer dúvidas relativas à
pesquisa poderão ser esclarecidas pelo(s) pesquisador(es), pelos e-mails:
magnaunipac@gmail.com,
gabriellapimenta15@gmail.com,saulocamello190@gmail.com,
vivian.magalhaes@gmail.com
Você concorda em participar e autoriza, se assim for decidido, a
gravação em áudio da entrevista? ( )sim ( ) não
______________________________________________
Assinatura do Entrevistado
Atenciosamente,
___________________________________
Professora: Ms. Magna Campos
(em nome de toda a equipe de pesquisa

81
SERVIDORES NEGROS PRESENTES NO PODER JUDICIÁRIO
ANTES E APÓS A RESOLUÇÃO 203/2015 DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA
Maria Elisa Ferreira Rei¹
René Armand Dentz Junior²

RESUMO

Artigo destinado a conclusão do curso de Direito na Faculdade


Presidente Antônio Carlos polo Mariana/MG que objetiva analisar a
presença de servidores negros nos diversos ramos do poder judiciário
antes e após a Resolução 203/15 do Conselho Nacional de Justiça,
com base no banco de dados emitido pelo mesmo. Neste trabalho,
serão abordados os fatores que fundamentaram a necessidade da
resolução, sendo eles históricos, econômicos e sociais. Será
demonstrado quais foram os resultados obtidos com relação a
presença de servidores negros após a resolução, além das beneficies
da implementação do sistema de cotas em outras áreas. Será
analisado o que diz o Banco de Dados realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça(CNJ) no âmbito do Poder Judiciário, assim como a
pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) sobre as desigualdades sociais.

Palavras-chave: Ação afirmativa. Servidores negros. Cotas.


Desigualdade.

INTRODUÇÃO

No Poder Judiciário Brasileiro é notável a falta da presença de


pessoas negras. Isto ocorre devido a diversas questões históricas e
82
sociais que interferem neste fato. Como isto está diretamente ligado a
fatores históricos, faz-se necessário seu estudo ante este viés para
que se possa compreender quais as razões de ainda serem
necessárias leis, como a resolução 203/15 do CNJ, para facilitar a
inclusão de pessoas negras nestes espaços. Assim, o presente artigo
vai mostrar quais os fatores que contribuem para a existência desta
exclusão e quais são as medidas adotadas para saná-las.
Esta pesquisa é teórica, básica, do tipo investigação
Documental, já que foram utilizados registros e análises históricos e
atuais que objetivaram na ampla compreensão do assunto tratado.
Portanto, foram utilizados dados coletados em

A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL

Neste tópico objetivou-se compreender os fatos que


fundamentaram as políticas de ações afirmativas no Brasil. De início, é
analisado o contexto histórico demonstrando que mesmo após a
escravatura a população negra não pode usufruir plenamente de sua
liberdade, ficando por muito tempo restrito a aceitar o mínimo que o
Estado lhes oferecia. Depois, comentou-se sobre as teorias utilizadas
por muito tempo para justificar o racismo com base na cor da pele.
Em seguida, têm-se análises atuais sobre diversas perceptivas e
índices como o de violência, condição social e educação para
demonstrar a desigualdade existente entre a população negra e a
população branca. E, no último tópico, foi feita análise específica
sobre a presença de servidores negros nos diversos ramos do
Judiciário Brasileiro.

83
Contexto histórico racial do Brasil

A população negra brasileira quando representada em dados


sociais sempre aparece em posição de desvantagem se comparada a
população branca. Isto ocorre devido a história do povo negro
brasileiro que desde o início vem carregada de contextos limitantes
ao seu desenvolvimento social.
Mesmo após a abolição da escravatura no Brasil a discriminação
racial e desigualdade não deixaram de existir. Até porque, a abolição
ocorreu mas aos libertos não foram asseguradas medidas sociais que
vislumbrassem garantir que a população
negra recém-liberta tivesse o mínimo necessário para a
manutenção de sua dignidade humana. Eles foram libertos, porém
continuaram vítimas da discriminação racial, sem oportunidade de
emprego, de acesso a saúde, a moradia, a alimentação, dentre outros.
Tendo sido legislativamente libertos, porém, continuando a sofrer
com a desigualdade. Como traz o samba enredo da Mangueira de
1988: “Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela.”(SILVA,
1988).
[…] As dificuldades da após – Abolição, com grande massa de
libertos sem ter o que fazer entregues à própria sorte, não foram
cogitadas no momento devido e tiveram como resultado a
desorganização geral que se verificou depois, prejudicando
fundamentalmente a vida nacional. (Luna, 1968, p. 203)
Desta forma, muitas pessoas negras tiveram que se submeter a
condições degradantes por não ter outra escolha.
E, não obstante, haviam escolas nesta época trazidas do
exterior, que teorizavam o racismo. A primeira a chegar no Brasil foi a
poligênica. Ela iniciou nos Estados Unidos espalhou no continente
Europeu até em seguida chegar ao Brasil. Ela partia do princípio de
que a raça humana era constituída por diversas espécies sendo eles o
84
negro, o branco, o amarelo e o índio. Depois, esta escola sofreu uma
adaptação se ramificando na Escola Histórica que algumas raças eram
mais criativas, acreditando-se que a civilização do norte-europeu era
predestinada biologicamente para comandar o mundo em razão do
seu desenvolvimento. Logo após, Darwin demonstrou que a teoria
poligênica era inviável já que o processo de evolução começa por
uma única espécie. Porém, a partir disto surgiu o terceiro pensamento
racista denominado de Darwinismo Social que unificou todos esses
pensamentos, entendendo que as raças mais aptas “superiores”
predominariam as “inferiores” que viriam depois a desaparecer. A
eugenia também foi pensamento da época que pregava que as raças
não poderiam se misturar pois senão perderiam sua pureza,
acarretando também na infertilidade. (MELLO, p.87)
Assim, quando estas teorias chegaram ao Brasil. Pais
miscigenado, elas foram adequadas ao sistema social local. Deste
modo, passou-se a promover o embranqueci mento da população
tendo sido criado até mesmo um guia que continha uma tabuada de
mistura de indicações para ficar branco, dizendo que neste
processo de
branqueamento os traços indígenas desapareciam na terceira
geração e os dos negros na quinta geração. Deste modo, socialmente
passou-se a acreditar que as uniões inter- raciais resultariam em uma
população mais branca. A diplomacia brasileira passou a incentivar a
imigração de europeus no século XIX, tendo até mesmo a imigração
chinesa recebido criticas pois faria com que a raça brasileira ficasse
ainda mais corrompida, e isto ia contra o ideal de transformação do
Brasil (MELLO, p. 91)

De onde os verdadeiros movimentos de parte de médicos e


de outros homens de ciências brasileiros da época no sentido
de condenação de “amarelos”, e não apenas de “negros”,
como elementos de composição ou de recomposição étnica e
85
cultural de população nacional. Segundo eles, a população
brasileira deveria procurar aproximar-se, na sua etnia e na sua
cultura, da Europa. Seria uma loucura acrescentar ao número
já considerável de africanos introduzidos no Brasil como
escravos, africanos “livres” ou asiáticos. […]. (FREIRE, 2004)

Desigualdade social e racial no Brasil

Antes de adentrarmos no foco central do trabalho, que é a


presença de servidores negros no Judiciário brasileiro, precisamos
compreender alguns contextos sociais atuais e para isso vamos
utilizar os dados obtidos pela Pesquisa do IBGE sobre as
Desigualdades Raciais.
Na atualidade, o Brasil é um país cuja maior porcentagem da
população se vem a se autodeclarar negra, conforme dados amostrais
obtidos pelo PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e
direcionados ao IBGE para realização do censo de 2018. Observando
os dados obtidos sobre o desenvolvimento da sociedade, notou- se
que a população negra sempre aparece com os piores índices. Nestas
pesquisas, foram observados fatores essenciais que demonstram a
situação real da população brasileira, sendo eles o mercado de
trabalho, a distribuição de renda, condições de moradia, educação,
índices relativos a violência e representação política. Essas pesquisas
concentraram-se em mostrar os ramos da desigualdade entre as
pessoas brancas e negras(pretas e pardas), sendo que esses dois
grupos correspondem a 99% da população brasileira em 2018 sendo,
43,1% pessoas brancas, 9,3% pretos e 46,5% pessoas pardas
(Desigualdades Sociais por Cor ou raça no Brasil, p.2).

86
Figura 1 – Desigualdade racial no Brasil
Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Mercado de Trabalho

Quando se observou o mercado de trabalho, os dados


mostraram que em 2018 a população negra somava a maior parte da
força de trabalho, totalizando em 57,7 milhões de pessoas. Mas,
observou-se também que dentre as pessoas desocupadas eles são
64,2% do total, e dos subutilizados compreendem 64,2% do total.
Mesmo quando os critérios de análise consideravam o nível de
instrução, em qualquer nível de escolaridade, verificou-se que a taxa
de subutilização e desocupação foi sempre maior entre as pessoas
negras.

87
Figura 2 – População na força de trabalho/subutilização conforme
instrução

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Quando analisados os rendimentos verificou-se que a


população branca sempre esta a frente no que diz respeito aos
maiores sendo que, este é ponto crucial para que uma família ou
individuo possa garantir um bom padrão econômico que o permita
consumir coisas e oportunidades melhores. Em 2018, o rendimento
mensal de uma pessoa negra ocupada foi em média R$1.608,00
enquanto que o de uma pessoa branca foi de R$2.796,00.

88
Figura 3 – Razão de rendimentos das pessoas ocupadas

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

No critério de análise razão de rendimentos entre cor ou raça


e de sexo, observou-se as pessoas negras receberam apenas 57,5%
do que receberam as pessoas brancas e que os homens brancos se
sobressairão sobre todas as outras categorias de modo que a maior
distorção esteve entre eles e as mulheres negras já que na pesquisa
verificou-se que elas obtiveram menos da metade do que recebem
homens brancos, que foi apenas 44,4%. Enquanto que as mulheres
brancas receberam 75,8% do que receberam os homens brancos em
2018. Essa diferença absurda de rendimentos se deve ao fato da
população negra ter sofrido um grande período de segregação,
acarretando em na ofertas de rasas oportunidades que refletem,
dentre outros pontos, na remuneração obtida no mercado de
trabalho, mesmo quando desempenham as mesmas funções de uma

89
pessoa branca.

Figura 4 – Rendimento médio real habitual de pessoas ocupadas

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil


Quando o fulcro da pesquisa do IBGE foram as horas
trabalhadas, verificou-se que enquanto as pessoas brancas ocupadas
receberam em média R$ 17,00 por hora, as pessoas negras receberam
R$10,10 por hora. As pessoas negras receberam menos do que as
pessoas brancas mesmo quando elas possuíam ensino superior. E, das
54.9% pessoas negras ocupadas apenas 29,9% exerciam cargos de
gerência ao tempo da pesquisa. Dentre as pessoas desocupadas e
subocupadas essa diferença é ainda maior, sendo que em 2019 a
população negra correspondia ao total de 2/3 das pessoas que não
tinham emprego (64,2%) e dos subutilizados (66,1%).
90
Figura 5 – Rendimento médio real habitual do trabalho de
pessoasocupadas/ pessoas ocupadas em cargos gerenciais

Fonte: Print screen, Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Distribuição de rendimentos e condições de moradia

Após apresentados os dados anteriores não é de se espantar


que pôr mais que a população negra fosse de 55,8% da população
brasileira, em 2018, quando analisado o perfil das pessoas que
receberam 10% dos maiores rendimentos elas representavam apenas
27,7%.

91
Figura 6 – Distribuição da população segundo as classes
Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Em contrapartida, quando analisarmos porcentagem de 10%


dos menores rendimentos, a população negra se sobressai sendo
75,2% dos indivíduos. Assim, como quando analisada a linha da
pobreza, as pessoas pretas e pardas com rendimento inferior às linhas
da pobreza foram mais do que o dobro verificado entre as pessoas
brancas.

Educação

Entre os anos de 2016 e 2018 os indicadores educacionais


demonstraram melhora que surgiu após a implementação de políticas
públicas e ampliação do acesso à educação. E, por mais que a
desvantagem que da população preta ainda fosse bastante evidente,
observou-se uma mudança positiva com elação aos dados. O IBGE
mostrou que pela primeira vez, as instituições de ensino superior da
rede pública estão compostas por maioria negra, representando

92
50,3% do total em bora, nas particulares ainda permanecesse em
46,6%. Observou-se que em 2018 quase não havia diferença entre
crianças na faixa etária de 6 a 10 anos de idade brancas e negras
cursando o ensino fundamental (96,5% e 95,8%). Contudo, entre os
jovens de 18 a 24 anos de idade que estavam freqüentando ou
concluirão o nível superior os dados mostraram que o número de
pessoas brancas era quase o dobro do que se encontrou entre as
pessoas negras(36,1% e 18,3%).

Figura 7 – Taxa ajustada de frequência escolar

Fonte: Print screen, Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Ao analisar a distribuição dos estudantes entre 18 e 24 anos


93
de idade verificou- se que com relação ao ensino superior a
população negra ficou 23% a menos com relação a população branca.
E, sabe-se que a educação superior é o que garante bons retornos
financeiros, principalmente aqui no Brasil, como afirmou Menezes –
Filho (2001). A pesquisa do IBGE mostrou que uma das causas para
esse reduzido número de pessoas negras no ensino superior é o fato
de que entre este grupo muitos jovens têm que parar os estudos
para trabalhar. Sendo que em 2018, entre os jovens de 18 a 24 anos
que concluíram o ensino médio e não continuaram a freqüentar as
aulas, 61,8% eram negros.

Figura 8– Distribuição de estudantes segundo nível de ensino


Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Violência

Os índices sobre violência não foram diferentes dos


demonstrados anteriormente. Dados mostram que em 2017 a taxa de
homicídios foi observada em 43,4 entre pessoas negras, enquanto
que, entre pessoas brancas foram de 16,0 a cada 100 mil habitantes.
Concluindo que a pessoa negra tem 2,7 de chance a mais do que uma
94
pessoa branca de ser assassinada. Sendo que, essa violência é reflexo
de todas as desigualdades existentes neste país e também da falta de
políticas públicas voltadas a defender a população negra.
Assim, percebemos que a população negra sofre em todos os
âmbitos, estando na maioria das vezes, em patamar desigual quando
comparada a população branca. Tendo que estar constantemente
lutando contra diversos fatores sociais.

Figura 9 – Taxa de homicídios

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Como demonstrou o último relatório da Geneva Declaration


on Armend Violenceand Development, todos esses fatores fazem com
que os gastos com a saúde sejam ampliados e também que ocorra
uma perda da produtividade econômica, principalmente quando
essas taxas atingem a população jovem com tanta intensidade. No
Brasil o que ocorre que a maior taxa de homicídios incide sobre a
população jovem de 15 a 29 anos de idade, sendo relatado em 2017
que ocorreram 69,9 homicídios a cada 100mil jovens. Como
conseqüências disto, jovens e adolescentes vítimas da violência têm
95
mais chances de se tornarem vítimas da depressão, desenvolver vícios
em substâncias químicas, problemas no aprendizado e mais
propensos ao suicídio, conforme diz Wilkins e Wenger (2014), assim
como David-Ferdon (2016).

Figura 10 – Taxa de homicídios entre jovens

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Representação Política

Com relação a representação política, percebe-se que é pouca


a participação das minorias sejam elas por cor, raça, gênero ou
religiosa, são bastante restritas (DIVERSITY…, 2000). Por isso, foram
criados programas de Ações Atividades para Implementação da
Década Internacional de Afro descendentes que tem por objetivo
remover obstáculos promovendo a equidade para exercer direitos
políticos, assim como promover a participação na vida pública e na
esfera política.
Em 2018, apenas 24,4% eram deputados federais e 28,9% eram
96
deputados estaduais, e em 2016, 42,1% eram dos vereadores. Essa
diferença, conforme estudos sobre as eleições do Brasil se devem
muitas vezes ao fato da escassez financeira, sendo este fator que
reduz as possibilidades de um indivíduo lograr êxito em sua
candidatura, conforme Araújo e Borges (2010). Unificado ao fato de
que quando se alcança um cargo de paramentar é bastante difícil que
um grupo sub-representado com pouca insuficiência de recursos
consiga revertê-lo.

Figura 11 – Distribuição de deputados e vereadores

Fonte: Print screen Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil

Desigualdade racial no poder judiciário

No âmbito do Poder Judiciário percebemos que a situação


não é diferente. Conforme censo realizado pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), com o objetivo de demonstrar o perfil do poder
judiciário e fundamentar a fixação de políticas públicas, o perfil
étnico-racial das pessoas que compõem o poder judiciário é
majoritariamente de pessoas brancas onde, os homens brancos se
97
sobressaem como maioria e ocupando os cargos mais almejados.
Nesta pesquisa 11.348 magistrados (62,5%) colaboraram com a
entrevista, e os resultados dela não foram diferentes do que se viu
anteriormente em outras perspectivas já apresentadas. De início,
observou-se que em todos os períodos, o ingresso de pessoas
brancas no serviço judiciário foi maior do que o de pessoas negras,
sendo em média 2,5 a mais.

Figura – 12 Percentual de Servidores efetivos segundo ano de


ingresso,por cor/raça. Brasil, 2013.

Fonte: Censo do Poder Judiciário, 2013

98
Figura –13 Número de servidores em cargos efetivos segundo ano
deingresso, por cor/raça. Brasil, 2013

Fonte: Censo do Poder Judiciário, 2013

Na pesquisa, realizada em 2013, observou-se que 29,1% dos


servidores presentes no Poder Judiciário eram pessoas negras e
70,9% pessoas bancas. Ao analisar o percentual geral de servidores
segundo os ramos da Justiça se forma mais detalhada, verificou-se
que 69,1% são pessoas brancas, 24,7% são pessoas pardas e 4,1% são
pessoas pretas.

99
Figura 14 –Percentual de servidores segundo ramos da Justiça,
Brasil, 2013

Fonte: Censo do Poder Judiciário, 2013

Temos o gráfico da pesquisa realizada sobre a magistratura


que demonstra que nesta área a presença de servidores negros foi
ainda menor. Apenas 15,6% eram pessoas negras, sendo que delas
14,2% se declararam pardos e apenas 1,4%preto.

100
Figura 15 – Participação das raças na magistratura brasileira

Fonte: Censo do Poder Judiciário, 2013

Conforme a pesquisa, nos tribunais Superiores é onde existem


os piores dados da presença de pessoas negras, sendo eles apenas
8,9%. Por isso, por mais que a diferença entre a presença de pessoas
negras tenha reduzido nos últimos anos, passou-se a incentivar e
utilizar políticas de ações afirmavas a fim de incluir negros e indígenas
nestes espaços, e reduzir essa diferença que é tão alta. Portanto, a
Resolução 203 do CNJ foi elaborada com base nesta pesquisa para
101
tentar minorar a
desigualdade no Poder Judiciário Brasileiro, criando oportunidades
para que asminorias também tenham acesso a estes espaços.

DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

A ação afirmativa, no Brasil conhecida também como cotas, é


o ato de reservar vagas em concursos públicos, vagas em
universidades e outros processos com outras finalidades para ajudar
que determinado grupo seja incluído em determinado espaço. Ele
estabelece em números a quantidade de vagas que será reservada a
determinado grupo. Neste sentido, Barbara Bergman entende que:

Ação afirmativa é planejar e atuar no sentido de promover a


representação de certos tipos de pessoas – aquelas
pertencentes a grupos que têm sido subordinados ou
excluídos – em determinados empregos ou escolas. É uma
companhia de seguros tomando decisões para romper com
sua tradição de promover as posições executivas unicamente
homens brancos. É a comissão de admissão da Universidade
da Califórnia em Berkeley buscando elevar o número de
negros nas classes iniciais[…]. Ações afirmativas pode ser um
programa formal e escrito, um plano envolvendo múltiplas
partes e com funcionários dele encarregados, ou pode ser a
atividade de um empresário que consultou sua consciência e
decidiu fazer as coisasde uma maneira diferente (1996, p. 7)
O Grupo de Trabalho Interministerial desenvolveu o material
de Valorização da População Negra no Brasil e nele define a ação
afirmativa como medida que visa eliminar as desigualdades existentes
e acumuladas para assim garantir que exista igualdade de
oportunidades e tratamento. Outro ponto deste material existe no
sentido de compensar as perdas ocorridas em razão da discriminação

102
e da marginalização que decorre de todos os fatores históricos
(Santos, 1999, p.25).
Na intenção de analisar a eficácia das ações afirmativas,
Martyn Carnoy(1995) chegou a estudar a situação econômica das
pessoas negras norte-americanas no final do século XX. Ele observou
que a população negra teve ascensão nos anos 40, 60 e início de 70,
que foi quando o governo democrata intervinha com políticas de
introdução de oportunidades. E, nos anos 50 e 80 como os governos
eram menos participativos e conservadores socialmente falando, os
avanços foram baixos mesmo que economia caminhasse crescendo, o
desemprego fosse pequeno e os níveis educacionais tivessem sofrido
aumento. Compreendeu assim que quando o Estado interveio com
Políticas Públicas, de antipobreza e antidiscriminação, ocorreram
melhoras nas condições sociais e econômicas para com a população
negra dos Estados Unidos, Moehlecke, 2002.
Em definição decorrente de norma, o art 1°, inciso VI, da Lei
12288, define ações afirmativas como sendo programas que visam
promover a igualdade entre os diversos grupos étnicos e sociais a fim
de corrigir as desigualdades existentes.
Deste modo, as conceituações apresentadas em síntese nos
mostram que a ação afirmativa é medida reparatória, compensatória
e preventiva, que tem por viés reduzir gradativamente a desigualdade
social, econômica, política e cultural de diversos grupos pouco
representados e por determinado lapso temporal.

Ação Afirmativa no Poder Judiciário – Resolução 203/15 CNJ

Muitos não compreendem o sentido da necessidade das cotas


raciais para ingresso nas Universidades e em concursos públicos, pois
entendem que quando duas pessoas, uma negra e outra branca,

103
disputam algo entre si, sendo elas da mesma classe social, as
oportunidades deveriam ser as mesmas. Contudo, não é o que ocorre.

Figura 16 – Percentual de servidores em cargos efetivos segundo

Fonte: Censo do Poder Judiciário, 2013

A exemplo, o desembargador Ivanilton Santos da Silva, que


atualmente esta lotado no Tribunal de Justiça da Bahia, afirma que é
um dos dois magistrados que atua no tribunal e que só foi
promovido em 2015 por antiguidade e não por mérito.

"Moro em Salvador, a cidade mais negra fora da África, e


trabalho no Tribunal da Bahia, o Estado de população
maciçamente negra. Mesmo assim, só somos dois
desembargadores num universo de quase 60 magistrados. É
verdadeiramente uma tristeza constatar isso."
Ivanilton da Silva
Os fatos que o desembargador declarou se confirmam quando
se observa o percentual de servidores que ingressam no Poder
104
Judiciário. Conforme o gráfico a baixo, desde antes da década de
1980 a porcentagem de pessoas negras que ingressam é em media
de 20% a 30% do total enquanto que o ingresso de pessoas brancas é
em média de 69% a 73%.
Com os dados anteriormente mencionados podemos observar
que o Brasil é um país constituído em sua maioria por pessoas negras
mas também observamos que elas não estão presentes nos espaços
que representam uma melhor condição social. Muito pelo contrário,
as pessoas negras só aparecem em grande número quando se
tratam de dados que deveriam ser baixos. E, mesmo quando elas
possuem condição econômica melhor ainda sim sofrem preconceitos
para obterem reconhecimento.
Desta forma, surgiu em 2015 às cotas para negros em
concursos para o Poder Judiciário. O CNJ visando cumprir o Estatuto
da Igualdade Racial, Lei 12.288/2010, editou a resolução 203/2015
determinando que no âmbito do Poder Judiciário sejam
reservadas ao menos 20% das vagas em concursos públicos para
provimento de pessoas negras. A necessidade de alteração foi ainda
mais evidente quando o CNJ realizou o sendo do Poder Judiciário em
2014 que demonstrou a grande disparidade racial existente, inclusive
o fato de que a população negra (pretos e pardos) representa apenas
15% dos juízes brasileiros. A resolução também traz que após 5 anos
haverá outro Censo do Poder Judiciário para observar quais as
mudanças devem ocorrer com relação ao percentual de vagas e prazo
de vigência da norma. "É um ajuste histórico para que a magistratura
fique mais próxima da radiografia da nossa sociedade. O nosso
débito ainda é muito grande, a participação de pessoas negras dentro
do judiciário ainda é mínima" afirmou o conselheiro Carlos Eduardo,
que também entende que as ações afirmativas de inclusão tem por
objetivo reparar tais desigualdades de modo que no futuro a
sociedade não precise mais delas, obtendo uma nova consciência e
105
uma nova cultura.
Sendo assim, temos no Brasil a Lei 12.288, de 20 de julho de
2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial que surgiu para
garantir que a população negra possa enfim avançar em pé de
igualdade com a população branca. Sendo que para que este objetivo
seja alcançado deve-se dar igualdade de oportunidades, defender os
direitos étnicos individuais, coletivos e difusos assim como combater
a discriminação. Esta lei estabelece que o estado deva garantir
igualdade de oportunidades e garantir as vítimas da desigualdade
étnico-racial para fortalecer a indenidade brasileira. Nessa lei foi
instituído o Sistema Nacional de promoção da Igualdade Racial
(Sinapir) que é uma organização voltada a programar políticas que
minimizem as desigualdades étnicas.
Para a efetivação das cotas no serviço publico ocorreu a
utilização várias normas. A lei nº 12.990 institui a reserva de 20% das
vagas oferecidas em concursos públicos para pessoas negras, seja
para ingresso em várias, sociedades de economia mista,
administração pública federal e empresas públicas. Tem-se também, a
Resolução nº548, de 18 de março de 2015, que instituiu que 20% das
vagas em concurso público para cargos efetivos do Supremo Tribunal
Federal sejam destinadas a pessoas negras devendo sempre ser
aplicada quando o número de vagas for igual ou superior a 3 (três). A
essas vagas podem se candidatar pessoas que se autodeclaram pretas
ou pardas no ato da inscrição no concurso público.
Sendo que conforme a Lei 12.990 de 09 de junho de 2014, o
candidato negro concorre de forma simultânea nas vagas de cotas e
de ampla concorrência conforme a posição em que estiverem
classificados. E, quando eles são aprovados e estão dentro do número
de vagas da ampla concorrência eles não são contados como cotistas,
deixando a vaga da cota aberta para outro candidato.
A Resolução 2015 de 24 de junho de 2015 do Conselho
106
Nacional de Justiça (CNJ), estabelece esses 20% de vagas para
estimular o ingresso de pessoas negras especificamente nos diversos
ramos do poder judiciário pois, através do Censo do Poder Judiciário,
realizado em 2014, observou-se que em um país onde a maior parte
da população se autodeclara negra, pouco se vê desses
representados neste setor. Desta forma fica nítida a desigualdade
existente no Brasil e a necessidade de uma Política de Ação afirmativa
de inclusão destas pessoas neste espaço.
Outro fato que fundamentou a criação da Resolução 203/15
do CNJ foi a decisão proferida em 31 de julho de 2009 sobre a ADPF
186/Distrito Federal. Ela foi proposta pelo partido político
Democratas(DEM) com a finalidade de desfazer alguns atos da
Universidade de Brasília (UNB) que estavam baseados nas políticas de
cotas raciais para ingresso na universidade. O interessado argüiu o
pedido por entender que as políticas "racialistas" são inaplicáveis ao
Brasil já que ele é um país miscigenado. Alegou também que o
sistema de cotas poderia fazer com que o preconceito racial fosse
agravado por entender que promove uma ofensa ao princípio da
igualdade e geradiscriminação reversa em relação aos brancos pobres
além de favorecer a classe média negra (fl. 29). Na decisão, o relator
Gilmar Mendes contextualizou que para pensar em igualdade deve-se
ter em mente o sentimento de fraternidade, ou seja, entender que
todos têm diferenças e particularidades em todos os aspectos.
Devendo ter tolerância e considerando as peculiaridades do outro.
Entende que em uma sociedade plural a igualdade só será igualdade
quando houver respeito às diferenças. E então, explica que no Estado
Democrático igualdade e fraternidade são normas constitucionais no
sentido de reconhecer e proteger as minorias, mostrando que em
sociedades pluralistas a manutenção do status pode significar a
perpetuação de desigualdades (p.11).

107
Dados Oficiais após a implementação da Resolução 203/15 do
CNJ
A resolução 203/15 do CNJ prevê em seu texto que após
5(cinco) anos, contados a partir da sua publicação, seria promovido
um novo Censo do Poder Judiciário onde, a partir dai, poderão ser
analisadas o percentual de vagas destinadas as cotas em concurso
público assim como, o prazo que poderá durar e como deverá ser
aplicada em cada ramo da Justiça. Contudo, o Censo previsto ainda
não foi realizado após os cinco anos determinados para que fosse
feito um parâmetro sobre as mudanças ocorridas após a
implementação da Política de cotas para o Judiciário Brasileiro.
Os dados dessa pesquisa foram obtidos através de diversos
meios de informação. Utilizou-se o Censo do Poder Judiciário
realizado em 2014, que foi crucial para o surgimento da Resolução
203/15 do CNJ, pois foi através dessa pesquisa que se tomou
conhecimento real sobre a característica das pessoas que compõem
os diversos órgãos do judiciário brasileiro. Foi utilizado também
legislações que instituem as cotas nos serviços públicos como a Lei
22990 de 09 de junho de 2014, Resolução nº548, de 18 de março de
2015, Resolução 203/15 do CNJ, Lei 12.288, de 20 de julho de 2010 e
também a ADPF 186/Distrito Federal. Foram demonstrados também
entendimentos de juristas sobre o sistema de cotas assim como
depoimentos de pessoas negras que compõem o poder judiciário e
sentem o racismo, ambas informações coletadas em sites oficiais de
comunicação. Utilizou-se também o livro “Cotas Sociorraciais”, e
diversas pesquisas de Mestrado e Doutorado, todas encontradas em
sites de publicação de artigos.

108
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relatar os dados sobre a presença de pessoas negras


presentes nos diversos ramos do Poder Judiciário Brasileiro consistiu
em entender qual a situação atual da população negra brasileira,
complementado pela trajetória histórica dessa população. Assim,
buscaram-se diversos fatos para fundamentar os entendimentos
dominantes e agregar conhecimento para esta discussão,
apresentando as causas dos problemas e seus impactos (Young, 2000,
pp. 144 – 5).
Sendo assim, com este estudo pretendia-se mostrar que as
cotas neste momento são de extrema importância para que se
possa garantir a população negra uma ajuda para adentrar em
certos núcleos, aqui especificamente o Poder Judiciário. Com as cotas,
obrigatoriamente em todo concurso 20% daqueles que ingressarem
serão de pessoas negras. Isto colabora para que o Brasil vá reduzindo
suas desigualdades sociais mesmo que de forma lenta e gradativa. É
obvio que apenas o sistema de ações afirmativas não fará com que
todo o racismo suma, e todas as questões sociais sejam resolvidas.
Para que isso ocorra, deve-se investir em todos os ramos sociais,
sendo eles a educação, a segurança, a saúde, o trabalho e a cultura,
dentre outros, garantindo que as pessoas negras tenham acesso as
mesmas coisas que as pessoas brancas com igualdade.

Assim demonstrou-se o fato de que existirem mais pessoas


brancas presentes no Judiciário Brasileiro do que pessoas negras,
sendo que o Brasil é um país composto em sua maioria por pessoas
negras(pretos e pardos) só demonstra a desigualdade na estrutura
social e escancara que o povo negro ainda sofre com os resquícios
históricos. Contudo, neste trabalho também se pode observar que
muitas medidas sociais vem sendo tomadas para reduzir essa
desigualdade racial e social, e as mais importantes são a adoção das

109
ações afirmativas para inclusão de pessoas negras nestes espaços.
Deste modo, vimos que o Brasil ainda tem muito em que mudar para
que o seu povo possa usufruir das beneficies com igualdade mas,
ainda sim, muito se tem feito para mudar este quadro.

110
REFERÊNCIAS

MELLO, Marcus Romulo Maia de. Cotas sociorraciais: as imperfeições


do programa de ação afirmativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015

Censo do Poder Judiciário: VIDE: Vetores iniciais e dados


estatisticos /Conselho Nacional de Justiça. 1. ed. Brasilia: CNJ, 2014. p.
1-212.

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https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativ
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CNJ. Identificação Resolução Nº 203 de 23/06/2015. Disponível


em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2203. Acesso em: 3 nov. 2020.

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quase todo país. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cotas-para-
negros-em-concursos-para-juiz-
sao-adotadas-em-quase-todo-pais/. Acesso em: 8 nov. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução Nº 203 de


23/06/2015. Disponívelem: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2203.
Acesso em: 1 nov. 2020.

CORREIO BRASILIENSE. Conheça Jackson Lima, o diplomata que


driblou o preconceito. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/12/1
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,813058/conheca-jackson-lima-o-diplomata-que-driblou-o-
preconceito.shtml. Acessoem: 1 nov. 2020.

GELEDES. Uma magistrada negra: história e um Judiciário para


além da exceção.Disponível em: https://www.geledes.org.br/uma-
111
magistrada-negra-historia-e-um- judiciario-para-alem-da-excecao/.
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INSTITUTO MERCADO POPULAR. Por que defender Cotas


Sociorraciais (sim, raciais). Disponível em:
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JUSDH.Censo do Judiciário revela: nada mudou.


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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF julga constitucional política de


cotas na UnB. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=2
06042. Acesso em:7 nov. 2020.

113
A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DE DEPENDENTES
QUÍMICOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL: ANÁLISE
A PARTIR DA LEI13.840 DE 05 DE JUNHO DE 2019.

Laís Cláudia Ferreira17


Raphael Furtado Carminate18
Luiz Carlos Santana Delazzari19

RESUMO
Este artigo tem a finalidade de abordar a internação involuntária de
dependentes químicos sem controle judicial, levando em conta o
disposto na Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Partindo de uma
rápida leitura da referida lei, parece possível autorizar a internação do
usuário de drogas ilícitas apenas com a determinação do médico do
paciente, sem qualquer intervenção do Poder Judiciário. E, diante da
autonomia privada, o estudo pretende verificar até que ponto é viável
permitir ao médico interferir na liberdade de locomoção do paciente
e de sua escolha quanto ao tratamento devido, sem necessidade de
ordem judicial. Nessa perspectiva, este artigo é desenvolvido a partir
da norma existente e do ensino doutrinário até agora publicado. Ao
fim, pretende-se buscar uma leitura harmoniosa entre o Código Civil,
a Constituição Federal e a Lei mencionada, tudo para o adequado
tratamento do usuário de drogas ilícitas.

Palavras-chave: Internação involuntária –autonomia privada.

17
Graduanda do 10º período do Curso de Direito
18
Doutor e mestre em Direito Privado pela PUC Minas.
19
Defensor Público atuante na Comarca de Mariana, Minas Gerais.

114
INTRODUÇÃO

Este artigo tem objetivo de abordar internação involuntária de


dependentes químicos, à luz da autonomia privada, a partir da Lei nº
13.840, de 05 de junho de 2019, que autoriza a internação de
dependentes químicos sem ordem judicial, bastando a determinação
do médico responsável pelo tratamento do paciente.
A partir da vigência da referida lei, surge o interesse no estudo
de uma inquietação inicial – a dispensa do controle judicial prévio.
Desse modo, no desenvolvimento do trabalho, busca-se
atentar para o que já existe quanto à proteção da saúde dos usuários
de drogas ilícitas, diferenciando os tipos de internação previstos na
legislação brasileira.
Em seguida, a pesquisa tem a finalidade de tentar trazer
respostas a algumas perguntas, por exemplo: em se tratando de
direito à saúde, essas internações involuntárias sem ordem judicial
violam a autonomia privada? Violam a liberdade de locomoção?
A importância e relevância social deste estudo envolvem interesses
dos pacientes dependentes químicos, que têm a autonomia
privada violada ao passo que podem ser internados
involuntariamente sem prévio controle judicial. Além disso, as
internações forçadas promovidas por equipe médica, sem ordem
judicial, atentam contra a liberdade de ir e vir, o que é
inconstitucional.
Esse estudo se classifica como sendo uma pesquisa de caráter
teórico e bibliográfico, buscando apoio no ensino doutrinário já
existente quanto ao tema, sem se esquecer do que já sinaliza a leitura
do Código Civil e da Constituição Federal, porque se sabe que a
dependência química, por si só, não retira a capacidade civil da

115
pessoa.
O artigo foi estruturado em 5 (cinco) capítulos, sendo que o
primeiro desenvolve o princípio da autonomia do paciente.
Posteriormente, as modalidades de intervenções são descritas e
diferenciadas entre internações voluntárias, involuntárias e
compulsórias. Logo após, as leis 10.216/2001 e 13.840/2019 são
contextualizadas, seguida de uma análise aprofundada da internação
de forma involuntária. Por fim, são expostas as conclusões.

AUTONOMIA PRIVADA PARA QUESTÕES EXISTENCIAIS


RELACIONADAS À SAÚDE

A autonomia privada traduz uma ideia de autogestão,


autodeterminação, sem a intervenção do Estado, conferida às pessoas
para tratar de questões existenciais ou patrimoniais no âmbito da vida
civil, agindo livremente de acordo com suas convicções, traduzindo
assim a ideia de livre arbítrio, conforme reflete Teixeira (2018):

Autonomia, como vimos, consiste no autogoverno, em


manifestação da subjetividade, em elaborar as leis que guiarão
a sua vida e que coexistirão com as normas externas ditadas
pelo Estado. Significa o reconhecimento da livre decisão
individual, racional e não coagida, sobre seus próprios
interesses sempre que não afete terceiros.60 Ela é possível na
contemporaneidade porque “o sujeito moderno é concebido
enquanto ser que se autodetermina, que decide livremente
sobre a sua vida, com vistas ao autodesenvolvimento da
personalidade, já que este possui capacidade de dominar a si
e à natureza através da razão”(TEIXEIRA, 2018, p.21)
Também nesse mesmo sentido, Cabral (2004) ao discorrer
sobre o assunto, explica que:

116
Num sentido mais filosófico, afirma Kant que autonomia é a
capacidade apresentada pela vontade humana de se
autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma
estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno
com uma influência subjugante. Para o filósofo alemão, a
razão é a lei própria da autonomia. A lei moral é baseada na
autonomia, um postulado da razão prática, que é a liberdade.
A autonomia se opõe, assim, à heteronomia, a qual subordina
a autonomia aos motivos que lhe são estranhos. Por isso Kant
admite que a heteronomiatorna inautênticos os atos morais.5.
(CABRAL, 2004, p. 2)
Trazendo a definição acima para o estudo, mesmo em
situação temporária de enfermidade física ou psíquica, pode se
entender que é preciso defender a decisão livre do paciente quanto
ao tratamento devido, quanto ao procedimento a ser adotado,
principalmente quanto há risco de se violar a sua liberdade de
locomoção. A exceção seria a total incapacidade dele, quando então
são ouvidos familiares ou responsável legal.
Nesse sentido, Sá e Naves (2015):

[...] a autonomia privada requer que não haja condicionadores


externos diretos à manifestação externa de vontade, isto é, a
vontade deve ser livre, não podendo comportar quaisquer
vícios, sejam sociais ou do consentimento. Os únicos
condicionantes admitidos são os da própria consciência do
paciente. (SÁ; NAVES, 2015a, p. 109 apud SCHETTINI, 2019).

Assim, cabe ao paciente decidir sobre o procedimento a que


será submetido, uma vez que a internação involuntária sem prévia
autorização judicial está por violar a sua dignidade, cerceando sua
liberdade.
Referente à autonomia, Carminate (2019) entende que:
117
Como preconiza Miracy Barbosa de Souza Gustin, a
autonomia é uma necessidade humana primordial, sendo pré-
condição indispensável para se evitara ocorrência de danos,
privações ou sofrimentos graves a indivíduos, grupos ou
coletividades. Assim, deve-se, antes de tudo, criar condições
para que os indivíduos possam autonomamente construir seu
bem-estar e agir na busca de sua realização plena, como se
buscou fazer através da reformulação da teoria das
incapacidades.(CARMINATE, 2019, p. 181)

Portanto, quanto se está diante de internações de


dependentes químicos, deve ser analisado concretamente se o
paciente possui capacidade e autonomia para decidir por si, sem
imposição de terceiros, não apenas defini-los como incapazes por
fazerem o uso de drogas e caracterizá-los como marginais, impondo
uma internação sem controle judicial.
Com frequência, noticia-se a discriminação de pessoas
usuárias de drogas, havendo muitas falhas nos hospitais públicos no
acolhimento delas, o que permite enxergar que, nesse momento tão
importante, a autonomia do paciente é violentada, porque costuma
ser rotulado, já no atendimento, como pessoas sem direito de falar,
de expressar dor, de saber de tratamento.
Um exemplo desse retrato social foi tema do artigo dos
autores Melo e Maciel, “Representação Social do Usuário de Drogas
na Perspectiva de Dependentes Químicos” um artigo sobre a
discriminação sofrida pelos pacientes:

Com o estabelecimento da medicina, houve a


institucionalização do usuário para o tratamento médico e
118
sua categorização como um doente, tornando-o objeto da
psiquiatria. Sendo assim, o usuário passou a ser objetivado
como um doente, viciado, desajustado ou perturbado mental,
o que o discrimina e estigmatiza mais ainda, pois além de ele
ser rotulado de “perigoso” é percebido também por meio da
figura de um “doente mental”, o qual é semelhantemente
estigmatizado e excluído pela sociedade. (MELO, MACIEL,
2016).

Essa leitura já pode revelar a realidade de inúmeros hospitais


públicos sem estrutura para acolhimento de dependentes químicos.
Além disso, é capaz de levantar sérias dúvidas quanto às internações
involuntárias determinadas por médicos sem a devida qualificação
técnica ou sem a estrutura adequada para, livre de preconceito,
verificar a necessidade dessa medida extrema. E uma verificação
imparcial e sem discriminação preservaria a capacidade civil do
usuário de drogas, permitindo-lhe decisão livre quanto a sua
condição e seu tratamento.
A capacidade de direito se difere da capacidade civil, sendo
que a capacidade de direito é adquirida desde o nascimento (art. 1º
do Código Civil 2002) e a capacidade civil é quando o agente tem
condição de exercer pessoalmente os atos da vida civil.
E, no caso dos dependentes químicos, o vício não os torna
absolutamente incapazes. Conforme art. 4º, II, do Código Civil, os
ébrios habituais ou os viciados em tóxicos são considerados
relativamente incapazes, limitando-se a certos atos ou à maneira de
exercê-los no cotidiano.
Dessa maneira, necessário se faz a avaliação da capacidade do
paciente dependente químico antes de tomar uma medida
extrema como a da internação involuntária, assim, é respeitada à
autonomia, a liberdade, a intimidade a capacidade do sujeito.

119
Como Almeida, citada pelo Carminate:

Capacidade de exercício é, nesse viés, o reconhecimento da


independência do sujeito para realizar a potencialidade de
titularizar poderes, direitos, faculdades, ônus e deveres dentro
dos moldes pré-fixados normativamente através da
capacidade de direito. Ser capaz de fato consiste, então, na
possibilidade de adquirir e desenvolver titularidades
autônoma e pessoalmente, dispensando qualquer auxilio ou
condução por terceiros (ALMEIDA, 2011. p.45 apud
CARMINATE, 2019, p.47).
Destarte, os princípios da autonomia e da liberdade são
determinados pela Constituição Federal de 1988, no art. 5º, “caput” e
inciso X:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação;
[...]
(GRIFOS NOSSOS) (BRASIL, 1988)

Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais são


instrumentos de proteção do indivíduo frente ao Estado e às demais
pessoas, direitos esses que garantem o mínimo necessário para viver
de forma digna na sociedade, dentro do princípio da dignidade da
pessoa humana (BRASIL, 1988).
Por isso, a violação da autonomia e da liberdade de
120
locomoção não pode ocorrer sem prévio controle judicial, sob pena
de responsabilização civil, criminal ou administrativa, conforme as
circunstâncias.
E quando se fala na internação involuntária do dependente
químico, condicioná-la tão somente à decisão médica revela grande
possibilidade de violação desses direitos. Afinal, conforme art. 5º, LIV,
da Constituição Federal de 1988, “ninguém será privado da liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Relacionando a leitura acima com a área da saúde, não se
pode correr o risco de regredir ao tempo em que havia internações
forçadas, sem proteção do Estado.
Como se sabe, por muitos anos os pacientes eram submetidos
a tratamentos, procedimentos, cirurgias, sem saber do que se tratava,
e a decisão era unicamente médica, sem qualquer tipo de controle
judicial. Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos
ganharam força, podendo chamar de a “era da dignidade humana”
passando os pacientes não serem somente detentores de direitos,
mas pessoas dotadas de autonomia (RECOMENDAÇÃO Nº. 1/2016
DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA-CFM).
Essa recomendação descreve a dignidade humana como a
autonomia do ser humano, sendo este capaz de decidir sobre
assuntos que lhe digam respeito, sem qualquer coação, resguardando
a ele o direito a informação:

Sob o prisma ético-jurídico, a dignidade humana é a


autonomia do ser humano, vale dizer, consiste na liberdade
intrínseca, própria da natureza da pessoa, que é dotada de
razão, de poder decidir livremente e por si mesma (livre
arbítrio) sobre assuntos que lhe digam respeito, sobretudo
sobre sua intimidade e privacidade. O indivíduo é
conformador de si próprio e de sua vida, segundo seu próprio
projeto espiritual4. (RECOMENDAÇÃO Nº 1/2016 do

121
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA)

A partir disso, surgiu necessidade de um termo de


consentimento livre e esclarecido para garantir o direito de
informação, respeitando à autonomia privada e assegurando ao
paciente o direito de consentir, decidir, autorizar,sendo de
responsabilidade do médico, prestar informações e esclarecimentos
ao paciente quanto o procedimento, o tratamento ou a cirurgia que
este poderá se submeter (RECOMENDAÇÃO Nº. 1/2016 DO
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA-CFM).
Na perspectiva do respeito à dignidade e autonomia dos
pacientes portadores de doenças mentais, a Lei 10.216/2001 (Lei da
reforma psiquiátrica) colocou fim aos manicômios, para priorizar o
tratamento ambulatorial, com inclusão deles na sociedade e na
família. Na referida lei, vê-se que a internação involuntária é medida
excepcional, ou seja, somente será aplicada quando as medidas extra-
hospitalares se mostrarem insuficientes para a garantia dos direitos
individuais.
Pelo visto, houve grande avanço para respeitar a autonomia, a
liberdade e a dignidade dos portadores de transtornos mentais.
Na relação entre autonomia, liberdade e vida privada, ensina Teixeira
(2018):

No âmbito dos direitos fundamentais, pode a pessoa agir de


acordo com o que entende ser melhor para si, principalmente
no que tange às decisões referentes a si mesma, ao seu
corpo, à sua individualidade, desde que sua ação seja
responsável, que tenha plenas informações sobre os efeitos
dos seus atos. Assim, a possibilidade de se fazerem escolhas
autorreferentes deriva, potencialmente, da tutela da
122
privacidade e da vida privada [...] (TEIXEIRA, 2018, p.22)

Então, também no direito à saúde, o tratamento do paciente


não pode retirar dele os mencionados direitos fundamentais, sob
pena de retrocesso. Daí a necessidade de reflexão e estudo das
alterações promovidas pela Lei 13.840/2019, principalmente no que
se refere às internações do dependente químico.

MODALIDADES DE INTERNAÇÃO

Durante muitos anos no Brasil, o destino para pessoas com


doença mental era o isolamento em regime internação nos
manicômios, considerados verdadeiros depósitos de pessoas
indesejadas pela família e pela sociedade.
O Hospital Colônia fundado em 1903 na Cidade de Barbacena
em Minas Gerais foi considerado o maior hospício do Brasil (Arbex,
2013).
O tratamento oferecido aos pacientes era totalmente
desumano, toda pessoa que era considerada doente mental ou
“excluído” da sociedade era encaminhado para o manicômio.
Daniela Arbex traz em seu livro “Holocausto Brasileiro” relatos
de algumas pesquisas feitas no hospital:

[...] a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de


doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a
ordem pública. Por isso, o Colônia tornou–se destino de
desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras,
alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem
documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os
chamados insanos.(GRIFOS NOSSOS) (ARBEX, 2013, p.23)

123
[...] o tratamento de choque e o uso de medicações nem
sempre tinham finalidades terapêuticas, mas de contenção e
intimidação. (GRIFOS NOSSOS) (ARBEX, 2013, p. 31)

Por esse motivo, a Lei 10.216/2001 é considerada um avanço


na reforma da psiquiatria. Na sua própria ementa, lê-se que ela
“dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental”. A partir da Lei 10.216/2001 inaugurou-se uma nova visão
sobre a internação dessas pessoas, porque a internação passou a ser
uma exceção, somente recomendada quando todas as formas de
tratamento extra- hospitalares não tiverem efetividade.
Assim, quando é o caso de internação psiquiátrica, o
tratamento deve considerar as questões conceituais do paciente,
eliminando a ideia de exclusão familiar e social do paciente,
visando ainda a sua inserção na sociedade. É o que descreve o art.
4º da lei citada:

Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só


será indicada quando os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes.
§ 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a
reinserção social do paciente em seu meio.
§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado
de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de
transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de
assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e
outros.
§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de
transtornos mentais em instituições com características
asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos
mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os
124
direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o. (BRASIL,
Lei 10.216/2001)

E a própria Lei 10.216/2001,em seu art. 6º, passou a definir as


modalidades de internação psiquiátrica cabíveis:

Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada


mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os
seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de
internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o
consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela
que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de
terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela
Justiça.(BRASIL, Lei10.216/2001)

Quanto aos dependentes químicos, aos usuários de drogas,


apesar de não serem considerados automaticamente como doentes
mentais, a Lei 10.216/2001costuma ser aplicada a eles, visto que a
internação pode ser indicada através de um relatório circunstanciado
subscrito por um médico psiquiatra, em que será avaliado o atual
quadro de saúde do paciente e sua capacidade mental naquele
momento.
Nesse quadro, na tentativa de trazer tratamento específico dos
dependentes químicos, a Lei 13.840/2019foi aprovada para dispor
“sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as
condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para
tratar do financiamento das políticas sobre drogas”.

125
Ela passou a dispor também de modalidades de internação,
conforme se lê no § 3º do art. 23-A, inserido na Lei 11.343/2006:

Art. 23-A. O tratamento do usuário ou dependente de drogas


deverá ser ordenado em uma rede de atenção à saúde, com
prioridade para as modalidades de tratamento ambulatorial,
incluindo excepcionalmente formas de internação em
unidades de saúde e hospitais gerais nos termos de normas
dispostas pela União e articuladas com os serviços de
assistência social e em etapas que permitam: (Incluído pela
Lei nº 13.840, de 2019)
§3º São considerados 2 (dois) tipos de internação:

- internação voluntária: aquela que se dá com o


consentimento do dependente de drogas;
- internação involuntária: aquela que se dá, sem o
consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do
responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor
público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos
públicos integrantes do Sisnad, com exceção de servidores da
área de segurança pública, que constate a existência de
motivos que justifiquem a medida.
[...] (GRIFOS NOSSOS) (BRASIL, LEI 13.840/2019)

Diante da previsão expressa nas duas referências legislativas,


cumpre fazer breve descrição de cada modalidade de internação.

Internação Voluntária

A internação voluntária é descrita no art. 6º, I, da Lei


10.216/2001 e também no 23-A da Lei 11.343/2006 (inserido pela Lei
13.840/2019).

126
Na própria definição legal, ela ocorre a partir da vontade do
paciente, é menoscomplexa porque depende apenas da assinatura de
termo de consentimento e opção por essa internação. E, conforme o
parágrafo único do artigo 7º da Lei 10.216/2001, a alta poderá ser
dada por solicitação escrita do paciente ou por determinação médica:

Art. 7o A pessoa que solicita voluntariamente sua internação,


ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão,
uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á
por solicitação escrita do paciente ou por determinação do
médico assistente. (BRASIL, LEI 10.216/2001)
E quanto à Lei 13.840/2019, ela inseriu esse tipo de internação
no §4º do art. 23-A da Lei 11.343/2006, onde se descreve que a
internação voluntária “deverá ser precedida de declaração escrita da
pessoa solicitante de que optou por este regime de tratamento”,
sendo que “o seu término dar-se-á por determinação do médico
responsável ou por solicitação escrita da pessoa que deseja
interromper o tratamento”.
É semelhante ao que já era aplicado na Lei 10.216/2001, sendo
a modalidade de internação que respeita mais a autonomia e
liberdade do paciente, quanto à escolha e aos riscos do tratamento.

Internação Involuntária

No art. 6º, II, da Lei 10.216/2001, essa internação psiquiátrica é


descrita como “aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a
pedido de terceiro”.
Assim, não se leva em conta a vontade do paciente. É a
que gera muitascontrovérsias, por violar a autonomia e a liberdade.
127
E, conforme §1º do art. 8º da mesma lei,

A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de


setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público
Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual
tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser
adotado quando da respectiva alta. (BRASIL, LEI 10.216/2001)

Referida comunicação ao Ministério Público parece dar


poderes de controle e fiscalização contra internações psiquiátricas
indevidas. Porém, há risco, porque a comunicação é posterior.
Nessa internação involuntária, a alta só ocorrerá por
solicitação escrita do familiar, do responsável legal ou pelo médico
responsável, como se lê no §2º do art. 8º da Lei 10.216/2001. Aqui
também não se analisa a vontade do paciente, talvez por se tratar de
internação psiquiátrica de pessoa portadora de transtorno mental,
pressupondo ausência de capacidade para decidir.
Em outro ponto, agora no que se refere ao dependente
químico, a Lei 13.840/2019 passou a definir no §5º do art. 23-A da Lei
11.343/2006 que a internação involuntária “deve ser realizada após
formalização da decisão por médico responsável” e “será indicada
depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso
e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras
alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde”.
No inciso III do referido parágrafo, registra-se que a
internação involuntária só durará até a desintoxicação, não podendo
ultrapassar 90 (noventa) dias, devendo o médico responsável definir
o término do tratamento. Assim, é provável que a internação dure
apenas um dia, uma semana ou um mês, por exemplo, se esse tempo
for suficiente a desintoxicação.
128
A norma define que a família ou o representante legal
também poderá pedir a interrupção do tratamento (inciso IV do §5º
do art. 23-A da Lei 11.343/2006). Aqui, nada se mencionou a respeito
de pedido escrito do próprio paciente, o qual, a despeito da
dependência química, nem sempre terá sua capacidade civil
comprometida.
Por fim, semelhante também ao que dispõe a Lei 10.216/2001,
o §7º do mesmo art. 23-A, é determinado que as internações
voluntárias ou involuntárias, bem como os términos (altas
hospitalares), sejam comunicadas ao Ministério Público, à Defensoria
Pública e outros órgãos de fiscalização, para permitir o controle das
internações.
Todavia, mais uma vez o que se percebe é que eventual
controle só ocorrerá após a internação, quando já podem ter sido
causados inúmeros danos aos usuários de drogas que tenham sido
internados sem respeito a sua autonomia e a sua liberdade.

Internação Compulsória

A terceira e última modalidade é internação compulsória, a


qual somente encontra definição no art. 6º, III, da Lei 10.216/2001,
como sendo aquela determinada judicialmente, exigindo-se laudo
médico fundamentado.
Conforme art. 9º da referida Lei:

Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo


com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em
conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto
à salvaguarda do paciente, dos demais internados e
funcionários. (BRASIL, LEI 10.216/2001)

129
Nessa modalidade, a internação só ocorrerá após ordem
judicial.
Assim, haverá privação da autonomia e da liberdade do
paciente, mas a partir de controle jurisdicional prévio, respeitando o
devido processo legal e o contraditório. Se há processo, é certo que
a pessoa contra quem foi determinada a internação compulsória
terá a oportunidade de contestar, de se defender, de exigir a
apuração de responsabilidades civil, criminal e administrativa contra
abusos.
Pelo visto, nessa modalidade excepcional, respeita-se o que
está previsto no art. 5º, LIV, da CF/1988, segundo o qual “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”.

CONTEXTUALIZAÇÃO DAS LEIS 10.216/2001 E 13.840/2019

Pela data de publicação, 18 (dezoito) anos separam as duas


leis. A Lei 10.216/2001, conhecida como “lei antimanicomial” foi
criada a partir da necessidade de acabar com os manicômios e dar
um tratamento mais humanitário aos pacientes portadores de
transtornos mentais. Traz modalidades de internações psiquiátricas,
como medida excepcional E, como já descrito acima, a finalidade
principal é a reinserção familiar e social das pessoas com deficiência
mental.
No desenvolvimento do processo legislativo na época, cita-se
o parecer abaixo, que revela em síntese o objetivo do legislador:

PARECER SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE, JURIDICIDADE E


TECNICA LEGISLATIVA DO PL 3657-C, DE 1989.
130
Trata-se de texto substitutivo ao PL 3657-8, de 1989, oriundo
do Senado Federal, que dispõe sobre a extinção progressiva
dos manicômios e sua substituição por outros recursos
assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica
compulsória.
Cotejando-se a redação do Projeto acima descrito com a
Seção 11 do Capítulo II do Título VIII da Constituição Federal,
que trata da Saúde, bem como com os itens descritos pelo §
4Q do art. 60 da mesma Carta, referente às cláusulas pétreas,
não se vislumbrou nenhuma violação constitucional.
Ademais, relativamente à técnica legislativa, o Substitutivo
encontra-se em consonância com a Lei Complementar 95/98,
razão pela qual voto pela constitucionalidade, juridicidade e
boa técnica legislativa do texto em comento.E o parecer.
Sala das Sessões, 20 de março de 2001.
Deputado Fernando Coruja Relator CCJR
(RELATOR DEPUTADO FERNANDO CORUJA, PL 3.657/89,
1989) (GRIFOS NOSSOS)

Sr. Presidente, por muito tempo esteve este projeto no


Senado Federal. Tínhamos informações de que estava sendo
aprimorado naquela Casa por meio de um grande acordo feito pelos
nobres Senadores e até por Deputados e pela sociedade em geral,
interessada nessa questão extremamente grave, polêmica e muito
importante para o País. Trata-se de dar conforto, bem-estar e
tratamento eficiente a pacientes psiquiátricos, uma plêiade
enorme de brasileiros.
Com surpresa, recebi na Comissão de Seguridade Social e
Família um texto que, na minha opinião, nada tinha a ver com o
projeto original, do Deputado Paulo Delgado, que adotava uma linha
de modernização da atenção psiquiátrica, da política de saúde mental
131
no País, que até aquele momento não tinha avançado quase nada.
Possuíamos - como ainda
possuímos, infelizmente - manicômios medievais, que
cuidavam dos doentes como se não fossem seres humano.
Eram verdadeiros depósitos de gente que não tinha a menor
condição de sair dali com perspectiva de melhora, ficando quase que
condenada a uma prisão perpétua.

O projeto original do Deputado Paulo Delgado visava dar ao


setor modernidade, eficiência, caráter humanitário,
competência profissional e dignidade que o cidadão, o ser
humano por ele atendido merecia. Então, o projeto do
Deputado Paulo Delgado, que tive oportunidade de relatar
nesta Casa, realmente buscava aprimorar a legislação e traçar
um norte para a saúde mental e a atenção ao paciente
psiquiátrico em nosso País. RELATOR CARLOS MOSCONI, PL
3.654/89, 1989, p. 39 a 40) (GRIFOS NOSSOS)
Então a Lei 10.216/2001 se aplica à pacientes psiquiátricos, e
foi aprovada em contexto no qual se via a completa exclusão das
pessoas com transtornos mentais, internadas em manicômios, locais
fechados piores que prisões, com tratamentos violentos e
desumanos.
Trazida essa perspectiva, referida lei, em tese, não deve se
aplicar automaticamente aos usuários de drogas, aos dependentes
químicos, a não ser que se tenha, também, o diagnóstico de algum
transtorno mental.
Em outro tempo, a Lei 13.840/2019foi aprovada com a
finalidade de tratar com mais efetividade a abordagem dos usuários
de drogas, promovendo diversas alterações na Lei Antidrogas (Lei
11.343/2006). Referida lei trouxe diretrizes para o acompanhamento e
tratamento dos dependentes químicos, de forma extrajudicial, a partir
de iniciativa do médico responsável pelo paciente, admitindo a

132
possibilidade de internação involuntária sem necessidade de decisão
judicial, como abordado acima.
Conforme parecer que antecedeu a aprovação da lei
13.840/20, nota-se que o legislador buscou uma forma de acabar
como descrito “problema” do uso de drogas.
Nota-se que Deputados e Senadores ressaltam o crescimento
alarmante do uso de drogas, sem abordagem aprofundada em
desigualdades sociais e sem discutir a melhoria efetiva na
infraestrutura do Sistema Único de Saúde.
O trecho a seguir revela:

I – RELATÓRIO
O Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 37, de 2013, promove
muitas alterações na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006,
conhecida como Lei Antidrogas, cabendo aqui o registro
das mais importantes modificações.
A proposição inicia por estabelecer que o Sistema Nacional
de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) compreende o
conjunto ordenado de princípios, regras, critérios e
recursos materiais e
humanos que envolvem as políticas, planos, programas,
ações e projetos sobre drogas, incluindo-se nele, por
adesão, os Sistemas de Políticas Públicas sobre Drogas dos
Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 3º, § 1º).
Prevê, ainda de início (art. 3º, § 2º), que o SISNAD deverá
atuar em articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS) e
com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). (PLC
37/2013, RELATÓRIO LEGISLATIVO, SENADOR ANTÔNIO
VALADARES (PSB/SE),p. 1 e 2)

O crescimento alarmante do uso de drogas nos últimos anos,

133
em especial do crack, torna urgente a necessidade de o poder público
dar uma resposta mais efetiva para o problema. O assunto tem
provocado inúmeras discussões, inclusive no âmbito do Parlamento,
na busca por soluções de algum impacto mais imediato em relação à
situação atual. Alguns municípios, como o Rio de Janeiro e São Paulo,
passaram a promover programas de recolhimento e internação
involuntária de moradores em situação de rua, usuários ou
dependentes de drogas. (PLC 37/2013, RELATÓRIO LEGISLATIVO,
SENADOR ANTÔNIO VALADARES (PSB/SE), p. 11)

O Projeto de Lei da Câmara sob análise busca oferecer


alternativas para melhorar a estrutura do atendimento aos
usuários ou dependentes de drogas e suas famílias. Ele
detalha os principais aspectos relativos ao tratamento e ao
acolhimento de pessoas que usam drogas e da sua necessária
reinserção social e econômica. (PLC 37/2013, RELATÓRIO
LEGISLATIVO, SENADOR ANTÔNIO VALADARES (PSB/SE) p.
13)

Por esse ângulo, o que se vê é a aprovação de uma lei que


traz a possibilidade de internação involuntária de dependentes
químicos sem controle judicial, podendo revelar política higienista
para retirada dos dependentes químicos das ruas, sem qualquer
respeito a sua autonomia e a sua liberdade.
Como já dito, a dependência química, por si só, não retira a
capacidade civil do usuário de drogas, nem diminui sua autonomia. E
mesmo quando há diagnóstico de vício em grau que o torne
relativamente incapaz, a decisão de internação não pode
desconsiderar por completo autonomia do paciente.
Por fim, ressalta-se que a Lei 13.840/2019 não revogou nem
enfraqueceu os dispositivos da Lei 10.216/2001, muito menos retirou

134
do Poder Judiciário a possibilidade de, em cada caso concreto, aferir a
necessidade de internação compulsória, motivo pelo qual até hoje a
Lei Antimonicomial vem sendo utilizada, principalmente para
respaldar o tratamento compulsório dos dependentes químicos,
mediante fundamentação médica e ordem judicial.

A INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA DE DEPENDENTES QUÍMICOS

Quando se fala na dependência química, percebe-se um


grande esforço do legislador e do poder público em criar
instrumentos efetivos para prevenção contra o uso indevido de
drogas ilícitas, para tratamento do usuário e repressão ao tráfico,
como revela a leitura da ementa da Lei 11.343/2006.
Então, antes de se descrever condutas criminosas e respectivas
penas, o legislador traça princípios e objetivos a serem perseguidos
pelo Estado, falando de um Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas - SISNAD.
O SISNAD já tem previsão legal desde 2006, como se lê no art.
3º da Lei 11.343/2006. Como descrito na norma, sua finalidade é
“articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas
com a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de
usuários e dependentes de drogas”.
No entanto, foi somente 13 (treze) anos depois, com a
aprovação da Lei 13.840/2019, é que se definiu o SISNAD, entendido
como “conjunto ordenado de princípios, regras, critérios e recursos
materiais e humanos que envolvem as políticas, planos, programas,
ações e projetos sobre drogas, incluindo-se nele, por adesão, os
Sistemas de Políticas Públicas sobre Drogas dos Estados, Distrito
Federal e Municípios” (§1º do art. 3º da Lei 11.343/2006, incluído pela
Lei nº 13.840, de 2019).

135
Assim, como mais uma tentativa legislativa de tratar
rapidamente o dependente químico, foi aprovada a Lei nº
13.840/2019, a qual, dentre outras alterações, inseriu o artigo 23-A na
Lei 11.343/2006, para permitir a internação involuntária por
determinação médica, sem necessidade de ordem judicial.
Todavia, ao contrário do que pensam muitos estudiosos, não
se trata de novidade, porque a internação involuntária já era
permitida pela Lei 10.216/2001, para proteção e tratamento de
pessoas portadoras de transtorno mental.
Como já definido no art. 6º, II, da Lei 10.216/2001, essa
modalidade de internação é descrita como “aquela que se dá sem o
consentimento do usuário e a pedido de terceiro”. Aqui, a princípio,
não haveria necessidade de decisão judicial, bastando a autorização
médica de um psiquiatra e a comunicação ao Ministério Público.
Na prática, e para evitar responsabilização, é certo que muitos
médicos preferem orientar as famílias a buscarem uma ordem judicial,
até porque muitos Estados não contam com estrutura pública
suficiente para acolhimento e tratamento dos dependentes químicos,
fato conhecido por todos.
Essa falta de preparo estatal foi matéria de uma entrevista
realizada pela Assessoria de Comunicação do IBDFAM, onde a pauta
de discussão foi a estrutura do sistema de saúde pública:

Em relação às políticas públicas, Maria Luíza Póvoa afirma que


é preciso que o poder público e o Sistema Único de Saúde –
SUS tenham aparelhamento para tanto, o que não ocorre
atualmente. “De acordo com documentos publicados pelo
próprio Ministério da Saúde, a soma de leitos em hospitais
psiquiátricos e hospitais gerais é da proporção de 0,11 leito
por 1.000 habitantes. A recomendação do próprio Ministério
da Saúde é de que essa proporção fosse de 0,45 por 1.000
habitantes. Há aqueles que podem ser internados por meio
de planos de saúde ou de forma particular, o que no entanto,
136
não altera substancialmente este déficit. Essa assistência
sempre foi e continua sendo absolutamente deficitária e
ineficiente em razão da lentidão com que se dão os
investimentos necessários à sua plena execução”, finaliza.
(ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO IBDFAM, 2019)

Outro ponto a se destacar é que a Lei 10.216/2001 é


direcionada à proteção e aos direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais, sendo que a dependência química nem sempre
se enquadrará como transtorno mental.
Talvez por isso o legislador tenha se preocupado em trazer
norma específica aos usuários de drogas.
Tal procedimento de internação involuntária é feito em
situações excepcionais, pois se trata de uma medida extrema, quando
o paciente se encontra em situações de crises, colocando em risco
sua integridade física e de demais pessoas. Para isso, é necessário um
laudo médico circunstanciado, que caracterize o motivo da
internação, sendo que só deve ser indicada quando os recursos extra-
hospitalares já se mostrarem insuficientes no caso do paciente (art. 6º
da Lei 10.216/01).
O estabelecimento onde será encaminhado o paciente precisa
ter um médico responsável pela internação, devendo a instituição
comunicar o Ministério Público em até 72 (setenta e duas) horas
sobre o procedimento, momento em que o Ministério Público
encaminhará um perito até o local para avaliar se a internação está
sendo bem conduzida e se é medida cabível e necessária para o
paciente.
Em outra perspectiva, a Lei 13.840/2019 incluiu o art. 23-A na
Lei 11.343/2006, autorizando a internação involuntária de pacientes
dependentes químicos sem prévia autorização judicial. Com a
alteração legislativa, o paciente dependente químico pode ser

137
internado a partir de um pedido familiar, assistente
social ou agente de saúde, e apenas com a autorização de um
médico, pelo período máximo de 90 (noventa) dias, não havendo
mais a intervenção do judiciário para analisar se tal internação é
realmente necessária.
Entretanto, diante do que já foi exposto sobre autonomia,
dignidade e liberdade, direitos fundamentais garantidos pela
Constituição Federal de 1988, essa alteração legislativa pode permitir
situações abusivas, de internações indevidas, de violações escoradas
no objetivo de “tratar” e “limpar” essas pessoas.
Ainda que se permita controle posterior pelo Ministério
Público e pela Defensoria Pública, há grande risco de danos à saúde
psicológica dos usuários de drogas, porque as internações
involuntárias não consideram a sua vontade. Dessa forma, a
responsabilização de abusos só ocorrerá depois da internação,
quando poderá ser muito tarde para o paciente. O risco é regredir aos
antigos manicômios.
Na jurisprudência, e apesar da entrada em vigor da Lei
13.840/2019, pouco se fala sobre internações involuntárias dos
dependentes químicos. E quando o tema é debatido, a maior parte
defende a possibilidade de controle judicial, tal como ocorre nas
internações compulsórias. A título de exemplo, citam-se as ementas a
seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA


–[...] - SOLUÇÃO EXTREMA - ADOÇÃO DE CAMINHO
INTERMEDIÁRIO. [...].
2. A internação involuntária é medida extrema. Tem potencial
de agredir valores fundamentais. Solução a ser adotada de
forma excepcional. Concessão da liminar, no caso, de forma
mais comedida do que a pretendida, impondo-se ao Poder
138
Público medidas antecedentes a uma hipotética internação.
3. Recurso provido em parte.
(TJ-SC - AI: 80001771820198240000 São Francisco do Sul
8000177-
18.2019.8.24.0000, Relator: Hélio do Valle Pereira, Data de
Julgamento: 03/10/2019, Quinta Câmara de Direito Público).
(g.n.) (GRIFOS NOSSOS)

Apelação. Saúde. Drogadição. Direito fundamental. Internação


voluntária e involuntária. Comunidade terapêutica.
Compartilhamento e responsabilidade mútua entre poder
público e familiares. Proibição de isolamento físico, social e
familiar. 1. O tratamento a dependente de droga deve
preferencialmente ser ambulatorial, sendo indicada a
internação tão somente como medida excepcional,
quando os recursos extra-hospitalares se mostram
insuficientes. 2. A lei prevê dois tipos de internação, a
voluntária e a involuntária (por decisão médica) e ambas não
dependem de decisão judicial (art. 23-A, §3º, Lei
11.343/2006). 3. Na dicção da Lei 11.343/2006 é vedada a
internação involuntária nas comunidades terapêuticas
acolhedoras incluídas no SISNAD, pois nelas se permite
somente a internação consentida (art. 23-A, §9º), caso em
que o paciente deve firmar, por escrito, a sua vontade de
ser internado (art. 26-A, II) e não pode ultrapassar lapso
de noventa dias (art. 23-A, caput e §5º, III). 4. Seguindo a
diretriz do compartilhamento de responsabilidades e
colaboração mútua entre
SISNAD e familiares do dependente químico, a lei impõe
aos familiares, ou responsáveis, sob pena de responsabilidade
civil, administrativa e criminal, o dever de contribuir com o
processo de recuperação, pois é de todo desaconselhado que
o dependente fique em situação de isolamento físico, social e
familiar (art. 23-B, §3º e art. 26-A, VI, Lei 11.343/2006). 5.
139
Apelo parcialmente provido.
(TJ-RO - AC: 70121130420168220005 RO 7012113-
04.2016.822.0005,
Data de Julgamento: 17/07/2020) (GRIFOS NOSSOS)

Desse modo, apesar da autorização legal para internações


involuntárias apenas por decisão médica, solução ideal é o controle
prévio, seja pelo Ministério Público, seja pela Defensoria Pública, seja
pelo Judiciário, porque protegeria, com efetividade, a liberdade de
locomoção e da autonomia privada dos pacientes.
Então, a leitura da Lei 13.840/2019, em conformidade com a
Constituição Federal de 1988, permite a conclusão de que, apesar das
novas disposições quanto às internações dos dependentes químicos,
é impossível afastar o controle jurisdicional. E a lei nem poderia fazê-
lo, diante do que estabelece o art. 5º, XXXV, da CF/1988 (princípio da
inafastabilidade da jurisdição): “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
As ementas seguintes exemplificam esse controle pelos
tribunais brasileiros:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - MEDIDA PROTETIVA PARA


INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA - MANUTENÇÃO DA DECISÃO
LIMINAR PROFERIDA PELO JUÍZO A QUO - AUSÊNCIA DOS
REQUISITOS AUTORIZADORES DA CONCESSÃO DE EFEITO
SUSPENSIVO -
RECURSO NÃO PROVIDO. - O periculum in mora -
representado pelo fundado receio de dano irreparável ou de
difícil reparação - está cristalizado na espécie. Afinal, em se
tratando de problemas afetos à saúde, o transcurso do
tempo pode ser irreversível. - Há responsabilidade solidária
entre os entes federados quanto as obrigações decorrentes
140
da garantia do direito à saúde, consectário necessário do
direito a uma vida digna. Questões afetas a esse direito
social sujeitam-se ao controle judicial, o que não
representa qualquer afronta ao Princípio da Separação
dos Poderes, já que o controle de juridicidade compete ao
Poder Judiciário. - Recurso não provido.
(TJ-MG - AI: 10216120048329001 MG, Relator: Alvim Soares,
Data de Julgamento: 17/01/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 4ª
CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/01/2013)(GRIFOS
NOSSOS)

OBRIGAÇÃO DE FAZER – INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA –


DEMONSTRADA A NECESSIDADE DE AJUSTAMENTO DA
CONDUTA DO PACIENTE A TRATAMENTO AMBULATORIAL -
PORTADOR DE TRANSTORNOS MENTAIS DECORRENTES DE
ESQUIZOFRENIA, COM QUADRO DE AGRESSIVIDADE.
PRELIMINAR – Interesse de agir –
Ausência de comprovação da indispensabilidade do ingresso
em juízo para obtenção do direito pretendido – Inocorrência
- Aplicação do princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da
Constituição da República - Internação involuntária e
decorrente do cumprimento de ordem judicial - Necessidade
que restou demonstrada com a melhora no quadro
clínico do paciente - Preliminar rejeitada. MÉRITO - O direito
à saúde, como garantia do cidadão e dever do Estado,
decorre de expressa previsão constitucional e, com status de
preceito fundamental, encontra-se positivado nos arts. 1º, III,
3º, IV, 5º, caput, 6º, caput, e 196 da Constituição Federal, de
aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF), pois demandas
voltadas à sua efetivação resolvem-se a partir de um contexto
fático e suas peculiaridades – Comprovação da moléstia e da
consequente necessidade de tratamento ambulatorial –

141
Precedentes deste E. Tribunal. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
– Minoração - Arbitramento em R$ 1.000,00 – Art. 20, § 4º, do
Código de Processo Civil/1973 – Apelo e Reexame necessário,
considerado interposto, parcialmente providos.
(TJ-SP - AC: 00017526320148260439 SP 0001752-
63.2014.8.26.0439,
Relator: Spoladore Dominguez, Data de Julgamento:
04/05/2016, 13ª Câmara de Direito Público, Data de
Publicação: 05/05/2016)(GRIFOS NOSSOS)

Nessa leitura, o controle judicial protege com mais efetividade


os direitos fundamentais dos pacientes, evitando situações violadoras
e injustas. Isso porque, como dito, as internações involuntárias e
compulsórias colocam em risco a liberdade de locomoção e a
autonomia privada. E mais: sabe-se que o poder público não tem
infraestrutura suficiente e adequada para acolher e tratar os usuários
de drogas encaminhados à internação por decisão médica.
Como se vê a seguir, casos recentes enfrentados pelos
tribunais demonstram que o Judiciário ainda está recebendo pedidos
de internações involuntárias dos dependentes químicos, tendo como
fundamento a Lei 10.216/2001, quando fala de internação
compulsória:

EMENTA: REMESSA NECESSÁRIA CONHECIDA DE OFÍCIO -


APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DIREITO À SAÚDE -
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - PACIENTE DEPENDENTE DE
SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS - LAUDO MÉDICO
CIRCUNSTANCIADO - PRESENÇA - PROFISSIONAL
CREDENCIADO AO SUS - PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS
- PROCEDÊNCIA - APRESENTAÇÃO TRIMESTRAL DE

142
RECEITUÁRIO MÉDICO ATUALIZADO - SENTENÇA
PARCIALMENTE REFORMADA.
O direito à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição da
República, é dever do Estado, o que o obriga ao fornecimento
de tratamento médico adequado e dos medicamentos
disponíveis, atendida a cláusula da reserva do possível.
Impõe-se a manutenção da sentença que julgou procedente
o pedido de internação compulsória de paciente portador de
dependência química, uma vez presente nos autos relatório
médico circunstanciado, que atesta a situação de risco em que
se encontra, bem como indicando a necessidade do
tratamento.
Razoável a apresentação trimestral do receituário médico
atualizado, para que o ente público requerido exerça o
controle da necessidade de se disponibilizar a internação
compulsória ao paciente.
Recurso parcialmente provido. Remessa necessária conhecida
de ofício exaurida. (TJMG - Apelação Cível 1.0111.14.004213-
1/002, Relator(a):

Des.(a) Luís Carlos Gambogi , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento


em 30/07/2020, publicação da súmula em 21/08/2020)
(GRIFOS NOSSOS)

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA


- INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - TUTELA DE URGÊNCIA -
TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO E DE DEPENDÊNCIA QUÍMICA -
DIREITO À SAÚDE - GARANTIA CONSTITUCIONAL -
REQUISITOS PRESENTES - FIXAÇÃO DE MULTA -
POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO - RECURSO
PARCIALMENTE PROVIDO.1- A saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e

143
econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 2- A Lei
10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais, admite a
internação psiquiátrica compulsória mediante a existência
de laudo médico circunstanciado, que caracterize os seus
motivos. 3- Mostra-se cabível a fixação de multa para que se
obtenha um cumprimento eficaz da decisão jurisdicional,
sendo inclusive prevista nos artigos 497 e 537, do CPC. 4-
Recurso parcialmente provido. (TJMG - Agravo de
Instrumento-Cv 1.0000.19.094480-1/001, Relator(a): Des.(a)
Rinaldo Kennedy Silva (JD Convocado) , 2ª CÂMARA CÍVEL,
julgamento em 10/03/2020, publicação da súmula em
11/03/2020) (GRIFOS NOSSOS)

Na linha de raciocínio trazida, o Judiciário deve ser acionado


para proteção dos direitos fundamentais, incluindo o direito à saúde,
porque, como disposto no art. 196 da Constituição Federal de 1988:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,


garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

Certamente, a proteção e recuperação dos dependentes


químicos não podem depender apenas da decisão médica, sob pena
de retrocesso. É temerário permitir que apenas o médico decida pela
internação involuntária, sem controle judicial prévio, sob pena de se
instalar uma política higienista, de “limpar” as ruas, fazendo uma
segregação, na busca de mascarar os problemas sociais decorrentes

144
da dependência química.
Dentro do contexto, os autores Nery Filho, MacRae, Tavares,
Nuñez e Rêgo fazem a seguinte reflexão:

Os sucessivos fracassos da prevenção baseada no


proibicionismo levaram profissionais de várias áreas do
conhecimento, dentre elas, Educação, Saúde, Psicologia e
Sociologia a discutirem e proporem uma nova abordagem
preventiva. A evolução das estratégias preventivas no
Brasil está também associada à mudança da perspectiva
higienista em saúde pública para uma perspectiva
integrativa, de acordo com a Reforma Sanitária brasileira.
Contribui para esta mudança, além da reforma sanitária, a
reforma psiquiátrica brasileira que, ao criticar a produção
social da ideia de “louco” como perigoso e incapaz (Bezerra
JÚNIOR, 2004) traz reflexões também sobre a fabricação do
“drogado” como indivíduo sem caráter, inapto ao convívio
social e incapaz de produzir bens e serviços. (NERY FILHO,
MACRAE, TAVARES, NUÑEZ E RÊGO, 2012, p. 371)
E para evitar abusos, e permitir soluções mais pacíficas neste
tema, o Enunciado nº 1 da I Jornada de direito a saúde oferece a
orientação de se observar o estrito critério médico, mas com decisão
judicial:

I JORNADA DE DIREITO DA SAÚDE ENUNCIADO Nº 01


A tutela individual para internação de pacientes psiquiátricos
ou em situação de drogadição ocorrerá pelo menor tempo
possível, sob estrito critério médico. As decisões que
imponham tal obrigação devem determinar que seus
efeitos cessarão no momento da alta concedida pelo
médico que atende o paciente na respectiva instituição de
saúde, devendo o fato ser imediatamente comunicado
pelo prestador do serviço ao Juízo competente. (Redação
dada pela III Jornada de Direito da Saúde – 18.03.2019)
145
A partir desse cenário até aqui escrito, surge a necessidade de
questionar e até mesmo duvidar sobre a constitucionalidade da Lei
13.840/19, a qual autoriza a internação de dependentes químicos sem
devida apreciação do judiciário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo exposto, percebe-se que a internação


involuntária do dependente químico sem prévia autorização judicial
fere princípios, direitos e garantias fundamentais previstos na
Constituição Federal de 1988, especificamente direito à vida, saúde,
dignidade, autonomia privada e a liberdade.
Pelo visto, a liberdade do indivíduo quanto ao seu corpo e à
escolha de tratamento revela a máxima expressão de autonomia
existencial, não sendo papel do Estado e, tampouco, de outro cidadão
violar, sem o devido processo legal, as decisões que devem ser
tomadas, exclusivamente, pelo paciente dependente químico, quando
há capacidade civil.
Dessa forma, é bastante temerário deixar para o médico a
decisão de internar involuntariamente o dependente químico,
podendo significar verdadeiro retrocesso, uma vez que os hospitais
públicos não têm estrutura para acolher adequadamente os
pacientes usuários de drogas.
Assim, a leitura harmônica das leis citadas, do Código Civil e
da Constituição Federal sugere a atuação conjunta do médico, de
órgão de controle e do Judiciário, devendo o profissional
fundamentar a necessidade da internação involuntária e encaminhar
o caso, à Defensoria Pública, ao Ministério Público, a fim de que haja
decisão judicial prévia, respeitando o contraditório e a ampla defesa.

146
Não se discutiu neste artigo a possibilidade de o médico
indicar tais internações, mas sim a privação da liberdade e da
autonomia do paciente sem prévia autorização judicial.
Além disso, mesmo que se pensasse em internação
involuntária sem prévia autorização judicial pelo prazo previsto na Lei
13.840/2019, o estudo demonstra que o Sistema Único de Saúde não
tem estrutura e recursos para acolhimento dos dependentes
químicos, porque a realidade do País é de unidades de saúde e
hospitais superlotados.
E quanto ao controle posterior exercido pelo Ministério
Público, pela Defensoria Pública e por outros órgãos de fiscalização,
viu-se que os danos podem ser irreparáveis até a adoção de
providências para sanar eventual irregularidade, porque a pessoa
vítima de uma internação injusta tem sua liberdade e autonomia
retiradas, estando sujeita a tratamento abusivos, a exemplo da
medicação forçada.
Revela-se que o paciente dependente químico é muitas vezes
marginalizado pela sociedade e também pelos profissionais da saúde,
sendo tratados como pessoas sem capacidade para decidir.
Um caminho mais efetivo para o tratamento dos dependentes
químicos é de política pública, devendo a União, Estados e Municípios
atuar para melhoria dos Centros de Atenção Psicossociais, por
exemplo, com capacitação dos profissionais de saúde de assistência
social.
O problema social não é resolvido com a simples publicação
da Lei e não é resolvido com a simples retirada do usuário das ruas ou
de suas casas.
Por todo exposto, fica evidente que tais alterações trazidas
pela Lei 13.840/2019 são prejudiciais aos pacientes dependentes
químicos, que correm o risco de terem a liberdade e a autonomia
cerceadas, sem necessário controle prévio pelo poder judiciário.
147
REFERÊNCIAS

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Editorial, 2013.

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Acesso em 26 de out. de 2020.

BRASIL. Constituição da República do Brasil de 1988. Disponível


em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 26 de out. de 2020.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2019/lei/L13840.htm. Acesso em:26 de out. de 2020.

CABRAL. Érico de Pina. A autonomia no direito privado. Revistas


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FEDERAL AO
PROJETO DE LEI Nº 3.657-B, DE 1989, que "dispõe sobre a
extinçãoprogressiva dos manicômios e sua
substituição por outros recursosassistenciais e
regulamenta a internação psiquiátrica compulsória". Disponívelem:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jses
sionid=B6B594
B8FDF2FA566CBBFAA337013D71.proposicoesWebExterno1?codteor=

148
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família. Belo Horizonte: EdtoraD’Plácido, 2019. P. 43-49.

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Dispõe sobre o processo de obtenção de consentimento livre e
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Disponível em:
https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf. Acesso
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Jornadas deDireito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça.
Disponível em:
https://www.tjam.jus.br/images/2019/Saude/ENUNCIADOS_I_II_e_III
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TEIXEIRA, A. C.B. . Autonomia existencial. Revista Brasileira de Direito


Civil – RBDCivil, v.16, p. 75-104, 2018.

150
“THE LAST DANCE”20: BALANÇO DA COORDENAÇÃO DO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA DA FACULDADE
PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA ENTRE
SETEMBRO DE 2011 A MARÇO DE 2021.

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos,


ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o
horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe,
jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para
isso: para que eu não deixe de caminhar.
Eduardo Galeano

Cleberson Ferreira de Morais21

RESUMO
O presente artigo possui como tema central o Núcleo de Prática
Jurídica da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (NPJ-
FUPAC MARIANA) no período compreendido entre setembro de 2011
a março de 2021, no qual o autor foi coordenador desse importante
projeto de extensão. Trata-se, portanto, de um relato de experiência

20
“The last dance”, na tradução livre, a última dança, é uma expressão norte-
americana usada para eventos que marcam o fim. É o título original da série
documental coproduzida pela ESPN Films e Netflix baseado na carreira de
Michel Jordan, jogador de basquete profissional na NBA, com foco em sua
última (e vitoriosa) temporada na NBA, liga norte-americana de basquete.
No Brasil, essa minissérie-documentário recebeu o título de “arremesso
final”.
21
Mestrando em Direito, “Novos Direitos e Novos Sujeitos”, pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito Público pela
Universidade Cândido Mendes e Gestão de Políticas Públicas pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Direito e Administração
pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professor da Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana. Advogado. Coordenador do Núcleo de Prática
Jurídica da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana de setembro de
2011 a março de 2021.

151
no qual será feita uma digressão histórica do NPJ-FUPAC MARIANA,
apresentando as ações desenvolvidas e os dados empíricos que
permitem compreender e realizar um balanço do período. Devido ao
ineditismo da situação vivenciada pela migração das aulas presencias
para remotas, em 2020, ocasionado pela Pandemia da COVID-19, o
que também ocorreu na prática jurídica e no estágio
obrigatório/supervisionado, optou-se por apresentar, a parte, esse
período, ante as crises e desafios impostos, culminando em repensar,
reorganizar e reestruturar as ações e práticas jurídicas tendo como
norte ser o NPJ-FUPAC MARIANA o epicentro do ensino, pesquisa e
extensão do curso de Direito.

Palavras-chave: NPJ. Acesso à justiça. Extensão universitária. Direito.


FUPAC Mariana.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata-se de um relato de experiência deste


autor, motivo pelo qual, inclusive, será escrito em primeira pessoa,
como coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade
Antônio Carlos de Mariana (NPJ-FUPAC MARIANA), entre setembro
de 2011 a março de 2021.
Inicialmente, será realizada uma breve contextualização acerca
dos Núcleos de Práticas Jurídicas (NPJs), órgão obrigatório dos cursos
de Direito e ambiente no qual são desenvolvidas e coordenadas
atividades práticas relacionadas ao curso de Direito. Em âmbito
interno, há uma imposição para que a própria Instituição de Ensino
Superior (IES) oferte atividades de prática jurídica, permitindo a
formação profissional das(os) alunas(os), concomitantemente, com a
prestação de serviços de assistência jurídica à população carente.

152
Paralelamente, em âmbito externo, faculta-se a IES, a coordenação de
atividades de práticas jurídicas de suas(seus) discentes em Instituições
Conveniadas, sejam elas públicas ou privadas.
Após a contextualização da normatização e do essencial papel
dos NPJs, será realizada uma reflexão do NPJ-FUPAC MARIANA,
partindo-se de uma digressão histórica e apresentação de dados
empíricos e atividades desenvolvidas ao longo dos 10 (dez) aos de
existência. Optou-se por dividir em dois momentos: o primeiro
momento, trata da prática jurídica presencial desenvolvida entre os
anos de 2011 a 2019; já, o segundo momento, aborda o desafio de
adaptar e realizar as atividades prática jurídica no ano de 2020,
devido a Pandemia da COVID-19.
Convido a todas e todos para a minha “última dança” no NPJ-
FUPAC MARIANA!

NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA: EPICENTRO DO ENSINO,


PESQUISA E EXTENSÃO NOS CURSOS DE DIREITO
A Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2018 do Ministério
da Educação instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Direito e daí outras providências. Já, em seu artigo 2º,
ao tratar do Projeto Pedagógico do Curso (PPC), assevera, dentre
outros pontos, a necessidade de constar “as competências,
habilidades e os conteúdos curriculares básicos, exigíveis para uma
adequada formação teórica, profissional e prática” (inciso II), bem
como “a prática jurídica” (inciso III) (MEC, 2018).
Mais que isso, o § 1º do referido artigo 2º, ao elencar os
elementos estruturais do PPC, explicita a essencialidade da prática
jurídica e dos NPJs, no inciso X: “concepção e composição das
atividades de prática jurídica, suas diferentes formas e condições de
realização, bem como a forma de implantação e a estrutura do

153
Núcleo de Práticas Jurídicas (NPJ)” (MEC, 2018). Enquanto, o artigo 6º
é dedicado a prática jurídica, sua obrigatoriedade, indispensabilidade,
estruturação e operacionalização:

Art. 6º A Prática Jurídica é componente curricular obrigatório,


indispensável à consolidação dos desempenhos profissionais
desejados, inerentes ao perfil do formando, devendo cada
instituição, por seus colegiados próprios, aprovar o
correspondente regulamento, com suas diferentes
modalidades de operacionalização.
§ 1º É obrigatória a existência, em todas as IES que oferecem
o curso de Direito, de um Núcleo de Práticas Jurídicas,
ambiente em que se desenvolvem e são coordenadas as
atividades de prática jurídica do curso (MEC, 2018).

É certo que o NPJ, de existência obrigatória nos cursos de


Direito, possui centralidade no planejamento, implantação,
desenvolvimento e coordenação das atividades práticas, até mesmo
por ter sua existência obrigatória (§ 1º, art. 6º, da Resolução nº 5, de
2018). Logo, tanto no âmbito interno,

§ 2º As IES deverão oferecer atividades de prática jurídica na


própria instituição, por meio de atividades de formação
profissional e serviços de assistência jurídica sob sua
responsabilidade, por ela organizados, desenvolvidos e
implantados, que deverão estar estruturados e
operacionalizados de acordo com regulamentação própria,
aprovada pelo seu órgão colegiado competente (MEC, 2018).

Quanto externo, através de convênios e parcerias com


instituições públicas e privadas de atividades prático-profissionais (§

154
3º, art. 6º, da Resolução nº 5, de 2018),

§ 3º A Prática Jurídica de que trata esse artigo deverá ser


coordenada pelo Núcleo de Práticas Jurídicas, podendo ser
realizada, além de na própria Instituição de Educação
Superior:
I - em departamentos jurídicos de empresas públicas e
privadas;
II - nos órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da
Defensoria Pública e das Procuradorias e demais
departamentos jurídicos oficiais;
III - em escritórios e serviços de advocacia e consultorias
jurídicas (MEC, 2018).

Destaca-se o papel catalizador do NPJ ao unir o ensino, a


pesquisa e a extensão, sendo, muitas vezes, o primeiro contato
das(os) discentes com a aplicação prática do conhecimento teórico-
jurídico adquirido ao longo da graduação, além de prestar essencial
contribuição de acesso a justiça à população carente, cumprindo
relevante papel social.

Presta-se o NPJ, assim, no seu modelo de articulação de


teoria e prática, a sustentar um sistema permanente de
ampliação do acesso à justiça, abrindo-se a temas e
problemas críticos da atualidade, dando-se conta ao mesmo
tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos
institutos jurídicos para indicar novas alternativas para sua
utilização (SOUSA JÚNIOR, 2008, p. 218).

Em 2008, José Geraldo de Sousa Júnior alertava para a


proliferação de cursos de Direito no Brasil e consequentemente de
NPJs, que, sob um prisma otimista, levava a uma multiplicação de
155
experiências emancipatórias.

Por mais desiguais que sejam as formas de implementação


dos Núcleos de Prática Jurídica nas faculdades de Direito, a
expansão dos cursos atualmente superando a casa de 1.000,
acabou proporcionando um número significativo de
experiências exemplares que vêm balizando uma nova cultura
de responsabilidade social nas faculdades de Direito (SOUZA
JÚNIOR, 2008, p. 216).

Portanto, são “os Núcleos de Prática Jurídica (NPJ), epicentro


do ensino, pesquisa e extensão das faculdades de Direito” (OLIVEIRA,
MORAIS, 2015, p. 13). A seguir apresenta-se dados empíricos e um
relato de experiência prossegue com foco na coordenação do Núcleo
de Prática Jurídica do curso de Direito da Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana (NPJ-FUPAC MARIANA).

O Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Presidente Antônio


Carlos de Mariana: reflexões da prática jurídica presencial a partir
da coordenação no ciclo 2011-2019

O Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade Presidente Antônio


Carlos de Mariana (NPJ-FUPAC MARIANA) foi criado no segundo
semestre de 2010, como consequência da oferta do curso de Direito,
autorizado em 06 de agosto de 2007, pela referida Instituição de
Ensino Superior (IES).
O NPJ-FUPAC MARIANA dispõe de local próprio, dentro da
própria IES, com ampla estrutura, contendo livros para as consultas
das(os) alunas(os), computadores, impressora, telefone, salas para
atendimentos individuais de clientes e de reuniões, simulando um
verdadeiro escritório de advocacia.

156
157
158
A relevância desse projeto de extensão é seu cunho social,
haja vista o oferecimento de serviços advocatícios e de orientação
jurídica gratuita a comunidade carente do município de Mariana/MG,
garantindo assim o acesso à Justiça das(os) cidadãs(ãos). Além disso,
complementa a formação acadêmica das(os) alunas(os) do curso de
Direito, aproximando-os da prática profissional e possibilitando-lhes
o desenvolvimento de competências relacionadas às práticas
processuais e consensuais da área jurídica.
Desse modo, o NPJ-FUPAC MARIANA possui como objetivos a
prestação de assistência judiciária, sem ônus, à população em geral,
concomitantemente, com a garantia de aprendizado da prática
processual as(os) alunas(os) do curso de Direito. Trata-se de
verdadeira e efetiva utilização de metodologia ativa de aprendizagem
relacionando a teoria aprendida nas aulas à prática profissional real e
não apenas simulada.
Importante realizar uma digressão histórica antes de adentrar
nos dados empíricos do ciclo 2011-2021 em que coordenei o NPJ-
FUPAC MARIANA. Em seu início (2010), o NPJ-FUPAC MARIANA teve
como sua equipe fixa: a professora Camila Bottaro Sales, como
coordenadora; Cristiane Cota, como auxiliar administrativa; e,
Emerson de Freitas, como estagiário remunerado. Já, no ano de 2011,
159
Cristiane Cota foi realocada na secretaria da FUPAC-MARIANA, tendo
sido contratada para seu lugar, Claudinéia Aparecida da Silva22, bem
como em setembro de 2011, assumi a função de coordenador do
NPJ-FUPAC MARIANA.
Por agradecimento, necessário destacar que a oportunidade
de emprego surgiu de uma conversa informal no “balcão” do Juizado
Especial Cível da Comarca de Mariana com a aluna, hoje egressa e
advogada militante, Liliane Helal Calestini Dicenzo, motivando ao
envio do curriculum vitae para a IES.
Após entrevistas com a coordenação administrativa e
pedagógica, à época, nas pessoas dos professores Bruno Martins
Ferreira e Alan de Matos Jorge, respectivamente, surge a
oportunidade de assumir a coordenação de tão importante órgão
institucional, além de rever e reencontrar algumas(ns) ex-
professoras(es) do tempo da minha graduação em Direito na
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), como as professoras
Beatriz Schettini e Rita de Cássia Melo e os professores Raphael
Furtado Carminate e Fabiano César Rebuzzi Guzzo23.
O estagiário fixo permaneceu sendo Emerson de Freitas,

22
Na época, a atual coordenadora do NPJ-FUPAC MARIANA, auxiliar
administrativa e discente da IES, não possuía em seu registro de nascimento
o sobrenome “Maciel”. Tendo sido proposta ação de retificação de registro
civil com o patrocínio do NPJ-FUPAC MARIANA, julgada procedente para
incluir o sobrenome. Essa situação, por si só, ilustra a íntima relação que se
desenvolveu entre o NPJ-FUPAC MARIANA e os demais sujeitos envolvidos
com a IES: direção, coordenação, corpo docente, discente e administrativo e
a comunidade em geral. Aproveito a oportunidade e lhe desejo sorte na sua
nova empreitada profissional.
23
Em uma feliz e curiosa coincidência, essas(es) professoras(es) haviam sido
minhas(meus) orientadoras(es) durante o estágio que realizei no Núcleo de
Assistência Jurídica e Laboratório Jurídico da Universidade Federal de Ouro
Preto (NAJOP-UFOP) na graduação em Direito.

160
atualmente, advogado militante na região dos inconfidentes. Para
registro, interessante citar e nominar as(os) estagiárias(os)
fixos/remunerados que se sucederam, com suas atuais atribuições
profissionais: Tiago Francisco Santana, Tabelião concursado do
Cartório de Registro Civil e Notas de Divinésia/MG; Arlinda Gonçalves
Coelho, Secretaria Municipal de Administração; Ana Flávia Delgado
Oliveira, colega de docência na FUPAC MARIANA e advogada; Cícero
de Assis Figueiredo, advogado e servidor público concursado do
município de Ouro Preto/MG; Elione de Jesus Gomes Costa,
advogada; Alexsandra Matilde Resende Rosa, advogada; Daiane
Estevam Santos, empregada de uma sociedade empresária; Emanuelle
Cerceaux Gomes, atuando em escritório de advocacia; e, Daniel Filipe
da Silva, atual estagiário remunerado.

Igualmente, passaram outras centenas de estagiárias e


estagiários, não remunerados (voluntários), os quais seria impossível
nominar em sua totalidade, que fizeram o estágio supervisionado,
exclusivamente, seja no NPJ-FUPAC MARIANA, como em outras
161
Instituições Conveniadas (TJ/MG, MPMG, PCMG, Escritórios de
Advocacia, Fundação Renova, Cartórios, Departamento Jurídico de
Empresas, Sindicatos, dentre outras entidades públicas e privadas).
Outras(os) estagiárias(os) fizeram de forma híbrida, parte no NPJ-
FUPAC MARIANA e parte em Instituições Conveniadas.
A todas e todos, a certeza de que o desenvolvimento das
atividades do NPJ-FUPAC MARIANA não seria possível sem a
contribuição de cada um, o “brilho nos olhos”, a “gana”, o “tesão” de
cada dia de trabalho durante a coordenação se dava pelo
aprendizado mútuo e constante, as reflexões, as ideias, as conversas,
as provocações, os risos, as broncas, o cafezinho, os lanches, as
críticas construtivas... Acima de tudo, a convicção de ser o NPJ-FUPAC
MARIANA um projeto inacabado, em permanente mutação e
aprimoramento, para melhor atender a população carente de
Mariana, em dialogicidade de ensinar e aprender. Como
magnificamente ensinou Paulo Freire, patrono da educação brasileira:

Nenhum tema mais adequado para constituir-se em objeto


desta primeira carta a quem ousa ensinar do que a
significação crítica desse ato, assim como a significação
igualmente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem
aprender e com isto eu quero dizer mais do que diria se
dissesse que o ato de ensinar exige a existência de quem
ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e
aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina
aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento
antes aprendido e, de outro, porque, observado a maneira
como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para
apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o
ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos
(FREIRE, 2001, P. 259).

162
A seguir apresentarei alguns dados referentes ao período
compreendido entre 2010 e 2019, optei por desconsiderar os dados
obtidos no ano de 2020, os quais serão apresentados de forma
separada, devido a atipicidade ocasionada pela Pandemia da COVID-
19 e a migração das aulas e atividades acadêmicas de presenciais
para o formato remoto.
Durante o período de 2010 a 2019 foram agendados 735
atendimentos, conforme aponta o gráfico 1 abaixo.

Gráfico 1 – Atendimentos agendados

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Importante salientar que os atendimentos do NPJ-FUPAC


MARIANA podem se dar como orientações e consultoria jurídica, que
podem ou não se transformar em ações judiciais. O histórico de ações
ajuizados, 371 processos24, pode ser visto no gráfico 2 abaixo:

24
Esse dado diz respeito tão somente a processos que tiveram o
atendimento inicial no NPJ-FUPAC MARIANA e se transformaram em ações
judiciais. Logo, não foram considerados os processos em que o NPJ-FUPAC
163
Gráfico 2 – Ações ajuizadas

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Há por parte de toda a comunidade acadêmica da FUPAC


MARIANA um esforço contínuo para inserção de uma cultura de
pacificação na comunidade, incentivando que as pessoas atendidas
busquem resolver seus próprios conflitos sem a necessidade do
Poder Judiciário. Mais que isso, a atuação nos casos atendidos
(gráfico 1) pode se dar de forma litigiosa ou consensual, como pode
se verificar no gráfico 3 abaixo.

MARIANA atuou devido a desarquivamento, substabelecimento ou


nomeações.
164
Gráfico 3 – Tipo de demanda ajuizadas

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Acerca dos métodos de autocomposição de conflitos25, cabe


destacar o convênio firmado com o Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, desde 2010, existindo assim um Juizado Informal de
Conciliação nas dependências do NPJ-FUPAC MARIANA. O gráfico
acima demonstra um pico das demandas consensuais em 2016, o que
pode ser reflexo da parceria com a Associação Comercial, Industrial e
Agropecuária de Mariana (ACIAM), para criação do Posto Avançado
de Conciliação Extraprocessual (PACE) e a qualificação da nossa
equipe fixa como conciliadoras(es) no segundo semestre de 2015.

25
Para maiores informações sobre a conciliação no NPJ-FUPAC MARIANA
sugere-se a leitura de: OLIVEIRA, Ana Flávia Delgado; MORAIS, Cleberson
Ferreira de. CONCILIAÇÃO EXTRAJUDICIAL COMO FERRAMENTA DE ACESSO
À JUSTIÇA: A EXPERIÊNCIA DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA DA
FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA. In: Fundação
Presidente Antônio Carlos de Mariana. (Org.). Direito em Pauta. 1ed. Mariana:
FUPAC-MARIANA, 2015, v. 1, p. 2-20
165
Registro o papel fundamental de nossa egressa, Andreza Regina
Lucas, entusiasta da proposta, da qualificação e da efetividade da
parceria.
As demandas do NPJ-FUPAC MARIANA são da área cível,
sendo as três principais ações: divórcio, alimentos e cumprimento de
sentença/execução de alimentos. Observe o gráfico 4 abaixo:

Gráfico 4 – Características (assunto) dos processos judiciais

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

As pessoas atendidas no NPJ-FUPAC MARIANA, em sua quase


esmagadora maioria são residentes do município de Mariana, Minas
Gerais, cidade na qual está sediada a IES. Todavia, excepcionalmente,
a depender do caso concreto, para garantir acesso à justiça, são
atendidas pessoas de cidades mineiras vizinhas, como Ouro Preto e
Diogo de Vasconcelos.

166
Gráfico 5 – O domicílio das pessoas atendidas

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

No município de Mariana é possível identificar a localidade de


residência das pessoas atendidas, se nos bairros da sede do município
ou nos seus distritos, o que se justifica devido a vasta extensão
territorial de Mariana/MG e, também, para entender o público alvo
atendido, permitindo a adoção de estratégias e ações do NPJ-FUPAC
MARIANA, isoladamente ou em conjunto com outros órgãos do
sistema de justiça para garantir o acesso à justiça da população
vulnerável.

167
Gráfico 6 – Localidade das pessoas atendidas dentro do município
de Mariana

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Há uma grande diversidade nos bairros das pessoas atendidas,


inclusive, com variações a depender do ano. De todo modo,
predominam pessoas atendidas e residentes nos bairros Cabanas, São
Cristóvão, Colina, Rosário e Santa Rita de Cássia. Esses números
podem ser justificados: a um, pela proximidade, o NPJ-FUPAC
MARIANA é localizado na sede da IES no bairro São Cristóvão, sendo
próximos a este, os bairros Colina (São Sebastião) e Rosário; a dois,
pelo tamanho da população dos bairros Cabanas e São Cristóvão, que
juntamente com outros bairros são conhecidos como “cidade alta”, e
abrigam grande contingente populacional, inclusive, de pessoas em
situação de vulnerabilidade, com menor acesso a aparatos
institucionais e condições de se valer do auxílio jurídico da advocacia
particular/privada.
Igualmente, no que tange aos distritos encontra-se
168
pluralidade das localidades, contudo, se destacam as pessoas
atendidas e residentes nos distritos de Passagem de Mariana e Santa
Rita Durão.
A questão de gênero e a grande procura de mulheres acerca
dos serviços jurídicos ofertados pelo NPJ-FUPAC MARIANA sempre
chamou atenção, o que motivou, a partir de 2016, a mensurar esse
relevante dado como forma de se pensar em possíveis projetos e
pesquisas atinentes a essa temática, além de permitir adoção de
ações específicas para melhor atendimento da população carente,
usuária dos nossos serviços.

Gráfico 7 – O gênero das pessoas atendidas

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Os dados empíricos acima apresentados, por si só, expressam


a pujança da atuação jurídica, oportunizando aprendizagem ativa
das(os) discentes, ao mesmo tempo que prova a relevância do NPJ-
FUPAC MARIANA para a comunidade.

169
Além disso, o NPJ-FUPAC MARIANA promoveu inúmeras
visitas técnicas a entidades públicas e privadas no intuito de
intensificar a cooperação com a IES e despertar nas(os) alunas(os) o
interesse por diversas áreas do universo jurídico, conhecer e vivenciar
o cotidiano dessas instituições, de modo a promover uma formação
reflexiva e crítica do Direito, aproximando a teoria da prática forense.
Durante a minha gestão a frente do NPJ-FUPAC MARIANA,
ocorreram visitas a diversas instituições, como:

CAMINAS – Câmara Mineira de Arbitragem Empresarial: A visita a


CAMINAS possui como objetivo precípuo esclarecer sobre a
importância dos métodos alternativos de solução do litígio, bem
como fomentar o interesse dos alunos pela temática e reunir esforços
na busca pela pacificação social.

SUAPI – Subsecretaria de Administração Prisional / Unidade

170
Mariana: A visita a Unidade Prisional teve como escopo apresentar o
sistema prisional da região, juntamente com sua estrutura e seu
funcionamento, com intuito de aproximar o aluno da realidade
cotidiana do cárcere e suas implicações jurídicas, políticas e sociais.

TRT 3ª Região – Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região: O


propósito da visita foi conhecer a Justiça do Trabalho, sua estrutura e
seu funcionamento, esclarecendo sobre os procedimentos jurídicos
adotados nesse ramo do Direito e aproximando o contato dos alunos
com a prática forense laboral.

171
IML/MG – Instituto Médico Legal de Minas Gerais: A visita teve o
intuito de apresentar um ambiente prático diferenciado de
implicações jurídicas diversas, complementando o ensino de sala de
aula e proporcionando aos alunos um amplo conhecimento da
estrutura e do funcionamento dessa instituição.

172
TJ/MG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais: A visita se deu no
âmbito do Programa Conhecendo o Judiciário do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais cujo objetivo é promover a aproximação e
comunicação com a sociedade, informando, de forma simples e
acessível, sobre a estrutura e o funcionamento do Judiciário Estadual.

173
APAC – Associação de Proteção e Assistência ao Condenado: Na
visita buscou-se conhecer uma alternativa ao sistema prisional
tradicional, sua estrutura e seu funcionamento e dar os devidos
esclarecimentos sobre os procedimentos adotados, promovendo um
campo de experiências e vivências da realidade cotidiana do cárcere e
suas implicações jurídicas, políticas e sociais.

174
Nesse contexto, o NPJ-FUPAC MARIANA pode ser
considerados o epicentro do ensino, pesquisa e extensão do curso de
Direito, tendo assumido um caráter emancipador, qualificando
profissionais e atendendo a população carente, e, com isso,
colaborando para a consolidação da cidadania, o acesso à Justiça e a
transformação social essencial ao Estado Democrático de Direito.
2.2. A Pandemia da COVID-19 e a necessária metamorfose do Núcleo
de Prática Jurídica da Faculdade Presidente Antônio Carlos de
Mariana
Em 2020, as aulas iniciaram presenciais e havia um
planejamento das atividades de estágio com foco especial na
capacitação inicial das(os) alunas(os), “calouras(os)”, do 7º período
que iniciavam o estágio obrigatório em interação com as(os) demais
colegas, “veteranas(os)”, do 8º e 9º períodos que caminhavam para a
conclusão do curso no fim do ano. Buscava-se atividades interativas e
simultâneas, divididas entre a sala de aula e dentro do NPJ-FUPAC
MARIANA, e após a troca de experiências entre as(os) discentes, bem
como a realização de atividades simuladas. Algumas dessas atividades
aconteceram presencialmente, como pode-se observar das fotos
abaixo.

175
176
Outrossim, tentava-se trazer egressos para relatar
experiências, tanto do período acadêmico, quanto profissional, pós
conclusão do curso. Assim, tivemos a participação da nossa egressa e
ex-estagiária remunerada do NPJ-FUPAC MARIANA, Elione de Jesus
Gomes Costa.

177
178
Já, em março de 2020, devido a necessidade de restrições de
circulação e contato social ocasionados pela pandemia do COVID-19,
as aulas e atividades escolares presenciais foram suspensas. Em Minas
Gerais, ante um cenário de incertezas seja quanto a suspensão, como
o período da suspensão, o Sindicato dos Professores do Estado de
Minas Gerais (SINPROMG), no Dissídio Coletivo, processo 0010443-
06.2020.5.03.0000, obteve liminar perante ao Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região (TRT 3ª Região) ara suspensão das aulas
presenciais.
Já, no plano nacional, o Ministério da Educação (MEC),
publicou, em 17 março de 2020, a Portaria nº 343 (e posteriormente
as Portarias nº 345 e 395), que “dispõe sobre a substituição das aulas
presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de
pandemia do Novo Coronavírus – COVID-19” (MEC, 2020).
Essa migração trouxe inúmeros desafios para toda a
comunidade acadêmica, inicialmente, acerca da escolha entre
suspender as aulas presenciais ou migrá-las para o formato remoto,
se valendo dos meios digitais disponíveis. Posteriormente, sobre as
escolhas pelo meio digital escolhido, se aulas seriam síncronas ou
assíncronas, a defasagem tecnológica dos equipamentos e da internet
disponível, como adaptar e manter a qualidade do ensino, a formação

179
docente, dentre outras inquietações correlatas.
Izabela Maurício de Rezende indaga e pontua:

O que vamos perder e o que vamos ganhar com o


distanciamento da sala de aula presencial? Como é possível
preparar os professores e os alunos para esse momento? E a
solidão de falar para uma tela? E a solidão de aprender com
uma tela? Sendo a educação um direito de todos, como fazer
para que o ERE não amplie ainda mais o abismo educacional
e socioeconômico que existe em nosso país, excluindo cada
vez mais as minorias (que na verdade são maioria) e
corroborando a política histórica dos privilégios? É preciso
ressignificar o processo de ensino-aprendizagem, conseguir
visualizar oportunidades nos desafios e pensar primeiro que
atrás de todo processo educativo estão pessoas, e ele só
existe para, com e pelos sujeitos para os quais se destina a
educação (REZENDE, 2020, p. 4)
Enfim, houve um acelerado processo de “virtualização da
educação”, como bem pontuou Ângelo Antônio Puzipe e Alessandro
Ferreira de Roma:

A pandemia abreviou, para todo o território nacional e para


as diferentes classes sociais, o processo de virtualização da
educação, movimento que transpõe para a dimensão virtual
práticas e metodologias desenvolvidas e enraizadas em
contextos analógicos e copresenciais. Essa condição impõe à
sociedade e ao Estado a necessidade de acelerar a construção
da infraestrutura digital e a adaptação de recursos
pedagógicos, de sorte a implementar a modalidade
educacional a distância com eficiência (PAPIM, ROMA, 2021).

Assim, os desafios ocasionados pela Pandemia da COVID-19


se mostraram inúmeros para todas as áreas do ensino, entretanto,
merece destaque a peculiar situação das “práticas profissionais de

180
estágio e laboratórios” que, no início da pandemia, foram vedadas a
substituição das atividades presenciais por meios digitais, nos termos
do § 3º, art. 1º da Portaria nº 343:

Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das


disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem
meios e tecnologias de informação e comunicação, nos
limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição
de educação superior integrante do sistema federal de
ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de
dezembro de 2017.
[...]
§ 3º Fica vedada a aplicação da substituição de que trata o
caput aos cursos de Medicina bem como às práticas
profissionais de estágios e de laboratório dos demais cursos
(MEC, 2020).

Desse modo, em um primeiro momento, retornaram as aulas


teóricas, mas não as atividades práticas. Devido ao flagrante prejuízo
da medida adotada pelo MEC, conversas foram mantidas entre
direção, coordenação e demais membros do corpo docente, ciente da
peculiariedade do momento, porém, convicto da possibilidade de
migração e ampliação das práticas jurídicas também para o ambiente
remoto, algumas tentativas “piloto”, via Portal Universitário –
Blackboard.
Com o passar do tempo não era mais possível permanecer
inerte26, o NPJ-FUPAC MARIANA retornou “remoto”. Até mesmo

26
Se não podíamos nos reunir presencialmente no NPJ-FUPAC MARIANA,
seja pela distância ou pelas restrições impostas, nos valemos das
dependências (seguindo todos os protocolos para minimizar os riscos de
contágio!), do meu escritório MCB Advogados Associados para reuniões de
181
porque o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que inicialmente,
suspendeu todos os prazos dos processos judiciais, aos poucos foi
retornando as atividades, com o retorno da tramitação dos processos
eletrônicos (PJe) e depois permitindo a virtualização dos processos
físicos passando-os para o meio eletrônico. Outras Instituições
Conveniadas também retornavam, com algumas e necessárias
restrições, e o estágio era retomado por parte do corpo discente.
Além disso, demandas reais foram surgindo e estávamos
impossibilitados de atender a população carente. Ora, a manutenção
da suspensão do NPJ-FUPAC MARIANA causava prejuízo a população
carente, atuais e futuras(os) assistidas(os)/clientes, quanto das(os)
alunas(os) que faziam estágio exclusivamente na IES.
Por reconhecimento e agradecimento, destaco o frutífero
diálogo que estabeleci com o professor e coordenador acadêmico da
FUPAC MARIANA, também professor e integrante do NAJOP-UFOP,
Fabiano César Rebuzzi Guzzo; a professora e coordenadora do
NAJOP-UFOP, Juliana Evangelista de Almeida; e, o professor das
FUPAC MARIANA e ITABIRITO, coordenador do NPJ desta, Raphael
Furtado Carminate, no intuito de compreender o cenário das práticas
jurídicas, conversas sobre as experiências e possíveis ações a serem
adotadas. Uma tentativa incipiente, mas promissora, de se estabelecer
uma “rede de NPJs da região dos inconfidentes”. Destarte, houve a
participação em eventos on-line sobre a questão do estágio, por
exemplo, da Comissão de Educação Jurídica da OAB/MG e do
SEMESP.
Em 28 de abril de 2020, o Conselho Nacional de Educação
(CNE), vinculado ao Ministério da Educação, aprova o Parecer nº 5

equipe (Cleberson, Claudinéia e Daniel) e/ou audiências por


videoconferência acompanhados de clientes.

182
CNE/CP, tendo como assunto a “Reorganização do Calendário Escolar
e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins
de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da
Pandemia da COVID-19” (CNE, 2020). No que diz respeito as
atividades práticas, estágio ou extensão no Ensino Superior pontuou-
se

Quanto às atividades práticas, estágios ou extensão, estão


vivamente relacionadas ao aprendizado e muitas vezes
localizadas nos períodos finais dos cursos. Se o conjunto do
aprendizado do curso não permite aulas ou atividades
presenciais, seria de se esperar que, aos estudantes em fase
de estágio, ou de práticas didáticas, fosse proporcionada,
nesse período excepcional da pandemia, uma forma
adequada de cumpri-lo a distância (CNE, 2020).

Prossegue ao tratar dos cursos de licenciatura e formação de


professores:

Além de viabilizar a realização das atividades práticas dos


estágios obrigatórios, garantindo a possibilidade de terminalidade do
ensino superior no tempo de integralização do curso, o projeto
proposto neste documento, pautado em atividades de extensão,
contribui diretamente para:

• metodologias e estratégias de ensino aprendizagem;


• formação e capacitação docente;
• educação em direitos humanos;
• educação ambiental e sustentabilidade;
• desenvolvimento humano;
• educação em saúde;

183
• organizar ações de responsabilidade social imprescindíveis
neste momento de prevenção propagação da COVID-19;
• estimular os acadêmicos matriculados na disciplina de
estágio obrigatório nos cursos de bacharelado, licenciatura,
segunda licenciatura e formação pedagógica a elaborar
materiais digitais;
• fomentar a participação de acadêmicos como protagonistas
no planejamento e avaliação das atividades extensionistas;
• aplicar o conhecimento acadêmico para o benefício da
comunidade; e
• colaborar com ações preventivas propagação da COVID-19.
Pode-se transportar essa iniciativa para cursos nas áreas
de ciências sociais aplicadas, entre outras, cujas ações e
estratégias foram definidas pela MP nº 934/2020 (CNE, 2020)
(GRIFO NOSSO).

Portanto, houve respaldo do CNE para a migração das


atividades práticas e de estágio para os cursos de Direito, que
recomendou no Parecer nº 5 CNE/CP:

[...]
• Adotar atividades não presenciais de práticas e estágios,
especialmente aos cursos de licenciatura e formação de
professores, extensíveis aos cursos de ciências sociais
aplicadas e, onde couber, de outras áreas, informando e
enviando à SERES ou ao órgão de regulação do sistema de
ensino ao qual a IES está vinculada, os cursos, disciplinas,
etapas, metodologias adotadas, recursos de infraestrutura
tecnológica disponíveis às interações práticas ou laboratoriais
a distância;
[...]

184
• supervisionar estágios e práticas profissionais na exata
medida das possibilidades de ferramentas disponíveis;
[...]
Desta feita, devido a necessidade de restrições de circulação e
contato social ocasionados pela pandemia do COVID-19, as
atividades e atendimentos presenciais foram suspensas, entretanto, o
NPJ-FUPAC MARIANA se adaptou e os estagiários passaram a
atender, sob a supervisão do coordenador, professor e advogada(o), a
população de forma remota, com preenchimento de formulário on-
line (Google Forms).
Nesse formulário eram feitas perguntas como: nome
completo, o gênero, o contato telefônico, a existência do aplicativo
Whatsapp, os números dos documentos pessoais, o município de
residência, a quantidade de pessoas pertencentes ao núcleo familiar,
a renda familiar, o assunto jurídico a ser atendido, o processo em
andamento, caso existente, o nome e demais dados da parte adversa
e, por fim, o relato da situação a ser atendida permitindo uma
triagem e organização do atendimento.
O retorno às pessoas carentes, que não possuem condições de
contratar advogado particular, foram realizados por e-mail e/ou
contato telefônico cadastrado nos formulários on-line, bem como, os
atendimentos e/ou conciliações foram realizadas através de
videoconferências pelo Portal Universitário – Blackboard, utilizado
pela IES.
Abaixo apresento, em forma de gráficos, as principais
características das 30 (trinta) pessoas atendidas no ano de 2020,
durante a Pandemia da COVID-19. O gráfico 8, abaixo, apresenta a
distinção pelo gênero das pessoas atendidas, na qual, matem-se o
histórico de predominância do gênero feminino com 73%, ante a
minoria de 17% pessoas do gênero masculino.

185
Gráfico 8 – O gênero das pessoas atendidas de forma remota em
2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Em relação a localidade, 94% das pessoas atendidas são


residentes de Mariana. Além disso, houveram atendimentos de
moradoras(es) de municípios vizinhos: Ouro Preto/MG (3%) e Diogo
de Vasconcelos (3%), visto que a competência da ação era a Comarca
de Mariana.

186
Gráfico 9 – O domicílio das pessoas atendidas de forma remota
em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

As pessoas atendidas que residem em Mariana/MG são


oriundas de diversas localidades, sendo: 86% dos bairros e 14% dos
distritos. Há uma grande variedade acerca das localidades, as
principais são: Rosário, 18%; Cabanas e Colina, 11% cada; Estrela do
Sul, São José (Chácara) e Vale Verde, 7% cada uma. As demais
localidades perfazem 39%.

187
Gráfico 10 – Localidade das pessoas atendidas de forma remota
em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Gráfico 11 – Principais bairros marianenses das pessoas atendidas


de forma remota em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

188
Durante as reuniões da equipe fixa do NPJ-FUPAC MARIANA por
ocasião da formulação das perguntas, julgou-se pertinente indagar a
renda das pessoas que pleiteavam atendimento, por faixas de renda
familiar. Isto porque os atendimentos são voltados para a população
carente, que não consegue arcar com a contratação de advogados
particular sem por em risco o seu próprio sustento ou de sua família.

Gráfico 12 – A renda familiar das pessoas atendidas de forma


remota em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Chama atenção que a maioria das pessoas que procuraram


atendimento eram novas(os) clientes (67%), apenas 33% das pessoas
atendidas já haviam sido clientes do NPJ-FUPAC MARIANA, como
atesta o gráfico 13.

189
Gráfico 13 – Vínculo anterior com o NPJ das pessoas atendidas de
forma remota em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Por fim, em relação ao assunto, o tipo da demanda, as maiores


incidências de assuntos são: divórcio, 27%; alimentos, 20%;
cumprimento de sentença, inclusive de alimentos, 20%; e, alvará
judicial, 7%. As demais ações, sempre de natureza cível, totalizam
26%.

190
Gráfico 14 – Características (assunto) das demandas das pessoas
atendidas de forma remota em 2020

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de documentos,


banners e planilhas de controle do NPJ-FUPAC MARIANA.

Para além dos dados acima apresentados, o ambiente remoto,


apesar das inúmeras dificuldades, seja com a (baixa) qualidade da
internet, a precariedade dos equipamentos tecnológicos (celular,
notebook, computador, microfone, câmera, etc.), a dificuldade de
acesso aos meios digitais, o receio e timidez de participar de uma
sessão gravada, etc., também permitiu novas oportunidades de
atividades e ações baseadas em metodologias ativas.
A participação das(os) alunas(os) aumentou, o contato com o
PJe se intensificou, até mesmo porque alguns processos físicos foram
“virtualizados”, práticas simuladas de atendimento por
videoconferência foram realizadas com sucesso e, principalmente,
uma integração entre as disciplinas e professoras(es) com eventos,
aulas e atividades colaborativas.
Sempre com a inestimável colaboração de Claudinéia

191
Aparecida Maciel da Silva, à época assessora jurídica e hoje
coordenadora do NPJ-FUPAC MARIANA, e Daniel Filipe da Silva,
estagiário fixo/remunerado, foram discutidos temas como a prática
cartorial, com a presença do egresso Tiago Francisco Santana;
perspectivas da advocacia durante a após a pandemia, com a
participação de vários colegas docentes, Fabiano César Rebuzzi
Guzzo, Israel Quirino, Carlos Randel Crepalde Mafra; cuidados com a
saúde mental, com a participação da psicóloga da IES, Viviane
Linhares Vale; possibilidades de ampliação das práticas de
autocomposição na IES, com a professora Ana Flávia Delgado Oliveira
e participações especialíssimas dos professores Israel Quirino, Magna
das Graças Campos e Raphael Furtado Carminate; análise de
processos da seara trabalhista, com as docentes Rita de Cássia Melo e
Michele Aparecida Gomes Guimarães, dentre outras atividades,
presenças e participações correlatas.
Cumpre, ainda, registrar que temas importantes como o
racismo, objeto de trabalho colaborativo, idealizado pela professora
Magna das Graças Campos, e que participei juntamente com o
professor René Armand Dentz Júnior, na turma do 1º período,
englobando as disciplinas Leitura e Produção de Textos, Métodos
para a Normatização de Trabalhos Acadêmicos, Filosofia e
Antropologia e Fundamentos da Sociologia, foram levados para
serem discutidos “na prática” com as discentes dos 7º ao 10º período,
através de uma pesquisa jurisprudencial sobre o assunto. Tal situação
demonstra a transversalidade do tema e a oportunidade de
interlocução entre as disciplinas e turmas no curso de Direito.

192
Múltiplas possibilidades de interação e práticas jurídicas pela tela do
computador, do notebook, do celular, do tablet...

193
194
195
196
Enfim, o NPJ-FUPAC MARIANA durante o duro e difícil período
de Pandemia da COVID-19 continuou, com as dificuldades inerentes
ao momento histórico, desenvolvendo as atividades de prática
jurídica, atendendo remotamente a população carente e, entre
tentativas, acertos e erros, propiciando atividades de qualificação
profissional as(aos) alunas(os).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os Núcleos de Prática Jurídicas possuem papel central na


formação profissional do corpo discente ao propiciar a aproximação
entre teoria e prática, ao mesmo tempo em que o cunho social de

197
oferta serviços jurídicos, de orientação, de atendimentos e
ajuizamento de ações e colaborando para a busca de resoluções
consensuais através dos métodos adequados de resolução de
conflitos.
O NPJ-FUPAC MARIANA se destaca como projeto
extensionista na medida em que,

A extensão universitária constitui-se como a oportunidade do


saber científico desenvolver-se com sua abertura para a
sabedoria criada e posta em prática na dinâmica social. Na
medida em que se realiza a extensão universitária, sobretudo
voltada para a cidadania e para os direitos humanos, a
sociedade ganha por desenvolver processos de autonomia na
sua luta emancipatória, e a Universidade ganha na medida em
que aprende com a comunidade suas formas de realização da
justiça social (COSTA, 2008, p. 35)

Mais que isto, como bem pontua o professor Alexandre


Bernadino Costa (2008, p. 41): “o surgimento de novas necessidades
faz nascer novos direitos e novas formas de conhecê-lo, novas
disciplinas. Ao mesmo tempo, se exige um conhecimento cada vez
mais amplo, transdiciplinar, para que possamos lidar com novos
problemas”.
E, problemas, dos mais variados tipos e assuntos, surgiram e
foram discutidos, pensados, fundamentados ao longo desses anos no
NPJ-FUPAC MARIANA, nem sempre logramos êxito em resolvê-los,
contudo, nunca faltou atenção a cada caso. E, sem falsa modéstia,
houveram muitas vitórias, muitas soluções... De tudo, a melhor
lembrança sempre será o agradecimento singelo das(os) clientes (nas
farmácias, nas praças, nos supermercados, nas feiras livres, na rua...) e
a ascensão profissional das(os) alunas(os) que por lá passaram.
Não há preço, contribuir efetivamente para a proteção e

198
garantia dos direitos das pessoas da comunidade na qual estamos
inseridos, somos partes e acima de tudo, pertencemos. Ver a
consagração do tão falado princípio da dignidade, na prática, nas
corriqueiras e cotidianas situações sociais das pessoas vulneráveis,
nas experiências concretas da vida “como ela é”. Como bem
asseveram Menelick de Carvalho Netto e Paulo Henrique Blair de
Oliveira:

A dignidade humana, como vimos, não é uma exigência


retórica e vazia, ao contrário, o seu conteúdo, conquanto
aberto, encontra-se plenamente alimentado e enriquecido
pelos desafios práticos e conceituais decorrentes das
experiências concretas e recorrentemente renovadas de sua
violação (CARVALLHO NETTO, OLIVEIRA, 2020, p. 109).

Pautado nas reflexões e ações concreta em torno do NPJ-


FUPAC MARIANA, conclui-se que, durante toda a minha gestão,
enquanto seu coordenador, optou-se pela construção coletiva e pelo
diálogo com todas(os), direção, coordenação, corpo docente, discente
e administrativo, pessoas atendidas, assistidas, clientes, parte adversa,
colegas advogadas(os) da diretora, serventuários, promotoras(es) e
juízas(es), certo do projeto emancipador e inacabado, aberto, em
constante construção e aprimoramento, um reduto prático e efetivo
de acolhimento... Como poeticamente nos ensinou Eduardo Galeano,
na utopia no horizonte, no sempre caminhar para a dignidade
humana e a cidadania.

199
REFERÊNCIAS

CARVALHO NETTO; Menelick; OLIVEIRA, Paulo Henrique Blair de.


Modernidade e Dignidade: a ressignificação do contrato de trabalho
no Estado Democrático de Direito. In: DELGADO, Gabriela Neves
Delgado (org.). Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século
XXI: principiologia, dimensões e interfaces no Estado Democrático de
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abril de 2020. Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade
de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento
da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19.
Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=dow
nload&alias=14511-pcp005-20&category_slud=marco-2020-
pdf&Itemid=30192. Acesso em 02 abr. 2021.

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FREIRE, Paulo. Carta de Paulo Freire aos professores. Estudos


Avançados, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 259-268, 2001. Disponível em:
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Resolução nº 5, de 17 de


dezembro de 2018. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Disponível
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rces005-18/file. Acesso em 23 mar. 2021.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Portaria nº 343, de 17 de março


200
de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas
em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo
Coronavírus - COVID-19. Disponível em:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-
marco-de-2020-248564376. Acesso em 23 mar. 2021.

OLIVEIRA, Ana Flávia Delgado; MORAIS, Cleberson Ferreira de Morais.


CONCILIAÇÃO EXTRAJUDICIAL COMO FERRAMENTA DE ACESSO À
JUSTIÇA: a experiência do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade
Presidente Antônio Carlos de Mariana. In: Fundação Presidente
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PAPIM, Ângelo Antônio Puzipe; ROMA, Alessandro Ferreira de (Orgs.).


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REZENDE, Izabela Maurício de. Os reflexos de um mundo que (quase)


parou por causa de um vírus e a reinvenção das instituições de ensino
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SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Universidade popular e educação


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Fonseca (org.). Cidadania e inclusão social: estudos em homenagem
à professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Belo Horizonte: Fórum,
2008. p. 203-230.

201
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL EM ÂMBITO
JURÍDICO E PSICANALÍTICO DURANTE A PANDEMIA DE
COVID-19
René Dentz27
Gabriela Gois28
Raquel Araújo3
Vivian Moreira4
RESUMO
Durante a pandemia do vírus SARS-COV2 (Covid-19), observou-se um
aumento da violência doméstica em face da necessidade dos
cônjuges realizarem suas tarefas laborais em casa e ao mesmo tempo
desdobrarem-se para uma boa convivência em família por um longo
período de quarentena. Este artigo aborda as causas, consequências e
possíveis formas de evitar o comportamento machista e pré-
concebido, conforme os preceitos do Direito e da Psicanálise.

Palavras-chave: Direito. Psicanálise. Violência doméstica. Pandemia.


Covid-19.

INTRODUÇÃO
Com o surgimento do Covid-19, a humanidade vem
enfrentando grandes desafios, dentre eles a busca pelo
autoconhecimento e a necessidade de se reinventar. O fato de estar

27
Pós-Doutor pela Freiburg Universität. Psicanalista. Professor Titular da
Faculdade Presidente Antônio Carlos (FUPAC), Mariana. Coordenador do
Núcleo de Pesquisa em Direito, Psicanálise e Pós-Modernidade, na mesma
IES.
28,3,4
Bacharelandas em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos
(FUPAC), Mariana. Membros do Núcleo de Pesquisa em Direito, Psicanálise e
Pós-Modernidade, na mesma IES.

202
confinado durante a quarentena, sem condições de realizar as tarefas
contumazes de outrora faz o indivíduo sentir-se mal, o que afeta seus
modos de agir e de pensar. Para Sartre (1945), o comportamento
humano baseia-se na liberdade de estar sozinho, sendo que esse
conceito de liberdade foi construído pelo Liberalismo em que “a
liberdade do indivíduo termina quando começa a do outro”.
Primeiramente, o indivíduo é um “ser-em-si” capaz de buscar a razão
de sua vida e a solução de seus problemas para suprir um vazio
existencial, depois torna-se ser um “ser-para-si” quando conquista o
que deseja através de seu esforço pessoal, mas depois decide se abre
mão da sua liberdade e torna-se um “ser-para-outro”, que é mais
difícil. Então, o autor afirmou que “o inferno são os outros” devido à
ausência da liberdade ocasionada por estar sempre acompanhado de
alguém, que gera um desconforto.
Mas este conceito de cuidar do próximo é mais que uma
questão de mera educação ou apenas respeito para manter a boa
convivência, pois trata-se de manter a dignidade alheia, direito
fundamental, em alto escalão. A Constituição Federal, em seu art 5°
como um todo, garante a dignidade da pessoa humana, mas
destacam-se no âmbito da violência doméstica os incisos: I (homens e
mulheres são iguais), III (a mulher não pode ser torturada), VI (mulher
é livre em suas crenças), VIII (a mulher não pode ser privada de seus
direitos por suas convicções), IX (a mulher é livre para ser o que
quiser e se expressar), X (é inviolável a honra e a imagem), XI (se o
relacionamento acaba, o homem não poderá violar o domicílio), XII
(as correspondências não podem ser violadas), mais precisamente.
Art. 5º, da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

203
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição;
III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento
desumano ou degradante;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as
invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro,
ou, durante o dia, por determinação judicial
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal.

Coube à ativista feminina Diana Russel, em 1976, nomear


como “feminicídio” as mortes de mulheres por serem mulheres pois,
diferentemente de um mero homicídio, as mulheres são expostas a

204
outros tipos de violências degradantes, bem como abuso sexual,
escravidão, incesto, violência psicológica e patrimonial, perseguição,
assédios moral e sexual, maternidade ou esterilização forçada, dentre
outras razões associadas ao gênero (CAMPOS, 2015). No entanto,
para a antropóloga Mexicana Marcela Lagarde, para que o crime seja
tipificado como feminicídio deve haver um contexto de impunidade
do réu e omissão do Estado uma vez que este não protege bem as
mulheres, sendo importante salientar que a violência psicológica
também gerada pela misogenia pode levar ao suicídio feminino.

“A violência de gênero é a violência misógina contra as


mulheres pelo fato de serem mulheres, situadas em relações
de desigualdade de gênero: opressão, exclusão,
subordinação, discriminação, exploração e marginalização. As
mulheres são vítimas de ameaças, agressões, maus-tratos,
lesões e danos misóginos. As modalidades de violência de
gênero são: familiar, na comunidade, institucional e
feminicida”. (LAGARDE, 2007, p. 33)

Além disso, quando as mortes são classificadas na categoria


“outros” são mais difíceis de serem identificada depois como
feminicídios e termos judiciais como “crime passional”, por exemplo,
ainda contribuem para os erros de classificação (ONU, 2012, p. 26).
Mas observa-se um avanço nas legislações brasileiras apesar da
sociedade ser patriarcal, de comportamentos misóginos. O impulso
principal nessa mudança ocorreu em 2006, a partir da promulgação
da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a qual toma a violência
doméstica como uma violação dos direitos humanos. A lei abrange
não somente o sexo feminino, mas também transexuais e outros
gêneros que se enquadram na figura da mulher, pois se adaptou às
mudanças ao longo dos anos. O conceito de família também mudou
a partir dos anos 1980 e tanto o homem quanto a mulher, que

205
outrora buscavam refúgios para seus problemas em casa, passaram a
sentir um vazio do egoísmo e do egocentrismo das relações, pois
devido a vários fatores como o aumento da tecnologia e falta de
diálogo, por exemplo, a família vem deixando de cumprir sua função
social.
Através dos estudos Direito e da Psicanálise, torna-se possível
entender melhor o comportamento humano e estabelecer as
diretrizes legais para resolução dos fatos.

DADOS ATUAIS DO AUMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Infelizmente, as mulheres no país têm sido cada vez mais


subjugadas por seus companheiros e o agravamento das estatísticas
durante a quarentena são alarmantes. De acordo com a ONDH
(Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos), parceiros ou ex-parceiros
das vítimas foram responsáveis por cerca de 88% dos feminicídios em
2019 (VIEIRA et al, 2020). Segundo os dados fornecidos pelas
Secretarias de Segurança Pública de cada estado, em comparação ao
primeiro trimestre de 2019, os aumentos dos casos de feminicídios no
Brasil deram-se da seguinte forma: em São Paulo foi de 38%, no Rio
de Janeiro de 13%, no Espírito Santo de 30%, no Ceará de 60%, no
Rio Grande do Sul de 73% e no Tocantins de 300% (OKABAYASHI et
al, 2020).
Os estudos de Cruvinel et al (2020) indicam que o período da
pandemia em que houve maior aumento dos dados foi entre março e
maio de 2020. E, em contrapartida, após a campanha Sinal Vermelho
(em que a vítima escreve um X de cor vermelha na palma da mão
para mostrar a alguém como forma de socorro), os registros de lesão
corporal dolosa diminuíram de cerca de 27%. Por esse motivo,
precisa-se estudar novos meios tão eficazes quanto este a fim de

206
garantir a segurança e a dignidade femininas.
As tabelas a seguir contém dados fornecidos pelas Secretarias
de Segurança Pública de diversos estados e do Distrito Federal
mostrando o crescimento da violência doméstica no período de
quarentena.

Tabela 1 – Incidências e tipos de violência contra a mulher no


início da pandemia, no estado de São Paulo (SSP/SP, 2020).

jan/20 fev/20 mar/20


FEMINICÍDIO 12 18 20
TENTATIVA DE 40 32 39
FEMINICÍDIO
LESÃO CORPORAL 4.942 4.613 4.329
DOLOSA
CRIMES CONTRA A 1.165 1.081 903
HONRA
AMEAÇA 5.984 3.343 4.642
ESTUPRO CONSUMADO 263 244 230
ESTUPRO TENTADO 69 52 36

Tabela 2 - Incidências e tipos de violência contra a mulher no


início da pandemia, no estado de Minas Gerais (SSP/MG, 2020).

jan/20 fev/20 mar/20


FEMINICÍDIO 5 14 7
TENTATIVA DE 18 24 17
FEMINICÍDIO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 12.972 1 12.150 11.774

Tabela 3 - Incidências e tipos de violência contra a mulher no


207
início da pandemia, no estado do Rio de Janeiro (ISP/RJ, 2020).

jan/20 fev/20 mar/20


FEMINICÍDIO 6 6 5
TENTATIVA DE 28 35 26
FEMINICÍDIO

Tabela 4 - Incidências e tipos de violência contra a mulher no


início da pandemia, no Distrito Federal (SSP/DF, 2020).

jan/20 fev/20 mar/20


FEMINICÍDIO 4 0 1
TENTATIVA DE 3 4 3
FEMINICÍDIO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA 1.389 1.294 1.173

As tabelas apontam números alarmantes de um problema que


já ocorre há séculos. Apesar de tantas conquistas femininas ao longo
dos anos, bem como a do direito ao voto e ao trabalho com salário
digno, percebe-se que há ainda que se conquistar o direito sobre o
próprio corpo, a dignidade humana e os direitos fundamentais.
Ao comparar esses dados, nota-se que os paulistas
registraram mais dados, ou seja, houve um evidente aumento da
violência doméstica haja vista que São Paulo possui população maior
do que os outros estados. Esse resultado era esperado, pois embora a
grande metrópole esteja localizada na região do sudeste do Brasil,
onde há mais indústrias e desenvolvimento tecnológico, não deixa de
ser parte da sociedade machista e patriarcal que, em pleno século
XXI, ainda impera a desigualdade de gêneros.
Além disso, a violência notadamente se agravou com os
208
trabalhos dos casais em home office. Se a mulher sempre cuidou dos
afazeres domésticos e laborais, após o impacto da pandemia
consideravelmente aumentou a cobrança e a sobrecarga sobre ela. O
isolamento contribuiu para a dominação feminina pelo homem seja
no controle dos gastos domésticos ou na privação da liberdade da
mulher fazer o que gosta. Então, o masculino que outrora figurava
como protetor e provedor, passa a ser o que persegue (VIEIRA et al,
2020).

Discussão sobre o tema com base no Direito

Embora a mulher tenha conquistado muitos direitos, bem


como o direito ao voto e o de trabalho digno, na família seu o papel
continua o mesmo em grande maioria dos lares brasileiros: o de
cuidar dos filhos e garantir a limpeza e a alimentação de seus entes.
Mas a função de chefe da casa muitos consideram ser do homem,
devido à carga histórica patriarcal, no entanto atualmente uma parte
desses homens desvaloriza a figura da esposa, mãe ou irmã e age de
modo hostil. Para Sá (2000), tratar a mulher como objeto tipifica e
impera a perda do direito sobre o próprio corpo.

“Poder-se-á afirmar ser inaceitável tratar o corpo humano e a


integridade física como direito de propriedade, já que, em
sendo proprietário, o homem teria o amplo poder de
disposição. Daí que a mutilação e a destruição do corpo
humano resultariam autorizadas. […]. Portanto, não há se
confundir o direito à integridade física com o poder do
proprietário, de dispor da coisa que lhe pertence” (SÁ,2000,
p.77).

Mas ainda os direitos humanos são inerentes a todos os


cidadãos e assegurados pela Constituição Federal, que em seu artigo
209
226 estabelece a importância da família dentro da sociedade e explica
no capítulo 8° que cabe ao Estado intervir em casos de violência.

CF/88. Art 226: “A família, base da sociedade, tem especial


proteção do Estado.
§8° O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir
a violência no âmbito de suas relações”.

Em contrapartida, o Estado brasileiro ainda permite a tese de


violenta emoção pura na defesa, isso mostra que a mentalidade da
jurisdição do país contém um lastro histórico (LODETTI et al, 2018).
Fato similar ocorreu com Maria da Penha, pois esta recorreu à justiça
por várias vezes, durante 18 anos, em busca de segurança que não
obtia, afinal a pena para esse tipo de crime era uma cesta básica. E,
quando Maria da Penha foi quase morta por seu companheiro, a
Organização dos Estados Americanos (OEA) interviu e condenou o
Brasil por omissão (IBDFAM, 2018). Então somente em 2006, com o
advento da promulgação da Lei Maria da Penha, a mulher brasileira
passou a ter voz e vez perante a legislação. O art 1° da Lei Maria da
Penha prevê que a finalidade da lei é erradicar a violência e criar
Juizados para proteção da mulher.

Lei 11340/06. Art. 1º: “Esta Lei cria mecanismos para coibir e
prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de
outros tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece
210
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação
de violência doméstica e familiar”.

Mas essa luta de anos foi também discutida na Convenção


Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher, realizada em 1994, no Pará, discutiu-se sobre os direitos da
mulher e a violação de seus direitos humanos e fundamentais
(PASINATO, 2016). Afinal, é garantido constitucionalmente no art 1°,
inc III, da CF/88 a inviolabilidade da dignidade humana a todos
cidadãos brasileiros, independente dos gêneros.

CF/88. Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela


união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana”

Promulgada a convenção, passou a valer o decreto n°1976, de


1° de agosto de 1996, que além de garantir os direitos da mulher,
tipifica como violência contra a mulher todo ato ou conduta física,
psicológica ou sexual, ocasionado pelo fato da vítima ser do gênero
feminino.

Decreto 1973/96. Artigo 1°: “Para os efeitos desta Convenção,


entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2°: Entende-se que a violência contra a mulher abrange
a violência física, sexual e psicológica.
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em

211
qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe,
tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se,
entre outras turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa,
incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual,
tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e
assédio sexual no local de trabalho, bem como em
instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer
outro local; e
c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde
quer que ocorra”.

De acordo com Paiva et al (2014), a Organização Mundial de


Saúde (OMS) reconheceu a péssima influência da violência para a
saúde das mulheres na década de 1990, tanto no aspecto físico
quanto no psicológico.

Para Lodetti et al (2018), a lei do feminicídio, Lei n.


13.104/2015, é de suma importância haja vista que a morte da
mulher é banalizada em virtude do gênero. E, segundo
Pasinato (2016), essa banalização deve-se à dominação
patriarcal do homem o qual tem sentimento de posse ou
menosprezo pela vítima. A função da lei do feminicídio é,
contudo, complementar o Código Penal Brasileiro no que
tange à coibição dos maus tratos causados pelo homem à
mulher caso o fato ocorra em ambiente familiar ou com
menosprezo ao gênero feminino.

Discussão sobre o tema à luz da Psicanálise

Para além da análise jurídica, a Psicanálise lança um novo


olhar para a realidade, apontando para o universo submergido

212
existente no inconsciente, que molda as ações humanas, revelando o
fundamento oculto do comportamento. Não somos o puro “eu”, a
pura consciência e, portanto, não somos tão racionais quanto
presumimos ser. O indivíduo deve ser analisado em sua completude,
considerando os ditos e os não-ditos, os significados e os
significantes da linguagem.
Do ponto de vista psicanalítico, somos o resultado da história
da infância, período de formação da personalidade, cujas informações
e sensações vividas são armazenadas e nos acompanham por toda
vida. Assim, nossas motivações para agir são pulsionais, uma vez que
Freud (1926/1980, p.117) afirmou que a pulsão pode ocorrer sob
“influência de uma compulsão à repetição”, ou seja, o sujeito que
experimentou anteriormente fatos traumáticos tem um acúmulo de
excitação que o leva à externalizar seus atos em outrem com
violência.
A violência doméstica não é somente pautada em uma relação
heterossexual, ela abrange as esferas atuais e o atual conceito de
família. Graças aos movimentos feministas que tiveram início nos
anos 1980 e discutiam as questões de gênero, o binarismo masculino-
feminino baseado no fator biológico tornou-se obsoleto e passou a
preponderar as relações de poder, onde o homem ocupa o polo ativo
vitimizando as mulheres; estas, por sua vez, apresentam um caráter
submisso (MORAES, 2018). E o notável aumento da violência
doméstica no período pandemia deve-se ao fato de que o
confinamento do casal aumentou essa relação machista que obriga a
mulher a se subordinar, enquanto o homem exerce seu controle
excessivo.
A mulher, enquanto figura construída socialmente de
moralidade e pudor, no lugar de elo e zelo familiar, que deve suportar
as adversidades para manter a família na lógica patriarcal,
frequentemente tem dificuldades em se enxergar como vítima de um
213
relacionamento abusivo e romper com o silêncio. Do ponto de vista
psicanalítico, nossa personalidade se forma desde criança, afinal um
bebê precisa dos cuidados de um adulto para sobreviver e se espelha
nesse adulto para tornar-se alguém. Nessa linha, Freud (1905/1974)
afirma que o masoquismo se origina da vida sexual e é “o prazer
obtido em qualquer forma de sujeição ou humilhação”. Assim, aponta
que o masoquismo primário acontece na infância para no qual o
outro é aquele que detém o saber e manipula o bebê; que por sua
vez está na mão do outro, literalmente e subjetivamente. E este traço
se instala no inconsciente, na condição de se deixar manipular e
dominar. Em linhas gerais, para Freud, as experiências dos
relacionamentos amorosos podem ser consideradas repetições das
experiências vividas na infância, na substituição dos objetos que
façam alusão aos perdidos naquela época.
Desta forma, o sujeito adulto, que traz esse traço marcante, no
lugar infantil de que “o outro sabe e eu não”, pode desencadear a
seguinte situação: a ausência de autoconfiança que duvida do próprio
saber, deixando-se dominar e manipular. Transposto para o caso da
violência doméstica, Freud (1933/1974) estudou a tese de que a
mulher também poderia ser masoquista, mas por fim retificou que a
mulher é um agente passivo que sofre a dominação e que “o
masoquismo é verdadeiramente feminino”. Dessa indagação
freudiana pode-se aferir que o feminino não é masoquista, mas o
masoquismo tem caráter feminino.

“A supressão da agressividade das mulheres, que lhes é


instituída constitucionalmente e lhes é imposta socialmente,
favorece o desenvolvimento de poderosos impulsos
masoquistas que conseguem, conforme sabemos, ligar
eroticamente as tendências destrutivas que foram desviadas
para dentro. Assim, o masoquismo, como dizem as pessoas, é
verdadeiramente feminino.” (FREUD, 1933/1974, p. 143-144)

214
“[...] a tese ‘mulher masoquista’ não é a tese freudiana. Freud
a introduziu e explorou, mas soube reconhecer que não era...”
(SOLLER, 1998, p. 212).

A mulher encontra em seu parceiro aquele quem irá


corresponder às suas fantasias infantis, no qual o pai é o agressor e a
criança é a agredida, em uma dinâmica de prazer masoquista. “Ser
espancada revela o amor sexual da menina pelo pai e o subsequente
castigo por esta relação incestuosa, sendo a fantasia um substituto
regressivo desta relação”. O feminino, enquanto falta, transfere-se na
vida adulta, no que tange aos relacionamentos amorosos, na busca
de restaurar algo perdido. Seus investimentos libidinais, portanto,
direcionam-se para esse reencontro. Ou seja, inconscientemente, é
como encontra um prazer na dor (MIRANDA; RAMOS, 2014, p.45).
Freud (1905/1974) enfatizou a primazia do falo e suas
consequências, onde apenas o órgão genital masculino a possuía,
evidenciando a primazia do falo. O complexo da castração torna os
meninos recuados em sua realidade com o pai e no amor à mãe. O
tabu é uma força que se opõe ao amor pela rejeição das mulheres,
elas passam a ser estranhas e hostis, ela é a Outra para o homem e
Outra para si mesma. A psicanálise acredita que o homem rejeita e
despreza as mulheres ao chamar a atenção para o complexo de
castração e sua influência sobre a opinião das mulheres.
O ciclo da violência contribui para manutenção do status quo
ante, em que a mulher se ilude com mudança temporária no
comportamento do homem: começando com o desrespeito,
humilhação e ameaça, passando pela violência física (momento em
que normalmente procuram ajuda), e posteriormente, a fase da lua de

215
mel, na qual o homem pede desculpas e atribui a culpa de seu
comportamento a fatores externos, como por exemplo, o álcool. Em
certa medida, pode-se afirmar que a mulher e o homem estão
submetidos à lógica do casal, e muitas vezes, não dão conta romper
com essa dinâmica.
Por parte da mulher, tal rompimento está associado à
vergonha de se expor e o medo da incompreensão, seja de familiares,
amigos e da própria justiça. Na prática, a violência doméstica, que
normalmente acontece dentro de casa, carece de provas e a
credibilidade da palavra da mulher ainda é baixa.
O machismo estrutural presente na sociedade perpetua a
valoração do homem sobre a mulher. Contudo, seus efeitos negativos
também recaem sobre os homens, que na “obrigação de serem viris”
acabam silenciando seus sentimentos. Em níveis extremos,
naturalizam a violência doméstica e é por esse motivo que precisam
ser incluídos no debate e realizarem uma autoanálise de seus atos.
Quando a fase simbiótica não é bem superada, o filho não
consegue se separar do corpo da mãe e coloca outra pessoa no lugar
como representação. Tendo em vista que tais elementos são
fundamentais na formação da psique humana, o homem adulto pode
ter um desamparo identitário, cuja masculinidade frágil se afirma por
meio da subjugação da mulher. Uma pergunta válida é: o que a
mulher representa para o homem?
Para Freud (1905/1974), as relações amorosas estão
relacionadas ao campo infantil. Em casos extremos, de crime
passional, por exemplo, uma hipótese válida é que o homem esteja,
na verdade, matando aquela que fez a função materna. Outra ideia é
que o homem não suporta que uma mulher tenha desejo sexual
próprio e tampouco que o rejeite. Ao se sentir como um objeto pra
ela, seu narcisismo não suporta que a mulher o objetifique e
tampouco o largue. Assim, ao indagar “quem é ela pra me largar?”,
216
ele a pune de forma violenta, ou em casos extremos, com a morte.
É recorrente o homem ficar surpreso com a notificação de que
foi processado e chega a afirmar em audiências frases como: “só bati
na minha mulher, porque é assim que ela aprende”. Esta frase contém
três argumentos que cabem reflexão. O primeiro deles trata do termo
‘’só bati“, diminuindo a problemática e tratando o fato “bater” como
algo banal e corriqueiro, sem implicações legais. A palavra “minha”,
revela a objetificação da mulher, como posse. E a oração, “é assim
que ela aprende”, elucida a justificativa para acometer a violência.
Portanto, a punição legal para casos de violência doméstica
por si só não se configura como forma de resolução da problemática,
visto que requer uma desconstrução da atual noção de masculinidade
deturpada e, sobretudo, traz resquícios da infância, no processo de
formação da personalidade do indivíduo. Requer ainda, mudança da
mulher quanto a sua posição subjetiva de submissão frente ao
homem na satisfação do seu gozo, autorizada pelo seu inconsciente.
Por fim, a transposição da situação de violência requer
vontade e adesão do homem e da mulher no resgate de seu desejo,
pois “sem sujeito não haverá psicanálise, muito menos mudança”.
(SOUZA; PIMENTA, 2014, p.9). Cada caso é único, e as variáveis
psicanalíticas correspondem a possíveis explicações para a situação
de violência doméstica.

Possíveis soluções para o problema

Ao longo da história houve um notável avanço no


reconhecimento do gênero feminino, a partir da Revolução Industrial
quando as mulheres foram inseridas no mercado de trabalho e
buscavam por condições laborais mais adequadas e quando o direito
ao voto foi finalmente conquistado (ALVES; PITANGUY, 1988). Dentre

217
as grandes conquistas, no entanto, destaca-se a promulgação da Lei
Maria da Penha (lei n.11.340/2006) a qual tipifica a violência
doméstica como crime, sendo as condições para aplicação da pena:
os vínculos afetivos e domésticos (não precisam ser parentes
necessariamente, basta ter o convívio íntimo diário) entre o agente e
a vítima; e a ação ou omissão baseada no gênero (BIANCHINI, 2014).
Apesar de todos os fatores históricos, no Brasil a Lei Maria da
Penha tem sido bastante eficaz. Estima-se que nos últimos dez anos
anteriores à pandemia cerca de 129 mil dos agressores foram
denunciados, segundo Cruz (2019). Se a violência é fruto da raiva ou
de abuso de drogas, a medida protetiva contribui de modo eficiente
em boa parte dos casos através do necessário afastamento entre os
entes. Todavia, nota-se que em muitos casos a vítima retira a queixa
contra o agressor ou, por medo de represálias, não o denuncia. Freud
(1905) explica a submissão feminina ao abuso físico, moral ou
psicológico como sendo “masoquismo feminino”.
Questiona-se, contudo: além da lei Maria da Penha existe
outra medida aplicável para cominar com o fim da violência
doméstica? A resposta é positiva no que tange ao Direito e à
Psicanálise. Afinal, além das normas demais medidas de cunho
coercitivo ou preventivo podem ser tomadas. Sem dúvidas, a melhor
forma de solucionar algo em conflito é através do diálogo, mas
também a mulher não pode correr riscos. Haja vista a dificuldade da
resolução dos conflitos de violência doméstica via conciliação e
mediação, em face do distanciamento necessário entre vítima e
agente mediante as graves ameaças infelizmente sofridas pelas
vítimas as quais concretizam-se na maioria das vezes, vislumbra-se
formas mais eficazes de conter o problema. Dentre elas destacam-se:
medidas sócio-educativas, penas de restrição de direitos e
acompanhamento psicológico do réu visando evitar que após o
cumprimento de pena haja reincidência no crime.
218
A teoria Freudiana, todavia, é mais complexa por abordar que
a questão acerca dos gêneros não é meramente psicológica ou
biológica, devido ao fato de um sexo apresentar características do
sexo oposto, mesclando atividade e passividade. Segundo Freud, isso
demonstrava que ambos os sexos podem ser violentos.
“no que concerne ao ser humano, a masculinidade ou feminilidade
puras não são encontradas nem no sentido psicológico, nem no
biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus
caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo
oposto, e ainda uma conjugação de atividade e passividade, tanto no
caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos
quanto no caso de independerem deles”. (Freud, 1905/2006a, p. 207-
208)
Mas ainda que a violência parta da mulher, a mesma não
detém a mesma força física que um homem possui. E no Brasil,
atualmente, os direitos são iguais para ambos os sexos, assegurados
pela Constituição Federal Brasileira, conforme o art 5°, inc I da CF.

Art 5° da CF: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição.”

As medidas sócio-educativas baseiam-se em prevenir a


ocorrência do delito. Tais medidas educam e fazem com que o agente
mude de opinião e se arrependa de seu erro após assistir a vídeos,
participar de cursos e palestras. Enquanto as penas restritivas de
direitos são apenas para os casos em que não há reincidência nem
219
grave ameaça, ou seja, na maioria dos casos de violência domésticas
as mesmas não se aplicam. Mas isso não impediria que um psicólogo
entendesse e estudasse cada caso, de modo a entender a
mentalidade do sujeito e a tratá-lo desse sentimento de raiva e
extrema ignorância.

CONCLUSÃO
Vemos, no presente, que a violência contra a mulher é uma
questão de gênero, um tipo penal que não se baseia na diferença
sexual por ser subjetivo, praticado no âmbito familiar, devido à
convivência e marcado com menosprezo e discriminação da mulher
por ser mulher.
Constatamos que no Brasil o índice é elevado se comparado
ao restante do mundo, e através desta pandemia do Covid-19 devido
à obrigatoriedade de se ficar em casa, este índice teve aumento
relevante. Todos os dias observa-se nas mídias televisiva, em
noticiários, em páginas da internet ou em jornais que o homem está
infiltrado em uma cultura machista que determina que a mulher é
uma coisa e dela pode-se apropriar, dela pode-se desfazer,
inferiorizá-la por meio de violência sexual e consequentemente
chegar ao extremo da crueldade da agressão ao feminicídio. Desta
forma, a mulher perde a identidade, é mutilada, desfigurada,
estuprada, aviltada em sua dignidade.
Já para a psicanálise os crimes contra a mulher não são
direcionados ao feminino, enquanto gênero, pois visam atacar a
mulher em seu papel social, trata-os de maneira diferente dos
dispositivos jurídicos.
Enquanto a Lei Maria da Penha vigente a partir de 2006 não
consegue deter a fúria do homem contra a mulher, amparando-as,
protegendo-as, vimos que hoje em dia ela não traz o resultado

220
esperado, porque muitas mulheres vítimas não recorrem à lei e
quando o fazem retiram imediatamente a queixa o que impossibilita
medidas protetivas, enfraquecendo as campanhas engajadas em prol
das transformações sociais já alcançadas por movimentos de
mulheres.
Por outro lado, alguns casos vêm sendo relatados onde a
justiça muito timidamente vem atingindo expectativas. A sociedade
cansou de se calar e de ficar inerte a essas agressões e de uma forma
geral a sociedade está cansada de acompanhar em rede nacional
notícias de crimes, de impunidades, de violação à dignidade humana,
de leis transgredidas e de falta de leis, ou melhor, de falta de vontade
dos juristas de mudar as leis e serem mais rigorosos em seus
dispositivos, de interceptação da liberdade, da falta de garantia dos
direitos fundamentais positivados na constituição.

221
REFERÊNCIAS

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São Paulo: Brasiliense, 1998.

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. São Paulo: Saraiva, 2014.

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Acesso em: 20 de Dezembro de 2020.

225
A DEFENSORIA PÚBLICA COMO PILAR DA GARANTIA
CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA AOS
HIPOSSUFICIENTES

Larissa Silva 29
Ana Flávia Oliveira30
Luiz Carlos Delazzari31
RESUMO
O presente artigo versa sobre a Defensoria Pública como pilar da
garantia constitucional do acesso à justiça aos hipossuficientes. O
artigo tem por objetivo analisar o papel da Defensoria Pública na
garantia do acesso à justiça através da assistência jurídica integral e
gratuita aos hipossuficientes. O presente estudo é classificado como
uma pesquisa de caráter teórico, básico e qualitativo, do tipo
pesquisa bibliográfica, e o estudo tratará sobre o assunto com o
apoio de doutrinas, livros e artigos científicos. Além disso, contará
com o apoio documental, considerando a utilização de leis, códigos e
normas legais para a fundamentação do trabalho. Pretende-se
demonstrar que a Defensoria Pública cumpre com seu papel
constitucional de garantidor do acesso à justiça aos mais
necessitados. Entretanto, existem diversas barreiras que impedem ou
dificultam a concretização da garantia constitucional de acesso à
justiça e a atuação da Defensoria Pública.

29
Graduando do 10º período do Curso de Direito da Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana.
30
Graduada em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2015) e
especialista em Direito Civil e Processo Civil. Atualmente é Advogada,
Professora da FUPAC Mariana e Advogada Social no Município de Mariana.
31
Defensor Público Estadual atuante na Comarca de Mariana, Minas Gerais.
226
Palavras-chave: Acesso à justiça. Defensoria Pública. Garantia
constitucional. Hipossuficiente.

INTRODUÇÃO

O presente artigo versará sobre o acesso à justiça e sobre a


assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes, tratando a
Defensoria Pública como pilar dessa garantia. Como é sabido o
acesso à justiça é uma garantia do cidadão consagrada no texto
constitucional e a Defensoria Pública possui o papel de concretizar
essa garantia.
A referida instituição cumpre com o papel de garantidora
desse direito fundamental justamente por visar a prestação da
assistência jurídica de forma integral e gratuita aos hipossuficientes.
Ademais, a instituição visa a proteção da dignidade da pessoa
humana, a promoção da cidadania e a solução de conflitos sociais.
Entretanto, merece destaque, que existem diversas barreiras que
impedem ou dificultam a concretização da garantia constitucional de
acesso à justiça e a atuação da Defensoria Pública.
A temática do trabalho é relevante devido ao fato de envolver
interesses de diversas pessoas que se encontram na condição de
hipossuficientes na sociedade, além de tratar de um direito
considerado fundamental para o indivíduo. Ademais, é crucial
trabalhar a temática na sociedade, considerando que, apesar da
Defensoria Pública garantir um direito importante às pessoas
hipossuficientes, sua existência e até mesmo a existência do referido
direito, ainda são desconhecidos por uma quantidade significativa de
cidadãos na sociedade.
O presente estudo é classificado como uma pesquisa de
caráter teórico, básico e qualitativo, do tipo pesquisa bibliográfica,

227
tendo em vista que tratará sobre o assunto com o apoio de
informações retiradas em doutrinas, livros e artigos científicos. Além
disso, contará com o apoio documental, considerando a utilização de
leis, códigos e normas legais para a fundamentação do trabalho.
A presente pesquisa tem como referencial teórico Cappelletti
e Garth (1988), Esteves e Silva (2018) e Fensterseifer (2017).
Em um primeiro momento será feito um estudo sobre a
garantia fundamental do acesso à justiça. Em sequência, será
analisado a Defensoria Pública, sendo destacado seus princípios,
objetivos, bem como sua forma de atuação. Por fim, será abordado o
motivo pelo qual a Defensoria Pública é considerada um pilar da
garantia constitucional do acesso à justiça aos hipossuficientes, sendo
ressaltado as barreiras que impedem a concretização desta garantia,
apontamentos críticos sobre a ausência de estrutura para o acesso à
justiça aos hipossuficientes e o papel da Defensoria Pública na
concretização do Estado Democrático de Direito.

O ACESSO À JUSTIÇA

Sabe-se que a expressão “acesso à justiça” é de extrema


importância tanto no ordenamento jurídico quanto na sociedade em
geral. Conceituar a expressão acesso à justiça não é uma tarefa fácil
levando em consideração sua extensão, bem como as diversas
transformações que esta vem sofrendo ao longo do tempo, vários são
os autores que se debruçaram sobre o tema, dada a relevância do
estudo.
A palavra “acesso” oferece a ideia de entrada, de possibilidade
de alcançar algo e nesse sentido também, é a expressão “acesso à
justiça”. Isto é, acesso à justiça é a possibilidade de alcançar algo, que
é o valor “justiça”.

228
Cappelletti e Garth (1988, p. 7) ensinam:

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil


definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas
do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem
reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os
auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente
acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que
sejam individual e socialmente justos.
Sendo assim, pode-se dizer que essa expressão significa uma
garantia a todas as pessoas de pleitear seus direitos e resolver suas
demandas, seja na esfera do judiciário ou não, ou seja, todas as
pessoas têm o direito de ter acesso aos seus próprios direitos.
Nesse sentido, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (2020)
afirmou que:
A expressão acesso à justiça não pode ficar limitada ao acesso ao
Judiciário; ela deve ser entendida no contexto contemporâneo que o
novo Código de Processo Civil (CPC) criou: uma justiça multiportas
que deve oferecer a todos os cidadãos uma solução justa para seus
problemas e que não necessariamente passa por demandas judiciais.
O acesso à justiça pode ser visto como um requisito de um
sistema jurídico moderno e igualitário que objetiva assegurar os
direitos de todos os cidadãos e não apenas anunciá-los. Ademais,
essa expressão tem a finalidade de garantir aos cidadãos uma
maneira justa de resolução dos problemas.

Acesso à justiça como direito fundamental

O acesso à justiça, considerado um princípio, é também um


direito fundamental que está previsto na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Esse direito, está positivado no artigo 5º,

229
inciso XXXV, do texto constitucional:

Art. 5 - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito. (BRASIL, 1988)
Cappelletti e Garth (1988, p. 11-12), a respeito desse direito,
ensina que “o acesso à justiça, pode, portanto, ser encarado como
requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar os direitos de todos. ” Quando o acesso à justiça é
cerceado, outros tantos direitos ficam desamparados.
O referido direito garante a todos cidadãos o acesso à justiça
e ao poder judiciário, sendo responsabilidade do Estado assegurar
que todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que residem no país
possam pleitear seus direitos. O dispositivo mencionado também é
conhecido como princípio da inafastabilidade da jurisdição ou direito
de ação.
Destaca-se que este princípio é crucial em um Estado
Democrático de Direito, visto que sem acesso à justiça,
consequentemente, não há democracia.
Cumpre aqui fazer uma ressalva que não se acessa a justiça
apenas acessando o Poder Judiciário, pois existem outros meios de
solução de conflitos que se mostram extremamente eficazes na
resolução das demandas. Porém, esses meios não são o foco do
presente trabalho.
Há de se destacar também que para ocorrer maior e melhor
efetivação do direito fundamental ao acesso à justiça, a CRFB, em seu
artigo 5º, inciso LXXIV, garante a assistência judiciária integral e
230
gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Ademais, para efetivação da garantia, a CRFB, precisamente em seu
artigo 134, colocou a Defensoria Pública como sendo a instituição
responsável pela promoção da assistência jurídica gratuita aos
necessitados. A acessibilidade daqueles que possuem insuficiência de
recursos à esta instituição é também uma medida efetiva para a
concretização do acesso à justiça.

A DEFENSORIA PÚBLICA

A Defensoria Pública é uma instituição de extrema importância


para a sociedade, visto que, através dela, é possível buscar a
efetividade de direitos. Além do mais, esta instituição é crucial em um
Estado Democrático de Direito.
Destaca-se que a Defensoria Pública, visa prestar assistência
jurídica integral e gratuita aos necessitados e à indivíduos ou grupos
sociais que se encontram em situação de vulnerabilidade existencial
no que tange sua dignidade e seus direitos fundamentais.
A instituição busca garantir o acesso à justiça, promover e
proteger a dignidade da pessoa humana, bem como a cidadania, e
também promover a solução de conflitos.
A Defensoria Pública possui como fonte normativa primária a
Constituição Federal de 1988. Já no âmbito estadual, possui as
constituições estaduais e leis complementares. Existem também
as leis especiais que tratam sobre a Defensoria Pública.
Na esfera federal, a instituição é orientada por sua lei orgânica,
a Lei Complementar 80 de 1994 que dispõe sobre a Organização da
Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e
prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá
outras providências. Já na esfera estadual, cada defensoria deverá ter

231
sua própria legislação.

A Defensoria Pública na Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,


trouxe em seu texto disposições sobre a Defensoria Pública. Dentre
estas disposições, encontra-se o artigo 134 que traz a definição desta
instituição, bem como prevê, em seu §1º, que Lei Complementar
Federal organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal
e Territórios, além de prever normas gerais para sua organização nos
estados:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente,


essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe,
como expressão e instrumento do regime democrático,
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV
do art. 5º desta Constituição Federal.
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da
União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá
normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos
de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso
público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a
garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da
advocacia fora das atribuições
institucionais. (Renumerado pela Emenda Constitucional
nº 45, de 2004). (BRASIL, 1988)

Em outras palavras, pode-se dizer que a Defensoria Pública é a


instituição que deve garantir a assistência jurídica integral e gratuita
232
àqueles que não podem arcar com os devidos custos e se encontram,
de alguma forma, vulneráveis. A instituição, além de prestar
atendimento jurídico de forma individual, tem a legitimidade para
agir por intermédio da tutela coletiva.
De acordo com o artigo 134, §2º e artigo 168, ambos da CRFB,
as Defensorias Públicas Estaduais possuem autonomia funcional,
administrativa e financeira, fato que dá a instituição o status de órgão
constitucional independente, isto é, sem qualquer tipo de
subordinação ao Poder Executivo. A instituição passou a ter as
referidas autonomias com a Emenda Constitucional nº 45/2004.
A CRFB em seu texto constitucional estabeleceu ainda que a
Defensoria Pública será estadual ou federal. Sendo assim, ela terá
encargo diante da justiça estadual e federal respectivamente.
Cabe ressaltar também que foi instituído pela CRFB as
“Funções Essenciais à Justiça” e a Defensoria Pública, juntamente com
o Ministério Público, a Advocacia Pública e a Advocacia Privada se
enquadram como essenciais à justiça.

Princípios institucionais da Defensoria Pública

A Defensoria Pública possui princípios institucionais que estão


previstos no artigo 3º da Lei Complementar 80 de 12 de janeiro de
1994: “São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a
indivisibilidade e a independência funcional. ”
Os referidos princípios também estão dispostos no artigo 134,
§4º da CRFB/1988:

4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a


unidade, a indivisibilidade e a independência funcional,
aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e
no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal. (Incluído

233
pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014). (BRASIL, 1988)
Pode-se dizer que os princípios institucionais da Defensoria
Pública reproduzem os valores fundamentais, as premissas e diretrizes
básicas da instituição.

Princípio da unidade

O primeiro princípio estabelecido na legislação é o princípio


da unidade. Segundo Esteves e Silva (2018), este princípio refere-se
que a Defensoria Pública é uma instituição única, isto é, seus
membros constituem o mesmo todo unitário.
Ainda no ponto de vista destes autores, este princípio
estabelece também que os atos praticados tanto pelo Defensor
Público Geral que exerce a chefia da Defensoria Pública, quanto a
qualquer outro Defensor são imputados à Defensoria como uma
instituição. Tal princípio tem ligação direta ao princípio da
continuidade da Administração Pública, ou seja, havendo a
substituição, promoção, remoção de qualquer defensor, o serviço
deverá continuar com o substituto, sem que haja prejuízo ao
andamento das demandas.

Princípio da indivisibilidade

O segundo princípio tratado na legislação é o princípio da


indivisibilidade. O referido princípio indica que a instituição é
inseparável. Ou seja, a instituição não pode ser fracionada.
De acordo com Esteves e Silva (2018), esse princípio garante
que a instituição atue de maneira contínua, não ocorrendo a
interrupção de sua atuação. O fato de seus membros constituírem o
mesmo todo unitário permite que eles se substituam, sem que haja a
234
interrupção da atuação da instituição. Nesse mesmo sentido, destaca-
se que os membros não se vinculam aos processos e isso faz com que
defensores distintos conduzam o mesmo processo. Sendo respeitada
a sistemática legal, um Defensor poderá substituir outro que se
encontre afastado, por exemplo.
Destaca-se que esta unidade e indivisibilidade, ao assentir a
substituição dos membros da Defensoria Pública, sem trazer nenhum
tipo de prejuízo na atuação ou no processo em si, não significa dizer
que as opiniões dos membros devem estar associadas ou totalmente
vinculadas, sendo possível entendimentos diversos sobre a mesma
questão.

Princípio da independência funcional

O terceiro princípio é o da independência funcional. Este


princípio assegura a liberdade e a independência de atuação do
Defensor Público, bem como sua liberdade de convencimento.
Nesse sentido, Esteves e Silva (2018, p. 357), expõem que:

A independência funcional (art. 134, § 4º, da CRFB e art. 3º da


LC nº 80/1994) garante ao Defensor Público a necessária
autonomia de convicção no exercício de suas funções
institucionais, evitando que interferências políticas ou fatores
exógenos estranhos ao mérito da causa interfiram na
adequada defesa da ordem jurídico democrática do país. Em
outras palavras, o princípio da independência funcional
confere ao Defensor Público escudo invulnerável, que protege
sua atuação profissional contra interesses escusos e contra os
poderosos inimigos que, pertencentes às fileiras dos
opressores e antidemocráticos, pretendem conservar o estado
social desigualitário presente.
Observa-se que o Defensor Público deve atuar de forma livre, sem

235
interferências externas, não estando submetido a qualquer poder
hierárquico interno.
Destaca-se que o defensor não pode ser penalizado por atos probos
realizados, ainda que este determinado ato vá contra orientação dada
pela chefia institucional da Defensoria Pública. Segundo Esteves e
Silva (2018) por conta do princípio da independência funcional, a
hierarquia interna existente na Instituição deve restringir-se às
questões de ordem administrativa, nunca de caráter funcional ou
técnico.

Objetivos da Defensoria Pública

Elencados no artigo 3º-A da Lei Complementar 80/1994 e em


consonância com os objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, previstos nos artigos 1º e 3º da CRFB, os quatro objetivos
da Defensoria Pública denominam as finalidades da atuação funcional
da instituição. Os objetivos são:

I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução


das desigualdades sociais; II – a afirmação do Estado
Democrático de Direito; III – a prevalência e efetividade dos
direitos humanos; e IV – a garantia dos princípios
constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
3.3.1 A primazia da dignidade da pessoa humana e a redução
das desigualdades sociais

Sabe-se que um dos objetivos fundamentais da República


Federativa do Brasil é erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir
as desigualdades sociais e regionais. Tal objetivo está previsto no
artigo 3º, inciso III do texto constitucional. Nesse mesmo sentido, é o
que dispõe o objetivo da primazia da dignidade da pessoa humana e

236
a redução das desigualdades sociais.
Pode-se dizer que esses objetivos estão relacionados e
colocam a Defensoria Pública como uma instituição que deve
concretizar, além das reduções das desigualdades, um dos direitos
mais importantes do ser humano: a dignidade.
Este princípio estabelece que Defensoria Pública possui função
inabdicável de proporcionar a inclusão e a assistência jurídica às
classes da sociedade que são menos beneficiadas, buscando a
redução das desigualdades sociais e a promoção da dignidade da
pessoa humana.
Esteves e Silva (2018), esclarecem que a Defensoria Pública é a
única estrutura estatal destinada expressamente a trabalhar
juridicamente para garantir redução das desigualdades sociais,
através da prestação da assistência jurídica integral e gratuita.

A afirmação do Estado Democrático de Direito

Previsto no artigo 1º da CRFB, o Estado Democrático de


Direito busca garantir a soberania popular, tendo uma constituição
elaborada de acordo com a vontade da população, respeitando a
dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, tem-se que a
Defensoria Pública é uma instituição que tem o compromisso de
assegurar e afirmar a democracia e a continuidade da ordem jurídica,
buscando impedir qualquer tipo de autoritarismo e concentrações de
poder.
Pode-se dizer que entre as perspectivas do Estado
Democrático de Direito, encontra-se o direito do indivíduo de acesso
à justiça e a Defensoria Pública, instituição capaz de afirmar este
Estado, busca viabilizar este acesso aos necessitados assegurando a
eles o amplo acesso à justiça, e consequentemente proporcionando a

237
inclusão de classes sociais que restaram excluídas, ou seja, afirmando
a democracia.
Esteves e Silva (2018, p. 382), abordam:
Sem a atuação concreta e efetiva da Defensoria Pública, a sociedade
brasileira estaria impossibilitada de afirmar o Estado Democrático –
pela cidadania sem ação –, de realizar o Estado de Direito – pela
ilegalidade sem sanção – e de caminhar em busca da justiça – pela
imoralidade sem oposição.
É possível observar o quão importante é a presença da
instituição na sociedade, uma vez que esta busca a garantia e
efetivação do Estado Democrático de Direito.

A prevalência e efetividade dos direitos humanos

Sabe-se que os direitos humanos são direitos básicos


garantidos a todo e qualquer indivíduo. De acordo com a
Organização das Nações Unidas (ONU) , os direitos humanos são
“ garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos
contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a
dignidade humana ”.
Por possuírem caráter fundamental para a vida humana, os
direitos humanos não podem ser ignorados, nem tampouco
suprimidos. Sendo assim, a legislação estabeleceu como um dos
objetivos da Defensoria Pública a prevalência e a efetividade dos
direitos humanos. Tal objetivo visa que esta instituição, que é um
verdadeiro instrumento do regime democrático, promova os direitos
humanos, não permitindo que eles sejam ignorados, buscando
identificar e reprimir toda e qualquer ação que vise suprimir esses
direitos.
Nesse sentido, Esteves e Silva (2018, p. 383), prelecionam:

238
Sem dúvida, a atuação ativa e permanente da Defensoria
Pública nesse campo aumenta a expectativa de resposta
efetiva às graves violações dos direitos humanos,
aprimorando a sistemática nacional de proteção da vida
humana digna.
Por restar constitucionalmente incumbida de prestar a assistência
jurídica aos necessitados, a Defensoria Pública conserva permanente
contato com a população carente e marginalizada, possuindo
melhores condições de identificar eventuais violações aos direitos
humanos – que, via de regra, ocorrem justamente em face dos
desprovidos de fortuna.
Como é possível observar, a Defensoria Pública possui a
incumbência de fazer com que os direitos humanos sejam efetivos e
essa efetividade vem da importante atuação da instituição
desempenhada na sociedade. A atuação da Defensoria também é
crucial para que toda e qualquer violação desses direitos sejam
extintos, ou pelo menos amenizados.

A garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do


contraditório

Por último e não menos importante, a Defensoria Pública


instituiu como objetivo a garantia dos princípios constitucionais da
ampla defesa e do contraditório.
Previstos no artigo 5º, inciso LV da CRFB, os princípios da
ampla defesa e do contraditório são tratados no texto constitucional
como direitos fundamentais do indivíduo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de


qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
239
nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
(BRASIL, 1988)
Os referidos princípios garantem ao indivíduo o direito à
informação, ou seja, o indivíduo precisa saber do ajuizamento da ação
da qual é parte, bem como de todos os atos praticados nesta ação.
Ademais, garante ao indivíduo o direito de manifestação,
proporcionando-o momento para apresentar suas alegações e provas
e também o direito de ver suas manifestações e provas serem
analisadas e julgadas pelo julgador.
Nas palavras de Esteves e Silva (2018, p. 384):

Dentro da concepção de direito à informação resta inserida a


adequada e tempestiva notificação do demandado
acerca do ajuizamento da causa e de todos os atos
praticados no processo. Essas notificações devem ser
realizadas preferencialmente de forma real, sendo
admitidas as comunicações fictas apenas em hipóteses
excepcionais. Após a cientificação do demandado,
deve ser garantido o direito de manifestação, sendo
possibilitado à parte apresentar alegações sobre os
elementos fáticos e jurídicos constantes do processo, bem
como produzir todas as provas que possam ter utilidade
na defesa dos seus interesses, de acordo com as
circunstâncias da causa e as imposições do direito. Por fim,
possui a parte o direito de ver suas alegações e provas
analisadas pelo julgador, cabendo ao juiz considerar de
forma séria e detida as razões apresentadas pelos
litigantes.

Para que essa garantia seja concretizada, é necessário

240
profissional devidamente habilitado e como é sabido, nem todos os
indivíduos da sociedade possuem condição de arcar com as custas e
honorários advocatícios dentro de um processo para que haja a
concretização dessa garantia.
Sendo assim, a CRFB assegurou em seu artigo 5º, inciso LXXIV,
juntamente com seu artigo 134, o direito à assistência jurídica integral
e gratuita realizada pela Defensoria Pública aos indivíduos
necessitados. Tal dispositivo assegura que o indivíduo hipossuficiente
concretize seu direito de ampla defesa e do contraditório.

Forma de atuação da Defensoria Pública


Beneficiários

Em conformidade com o disposto na Deliberação 025/2015


(com as alterações da Deliberação 113/2019), que dispõe sobre os
parâmetros para o atendimento pela Defensoria Pública do Estado de
Minas Gerais, a instituição deverá prestar assistência jurídica integral e
gratuita a todos aqueles que são considerados hipossuficientes, seja
por motivo de ordem econômica, jurídica ou em razão de
vulnerabilidade social.
Os beneficiários da Defensoria Pública por questões de ordem
econômica são aquelas pessoas necessitadas financeiramente, ou
seja, aquelas que não possuem condições financeiras de arcar com as
custas do processo ou de contratar advogado sem prejuízo do
próprio sustento ou do sustento de sua família.
Nesse ponto de vista, a Lei Complementar 80/1994, em seu
artigo 1º, determina que:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à


função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como
expressão e instrumento do regime democrático,
241
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na
forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição
Federal. (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de
2009). (BRASIL, 1994)
Segundo Fensterseifer (2015, p. 62), estará caracterizado a
condição jurídica de necessitado, aquele em que o seu sustento e as
suas necessidades básicas e da sua família estiverem ameaçados pelas
custas processuais e honorários advocatícios.

O artigo 5º, inciso LXXIV, da CRFB, estabelece que:


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e
gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
(BRASIL, 1988)
Observa-se que o Estado deverá assegurar a assistência
jurídica aos indivíduos necessitados economicamente, caracterizados
anteriormente, com a isenção de custas e despesas processuais, como
os honorários advocatícios.
Em conformidade com o artigo 2º, §2º, da deliberação
025/2015, os hipossuficientes por motivo de ordem jurídica são:
todos aqueles que, mesmo tendo condições econômicas, se
encontrem indefesos em processos criminais ou infracionais previsto
no Estatuto da Criança e do Adolescente, aqueles que se enquadrem
no casos legais de curadoria na forma do artigo 4º, XVI, da Lei
Complementar 80/1994, toda mulher em situação de violência

242
doméstica e familiar, na forma do artigo 28 da Lei 11.340/2006, toda
pessoa com deficiência, na forma do artigo 79, §3º, da Lei
13.146/2015, toda criança e adolescente, na forma do artigo 141, da
Lei 8.069/1990, e toda pessoa em execução de pena, na forma do
artigo 61, VIII, da Lei 7.210/1984.
Essa mesma deliberação, caracterizou em seu artigo 2º, §3º, os
hipossuficientes por motivo de vulnerabilidade social:
§3º. Consideram-se hipossuficientes em razão de vulnerabilidade
social os grupos que, independente da condição econômica,
merecem especial proteção do Estado, em razão de circunstância que
os coloque em situação de risco ou desvantagem social, tornando-os
mais suscetíveis de sofrerem violações em seus direitos. (BRASIL,
2015)
Ainda nessa deliberação foram considerados vulneráveis
outros grupos, como por exemplo, os indígenas, quilombolas e
demais comunidades tradicionais, vítimas de grandes desastres,
atingidos por grandes empreendimentos públicos ou privados, nas
questões relacionadas ao impacto socioambiental e pessoas com
sofrimento mental.
Nesse sentido, Fensterseifer (2015, p. 63), preleciona:

Para além da perspectiva estritamente econômica, é


importante, para atender aos ditames constitucionais de
forma plena, a proteção especial de determinados grupos
sociais, em razão da presunção da sua vulnerabilidade
existencial, o que faz com que seja atribuída à Defensoria
Pública a tutela e promoção dos seus direitos. É bem
verdade que, muitas vezes, sobretudo diante da
desigual realidade social brasileira, a vulnerabilidade
econômica se somará a outras formas de vulnerabilidade
existencial, potencializando ainda mais o grau de
vulnerabilidade e privação de direitos de certos
indivíduos.
243
Ressalta-se que a Defensoria Pública analisará o caso concreto,
observando as normas legais e os atos administrativos convenientes,
para determinar se é possível ou não o patrocínio da instituição e se
aquele indivíduo ou grupo social poderá ser caracterizado como
hipossuficiente.
No caso dos hipossuficientes por motivo de ordem
econômica, deverá ser analisado se o indivíduo se enquadra nos
requisitos. A deliberação 025/2015, por exemplo, em seu artigo 3º,
aborda as condições necessárias para se enquadrar como
hipossuficiente econômico:

Art. 3º. Considera-se hipossuficiente, sob o aspecto


econômico, toda pessoa natural, nacional ou estrangeira,
residente ou não no Brasil, que atenda, cumulativamente, às
seguintes condições:
I – renda mensal individual não superior ao valor de 3 (três)
salários mínimos ou renda mensal familiar não superior a 4
(quatro) salários mínimos;
II – não seja proprietária, possuidora ou titular de direito
sobre bens móveis, de valor superior a 40 (quarenta) salários
mínimos, ressalvados os instrumentos de trabalho;
III – não seja proprietária, possuidora ou titular de direito
sobre aplicações financeiras ou investimentos de valor
superior a 40 (quarenta) salários mínimos;
IV – não seja proprietária ou possuidora de bens imóveis em
valor total superior a 300 (trezentos) salários mínimos.
(BRASIL, 2015)
Importante destacar que a atuação em razão da
hipossuficiência jurídica ou da vulnerabilidade social, independe da
hipossuficiência econômica do beneficiário.
Cabe destacar que, além da pessoa física, a pessoa jurídica de
direito privado também poderá requerer assistência jurídica integral e
244
gratuita, desde que devidamente comprovado que não possua
condições de arcar com as despesas processuais e os honorários de
advogado, sem prejuízo para a regular continuidade das atividades.

Assistência jurídica integral e gratuita

Primeiramente é importante realizar uma breve análise da


evolução da assistência jurídica gratuita no país. É sabido que em
1934 foi promulgada Constituição Federal de 1934 que previa que a
União e os Estados deveriam conceder aos necessitados a assistência
judiciária, criar órgãos especiais para garantir essa assistência e
garantir a isenção de custas e taxas. Segundo Esteves e Silva (2018),
essa constituição colocou à assistência judiciária à estatura de norma
constitucional e simultaneamente positivou a gratuidade da justiça.
Pouco depois, na Constituição de 1937, houve retrocesso, pois esta
não previu qualquer direito a respeito da assistência judiciária. Esse
retrocesso teve fim com a promulgação da Constituição de 1946, que
devolveu a estatura de norma constitucional da assistência judiciária,
porém não previu órgão para garantir a assistência.
Nessa perspectiva, foi editada a Lei nº 1.060 em 5 de fevereiro
de 1950, marco importante nesse cenário, estabelecendo normas para
a concessão de assistência judiciária gratuita aos necessitados. Tal Lei
estabeleceu que faria jus à gratuidade da justiça e à assistência
judiciária gratuita “todo aquele cuja situação econômica não lhe
permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado,
sem prejuízo do sustento próprio ou da família”.
Com a chegada da Constituição de 1967 o cenário não
mudou. Esteves e Silva (2018, p. 57) abordam que “do mesmo modo
que a Constituição anterior, a Carta Política de 1967 previu a
assistência judiciária como norma não autoaplicável, dependendo sua

245
regulamentação da edição de lei infraconstitucional. ”
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição da
República Federativa do Brasil, que colocou a assistência jurídica
integral e gratuita como sendo um direito fundamental e
autoaplicável. Ademais, a Constituição passou a utilizar a expressão
assistência jurídica ao invés de assistência judiciária, fato que trouxe
ampliação do serviço assistencial. Nesse sentido, Esteves e Silva (2018,
p. 59) explicam:

Deve-se observar que a nova Constituição, ao utilizar-se do


vocábulo “assistência jurídica” em substituição à expressão
“assistência judiciária”, acabou aumentando
significativamente a amplitude do serviço assistencial
fornecido à população carente, abrangendo dentre os direitos
fundamentais não apenas a assistência legal para a
propositura, defesa e acompanhamento das ações judiciais,
mas também a orientação jurídica extrajudicial.
Além disto, a Constituição de 1988 estabeleceu a entidade
responsável pela assistência jurídica gratuita, prevendo a Defensoria
Pública como sendo a instituição essencial à função jurisdicional do
Estado.
Em um segundo momento, destaca-se que a expressão
assistência jurídica compreende toda e qualquer atividade de caráter
assistencial relativo ao Direito e consiste no auxílio, contribuição ou
no apoio prestado no campo jurídico, seja dentro ou fora de uma
relação processual.
Nas palavras de Esteves e Silva (2018, p. 165):

Constituem arquétipos de assistência jurídica, por exemplo, o


esclarecimento de dúvidas, a orientação jurídica preventiva, a
elaboração de contratos, o auxílio legal para a conclusão de
negócios jurídicos em geral, a composição extrajudicial de
conflitos, a atuação em processos administrativos, a defesa de

246
interesses em instâncias extrajudiciais, a conscientização da
população sobre seus direitos etc. Não podemos esquecer,
ainda, que a assistência jurídica, por englobar integralmente o
conceito de assistência judiciária, também pode ser
caracterizada pela propositura de ações judiciais, pela
apresentação de defesa e pela atividade de acompanhamento
do processo judicial, em todas as instâncias, até o seu
encerramento.

Ao analisar a expressão assistência jurídica, é relevante citar


novamente o inciso LXXIV do artigo 5º, bem como o artigo 134,
ambos da CRFB. Em conjunto, os artigos da Carta Magna afirmam que
o Estado deverá prestar assistência jurídica integral e gratuita aos
necessitados. Ou seja, essa assistência será direcionada para garantir
ao hipossuficiente todos os meios necessários à apropriada tutela de
seus direitos, toda essa assistência se prestará de forma gratuita, a
utilização do serviço não poderá ser condicionada ao pagamento de
valores pelo assistido hipossuficiente e a Defensoria Pública será a
instituição que tem a incumbência de prestar tal assistência a esses
necessitados.
Assim, Rocha (2013, p. 79), ensina que:

Por clara e evidente leitura dos artigos 5º, LXXIV, e 134 da


Constituição Federal verifica-se que o Estado, através da
Defensoria Pública, deve prestar assistência jurídica integral e
gratuita aos que por insuficiência de recursos tenham
necessidade de Justiça.
Ainda nesse sentido, Esteves e Silva (2018, p. 165) esclarecem
que “assistência jurídica integral e gratuita tem como objetivo
fundamental propiciar aos deserdados de fortuna o pleno e perene
acesso à justiça, garantindo a democratização e a universalização
social do acesso à ordem jurídica justa. ”

247
A DEFENSORIA PÚBLICA COMO PILAR DA GARANTIA
CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA AOS
HIPOSSUFICIENTES

Como analisado anteriormente a Defensoria Pública é um


instrumento de caráter essencial à justiça e à sociedade em geral e o
acesso à justiça é uma garantia do cidadão previsto no texto
constitucional. Nesse sentido, é imperioso afirmar que Defensoria
Pública é considerada pilar da garantia constitucional de acesso à
justiça aos hipossuficientes.
Como é sabido, é totalmente improvável tratar da garantia
constitucional de acesso à justiça aos hipossuficientes sem que haja
referência à Defensoria Pública, em razão de a instituição ter por
finalidade garantir aos hipossuficientes a proteção de seus direitos e
interesses, de forma justa e efetiva, bem como o acesso destes ao
Poder Judiciário.
Quando se fala em acesso à justiça, tem-se a ideia de que
todos devem ter tal acesso. Entretanto, levando em consideração a
sociedade contemporânea e até mesmo as passadas e diversos
fatores históricos, o que prevalece no cenário são as pessoas
hipossuficientes com pouco ou quase nenhum acesso à justiça e aos
direitos mínimos.
Vale destacar novamente que a atuação da defensoria vai
além da proteção às pessoas carentes financeiramente. A atuação da
instituição engloba também pessoas ou grupos sociais que se
encontram em situação de vulnerabilidade em relação aos seus
direitos fundamentais e a sua dignidade.
Diante desse cenário, destaca-se a importância da Defensoria
Pública, uma vez que ela é capaz de promover os direitos das pessoas
menos favorecidas economicamente e garantir o direito fundamental
248
de acesso à justiça destas pessoas. Isto é, é inegável que a instituição
tem muito a contribuir nesse cenário e por isso pode ser tratada
como um pilar da garantia constitucional de acesso à justiça aos
hipossuficientes.
Diante desses aspectos, ressalta-se o posicionamento do
Supremo Tribunal Federal acerca da Defensoria Pública:

DEFENSORIA PÚBLICA – RELEVÂNCIA – INSTITUIÇÃO


PERMANENTE ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO
ESTADO – O DEFENSOR PÚBLICO COMO AGENTE DE
CONCRETIZAÇÃO DO ACESSO DOS NECESSITADOS À
ORDEM JURÍDICA. A Defensoria Pública, enquanto instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e
das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e
necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não
pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo
Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de
pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável
processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada
organização e da efetiva institucionalização desse órgão do
Estado. De nada valerão os direitos e de nenhum significado
revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles
se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou
transgredidos por particulares – também deixarem de contar
com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como
aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função
precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional
(CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão
concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do
Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por
pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da
norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito
consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da
República. Direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que
249
se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e
liberdades – Direito essencial que assiste a qualquer pessoa,
especialmente àquelas que nada têm e de que tudo
necessitam. Prerrogativa fundamental que põe em evidência –
cuidando-se de pessoas necessitadas (CF, ART 5º, LXXIV) – A
significativa importância jurídico-institucional e político-social
da Defensoria Pública. (STF – Pleno – ADI nº 2.903/PB – Rel.
Min. Celso de Mello, decisão: 1º-12-2005)
Este posicionamento coloca a Defensoria como uma
instituição promovedora dos direitos e liberdades das pessoas
carentes no sentido econômico e constata a importância desta para a
concretização do direito ao acesso à justiça.

Barreiras para a concretização da garantia constitucional de


acesso à justiça

O acesso à justiça é uma garantia prevista no texto


constitucional. Apesar de ser uma garantia de extrema relevância e
prevista no ordenamento jurídico, é sabido que a sua efetivação não
ocorre como deveria. O que se observa dentro da sociedade é um
grande número da população que se encontra sem acesso mínimo à
justiça.
Existem diversas barreiras para a concretização desta garantia
e entende-se que a que ganha destaque na sociedade é a
desigualdade socioeconômica. Sabe-se que essa barreira é a que
prevalece e isso ocorre devido a diversos fatores, inclusive históricos.
Para Rodrigues (1994) vários são os impasses para a
efetivação do acesso à Justiça: o quadro de miserabilidade da
população brasileira, a ausência de informações e orientações
jurídicas, a legitimidade para agir, a capacidade postulatória, a técnica
processual e o Poder Judiciário.

250
Já para Cappelletti e Garth (1988, p. 15-26), as principais
barreiras para a concretização do acesso à justiça são as custas
processuais, a possibilidade das partes e os problemas especiais dos
direitos difusos.
Nessa perspectiva, Grostein (2014) compreendeu que existem
obstáculos de três naturezas: obstáculos de natureza financeira, isto é,
para se demandar há um custo, como por exemplo custas
processuais, e isso passa a ser um obstáculo para uma pessoa
hipossuficiente; obstáculos processuais, quer dizer as dificuldades de
se chegar a uma ordem jurídica justa; e obstáculos organizacionais
significa que estão ligados à dificuldade para a população
hipossuficiente de reconhecer a existência de um direito exclusivo de
natureza coletiva.
Há de se ressaltar que, além das barreiras citadas, existem
também o fato de que nem todas as comarcas do país possuem a
presença da Defensoria Pública, que seria a instituição capaz de
promover o acesso à justiça de forma integral e gratuita. Com a
presença da instituição, pode-se dizer que ocorreria a redução de
forma significativa desses obstáculos.
Isto posto, observa-se ser indispensável a superação desses
obstáculos para que ocorra a concretização da garantia constitucional
de acesso à justiça. Destaca-se que além de permitir o acesso do
hipossuficiente à justiça, é necessário eliminar ou pelo menos reduzir
os obstáculos existentes para que assim seja possível falar em uma
justiça e em um acesso à ela de forma igualitária à todas as pessoas.

Apontamentos críticos sobre a ausência de estrutura estatal para


o acesso à justiça aos hipossuficientes

A ausência de estrutura estatal para o acesso à justiça aos

251
hipossuficientes, é um fato na sociedade. Diversos são os fatores que
contribuem para essa ausência de estrutura.
Em um primeiro momento, é importante atentar-se para a
condição de pobreza no país. Ao observar a sociedade
contemporânea, o que pode-se apurar, é um cenário com milhares de
pessoas em estado de pobreza. De acordo com o site Jornal da USP32
(2019), o Brasil tem aproximadamente 55 milhões de pessoas que se
encontram nesse estado. Isto é, pessoas vivendo com menos de um
salário mínimo, sem acesso a direitos básicos, como por exemplo,
saúde e educação e não seria diferente com o direito de acesso à
justiça.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
em pesquisa realizada em 2013, constatou-se que de 2.680 comarcas
existentes no país, somente 754 são atendidas pela Defensoria
Pública. Nessa mesma perspectiva, o IPEA (2013) verificou que de
8.489 cargos de defensor público criados no país, somente 5.054
estão providos.
Observados brevemente os dados do IPEA (2013)33, é possível
verificar a divergência entre a quantidade de pessoas hipossuficientes
que necessitam de direitos básicos e de acesso à justiça e a supressão
da presença de defensores e defensoria públicas para assegurar o
acesso à justiça, através da assistência jurídica integral e gratuita a
essas pessoas. O número de pessoas hipossuficientes que necessitam
de acesso à justiça está muito além do número de defensores e
defensoria públicas necessárias para atuar em prol destas pessoas,

32
Dados retirados do site Jornal da USP disponível em:
https://jornal.usp.br/atualidades/brasil-tem-55-milhoes-de-pessoas-abaixo-
da-linha-da-pobreza/. Acesso em 25 out. 2020.
33
Dados retirados do site do IPEA disponível em:
https://www.ipea.gov.br/sites/images/downloads/mapa_da_defensoria_publi
ca_no_brasil_impresso.pdf. Acesso em: 5 nov. 2020.
252
isto é, a conta não fecha.
Os dados mostram que não há defensores públicos o bastante
para fornecer as garantias à população hipossuficiente, e
consequentemente, não há acesso à justiça de forma democrática,
igualitária. Os números mostram o quão injusto é o cenário e
ausência total de estrutura para assegurar acesso à justiça e a direitos
básicos a todos cidadãos.
Nesse mesmo sentido, é necessário expor sobre a questão do
volume de trabalho sob a responsabilidade dos defensores públicos.
O IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil (2015)34 realizou
pesquisa nessa perspectiva:

Gráfico 1 - Percepção dos Defensores Públicos Estaduais quanto ao


volume de trabalho sob sua responsabilidade. Fonte: IV Diagnóstico
da Defensoria Pública no Brasil (2015).

Como pode-se observar no gráfico em questão, muitos


defensores públicos acreditam que a demanda de trabalho sob sua
responsabilidade é excessiva ou muito excessiva. O diagnóstico (2015)
aponta que o volume de tarefas é superior àquele que seria
adequado para o bom desempenho de atividades dos defensores.
Este fato é crucial para que as defensorias e seus defensores não

34
Dados retirados do IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil (2015)
disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/downloads/iv-
diagnostico-da-defensoria-publica-no-brasil.pdf. Acesso em: 5 nov. 2020.
253
desempenham uma boa atuação e consigam concretizar o acesso à
justiça a todos de forma igualitária. Como é possível perceber mais
uma vez: é muita demanda para pouco defensor público.
Em um segundo momento, é observado a falta de estrutura
física das defensorias para atendimento ao hipossuficiente. Observa-
se que boas condições de estrutura física das defensorias públicas é
uma condição crucial para a concretização da garantia da assistência
jurídica integral e gratuita, bem como para a concretização da boa
atuação dos defensores públicos. É sabido que a deficiência de
estrutura para atendimento dos hipossuficientes compromete de
forma negativa a satisfação do direito fundamental de acesso à
justiça.
Nessa perspectiva, o IV Diagnóstico da Defensoria Pública no
Brasil (2015), verificou os seguintes dados, acerca da avaliação dos
Defensores Públicos Estaduais quanto aos gabinetes e espaços para a
realização de atendimento ao público:

A pesquisa com os Defensores dos estados indica que 88,7%


contam com gabinete para trabalho, sendo 49% individual e
39,7% coletivo. A parcela dos que não têm gabinete para
trabalho é de 11,3% dos Defensores Públicos dos Estados. Em
relação à existência de espaço físico destinado
exclusivamente para o atendimento do público, 37,4% dos
Defensores Públicos afirmaram não ter disponível esses
espaços nas unidades em que atuam, indicando um cenário
preocupante quanto à qualidade desses atendimentos. A
avaliação dessas estruturas de trabalho e atendimento revela
mais detalhes sobre essas condições. (Ministério da Justiça. IV
Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Brasília, 2015)
Diante desses dados, é possível perceber que ainda é
realidade nas Defensorias Públicas do país, a falta de uma boa
estrutura física. Fato que prejudica a atuação dos defensores públicos
e, consequentemente, a efetivação da assistência jurídica integral e
254
gratuita prestada pelas defensorias.
É sabido que existem diversos problemas estruturais que
impedem a concretização da garantia do acesso à justiça. Impasses
estes que devem ser solucionados pelo Estado, visto que, em virtude
desses impasses, milhares de pessoas no país não conseguem
alcançar diretos básicos necessário para uma vida digna.
É essencial que ocorra a fortificação da Defensoria Pública no
país. Como é possível observar, com o aumento significativo da
quantidade de Defensores Públicos, bem como da instituição nas
diversas comarcas do país, consequentemente, mais eficiente será a
concretização da garantia constitucional de acesso à justiça.
É necessário garantir às pessoas hipossuficientes, não somente
aos hipossuficientes econômicos, mas também aos de ordem jurídica
ou em razão de vulnerabilidade social, acesso à justiça de forma justa
e igualitária, para que assim não ocorra a violação de garantias
constitucionais.

Papel da Defensoria Pública na concretização do Estado


Democrático de Direito

A Defensoria Pública desempenha papel crucial na


concretização do Estado Democrático de Direito.
Sobre o Estado Democrático de Direito, Esteves e Silva (2018,
p.382), ensinam que:

Apesar das pequenas variações semânticas em torno do


conceito de Estado Democrático de Direito, essa fórmula
condensa duas qualidades importantes do Estado
Constitucional contemporâneo: (i) o Estado Democrático, que
denota a organização política em que o poder emana do
povo, que o exerce diretamente ou através de representantes
eleitos, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto,
255
em eleições livres e periódicas; e (ii) o Estado de Direito, que
proclama a primazia da lei e a observância obrigatória da
legalidade pela administração pública, concretizando o
respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias
fundamentais incorporados à ordem constitucional.
Conforme estabelece a CRFB, em seu artigo 134, a Defensoria
Pública é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado e
um instrumento do regime democrático. Ademais, a Lei
complementar 80/1994 que disciplina a instituição, estabelece em seu
artigo 3º-A, inciso II, que a afirmação do Estado Democrático de
Direito é um dos objetivos da Defensoria Pública.
Nessa perspectiva, Esteves e Silva (2018, p. 382) discorrem:
“como função essencial à justiça, a Defensoria Pública possui a
irrenunciável incumbência de garantir a perpetuidade da democracia
e a continuidade da ordem jurídica, afastando a tendência humana ao
autoritarismo e à concentração de poder. ”
Com isso, observa-se que a instituição desempenha o papel
de concretizar o Estado Democrático de Direito, dentre outras formas,
a instituição deve buscar garantir e promover a democracia, os
direitos fundamentais do cidadão, a dignidade da pessoa humana,
bem como concretizar o direito ao acesso à justiça.
Pode-se dizer que sem a presença da instituição de forma
efetiva no país, é bem mais difícil se falar em igualdade e acesso de
forma justa à justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo analisar o papel da


Defensoria Pública na garantia constitucional do acesso à justiça
através da assistência jurídica aos hipossuficientes.
Foi possível verificar que, o acesso à justiça é um direito
256
fundamental de extrema importância ao cidadão e está previsto na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ademais,
verificou-se que o referido direito deve ser garantido a todos
indivíduos de forma justa e igualitária. O acesso à justiça a todos é
uma garantia primordial ao Estado Democrático de Direito, levando
em consideração que em um Estado onde não há essa garantia,
também não há democracia.
Em seguida, ao analisar a Defensoria Pública, concluiu-se que
esta é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado e de
extrema relevância à sociedade. A Defensoria Pública, detém a
incumbência de garantir às pessoas hipossuficientes, seja de ordem
econômica, jurídica ou em razão de vulnerabilidade social, o acesso à
justiça e a assistência jurídica de forma integral e gratuita. Por esse e
outros motivos, a Defensoria Pública é considerada como o pilar da
garantia constitucional do acesso à justiça aos hipossuficientes.
Foi entendido também que existem diversas barreiras para a
efetivação da garantia constitucional de acesso à justiça. Dentre elas,
questões econômicas são as que mais se destacam. Nesse mesmo
sentido, foram feitos apontamentos críticos sobre a ausência de
estrutura estatal para o acesso à justiça aos hipossuficientes e pôde-
se entender que a falta de defensores e defensorias públicas, bem
como de estrutura física para atuação destas, são fatores que
prejudicam consideravelmente a concretização do acesso à justiça aos
hipossuficientes.
Por fim, e não menos importante, concluiu-se que a
Defensoria Pública é uma instituição que desempenha um papel
crucial na concretização do Estado Democrático de Direito. O texto
constitucional caracteriza a instituição como um instrumento do
regime democrático. Além do mais, observou-se que um dos
objetivos da Defensoria é a afirmação do Estado Democrático de
Direito.
257
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259
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478-501, abr. 2013.

260
O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
EO PRINCÍPIO DA ISONOMIA: ANÁLISE DE DECISÕES DO
TJMG

Karine de Paula Pinheiro


Ana Flavia Delgado Oliveira35
RESUMO

A morosidade da justiça é, hoje, um dos principais entraves para


assegurar a efetividade da prestação de serviços do poder judiciário à
população. Buscando aporte no Código de Processo Civil, na Lei nº
13.105/15 e fazendo um alinhamento destes com o princípio da
Isonomia da Constituição Federal de 1888, traçou-se uma linha de
discernimento acerca da possibilidade de analisar diferentes decisões
cujo teor é homólogo e, logo, sujeitos à mesma atuação da lei. Neste
sentido, a presente pesquisa busca analisar o incidente de resolução
de demandas repetitivas e o princípio da isonomia. Esta análise se
mostra pertinente dado que todos os dias são dirigidos para a
apreciação do poder judiciário muito processos, dentre os quais,
muitos demandam resoluções semelhantes, o que, leva ao
abarrotamento do judiciário e a percepção para o cidadão que a
justiça é lenta. A necessidade de otimizar o andamento dos
processos, aliado com a obrigação de prestar um serviço mais rápido
para o cidadão sem perder de vista a eficácia e a eficiência. Desta
forma, discutir como o poder judiciário vem aplicando o incidente de
resolução de demandas repetitivas frente ao princípio da isonomia,
especialmente nas decisões do TJMG tornou-se o objetivo geral da
pesquisa. Para conseguir tal intento, foi realizada uma pesquisa

35
Ana Flavia Delgado Oliveira – Advogada, especialista em Direito Civil e
Processo Civil, professora de Direito Civil e Processo Civil na FUPAC/Mariana.
261
teórica, básica e qualitativa, tendo como norte o método o método
dedutivo, pois já existe entendimento previsto em lei sobre o tema,
além de análise jurisprudencial para compreender a aplicação prática
do instituto. Entende-se que o instrumento de IRDR é uma
ferramenta essencial para mitigar a morosidade judicial sem perder a
prestação de serviços jurídicos por meio de um microssistema de
julgamentos repetidos sem perder de vista a isonomia, princípio
segundo o qual todos os cidadãos abarcados pela Constituição
Federal de 1988 tem direito à igualdade.

Palavras-chave: Código de Processo Civil – Lei 13.105/15. O


Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Princípio da
Isonomia. Constituição Federal de 1988. Julgados do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais.

INTRODUÇÃO

É de conhecimento público, por meio de um provérbio


popular, que a “justiça tarda, mas não falha”; o que mostra a
percepção das pessoas acerca da morosidade da justiça e, também,
da confiança na mesma. Esta morosidade ocorre por diversos motivos,
porém, um dos principais seja o grande número de judicialização de
demandas que diariamente surgem no Poder Judiciário. Grande parte
desses processos diz respeito a conteúdos que guardam certa
identidade entre si. Diante desses inúmeros processos repetitivos
que é um dos fatores determinantes para a ausência de efetividade
da prestação jurisdicional célere, o Código de Processo Civil de 2015
(BRASIL, 2015) no seu artigo 976, apresentou um novo instituto
chamado Incidente de Resolução Demandas Repetitivas (IRDR) como
aponta Santos (2018, p. 200):

262
O macrosistema de julgamento repetitivos, instaurado com o
Código de Processo Civil de 2015, visa combater a repetição
de submissão de uma mesma questão de direito ao Poder
Judiciário. Dentre as técnicas processuais desta nova
metodologia encontra-se o Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas (IRDR).

Esse instituto busca solucionar demandas repetitivas no


judiciário, zelando pela rápida solução da lide, obtendo maior
efetividade processual, garantindo uma igualdade nas decisões e
assim combatendo a morosidade processual. Nesse viés, pode-se
observar a relação existente entre o princípio da isonomia que declara
a igualdade de todos em face da lei e o IRDR dado que o principal
objetivo do instituto é manter a isonomia nas decisões e gerar uma
maior segurança jurídica.
Desta forma, o presente artigo busca discutir como o poder
judiciário vem aplicando o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas frente ao princípio da isonomia, especialmente nas
decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). De modo que
se torna essencial descrever o princípio da isonomia conforme a
Constituição Federal de 1988, contextualizar o incidente de resolução
de demandas repetitivas no viés do Código de Processo Civil de 2015,
e por fim coletar os julgados do TJMG analisando como o poder
judiciáriotem aplicado tal instituto em suas decisões.
Para tanto, o método de pesquisa utilizado foi o dedutivo que,
conforme Demo (1985, p. 102) “porque parte do geral para o
particular. A objeção que a indução faz à dedução é de ser
apriorística”. Entende-se que já existe entendimento previsto em lei
sobre o tema, a pesquisa partirá de uma premissa maior, a lei, para
uma premissa menor, que será a análise dos julgados do TJMG. Vale
263
ressaltar que, a pesquisa pode ser classificada como teórica, básica e
qualitativa que ainda de acordo com Demo (1985, p. 16-23) “a
pesquisa teórica é aquela que monta e desvenda quadros teóricos de
referência (...) pode-se aduzir o fato de que realidades sociais se
manifestam de formas mais qualitativas”. Haja visto que, busca-se
aprofundar o conhecimento em um assunto disponível na ciência,
utilizando se de doutrinas, teses, julgados e códigos. Esta mesma
pesquisa pode ser classificada também como pesquisa bibliográfica,
pois serão utilizados livros, teses, que abordam o tema, que servirão
de base para a pesquisa. E por fim, será conjuntamente uma
pesquisa documental, pois terá análise da legislação, visto que, o
instituto que é tema de pesquisa, é uma modalidade do CPC/15 e o
princípio utilizado está expressamente previsto na CF/88. Recorrendo
ainda mais uma vez a Demo (1985, p. 24) que ensina que “sobretudo
em ciências sociais a leitura bibliográfica é vital, porque, mais do que
resultados já obtidos, temos discussões intermináveis, que só
conseguimos acompanhar pela leitura assídua”. Esta etapa
fundamentou a construção do escopo do artigo. Neste sentido,
realizar-se-á um estudo na CF/88, para poder descrever de forma
crítica o princípio da isonomia em doutrinas, teses, artigos sobre o
IRDR, nos quais, foram usados autores como Santos (2018), Luchese
(2017), Araújo (2015), Cunha (2011), Wanderley (2017), Canotilho
(2000), Reale (1994) dentre outros.
Dividiu-se o trabalho em quatro partes, a saber: primeiro,
expõe-se o problema das demandas repetitivas e o abarrotamento do
judiciário. Posteriormente, contextualizando o incidente de resolução
demandas repetitivas no viés do CPC/15, bem como também a
classificação da pesquisa. Por sua vez, a segunda parte apresenta a
fundamentação constitucional do IRDR. E logo após, descrever-se-á
importância da segurança jurídica e a isonomia no tratamento das
demandas repetitivas. Já na terceira parte, serão analisados e
264
comentados os julgados coletados e como o TJMG vem aplicando o
IRDR em suas decisões frente ao princípio da isonomia. Por fim,
elaborar-se- á uma conclusão embasada no escopo teórico
construído.

O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS

O problema de demandas repetitivas no poder judiciário


brasileiro

É bem razoável pensar que uma quantidade exagerada de


pessoas que passem pela mesma situação ingresse em juízo na busca
do reconhecimento de seus direitos. Daí surgem as Demandas
Repetitivas que podem ser definidas como processos que tramitam
paralelamente e que possuem a mesma questão de direito. Para
nortear as decisões jurídicas, há o ordenamento jurídico e os
princípios basilares que os alicerçam que, conforme Bandeira de
Mello:

Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,


disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas
compondo lhes o espírito e servindo de critério para a sua
exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a
lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (MELLO, 2011,
p.230).

Acerca da vultosa quantidade de processos que se acumulam


no judiciário segundo destaca Machado (2016, p. 12), hoje, “fala-se
em “crise da Justiça” causada pela sobrecarga de processos nos
tribunais, a lentidão processual, a ausência de uniformidade da

265
jurisprudência e a burocratização procedimental”. No entanto, a
busca pela celeridade a qualquer custo não pode e não deve mitigar
as garantias processuais como muito bem pondera Jayme (2008)
citado por Machado (2016, p. 11):

O conteúdo e alcance das medidas aceleradoras da entrega


da prestação jurisdicional, com vistas à realização do direito
fundamental à duração razoável do processo, somente terão
validade se essas medidas forem harmônicas com os demais
princípios constitucionais do devido processo legal,
porquanto nem só agilidade demanda o processo para prover
justiça. A Constituição abrange as representações,
experiências e expectativas dos cidadãos a respeito de suas
liberdades individuais e, portanto, a construção de um
conceito de efetividade do processo deve contemplar a
garantia de tutela jurisdicional efetiva enquanto manifestação
de proteção judicial efetiva, que é basilar do Estado
Democrático.
A busca pela rapidez deve ser acompanhada pelo
oferecimento das devidas garantias legais em cada processo com
vistas a assegurar a isonomia. No entanto, o imenso volume de
processos é um problema real, que abarrota o sistema jurídico com
muitos processos baseados em conflitos iguais. Neste sentido,
também Bastos (2010, p. 97) ensina que:

os processos que versam sobre os conflitos massificados


lidam com conflitos cujos elementos objetivos (causa de pedir
e pedido) se assemelham, mas não chegam a se identificar.
Cuida-se de questões afins, cujos liames jurídicos materiais
concretos são similares, entre si, embora não consistam num
só e mesmo vínculo.

Desse modo, podem haver vários processos com questões de


fatos distintas e ainda assim serem considerados como repetitivos,
266
caso possuem as mesmas questões de direito, visto que utilizam
fundamentos idênticos, que somente a partir da interpretação da
norma legal referente ao caso, poderãoser solucionados. O acúmulo
de demandas repetitivas pode ser atribuído à progressiva procura da
população brasileira ao Poder Judiciário, a insuficiência da
capacidade da estrutura judicial no trato de demandas
individuais e ao mesmo tempo também, pela deficiência das ações
coletivas que versem sobre causas semelhantes. Por outro lado, o
direito de acesso universal à justiça deve ser assegurado.

O acesso à justiça é um direito fundamental, sem o qual os


demais direitos não possuem garantia de efetividade. Essa
garantia depende em grande parte da existência do direito de
ação e do processo como instrumentos de acesso e mediação
para o exercício da atividade jurisdicional do Estado. O direito
de acesso à justiça, sem instrumentos processuais que o
assegurem em tempo razoável, sem um Poder Judiciário
consciente de suas funções constitucionais, políticas e sociais,
é um mero discurso vazio. O acesso ao Judiciário é, portanto
um componente fundamental do acesso à justiça, entendido
esse como acesso à ordem jurídica justa (RODRIGUES, 1994,
p. 26).
Igualmente, Didier Jr. ensina que cada processo é único e deve
ser tratado assim.

O processo não tem que ser rápido/ célere: o processo deve


demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso
submetido ao órgão jurisdicional. (...) A partir do momento
em que se reconhece a existência de um direito fundamental
ao processo, está-se reconhecendo, implicitamente, o direito
de que a solução do conflito deve cumprir necessariamente,
uma série de atos obrigatórios, que compõem o conteúdo
mínimo do devido processo legal. A exigência do
contraditório, o direito à produção de provas e aos recursos,

267
certamente, atravancam a celeridade, mas são garantias que
não podem ser desconsideradas ou minimizadas. É preciso
fazer o alerta, para evitar discursos autoritários, que pregam a
celeridade como valor insuperável (DIDIER JR., 2010, p. 59
apud MACHADO, 2016, p. 11).

Na tentativa de solucionar tais questões, conciliando o


acesso universal a uma prestação jurisdicional efetiva, segura e
isonômica, foi que o código de processo civil de 2015 apresentou um
novo instituto, que tem o intuito reunir as demandas semelhantes e
com fundamento na mesma causa de pedir, para que tenha uma
mesma decisão, buscando obter isonomia na prestação jurisdicional.
Este instituto é chamado de incidente de resolução de demandas
repetitivas – IRDR.

Introdução ao novo Incidente de Resolução de


Demandas Repetitivas – IRDR

O Poder Judiciário brasileiro constantemente precisa ser


aperfeiçoado, afinal se há sempre as mesmas falhas é notório que
algo precisa ser melhorado. Com o tempo, começou se a
perceber que casos iguais, conduzidos para julgamento, não
estavam tendo a mesma decisão, ou seja pretensões idênticas, às
vezes, recebiam julgamentos diferentes o que, se opõe frontalmente
ao princípio da isonomia. Tal princípio encontra-se formalmente
descrito no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, determina a
igualdade de todos em face da lei, sem distinção de qualquer
natureza, prevalecendo a imparcialidade judicial (BRASIL, CF 1988).
Para além desta constatação inicial, esta situação mitiga a redução de
segurança jurídica. A partir dessas constatações, iniciou-se um
movimento no sistema processual brasileiro de introdução de um
268
mecanismo com o intuito de aferir soluções jurisdicionais, coerentes e
uniformes a questões homogêneos veiculados em demandas não
coletivas conforme elucida Cunha (2011, p. 259) são estabelecidas:

técnicas de processamento e julgamento de causas


repetitivas, com a finalidade de conferir racionalidade e
uniformidade na obtenção dos seus resultados. [...] Pretende-
se [...] racionalizar o julgamento das causas repetitivas,
agilizando seu resultado e evitando a divergência
jurisprudencial, com o que se alcança a isonomia entre as
pessoas que figuram em processos repetitivos, cujos
fundamentos são uniformes.

Isto posto, de modo a perseguir a finalidade de assegurar


isonomia e segurança jurídica, sobretudo em demandas repetitivas,
no Código de Processo Civil de 2015 foram introduzidas normas que
ativem a uniformizaçãoe a estabilização da jurisprudência, de modo a
estimular e garantir a padronização de tratamento dessas causas.
Uma dessas técnicas é o Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas (IRDR), elucidado nos artigos 976 a 987 da Lei nº
13.105/2015 em vigor desde março de 2016, uma novidade
introduzida no Código de Processo Civil de 2015 e objeto de estudo
no presente artigo. Por este instrumento, foi possível homogeneizar
os processos parecidos, ou seja, colocar conflitos iguais pareados com
vistas a elencar para os mesmos um julgamento igual, o que,
assegura a isonomia entre os cidadãos.

FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO INCIDENTE DE


RESOLUÇÃODE DEMANDAS REPETITIVAS - IRDR
Segurança jurídica e isonomia no tratamento de demandas
repetitivas

269
O IRDR assegura garantias constitucionais no âmbito do
processo civil, quais sejam: segurança jurídica, isonomia e duração
razoável do processo. O Código de Processo Civil de 2015 não deixa
dúvida a respeito do propósito legal deste instrumento. Afinal, o
Estado deve preservar o interesse particular quanto a celeridade do
processo, partindo da premissa de que uniformizar é preciso, que é
de suma importância à preservação da isonomia no âmbito do
processo, que deve se conferir previsibilidade e segurança jurídica, de
modo a se exigir decisões com interpretações mais estáveis e
melhores fundamentadas. Inclusive, Álvaro de Oliveira (2004) citado
por Amaral (2006, p.58) destaca que “não apenas a lei, como também
a jurisprudência deve ser clara e previsível, sendo ameaçadoras da
segurança jurídica as decisões exóticas e surpreendentes em especial
quando trouxeram questões novas que não foram debatidas com as
partes”. A homogeneidade traz a clareza e mitiga a possibilidade de
decisões muito diferenciadas de outras parecidas o que leva a
possibilidade de individualismo.
Com o surgimento do IRDR fica evidente que houve o
rompimento com o paradigma individualista do código de processo
civil de 1973, afinal o tratamento uniforme na resolução de questões
de direito, indica a obediência aos preceitos constitucionais da
duração razoável do processo, da segurança jurídica e da isonomia
processual.

Segurança jurídica no tratamento de demandas repetitivas

A segurança jurídica é um princípio basilar muito importante


no Estado democrático de Direito. Dito isto destaca-se que na
Constituição Federal de 1988 a segurança jurídica foi tutelada em
diversos dispositivos, como, por exemplo, o caput do artigo 5º

270
(segurança como direito inviolável). Na lição de Pedro Miranda de
Oliveira (2012, p. 709), a segurança jurídica “consiste no conjunto de
condições que torna possível às pessoas o conhecimento antecipado
e reflexivo das consequências diretas de seus atos, à luz da liberdade
reconhecida”. Igualmente, o jurista Miguel Reale (1994, p. 86) ensina
que o verbete segurança, dentro da perspectiva do Direito, traz em
seu significado um sentimento subjetivo, uma atitude individual e
psicológica em face dos complexos conjuntos de regras
estabelecidas como sendo uma representação geral e objetivada. No
entanto, o mesmo autor em seguida adverte que é preciso se atentar
para uma distinção implícita:

entre o “sentimento de segurança”, ou seja, entre o estado de


espírito dos indivíduos e dos grupos na intenção de usufruir
de um complexo de garantias, e este complexo como tal,
como conjunto de providências instrumentais capazes de
fazer gerar e proteger aquele estado de espírito de
tranqüilidade e concórdia. [...] se é verdade que quanto mais o
direito se torna certo, mais gera condições de segurança,
também é necessário não esquecer que a certeza estática e
definitiva acabaria por destruir a formulação de novas
soluções mais adequadas à vida, e essa impossibilidade de
inovar acabaria gerando a revolta e a insegurança. Chego
mesmo a dizer que uma segurança absolutamente certa seria
uma razão de insegurança, visto ser conatural ao homem –
único ente dotado de liberdade e de poder de síntese – o
impulso para a mudança e a perfectibilidade, o que Camus,
sob outro ângulo, denomina “espírito de revolta” (REALE,
1994, p. 86-87).
Desse modo, a segurança jurídica trata-se de princípio que
garante tanto as situações do passado, como também os casos que
surgem ao longo do tempo, a partir de comportamentos no presente,
o qual terá, por certo, desdobramentos futuros. Em todos estes

271
intervalos de tempo a segurança jurídica deve ser um norte. Nesse
interim, José Joaquim Gomes Canotilho (2000, p. 256) leciona que “o
homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar
autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso desde cedo se
consideram os princípios da segurança jurídica e da proteção da
confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito”.
Seguindo, igualmente, esta linha de raciocínio o jurista Marionni
(2010, p. 211) salienta que:

o cidadão precisa ter segurança de que o Estado e os


terceiros se comportarão de acordo com o direito e de que os
órgãos incumbidos de aplicá-lo o farão valer quando
desrespeitado. Por outro lado, a segurança jurídica também
importa para que o cidadão possa definir o seu próprio
comportamento e as suas ações.

Dado que todo indivíduo sente esta necessidade, a de ter


estabilidade nas relações jurídicas e na própria ordem jurídica, para
quem assim possa se orientar sobre os seus comportamentos e as
suas ações. A segurança jurídica é solidária com o Estado de Direito.
Decorre desta constatação a necessidade de se haver uniformidade
na interpretação dos textos legais e na qualificação das situações
jurídicas por parte dos tribunais. Nessa perspectiva, entende-se que a
instabilidade do Poder Judiciário em casos semelhantes contraria,
de forma inegável, o princípio da segurança jurídica. Por isso a
importância de decisões estáveis e jurisprudências uniformes para o
Estado de Direito brasileiro como destaca Paulo Nader (2014, p. 178)
“a necessidade de a ordem jurídica oferecer a certeza quanto ao
Direito vigente, de dar clara definição às normas jurídicas, para
melhor orientação de seus destinatários, faz com que a jurisprudência
divergente seja considerada um problema a reclamar solução.”
Por outro lado, a disseminação de teses jurídicas
272
diferenciadas, díspares sobre situações iguais, parecidas ou
semelhantes. Esta jurisprudência divergente não permite ao
jurisdicionado a capacidade de antever o resultado final do seu
questionamento junto da justiça, a atuação de órgãos jurisdicionais
competentes. Esta noção de antecipação de julgamento leva
indivíduos que estão em situação análoga a cogitarem acerca do
resultado do seu pleito judicial dado que as situações apresentadas
sejam semelhantes. Esta é a baseda estabilidade do sistema jurídico.

A exigência de estabilidade da jurisprudência indica que


linhas de decisões constantes e uniformes a respeito de
determinadas matérias não podem ser simplesmente
abandonadas ou modificadas arbitrária ou
discricionariamente. Em outros termos, não pode um órgão
jurisdicional decidir uma matéria a cujo respeito exista
jurisprudência constante simplesmente ignorando essa linha
decisória, promovendo uma flutuação de entendimentos que
contraria a exigência de segurança jurídica. A estabilidade da
jurisprudência exige, também, que seus próprios precedentes
sejam observados, inclusive por seus órgãos fracionários
(CÂMARA, 2016, p. 23).

De tal forma que uma mesma regra ou princípio deve e pode


ser interpretado de diversas maneiras por variados juízes ou tribunais
em casos muito semelhantes. No entanto cabe ressaltar que tal
constatação gera insegurança jurídica ao não propiciar a possibilidade
de se antever o resultado de uma demanda. Quando as pessoas, os
partidos, as situações reais não são submetidas a uma mesma lei –
situação, esta que gera insegurança jurídica – a lei encontra-se
definida apenas como escrita num papel. Fica evidente que, a longo
prazo, a insegurança jurídica leva à esterilização das leis dado que
não tenham mais função como norteadoras de decisões.

273
A segurança jurídica, portanto, não decorre propriamente da
lei, mas principalmente das decisões proferidas pelos
tribunais. Apenas pode ser garantida, respeitando a igualdade
perante a interpretação dos juízes. Se os tribunais emitem
decisões contraditórias, aplicando o mesmo dispositivo legal
em diversos sentidos, o que se terá é insegurança jurídica
(OLIVEIRA; ANDERLE, 2014, p. 312).

A tão esperada segurança jurídica decorre de uma semelhança


de decisões proferidas em situações semelhantes. Neste sentido, o
ordenamento jurídico alia-se às muitas decisões fundamentadas
proferidas pelos juízes que, são dotados de autonomia funcional.
Convém salientar que o juiz possui ampla liberdade para proferir
julgamentos com base no seu convencimento próprio motivado por
uma fundamentação apropriada. Esta constatação deriva da
necessidade do mesmo valorizar as provas – documentais e
testemunhais - contidas nos autos através da construção de uma
linha de raciocínio coerente. De tal forma que o juiz não fica limitado,
com uma postura passiva, às informações contidas nos autos, mas
passa a ter uma postura proativa dado que sobre as mesmas construa
um pensamento encadeado que, em conjunto com outras, gera um
acervo que possa ser utilizado em decisões futuras.

É justamente por esses motivos que os precedentes judiciais


vêm conquistando cada vez mais prestígio em nosso
ordenamento jurídico, já que o respeito aos precedentes
garante ao jurisdicionado a segurança de que a conduta por
ele adotada com base na jurisprudência já consolidada não
será juridicamente qualificada de modo distinto do que se
vem fazendo (SILVA, 2015, p. 52).

Entende-se que a segurança jurídica seja um pavimento


teórico por onde devem passar todos os julgados com vistas a
274
construir uma estabilidade judiciária o que, a posterior, forneceria
condições para os cidadãos construírem sua vida. Entende-se que a
certeza jurídica é baseada nesta possibilidade de poder antecipar,
com algum grau de fidedignidade, o veredito em situações expostas
ao julgamento. Pode-se, então conseguir esta garantia apenas
frisando a semelhança de decisões judiciais em face de semelhanças
de situações julgadas. Reside nesta constatação a aplicação do
tratamento de isonomia a todos os jurisdicionados.

A Isonomia jurídica no tratamento de demandas repetitivas

Dado que a celeridade seja uma pretensão da sociedade e


uma necessidade de cada cidadão, a de se buscar por mecanismos
que ensejem a rapidez aos julgados. Porém a busca pela celeridade
não pode se dar de qualquer maneira atropelando princípios basilares
da Constituição. Neste caso, conforme aponta o ministro Teori Albino
Zavascki (2014) citado por Silva (2015, p. 22) que dois princípios
devem ser observados sob um prisma coletivo simultaneamente
apesar de constituírem-se, separados, em direitos individuais “para
fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua
versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da
homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência
com outros direitos individuais assemelhados”.
Neste sentido, entende-se que apesar de serem aplicados a
cada indivíduo, o princípio da igualdade e da facilitação do acesso ao
Poder judiciário, estes podem ser aplicados para a aplicação de uma
mesma decisão à situações homólogas dado que “a identidade
existente entre as causas autoriza a concessão de uma mesma
prestação jurisdicional a todos os titulares de direitos, de modo a
gerar, através de tão somente uma decisão judicial” (SILVA, 2015, p.

275
22). Situações semelhantes que demandam auxilio judicial podem ser
abarcadas por uma mesma decisão sem, necessariamente, ferir o
princípio da isonomia e mantendo a segurança jurídica.
No entanto cabe uma ressalva, o aspecto contraditório,
aqui, se insere na constatação de que é preciso trazer isonomia ao
direito sem, no entanto, padronizar. A busca por celeridade na
prestação jurídica para a população não pode deixar de atender às
particularidades que cada situação venha a trazer. O direito deve
manter uma margem de incerteza e insegurança como defende
Cavalcanti Filho que:

É assim inevitável que haja uma margem de incerteza e de


insegurança no Direito, pois de outra forma se tornaria ele um
instrumento de estagnação social. Mas essa incerteza e
insegurança constituem o preço do progresso humano e da
busca de formas mais justas de organização social
(CAVALCANTI FILHO, 1964 apud SILVA, 2017, p. 90).
A premissa de que as situações, apesar de serem homólogas e,
desta forma serem abarcadas pela mesma decisão jurídica precisam
ser analisadas também pelas suas particularidades, suas
individualidades. É isso que mantem esta margem de insegurança,
essencial para a manutenção da isonomia. Esta prestação de
tratamento jurídico uniforme oferecido a situações que, apesar de
suas particularidades, se desenham dentro de uma mesma hipótese
normativa encontra respaldo na premissa de que o princípio da
igualdade:

deve ser pensado como ideal de isonomia frente ao Direito, e


não apenas frente à lei. É preciso que, na leitura do caput do
art. 5º da Constituição Federal, o termo “lei” seja interpretado
como “norma jurídica”, entendendo-se que todos são
iguais, ou que devem ser tratados como iguais, perante a
“norma jurídica”, qualquer que seja ela, de quem quer que ela

276
emane. Decerto que o princípio constitucional da igualdade
obriga tanto os particulares quanto o Poder Público e, nesta
seara, há de ser observado não apenas quando da edição das
leis (em sentido amplo) ou da atuação da Administração
Pública, mas também quando da concretização da função
jurisdicional (DIDIER JR., 2010 apud SILVA, 2015, p. 53).
Entende-se que o princípio da igualdade deva ser analisado de
maneira individual e coletiva. A ideia coletiva expressa nas palavras
extrapola a literalidade do mesmo e encontra eco na necessidade de
padronizar decisões jurídicas de maneira que traga uma segurança
jurídica. Desta forma quando um cidadão entra com uma demanda
no Poder judiciário tem a certeza de que não será surpreendido por
alguma decisão estapafúrdia. Quanto maior o número de decisões
jurídicas iguais para situações homólogas, leva se a uma esperada
segurança jurídica.

A obrigatoriedade de observar as orientações já firmadas


pelas cortes aumenta a previsibilidade do direito, torna mais
determinadas as normas jurídicas e antecipa a solução que os
tribunais darão a determinados conflitos. O respeito aos
procedentes constitui um critério objetivo e pré-determinado
de decisão que incrementa a segurança jurídica. A aplicação
das mesmas soluções a casos idênticos reduz a produção de
decisões conflitantes pelo Judiciário e assegura àqueles que
se encontram em situação semelhante o mesmo tratamento,
promovendo a isonomia (BARROSO; MELLO citados por
SILVA, 2017, p. 68).
A isonomia atende ás necessidades que a segurança jurídica
busca alicerçar como a previsibilidade nos julgados gerando uma
farta jurisprudência que visa antecipar conflitos regulamentando-os.
Sem deixar de observar as particularidades inerentes a cada situação,
o princípio da igualdade é aplicado não apenas às partes envolvidas
no conflito mas também a toda a sociedade.O princípio da isonomia
277
ganha contornos maiores do que simplesmente um tratamento
delegado às partes. Quanto à ótica individual:

A isonomia ou igualdade deve ser entendida no sentido de


que o Estado-juiz (o magistrado, que o representa) deve
tratar de forma igualitária os litigantes. Seja dando-lhes
igualdade de condições de manifestação ao longo do
processo, seja criando condições para que esta igualdade seja
efetivamente exercitada (BUENO, 2012 apud SILVA, 2015, p.
54).
Percebe-se que a importância da isonomia está no seu
paradoxo. Ao mesmo tempo que assegura tratamento jurídico igual
para situações semelhantes, as mesmas guardam especificidades que
não deixam de ser observadas ao longo da sua análise jurídica. É o
princípio da igualdade aplicado, ao mesmo tempo, ao indivíduo e a
sociedade. A isonomia é alcançada quando as situações jurídicas
semelhantes, mas não iguais, recebem a mesma atividade
jurisdicional dado que estejam abarcadas pelo mesmo entendimento
produzindo segurança nas decisões. Para Marionni (2013) citado por
Silva (2015, p. 54) é “tratar da mesma forma casos similares é algo
fundamental para a estabilidade do poder e para a manutenção da
segurança necessária ao desenvolvimento das relações sociais”.
A relevância da isonomia é que esta traz uma estandardização
das decisões. Não obstante cada situação seja analisada
isoladamente, quando este conflito se insere dentro de um padrão, o
direito promove uma decisão homóloga a outras de mesma natureza.
Quando vista isoladamente cada situação recebe tratamento
diferenciado, único, é analisada por um operador do Direito que
analisa e oferece seu julgamento baseado num arcabouço existente
que lança luzes sobre questões semelhantes.

(...) essa nova realidade pressupõe que o juiz, individualmente,


sinta- se parte da estrutura propulsora da interpretação, não
278
seu opositor. Deve ver na decisão uniformizante uma regra
de direito para o bem da realidade jurídica e da própria
estrutura judicial da qual faz parte, não uma camisa de força.
(...) Isso equivale a dizer que o juiz consciente do seu papel
deve pautar suas ações de acordo com a cúpula da estrutura
judicial como se obrigação houvesse, mesmo que contrário à
sua própria convicção. Isso não significa estar tolhido da sua
liberdade de decidir, e sim ter noção de que é parte de uma
estrutura que deve ter uma visão sobre determinados temas
(em que a divergência seja infundada), sob pena de contribuir
com a desigualdade e a incerteza jurídica. Esse é um reflexo
do caráter público da jurisdição (PARENTE, 2006 apud
MACHADO, 2016, p. 277).

Não parece ser admissível que situações iguais ou similares


recebam decisões diferenciadas trata-se de uma afronta ao princípio
da igualdade quando este é aplicado para toda a sociedade. A
isonomia se assenta na aplicação de uma decisão homóloga para
toda situação envolta numa conjuntura padronizada. Demandas
repetidas são abarcadas em decisões igualitárias sem perder de vista
as individualidades de cada situação. Por outro lado, a falta da
isonomia coloca a tão necessária segurança jurídica para os julgados
em questionamento dado que isto carreie decisões diferenciadas,
verdadeiros disparates dentro de um ordenamento padronizado.
Além disto tal situação leva a geração de um clima de instabilidade
e imprevisibilidade. Esta situação leva a uma mitigação da confiança
na aplicação da justiça e, reside nesta constatação a importância da
isonomia como pilar da segurança jurídica.

IRDR COMO FERRAMENTA DE RACIONALIDADE E EFICIÊNCIA DA


PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

279
Admissibilidade, processamento e julgamento

A massificação das demandas na justiça levou a sobrecarga do


Poder Judiciário, dessa maneira com o tempo tornou-se necessário a
busca por mecanismos que ensejam maior eficiência a este poder.
Neste sentido, o IRDR torna-se uma ferramenta de racionalidade no
que concerne busca pela prestação de serviços jurídicos mais
eficiente. Um dos mecanismos usados para elencar a racionalidade e
a eficiência é a padronização de decisões através da observância de
jurisprudência lançada por cortes superiores como leciona Gilmar
Mendes:

Inclusive, os Precedentes do Tribunal Pleno do Supremo


Tribunal Federal possuem esse entendimento, uma vez que as
decisões proferidas pelo Plenário vinculam os demais órgãos
do Poder Judiciário na solução, por estes, de outros feitos
sobre idêntica controvérsia. Compete aos juízes e
desembargadores respeitar as decisões do Supremo Tribunal
Federal para assegurar a racionalidade e eficiência ao Sistema
Judiciário e, ainda, concretizar a Segurança Jurídica de referido
tema. Por fim, sobre essa questão, o legislador não imputou
ao STF o ônus de fazer aplicar diretamente a cada caso
concreto o seu entendimento (MENDES, 2016 apud SILVA,
2017, p. 61).
O IRDR, de uma forma bem sucinta, é um incidente processual
direcionado aos Tribunais de Segunda Instância (Estaduais ou
Regionais), para sua instauração se exigem três requisitos de
admissibilidade, a efetiva repetição de processos, a controvérsia
sobre idêntica questão de direito e o risco de ofensa às garantias
constitucionais da isonomia e da segurança jurídica, é o que dispõe o
artigo 976 do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).
Os legitimados para fazer o pedido de instauração do

280
incidente, é o juiz ou relator, por oficio, as partes, por petição e por
último, o Ministério Público ou a Defensoria Pública, por petição, que
será dirigida ao presidente do tribunal, conforme o artigo 977 do
Código de Processo Civil (BRASIL, 2015). O ofício ou a petição devem
ser instruídos com os documentos necessários à demonstração do
preenchimento dos pressupostos, sendo o juízo de admissibilidade
do IRDR realizado pelo órgão colegiado competente para julgá- lo.
Vale ressaltar que, nos casos de desistência ou abandono, se
Ministério Público não for o requerente, o órgão tem a obrigação de
assumir a titularidade do incidente.
A instauração e julgamento do incidente deve ser
amplamente divulgado, conferindo-lhe desejável publicidade. Uma
vez admitido o incidente, caberá primeiramente ao relator suspender
os processos pendentes individuais e coletivos no estado ou região
conforme o caso, estes processos pendentes com vistas a conferir
celeridade ao procedimento, o Código de Processo Civil estipulou o
prazo máximo de um ano para julgamento do IRDR. Dessa maneira,
superado este prazo cessará a suspensão, salvo decisão
fundamentada do relator (art. 980, caput, CPC/2015). Logo após, o
relator irá requisitar informações ao juízo no qual tramita o processo
que deu origem ao incidente, caso entenda necessário, que as deverá
fornecer no prazo de 15 dias (art. 982, CPC/2015); e por último irá
intimar o Ministério Público para manifestar-se no prazo de 15 dias.
O julgamento do IRDR se dará da seguinte forma, concluídas
as diligências, o relator solicitará data para julgamento, haverá a
possibilidade nesse momento de sustentação oral de trinta minutos a
ser feita pelas partes do processo originário e pelo Ministério Público
e demais interessados.
Depois de julgado o IRDR, a tese jurídica será aplicada e se
tornará um precedente obrigatório para todos os processos
individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito
281
que tramitem ou venham a tramitar na área de jurisdição do
respectivo Tribunal, inclusive nos juizados especiais do respectivo
Estado ou região.
No caso de não aplicação, caberá à parte apresentar
reclamação ao tribunal competente conforme o artigo 985 do Código
de Processo Civil (BRASIL, 2015). Por fim, caberá recurso
extraordinário ou especial contra a decisão de mérito do IRDR, que
apenas fixa a tese jurídica, sem, contudo, julgar a demanda.

O IRDR e o Common Law e Civil Law

Antes de adentrar na análise de jurisprudência das Decisões


do TJMG torna-se necessário realizar uma breve consideração acerca
de duas importantes famílias do Direito. Tratam-se de dois sistemas
jurídicos com origens e perspectivas diferentes, nos quais se
encontram a gênese do Direito no mundo ocidental. Para David o
Common Law originou-se na idade média e, era conhecida por
Comune Ley ou Law Frenc (na gíria normanda), mais precisamente no
século XVII, tendo um caráter único dado, oriundo do anglo saxão e
praticado, inicialmente, na Inglaterra. No resto do continente,
havia uma prevalência da língua e cultura latina (DAVID, 2OO2 apud
ARAÚJO;RANGEL, 2017, p. 1).
Já para Losano (2007) citado por Silva (2017, p. 8) Common
Law é “um direito consuetudinário, num sentido especial, onde os
costumes que, são fonte desse direito, não nascem do
comportamento popular, e sim do comportamento dos juízes”. A
ideia estabelecida é que seria o direito assentado sobre os costumes
praticados. Ainda David continua ensinado que os tribunais reais
obtiveram competência simultaneamente com a conquista da região
da Normanda, os conflitos eram levados por diferentes jurisdições,
todas formadas a partir dos costumes, na tradição anglo saxã. Este

282
tipo de justiça era aplicado para o povo, situações corriqueiras eram
resolvidas com base nas tradições. Caberia ao rei a execução da “alta
justiça”, nome dado à situações excepcionais de forma que chegava a
ele apenas casos muito especiais que demandavam sua atenção.
Tratava-se de litígios especiais aos quais se aplicavam uma jurisdição
restrita como, por exemplo, propriedade imobiliária, posse de
imóveis, questões que envolvam a paz no reino e finanças reais
(DAVID, 2002, p. 259-260 citado por ARAÚJO; RANGEL, 2017, p. 1).
Quanto ao sistema Civil Law, este se assenta como sendo outro
sistema que, em conjunto com Common Law originou o Direito
ocidental. Neste sentido,o Civil Law é:

um sistema jurídico com características básicas, quais sejam, a


supralegalidade do texto constitucional e, como
consequência, a hierarquia de normas; o predomínio da Lei
escrita; a divisão entre o Direito Público e o Direito Privado
e; a restrita atuação do Poder Judiciário na interpretação e
aplicação da Constituição e das Leis (DANTAS, 2000 apud
SILVA, 2017, p. 8).
Este sistema nasceu do entendimento da família românico-
germânica e alicerçou o ordenamento jurídico conhecido por Civil
Law. Trata-se de concepções forenses que usam o direito romano
como base. Este sistema também tem origem na Europa e evoluiu
conforme a sociedade a sua volta.
O termo Civil Law refere-se ao sistema legal adotado pelos
países da Europa Continental (com exceção dos países escandinavos)
e por, praticamente, todos os outros países que sofreram um
processo de colonização, ou alguma outra grande influência deles –
como os países da América Latina. O que todos esses países têm em
comum é a influência do Direito Romano, na elaboração de seus
códigos, constituições e leis esparsas. É claro que cada qual recebeu
grande influência também do direito local, mas é sabido que, em
283
grande parte desses países, principalmente os que são ex-colônias, o
direito local cedeu passagem, quase que integralmente, aos princípios
do Direito Romano. E, por isso, a expressão Civil Law, usada nos
países de língua inglesa, refere-se ao sistema legal que tem origem
ou raízes no Direito da Roma antiga e que, desde então, tem-se
desenvolvido e se formado nas universidades e sistemas judiciários
da Europa Continental, desde os tempos medievais; portanto,
também denominado sistema Romano-Germânico (VIEIRA, 2007
apud MACHADO, 2016, p. 228).

Salientando que as regras do Direito Romano são


denominadas de regras de conduta dado que estas carreiem
uma preocupação constante com a justiça e a moral. A
evolução das regras principais desta doutrina passa pela ótica
antropocêntrica, passa pela doutrina e volta-se para a criação
das regras. Esta originou-se na Europa, com grande influência
nas universidades europeias, em meados nos séculos XI e XII,
com bases nas regras denominadas crestomatias do
Imperador Justiniano. Esta família do direito se expandiu em
face da sua característica de modernização ou
ocidentalização, as regiões que se avizinhavam àquelas que
usavam esta concepção acabavam por adotá-la (DAVID, 2002,
p. 23-24 apud ARAÚJO; RANGEL, 2017, p. 1).
Para Machado (2016, p. 228) a diferença entre estes dois
sistemas é na forma como estes se assentam já que “o sistema
romano-germânico, também chamado civil law baseia-se
primordialmente nas codificações, e o sistema anglo-saxão,
conhecido como common law, fundamenta-se na tradição e na teoria
dos precedentes”. Em outras palavras, pode-se entender que o Civil
Law é baseado em Leis, em regulamentações que modificam
comportamentos ao passo que o Common Law é assentado nas
tradições, na cultura, nos costumes e nos precedentes e parte destes
284
para formar as leis.
Apesar de parecerem diametralmente opostos, o IRDR
aproxima ambos dado que seja uma Lei normatizada embasada na
regulamentação oriunda de precedentes já que as decisões são
embasadas em decisões já tomadas antes e que se aplicam a situação
objeto em análise. Para Machado (2016, p. 236) “o precedente possui
força vinculante no common law, pois, como fonte inovadora do
Direito, deve dar consistência ao sistema, assegurando a coerência e
segurança jurídica”.
Desta maneira, o IRDR constitui-se em um ponto de
convergência entre estes dois sistemas paradoxalmente opostos, por
um lado, o Civil Law que usa a regra para normatizar o
comportamento e o Common Law que usa a tradição, o costume para
gerar a regra. Este instituto aparece para cobrir uma lacuna que
existia e fornecer instrumento para que a prestação jurídica tenha
caráter de racionalidade e efetividade sem perder a isonomia.

Análise de Decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais- TJMG

Nesta parte, foi realizada uma análise sobre algumas decisões


do TJMG para avaliar como a justiça tem utilizado este instrumento.
Neste sentido, foramanalisados cinco decisões listadas a seguir:

Processo: 1.0000.17.016595-5/001
Relator: Des.(a) Wilson Benevides Data do Julgamento:
07/03/2018 Data da Publicação: 23/03/2018
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS -
ADMISSIBILIDADE - COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS
DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE
PROVA PERICIAL COMPLEXA - INTERFERÊNCIA NA
285
COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA
PÚBLICA - CONTROVÉRSIA DE DIREITO - MULTIPLICIDADE DE
PROCESSOS - RISCO À ISONOMIA E À SEGURANÇA JURÍDICA
- ART. 976, CPC - REQUISITOS
PRESENTES.
Nos termos do artigo 976, do NCPC, somente é cabível o
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas se houver:
a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia
sobre a mesma questão unicamente de direito; e b) risco de
ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Demostrada a presença desses requisitos, deve ser admitido o
IRDR para que a Seção Cível delibere se a necessidade de
produção de prova pericial complexa no processo é capaz de
interferir na definição da competência dos Juizados Especiais
da Fazenda Pública. (TJMG - IRDR - Cv 1.0000.17.016595-
5/001, Relator(a):
Des.(a) Wilson Benevides , 1ª Seção Cível, julgamento em
07/03/2018, publicação da súmula em 23/03/2018)

Nesse caso que o objeto de discussão é sobre à competência


do Juizado Especial da Fazenda Pública para o julgamento de ação
que demanda a produção de prova pericial, onde é narrado dois
conflitos, primeiro diz respeito à internação compulsória de
dependente químico, cujo processo foi distribuído ao Juiz do Juizado
Especial da Fazenda Pública da Comarca de Itajubá ao Magistrado da
2ª Vara Cível da mesma comarca, com a justificativa que a demanda
reclama a produção de perícia, o que afastaria sua competência. E o
segundo, é relativo à demanda na qual a autora pleiteia a concessão
de aposentadoria por invalidez, distribuída perante a 7ª Vara da
Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte. Aquele
juízo, porém, determinou a remessa dos autos à Unidade Jurisdicional
da Fazenda Pública da mesma comarca, sob a justificativa de que a
286
prova pericial não é incompatível com o rito dos Juizados Fazendário.
Dessa maneira, foi pleiteado pela admissão do IRDR, para que fosse
deliberado sobre se a produção de prova pericial complexa constitui
um requisito para definir competência do Juizado Especial da Fazenda
Pública, ao lado do valor da causa e da matéria.
Os relatores em questão votaram pela admissibilidade do
IRDR, com o fundamento que há pluralidade de demanda, existência
de efetiva repetição de processos, risco de ofensa à isonomia e à
segurança jurídica e a controvérsia ser unicamente de direito,
preenchendo assim os pressupostos de admissibilidade conforme o
art. 976, caput e incisos I e II do Código de Processo Civil (BRASIL,
2015).

Processo: 1.0024.06.929551-7/007
Relator: Des.(a) Renato Dresc
Relator do Acordão: Des.(a) Wilson Benevides Data do
Julgamento: 18/04/2018
Data da Publicação: 12/06/2018
INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS -
JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE - REQUISITOS - AUSÊNCIA DE
RISCO DE OFENSA À ISONOMIA OU À SEGURANÇA JURÍDICA
- JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA NO TRIBUNAL - INEXISTÊNCIA
DE CONTROVÉRSIA - INADMISSIBILIDADE DO INCIDENTE.
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas,
instaurado em processos de competência originária ou em
recurso (inclusive na remessa necessária), tem a finalidade de
auxiliar no dimensionamento da litigiosidade repetitiva, por
meio da formação de um padrão decisório, somente sendo
cabível quando estiverem presentes, cumulativamente, os
requisitos previstos no art. 976 do CPC/2015.
Inadmite-se a instauração de IRDR para fixar tese jurídica
acerca da admissibilidade da cobrança por estimativa de
287
iluminação pública, pelo Estado de Minas Gerais, Municípios e
concessionárias de serviço de energia elétrica, porque a
jurisprudência é pacífica no sentido de permiti-la, não
ocorrendo ofensa à segurança jurídica e à isonomia o
posicionamento isolado de apenas um Julgador.
V.v. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
- INSTAURADO PELA CEMIG - AÇÃO POPULAR - TESE
JURÍDICA - VALIDADE DE COBRANÇA POR ESTIMATIVA PELO
FORNECIMENTO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA - JUÍZO DE
ADMISSIBILIDADE - INCIDENTE ACOLHIDO. 1- São requisitos
para a instauração do IRDR a simultaneidade e a repetição de
processos com controvérsia de direito que possa ensejar risco
de ofensa à isonomia e à segurança jurídica; 2- Admite-se a
instauração de IRDR para fixar tese jurídica acerca da
admissibilidade da cobrança por estimativa, pelo Estado de
Minas Gerais, Municípios e concessionárias de serviço de
energia elétrica para a iluminação pública. (TJMG - IRDR - Cv
1.0024.06.929551-7/007, Relator(a): Des.(a) Renato Dresch ,
Relator(a) para o acórdão: Des.(a) Wilson Benevides , 1ª Seção
Cível, julgamento em 12/06/2018, publicação da súmula em
21/06/2018)

Com relação a este caso houve inadmissibilidade do incidente


pelo TJMG, porque segundo o relator a jurisprudência é pacífica no
sentido de permitir cobrança por estimativa de iluminação pública,
pelo Estado de Minas Gerais, Municípios e concessionárias de serviço
de energia elétrica, dessa maneira não há risco de ofensa à isonomia
e à segurança jurídica, que é um dos pressupostos de admissibilidade
do IRDR, conforme o artigo 976, no seu inciso II do Código de
Processo Civil (BRASIL, 2015).

Processo: 1.0439.15.012809-8/002

288
Relator: Des.(a) Alberto Henrique Data do Julgamento:
26/02/2018 Data da Publicação: 01/03/2018
EMENTA: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS
REPETITIVAS - IRDR - PRESCRIÇÃO - CONTROVÉRSIA
JURÍDICA NÃO DELIMITADA - RECURSO JÁ JULGADO - NÃO
CABIMENTO
DO IRDR. Considerando que a matéria a ser uniformizada não
ficou devidamente delimitada, bem como que os julgados
apontados pelos suscitantes não versam sobre a mesma
matéria, não há falar em admissão do incidente. O IRDR se
trata de um incidente instaurado num processo de
competência originária ou em recurso. Julgado o recurso, o
incidente deve ser inadmitido. (TJMG - IRDR -
Cv 1.0439.15.012809-8/002, Relator(a): Des.(a) Alberto
Henrique , 2ª Seção Cível, julgamento em 26/02/2018,
publicação da súmula em 01/03/2018)

No Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) no seu artigo


976, no inciso I, acerca do pressupostos de admissibilidade do IRDR,
destaca-se que é cabível a instauração do IRDR quando houver
efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a
mesma questão unicamente de direito. Porém segundo o relator os
julgados apontados pelos suscitantes não versam sobre a mesma
matéria, dessa maneira não há falar em admissão do incidente. O
respeito aos pressupostos de admissão do IRDR deve ser observado
para que possa se falar em formação de tese de aplicação uniforme.

Processo: 1.0000.16.056466-2/002
Relator: Des.(a) Afrânio Vilela
Relator do Acordão: Des.(a) Afrânio Vilela Data do Julgamento:
26/05/2017
289
Data da Publicação: 06/07/2017
EMENTA: INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS
REPETITIVAS - APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CONSUMERISTA
AJUIZADA EM FACE DA CEMIG - COMPETÊNCIA - JUÍZO
CÍVEL COMUM OU DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL -
APLICAÇÃO DA LEI 12.153/2009 (LEI DOS JUIZADOS
ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA) - UNIFORMIDADE DE
ENTENDIMENTO - AUSÊNCIA - PRINCÍPIO DA SEGURANÇA
JURÍDICA - OFENSA - CONFIGURAÇÃO - ARTIGO 976 DO
CPC/2015 - REQUISITOS
ATENDIDOS. INCIDENTE ADMITIDO. Demonstrada a
divergência quanto ao juízo competente para julgamento das
ações de cunho consumerista que tenham a CEMIG como
parte, com ofensa ao princípio da segurança jurídica, deve ser
instaurado o IRDR, previsto no art. 976 do CPC/2015, a fim de
que a Seção Cível delibere e eleja tese a ser adotada no
âmbito do Poder Judiciário Estadual. IRDR - CV Nº
1.0000.16.056466-2/002 - COMARCA DE BELO HORIZONTE
SUSCITANTE: DESEMBARGADOR(ES) DA 7ª CÂMARA CÍVEL DE
BELO HORIZONTE - SUSCITADO(A): PRIMEIRA SEÇÃO CÍVEL
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS -
INTERESSADO: CEMIG DISTRIBUICAO S.A, FERNANDO DO
CARMO DE SOUZA
ACÓRDÃO
Processo: 1.0000.17.008677-1/002
Relator: Des.(a) Wander Marotta
Relator do Acordão: Des.(a) Wander Marotta
Data do Julgamento: 30/04/2018 Data da Publicação:
24/05/2018
EMENTA: REQUERIMENTO ORIUNDO DO RELATOR DO
RECURSO DE APELAÇÃO Nº 1.0313.13.017124-9/002. CAUSA
PILOTO: DISCUSSÃO ACERCA DA COMPETÊNCIA PARA
290
PROCESSAMENTO DE FEITO RELATIVO À TRANSFERÊNCIA DE
TÍTULO DE PERPETUIDADE DA CONCESSÃO DE USO DE
JAZIGO. VARA DE SUCESSÕES. QUESTÕES DE DIREITO
SUCESSÓRIOS. Havendo questões de direito sucessório a
serem dirimidas na transferência do título, entende-se que o
juízo competente para processamento do feito é de fato o
especializado em matéria de sucessões.
IRDR - CV Nº 1.0000.17.008677-1/002 - COMARCA DE BELO
HORIZONTE - SUSCITANTE: DESEMBARGADOR(ES) DA 7ª
CÂMARA CÍVEL DE BELO HORIZONTE - SUSCITADO(A):
PRIMEIRA SEÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA -
INTERESSADO: MUNICIPIO DE BELO HORIZONTE,
ROSANGELA ANDRAOS DE OLIVEIRA
ACÓRDÃO

Acerca desses duas decisões ambas o IRDR foi admitido, salvo


guardadas as diferenças circunstanciais inerentes a cada caso, não se
pode deixar de observar que a grande divergência encontrada foi a
de estipulação de competências dado que a premissa geral de
observar o instituto de IRDR aplicável aos caso. A inspiração para o
uso deste instrumento voltou-se para a busca pela seguridade
auferida com homogeneidade das decisões. Assim, os relatores nos
dois casos optaram por uma padronização, definindo a competência
e assim preservando a estabilidade jurídica. Vale ressaltar que, nos
ambos os casos o IRDR já foi julgado e há tese firmada.
Depois de analisar essas decisões, percebemos que
homogeneidade traz a percepção de que não haverá uma decisão
esdrúxula, estranha, alheia a tudo que já foi decidido em situações
iguais ou similares. Esta previsibilidade assegura a estabilidade
jurídica para todo o ordenamento. Baseado em todo o escopo teórico
construído até aqui, observa-se que a busca pela observação de

291
decisões pretéritas traz de volta a ideia de continuar com um padrão
de julgados que até então vinha sendo proferido.
No entanto, a individualidade, a busca pelo entendimento
particular, pelo direito particular encontra ecos dentro do instituto.
Neste sentido, a parte que não concordou com a decisão pode
recorrer e, desta forma, a agilidade conferida as primeiras instâncias
perde celeridade nas instâncias superiores dado o aumento da
demanda pela busca por reconhecimento dos direitos individuais.
O IRDR é usado muito mais para promover a racionalidade na
execução da prestação de serviço judiciário do que a busca pela
celeridade. Este cenário é observado tanto nas cortes de primeiras
instâncias até as mais altas, observado o fato que nas cortes mais
altas, a demanda aumenta e a celeridade conseguida nas primeiras
instâncias diminui em face disto. A isonomia permanece sendo
oferecida em todos os níveis e em todas as instâncias do poder
judiciário e a segurança também. A partir do marco inicial do Código
de Processo Civil de 2015 (BRASIL, 2015) este instrumento, o IRDR,
passou a ser usado nos tribunais e, com o tempo, é que serão
auferidos as vantagens relacionadas com a celeridade, a isonomia e a
racionalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho, forma elencados os pontos basilares


para estruturar o sistema judiciário e torná-lo mais racional. Esta
necessidade é eminente dado que o problema de abarrotamento do
poder judiciário por uma crescente demanda. Esta crescente procura
por soluções via jurídico é causada por inúmeros eventos. Entretanto
todas as causas apontam para uma universalização do acesso ao
Direito pelo cidadão comum o que é benéfico dentro de um estado

292
democrático de direito.
Caberia, pois ao Poder Judiciário se antecipar às necessidades
dos seuscidadãos e se reestruturar para atendê-los. Como o aumento
na estrutura causaria igual aumento nos custos, a busca por
mecanismos e instrumentos que auxiliem a prestação de serviços
tornou-se um imperativo. Neste contexto, aparece o IRDR enquanto
um instrumento propício para levar a racionalidade para a
padronização das decisões dos processos jurídicos sem perder os
princípios basilares da isonomia e da segurança jurídica.
Este instituto tem uma característica única, é oriundo de uma
aproximação entre o Civil law e o Common Law. Não obstante serem
dois sistemas diametralmente opostos já que enquanto o primeiro
carreie uma visão que vai da lei para o costume e o segundo, uma
perspectiva que vai do costume para a lei. O IRDR é uma lei
embasada num costume de padronizar os conflitos iguais ou similares
com soluções iguais e assim traria um sistema mais racional para
gerenciar as soluções dos problemas cotidianos. O objetivo elencado
para este trabalho é o de discutir como o poder judiciário vem
aplicando o incidente de resolução de demandas repetitivas frente ao
princípio da isonomia, especialmente nas decisões do TJMG. Para isto
tomou-se cinco decisões que saíram desta egrégia corte voltadas
para a utilização deste instrumento.
O que se pode observar é que, apesar de ser uma novidade
legislativa trazida no bojo da Lei 13.105/2015 - Código de Processo
Civil de 2015, este instrumento vem sendo usado e tem assegurado a
efetividade da aplicação da justiça, o que o torna imprescindível para
assegurar a isonomia para todos os cidadãos. Este instituto impõe a
saliência da coletividade em detrimento da individualidade. Não que
a individualidade, as especificações de cada situação não seja
observada, que apesar do aspecto coletivo oferecido pelo IRDR, o
direito individual não deixou de ser reconhecido no precedente, mas
293
sim que o destaque para a coletividade seja uma perspectiva imposta
pelo Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).
Mas a principal conclusão que podemos chegar em relação a
este trabalho é que o IRDR aparece como sendo um instrumento
viável, mas não uma solução final. Assim, buscou-se com o presente
estudo demonstrar a aplicabilidade prática do “jovem” instituto do
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Porém, a temática
ainda é muito nova e a pesquisa não esgota com as controvérsias
jurídicas e doutrinárias, demandando a revisitação do tema para a
análise da efetividade de sua utilização no ordenamento jurídico
brasileiro.

294
REFERÊNCIAS

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TJMG, Acórdão Processo: 1.0000.16.056466-2/002 Relator: Des.(a)


AfrânioVilela Relator do Acordão: Des.(a) Afrânio Vilela Data do
Julgamento:26/05/2017 Data da Publicação: 06/07/2017.
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https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelho
Acordao.d
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eroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1
.0000.16.05646 6-2%2F002&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisa > Acesso
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TJMG, Acórdão. Processo: 1.0000.17.008677-1/002 Relator: Des.(a)


WanderMarotta Relator do Acordão: Des.(a) Wander Marotta
Data do Julgamento:30/04/2018 Data da Publicação:
24/05/2018. Disponível em: <
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelho
Acordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10
&numeroUnico=1.0000.17.008677-
1%2F002&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar > Acesso em 14 deMarc.
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TJMG, Acórdão. Processo: 1.0000.17.016595-5/001 Relator: Des.(a)


WilsonBenevides Data do Julgamento: 07/03/2018, Data da
Publicação: 23/03/2018.Disponível em: <
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcor
dao.do?&numeroRegistro=66&totalLinhas=113&paginaNumero=66
&linhasPorPagina=1&palavras=IRDR&pesquisarPor=ementa&orderB
yData=2&referenciaLegislativa=Clique%20na%20lupa%20para%20pe
squisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=
Pesquisar&listaClasse=600&listaClasse=602&> Acesso em 14 de
Marc. de 2020.

TJMG, Acórdão. Processo: 1.0024.06.929551-7/007 Relator: Des.(a)


RenatoDresc Relator do Acordão: Des.(a) Wilson Benevides Data
do Julgamento:18/04/2018, Data da Publicação:
12/06/2018. Disponível em: <
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelho
Acordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10
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7%2F007&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisa > Acesso em 14
298
deMarc. de 2020

TJMG, Acórdão. Processo: 1.0439.15.012809-8/002 Relator: Des.(a)


AlbertoHenrique Data do Julgamento: 26/02/2018, Data da
Publicação: 01/03/2018.Disponível em: <
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelho
Acordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10
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de 2020

299
O PROGRAMA MUNICIPAL DE REGULARIZAÇÃO
FUNDIÁRIA (PROMORAR): IMPACTOS E DESAFIOS DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DO MUNICÍPIO DE MARIANA
- MG
Dayanne Maris Oliveira Silva36
Cleberson Ferreira de Morais37
RESUMO
O presente artigo possui como tema central a regularização fundiária
no município de Mariana, Minas Gerais, cujo foco é estabelecer
moradia digna para toda a população. Assim, foram analisados os O
impactos e os desafios da regularização fundiária através da
investigação do Programa Municipal de Regularização Fundiária
(PROMORAR), e as divergências existentes entre os dados da
municipalidade e do Cartório de Registro de Imóveis local, através de
pesquisa empírica, fruto de Trabalho de Conclusão de Curso, no
loteamento São Gonçalo a partir de levantamentos de dados que
possibilitaram realizar a comparação entre os imóveis que se
encontram registrados no Cartório de Registro de Imóveis e o que foi
lançado na prefeitura dentro do referido programa de regularização
fundiária, de acordo com a Lei Municipal nº 1.750/2003, evidenciando
tais diferenças a partir de gráficos de comparativos. Com os dados
empíricos coletados pode-se concluir haver déficit na regularização
das escrituras do programa PROMORAR.

36
Bacharel em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.
37
Mestrando em Direito, “Novos Direitos e Novos Sujeitos”, pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Direito Pùblico pela
Universidade Cândido Mendes e Gestão de Políticas Públicas pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Direito e Administração
pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professor da Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana. Advogado.

300
Palavras-chave: Direito Civil. Regularização fundiária. PROMORAR.
Moradia digna. Cartório de Registro de Imóveis.

INTRODUÇÃO

A expressão “desconformidade urbana” pode ser entendida


como toda e qualquer condição que resulta da limitação ou restrição
ao acesso à terra e moradia digna, bem como serviços urbanos e
pleno exercício da cidadania (CARDOSO et. al., 2014). A Lei Federal n.
10.257/2001, Estatuto da Cidade, prevê, no artigo segundo, que todo
indivíduo tem “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos ao trabalho e ao lazer, para as futuras e presentes gerações”
(BRASIL, 2001).
Segundo Cardoso et al. (2014) esses direitos devem se fazer
cumprir pelo Estado e o direito à moradia deve ser exceção às regras
jurídicas da lei de parcelamento (Lei Federal nº. 6.766/79) (BRASIL,
1979) e de registro público (Lei Federal nº. 6.015/73) (BRASIL, 1973),
pois estas são anteriores ao Estatuto da Cidade, que prevê a
regularização fundiária (RF) em zonas de interesse social.
A RF é o “conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas,
ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos
irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o
direito social à moradia” (ANOREG/MT, 2009). Sendo assim, além de
contribuir para a universalização do acesso à moradia, a RF oferece
subsídios para que se cumpram os outros direitos previstos pela Lei
nº. 10.257/2001 (GOMES; STEINBERGER, 2016).
A cidade de Mariana, Minas Gerais (Mariana – MG) adotou a
RF através da implementação do Programa Regional de Regularização

301
Fundiária (PROMORAR), que foi criado pela Prefeitura Municipal no
ano de 2003 a partir da Lei Municipal nº. 1.750/2003 e visa, segundo
o artigo terceiro, parágrafo primeiro

[...] possibilitar a urbanização e regularização jurídica dos


aglomerados urbanos, cuja ocupação irregular foi promovida
ou permitida pelo Poder Público Municipal, desde que se
situem em terrenos públicos devolutos, pertencentes à
municipalidade, recebidos em doação, originários da
Sesmaria do Município, ou desapropriados com o propósito
específico de regularização urbana (MARIANA, 2003).
Portanto, o presente artigo trata da RF na cidade de Mariana -
MG, sob o prisma do PROMORAR, a partir da análise dos critérios
adotados pela municipalidade para a concretização do programa e as
razões para a divergência entre o cadastro dos beneficiados no Poder
Executivo Municipal e no Cartório de Registro de Imóveis. A principal
problemática está nos impactos e desafios dessa regularização, bem
como nos desafios e motivos que levam os beneficiários do projeto a
não efetivarem os registros da escritura no Cartório de Registro de
Imóveis.
Nesse sentido, é importante analisar os impactos e os desafios
da RF através da investigação do PROMORAR, bem como apontar os
critérios que o município mineiro utilizou para a efetivação e
aplicação da Lei Municipal nº. 1.750/2003 e realizar a comparação dos
déficits existentes entre os dados da municipalidade e do Cartório de
Registro de Imóveis local em relação à regularização das escrituras
destinadas ao PROMORAR.
Em um panorama geral, a RF é um processo de intervenção
pública destinado a alcançar direitos sociais sob os aspectos jurídicos
e físicos, por isso a importância de regulamentar os assentamentos
irregulares da cidade de Mariana - MG. Sendo assim, a análise desse
programa traz novos elementos à questão de RF urbana no
302
município, proporcionando, no âmbito acadêmico, a ampliação do
conhecimento dos que já lidam com essa área. Já, no âmbito social, a
aplicação da RF no município tem como meta o desenvolvimento e
garantia de serviços para a população de baixa renda, como o acesso
à moradia de forma legal e segura juridicamente, e consequente
atendimento de saneamento básico, melhoria no transporte e no
ambiente social e urbano, resgatando a cidadania e a qualidade de
vida da população beneficiada.
Para tanto, foi realizada pesquisa empírica a partir do
levantamento de dados no loteamento São Gonçalo que possibilitam
a comparação entre os imóveis que se encontram registrados no
Cartório de Registro de Imóveis e os que foram lançados na prefeitura
dentro do PROMORAR, por ocasião do Trabalho de Conclusão de
Curso de Direito da autora, orientada pelo coautor deste artigo, na
faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.
O presente artigo foi estruturado e dividido em três partes: no
primeiro momento, a fundamentação teórica, na qual foram
apresentados conceitos sobre a informalidade urbana no Brasil, os
objetivos da RF e seus desafios, além do papel do município e do
Cartório de Registro de Imóveis; no segundo momento, são citados
os métodos utilizados para a aquisição dos dados, frutos da pesquisa
empírica; por fim, no terceiro momento, apresenta-se os resultados e
realiza as discussões sobre os dados coletados.

A INFORMALIDADE URBANA E OS DESAFIOS DA


REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL

A informalidade urbana é um processo muito comum no


mundo inteiro, principalmente em países em desenvolvimento. O
acelerado processo de urbanização aliado à falta de políticas urbanas

303
resultou, no Brasil, nas ocupações informais (FRANÇA, 2014).
Segundo Fernandes (2002a), 40% a 70% da população urbana
nos grandes centros viviam na ilegalidade em 2002. De forma geral,
os fatores que levam à ilegalidade urbana estão diretamente
relacionados às condições econômicas, ou seja, é um problema que
atinge as camadas sociais mais baixas (CRUZ; ALVES, 2016).
Nesse sentido, Fernandes (2002b), destaca que os principais
condicionantes para a ilegalidade urbana são, principalmente, a
ausência de políticas fundiárias que insiram a população em locais
formais com infraestrutura urbana, de forma que não excluam o
acesso à população de baixa renda ao mercado formal, e as
dificuldades do governo em planejar e implementar instrumentos de
prevenção à informalidade.
No Brasil, programas como o Minha Casa, Minha Vida já
apontam redução no déficit habitacional. Ainda assim, grande parte
da população ainda vive em áreas de parcelamento de solo
clandestinos (favelas e cortiços) e irregulares. O parcelamento só é
considerado regular quando aprovado pela prefeitura, executado
segundo o projeto aprovado e registrado no Cartório de Imóveis
(FRANÇA, 2014).
Sendo assim, existem diversos níveis de informalidade que
envolvem pontos de vista jurídicos, ambientais, urbanísticos e sociais.
Em um cenário ideal, a regularização fundiária sanaria todas a
problemáticas, ainda que seja um processo demorado e caro.
Cumpre ressaltar que a RF não compreende apenas a emissão
da titulação de posse de um terreno ou área, esta é apenas uma das
facetas para a compreensão desse processo. Mais do que isso, a RF
visa inserção legal dos moradores à cidade, assegurando seus direitos
de cidadãos, incluindo a execução de obras de infraestrutura básica
que assegurem o fornecimento de água potável e luz elétrica,
abertura de ruas e vias de acesso, como forma de assegurar as
304
condições adequadas de sobrevivência (PAGANI; ALVES; CORDEIRO,
2016).
Inclusive, em julho de 2017, foi implementada a Lei nº 13.465,
que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana no país. A
Regularização Fundiária Urbana (Reurb) é a que “abrange medidas
jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação
dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à
titulação de seus ocupantes” (BRASIL, 2017a).
Os objetivos da Reurb foram estabelecidos no artigo 10 da lei
supracitada, e consistem em

I - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser


regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de
serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as
condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de
ocupação informal anterior;
II - criar unidades imobiliárias compatíveis com o
ordenamento territorial urbano e constituir sobre elas direitos
reais em favor dos seus ocupantes;
III - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de
baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos
ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais
regularizados;
IV - promover a integração social e a geração de emprego e
renda;
V - estimular a resolução extrajudicial de conflitos, em reforço
à consensualidade e à cooperação entre Estado e sociedade;
VI - garantir o direito social à moradia digna e às condições
de vida adequadas;
VII - garantir a efetivação da função social da propriedade;
VIII - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes;
305
IX - concretizar o princípio constitucional da eficiência na
ocupação e no uso do solo;
X - prevenir e desestimular a formação de novos núcleos
urbanos informais;
XI - conceder direitos reais, preferencialmente em nome da
mulher;
XII - franquear participação dos interessados nas etapas do
processo de regularização fundiária (BRASIL, 2017a).
A Constituição Federal de 1988 já assegurava os direitos coletivos à
gestão e planejamento urbano democráticos das cidades (BRASIL,
1988). Os programas da Reurb oferecem, portanto, o direito à cidade,
de forma a garantir que toda a população possa participar de maneira
justa dos benefícios e oportunidades impostos pelo crescimento
urbano (FERNANDES, 2002b), como melhoria nas condições de vida,
acesso à saúde, educação e moradia, reduzindo, assim, a sua
vulnerabilidade social.

O papel do município e a Lei Municipal nº. 1.750/2003 -


Programa Municipal de Regularização Fundiária (PROMORAR)

O artigo 30 da Constituição Federal de 1988 afirma que é


dever do município promover o adequamento territorial, incluindo
“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano” (BRASIL, 1988).
De acordo com Pagani, Alves e Cordeiro (2016), o papel do
município é primário - mesmo com a parceria com outros setores
governamentais - na elaboração e execução de políticas de
desenvolvimento urbano que preveem a RF. Esse papel é muito
importante, porque o município é a entidade mais próxima da

306
população (PAGANI; ALVES; CORDEIRO, 2016).
Cada município que adere a RF utiliza como base a
Constituição Federal e o Estatuto da Cidade para criar um programa
regional que atenda as demandas da localidade em consonância com
a Lei Municipal nº 13.465/2017, que regulamenta a Reurb. Assim, em
Mariana - MG, foi criado o PROMORAR sob a Lei nº. 1.750/2003, que
também dispõe sobre a Política Municipal de Habitação.
De acordo com o artigo segundo da Lei Municipal nº.
1.750/2003, para a realização dos planos e programas serão
observadas as circunstâncias abaixo:

a) O atendimento prioritário à população de baixa renda;


b) A participação financeira do cidadão na aquisição e/ou
regularização do imóvel, sempre que possível, dentro da sua
capacidade contributiva;
c) a adequação do espaço à ocupação humana;
d) a prioridade na formação de núcleos residenciais;
e) a destinação de espaços públicos de lazer, áreas verdes e
de circulação viária compatíveis com o número de edificações
e de pessoas residente (MARIANA, 2003).

A partir da data que entrou em vigor, 03 de julho de 2003, o


PROMORAR contemplou todos aglomerados urbanos ocupados por
populações economicamente carentes existentes até a data do
cadastramento imobiliário municipal realizado no 1º semestre de
2002, sendo as prioridades: Alto do Rosário, Cabanas, Cartuxa, Estrela
do Sul, Santa Rita de Cássia, Santo Antônio, São Cristóvão, São
Gonçalo, São Sebastião, Vale Verde, Vila Nossa Senhora de Fátima e
Vila São Vicente de Paulo. Porém, de acordo com o parágrafo terceiro
do artigo terceiro, “a Lei que institui o Plano Diretor Urbano e
Ambiental do Município de Mariana poderá estender ou restringir a
307
área de atuação do PROMORAR” (MARIANA, 2003).
A Lei nº 11.977/200, art. 7º, dispõe sobre os atores sociais que
possuem legitimidade para promover regularização fundiária:

a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;


a população moradora dos assentamentos informais, de
maneira individual ou em grupo;
cooperativas habitacionais, associações de moradores,
organizações sociais, organizações da sociedade civil de
interesse público;
entidades civis constituídas com a finalidade de promover
atividades ligadas ao desenvolvimento urbano ou à
regularização fundiária (BRASIL, 2009).

Porém, há outros setores que, embora não sejam atestados,


podem ou devem estar envolvidos no processo de RF, como o
Cartório de Registro de Imóveis, por exemplo. Cabe a ele, de acordo
com o capítulo XII da Lei nº 11.977/2009:

emitir certidão de matrícula ou transcrição da área a ser


regularizada por meio de demarcação urbanística;
recepcionar e analisar o auto de demarcação urbanística
elaborado pelo poder público para fins de promoção de
regularização fundiária de interesse social;
proceder às buscas para identificar o proprietário, bem como
as matrículas e transcrições referentes à área objeto de
demarcação urbanística;
notificar o proprietário da área e seus confrontantes, para
eventual impugnação ao procedimento de demarcação
urbanística
notificar o poder público responsável pela regularização
fundiária de interesse social para manifestação nos casos de
308
impugnação, bem como promover tentativa de acordo entre
o ente promotor e o impugnante;
averbar o auto de demarcação urbanística nas matrículas
correspondentes;
se for o caso, abrir matrícula da área objeto de regularização
fundiária com fundamento no inciso I do art. 288-A, da Lei de
Registros Públicos 6.015/1973;
recepcionar e registrar o parcelamento decorrente de projeto
de regularização fundiária na respectiva matrícula, quando
este for exigível, ou do parcelamento de fato, quando a
execução do projeto for dispensável;
abrir as matrículas das parcelas resultantes do parcelamento;
registrar o título de legitimação de posse concedido pelo
poder público em favor dos beneficiários das áreas objeto de
demarcação urbanística, bem como outros títulos outorgados
no âmbito de programas de regularização fundiária de
interesse social;
registrar a conversão da legitimação de posse em
propriedade, a requerimento dos beneficiários, após análise
dos documentos por estes apresentados, que comprovem o
preenchimento dos requisitos legais necessários (BRASIL,
2009).

No Brasil, se diz popularmente que “só é dono quem registra”,


ou seja, enquanto o título não é registrado no Cartório de Registro de
Imóveis, não há a transferência da propriedade ou de outro direito
real de uso. Isso significa que procedimento de RF só é realmente
concretizado quando os títulos concedidos aos beneficiários do
programa são registrados. Sem o registro, os beneficiários não podem
provar que detém o direito real de uso ou a propriedade do imóvel
que ocupam.

309
De forma geral, os assentamentos informais são resultado de
um padrão excludente dos processos de desenvolvimento e
planejamento das áreas urbanas (FERNANDES, 2002b). Os municípios
carregam legislações urbanísticas elitistas e, consequentemente, essas
ocupações informais acabam se tornando a única opção das
populações mais pobres.
O crescimento desordenado dos grandes centros é um grande
obstáculo para a RF, porque é difícil suprir a demanda habitacional.
Em Mariana – MG, no ano de 2015, por exemplo, a prefeitura adotou
uma política de tolerância zero em relação à novas irregularidades,
necessitando do auxílio do Ministério Público para realizar
intervenções ao mesmo tempo em que cerca de 350 pessoas
aguardavam uma casa popular do programa Minha Casa, Minha Vida
(RIBEIRO, 2015).
Além disso, justamente por se tratar de uma comunidade
carente, muitas vezes o acesso à informação é precário. A título
exemplificativo, o município regulariza o loteamento através do
PROMORAR, mas nem sempre o proprietário da escritura fornecida
pela prefeitura tem conhecimento de que ainda é necessário o
processo de registro pelo Cartório de Registro de Imóveis. Sendo
assim, programas de RF deveriam ser acompanhados por sistemas de
informação à população.
Em contrapartida, a RF é um processo que, além de demorado,
é caro. De um lado existem os moradores que não têm condições de
arcar com os preços de uma regularização nos termos amplos; do
outro, há a reduzida ação orçamentária federal para ações de
prevenção e/ou enfrentamento à informalidade urbana, além das
rupturas de programas já existentes por causa da troca de governos
(FRANÇA, 2014).

310
O PROMORAR E A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO MUNICÍPIO
DE MARIANA – MG: o caso do loteamento do São Gonçalo

O município de Mariana fica localizado no Estado de Minas


Gerais, a aproximadamente 120 km da capital Belo Horizonte e,
conforme dados do IBGE, em 2020, sua população estimada é de
61.288 pessoas (BRASIL, 2017b).
Para o desenvolvimento do presente trabalho, optou-se por
realizar o estudo no loteamento São Gonçalo (Figura 1) por possuir
matrículas sequenciais. O registro do loteamento foi realizado na data
de 01 de abril de 2010.

Figura 1 - Planta urbanística do loteamento São Gonçalo

Fonte: Cartório de Registro de Imóveis de Mariana-MG (2020)

A área total do loteamento São Gonçalo é de 36.234,19 m²,


somando os lotes ruas/becos/passeios e áreas remanescentes. Os
311
lotes ocupam 83% da área total (30.145,11 m²) e são distribuídos em
seis quadras. Os detalhes das quadras constam na Tabela 1.

Tabela 1 - Quadras do loteamento São Gonçalo com suas


quantidades de lotes e área

Quadra Lotes Área (m²)


QA 8 1.425,78
QB 44 10.015,61
QC 17 2.950,28
QD 13 2.321,32
QE 22 5.770,06
QF 28 7.662,06
TOTAL 132 30.145,11
Fonte: Elaborado pelos autores com dados obtidos no Cartório de
Registro de Imóveis de Mariana-MG (2020)

Os dados analisados foram obtidos através do Cartório de


Registro de Imóveis da cidade de Mariana - MG, que atua nos
municípios de Mariana e Diogo de Vasconcelos, através da assessoria
da Oficiala Titular deste Cartório, Ana Cristina de Souza Maia, que
tomou posse em 06 de agosto de 2004, após a aprovação no Primeiro
Concurso de Provas e Títulos de Minas Gerais.
O Cartório funciona atualmente na Rua Direita, nº. 175, no
centro histórico da cidade, de forma a ser um local de fácil acesso à
população. Ademais, o Cartório conta com registros históricos, que
passaram a ser informatizados. Além de estar sempre procurando a
modernização, ele tem como finalidade [...] efetivar o registro e
averbação dos títulos ou atos ou fatos inter vivos ou mortis causa,
que sejam constitutivos, translativos, modificativos ou extintivos de
312
direitos reais. A finalidade é de assegurar-lhes validade, eficácia erga
omnes e disponibilidade, garantindo aos seus usuários a publicidade,
autenticidade, eficácia e segurança dos negócios jurídicos (MAIA,
2020).
Todos os dados obtidos foram compilados para a confecção
dos gráficos abaixo. No Gráfico 1 pode-se identificar que as quadras
que representam a maior parte do terreno total são as indicadas por
B e F. A partir dos Gráficos 2 e 3 é possível perceber que essas áreas
representam também as quadras que menos realizaram o registro no
Cartório de Registro de Imóveis.

Gráfico 1 - Representação da área total do loteamento e as


porcentagens pertencentes a cada quadra especificamente

Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos Cartório de


Registro de Imóveis de Mariana-MG (2020)

Em análise ao Gráfico 2 pode-se observar que, no loteamento

313
B, dos 44 lotes com área total de 10.015,61 m², 24 não foram
registrados, revelando que 54,5% da área não foi registrada (5.463,06
m²). Em F, dos 28 que ocupam 7.662,06 m² do bairro, 15 não foram
registrados, cerca de 4.104,68 m², evidenciando novamente que mais
de 50% não possuem registro.
As quadras C, D e E possuem mais lotes com registro do que
lotes sem registro, sendo E o que possui a maior porcentagem de
lotes registrados (73%). Tal fato pode ser explicado pelo tamanho da
área: como se tratam de loteamentos menores, a comunicação entre
os moradores pode ser melhor, ou seja, a informação chega aos
vizinhos com mais facilidade.

Gráfico 2 – Comparação do número de lotes registrados e o


número de lotes não registrados no Cartório de Registros de
Imóveis de Mariana

Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos Cartório de


Registro de Imóveis de Mariana-MG (2020)
314
Em contrapartida, apesar de ser a menor quadra do bairro, A
também possui uma porcentagem alta de lotes não registrados,
exatamente 50% (Gráfico 3). Isso implica que a falta de comunicação
não é a única justificativa para o baixo número de registros: a falta de
conhecimento e até mesmo a disponibilidade de recursos financeiros
podem ser empecilhos.

Gráfico 3 – Comparação entre a área total disponibilizadas para o


programa, e as áreas registradas e não registradas no Cartório de
Registro de Imóveis.

Fonte: Elaborado pelos autores com dados extraídos Cartório de


Registro de Imóveis de Mariana-MG (2020)

Para que ocorra o processo de regularização de um imóvel, o


proprietário necessita da assessoria de um profissional credenciado
pela Prefeitura Municipal e pelo Conselho de Arquitetura e
Urbanismo do Brasil (CAU) ou Conselho Regional de Engenharia e
315
Agronomia do Estado (CREA), que pode ser representado por um
engenheiro ou um arquiteto e urbanista. Além disso, ele deve orientar
quanto às informações básicas sobre o loteamento, e deverá garantir
agilidade no processo burocrático da regularização para obtenção de
documentos (EQUIPE D.O.S., 2017).
Através da análise dos três gráficos e das informações anteriores,
pode-se inferir que existe uma disparidade entre o número de lotes
totais registrados no sistema do PROMORAR e número de lotes
registrados no Cartório de Registros de Imóveis da cidade.
A principal hipótese para tal situação se configura falta de
conhecimento acerca do assunto pelas famílias usuárias do benefício:
após a regularização do loteamento, os proprietários recebem uma
escritura particular do PROMORAR emitida pela Prefeitura Municipal;
por não terem a informação das atitudes a serem tomadas a partir de
então, muitos interpretavam que esse documento já representava o
registro. Desse modo, grande parte dos beneficiários não se dirige ao
Cartório de Registros de Imóveis para a realização de um protocolo
que transfira a propriedade, que está em nome da Prefeitura
Municipal do município, para o atual proprietário. Logo, fica evidente
que falta instrução e comunicação entre o município e os favorecidos
pelo programa.
Além disso, o custeio para o registro é muitas vezes inviável
aos proprietários: o registro da escritura pública, pois o terreno ou o
imóvel podem variar de R$ 28.000,01 à R$140.000,00 e por isso o
instrumento particular e título judicial, com conteúdo financeiro,
possui valor variável entre R$ 1.002,65 até R$ 2.385,68 (MINASGERAIS,
2020), representando em média de um até dois salários mínimos (R$
1.045,00) (BRASIL, 2020), que é o salário médio das pessoas que
foram favorecidas pelo projeto. Por este motivo, muitos desses
habitantes não tem condições de regularizar a situação de suas
moradias perante o Cartório.
316
Existe a possibilidade do emolumento gratuito:

[...] o Novo Código de Processo Civil, em seu Art. 98, § 1º, IX,
consagrou que a gratuidade da justiça, que compreende os
emolumentos devidos a notários ou registradores em
decorrência da prática de registro ou qualquer outro ato
notarial necessário à efetivação de decisão judicial. É digna de
aplausos a inserção no NCPC, do § 7º, do artigo 98, da criação
de um Fundo de compensação que garanta o ressarcimento
dos emolumentos notariais e registrais, praticados em razão
de concessão de ordem judicial que contempla os
beneficiários da justiça gratuita. Porém, é necessário
efetivamente implementar o Fundo e que o NCPC avance mais
e conceda o pleno ressarcimento aos demais atos gratuitos e
isentos celebrados por notários e registradores (PIMENTEL;
PINTO; LIS, 2019).

Portanto, somando as informações supracitadas, o cartório


local informou que tais processos são raros e exigem uma burocracia
pouco acessível aos proprietários, o que estabelece novamente, mais
um obstáculo para a obtenção do registro.
Após toda essa discussão, é necessário informar que o Decreto
nº 9.943 de 09 de dezembro de 2019 institui que a Prefeitura Municipal
passa a regulamentar a Reurb no âmbito do Município de Mariana -
MG (MINAS GERAIS, 2019), derrubando, assim, a Lei Municipal nº.
1.750/2003.

Art.1º. Ficam instituídos, no âmbito do Município de Mariana –


MG, os procedimentos para Regularização Fundiária Urbana–
REURB, os quais abrangem medidas jurídicas, urbanísticas,
ambientais e sociais, que visam à regularização dos núcleos
urbanos informais, disciplinados pela Lei Federal nº
13.465/2017 e pelo Decreto Federal 9.310 de 15 de março de

317
2018 (MARIANA, 2019).

Apesar de não mais vigir o PROMORAR, tendo sido subistituído pelo


Reurb, o presente artigo continua relevante por ser aquele um
importante antecedente histórico e um programa municipal essencial
para se conhecer e entender a regularização fundiária na “primaz de
minas”, Mariana – MG.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos desta pesquisa foram analisar os impactos e os


desafios da RF através da investigação do PROMORAR, citar e apontar
os critérios que o município utiliza para a efetivação e aplicação da
Lei Municipal nº. 1.750/2003 e a comparação dos déficits existentes
entre os dados da municipalidade e do Cartório de Registro de
Imóveis local em relação à regularização das escrituras destinadas ao
PROMORAR.
Após os dados aqui especificados pode-se depreender que a
população, muitas vezes leiga e carente de conhecimentos, é
prejudicada pela falta de informações mais concretas sobre os
documentos que os irão assegurar a propriedade do terreno,
informações essas que deveriam ser fornecidas pelo município
através de um profissional capacitado. Sendo assim, essa falta de
ciência, aliada à impossibilidade financeira de registro desses imóveis,
faz com que ocorra o déficit de registros entre o município e o
Cartório de Registros de Imóveis local.
Para que que não haja disparidades destes registros, que em
sua maioria se deve à impossibilidade de efetivação do pagamento
para que ocorra a regulamentação, a Prefeitura Municipal e Cartório
de Registros de Imóveis deveriam se unir para criar um programa que

318
barateie ou custeie o valor desses registros, a fim de facilitar e
melhorar a acessibilidade desta população mais carente ao direito de
estar com um documento que os assegure de quaisquer
intercorrências.
Então, ficou evidente que a RF é um programa de
interesse que contribui significativamente para que pessoas menos
ativas economicamente possam realizar o sonho de adquirir uma casa
própria, ainda que existam muitos desafios a serem superados. Além
disso, o artigo fomenta que pessoas que não tem familiaridade com o
tema possam compreender melhor a realidade e as dificuldades
enfrentadas pela população que se beneficia da RF a partir da análise
aqui proposta.
Por fim, é indubitável que o registro dos imóveis é essencial à
vida dessas pessoas, pois de acordo com o Código Civil, a
transferência e/ou compra de um imóvel só é oficial após o registro
em Cartório de Imóveis, assim ele assegura o direito de propriedade,
ou seja, afirma quem é o dono, sem deixar quaisquer dúvidas ou
brechas para que tal propriedade não seja invadida e/ou penhorada
para a quitação de dívidas.

319
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em: 15 nov. 2020.

323
DA NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO ART. 10 DA LEI n.
9.263/1966 À AUTONOMIA PRIVADA DA MULHER
Francielly Rodrigues Almeida de Araújo38
Raphael Furtado Carminate39
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar a Lei do Planejamento Familiar nº
9.263/96, sua aplicação e divergências com a Constituição Federal.
Para tanto, parte-se de análise histórica e conceitual para posterior
demonstração de contradições elencadas à Lei Maior, além da
atuação do STF em tomadas de decisões legislativas

Palavras-Chave: Autonomia. Dignidade. Esterilização. Legislação.


Liberdade. Mulher.

INTRODUÇÃO

Atualmente, muito se discute acerca da autonomia da mulher


sobre o próprio corpo, destacando-se dentre os temas debatidos, a
“liberdade” feminina no que tange ao planejamento familiar. Partindo
da premissa autonomia, oriunda das expressões gregas autos
(próprio) e nomos (norma, regra)”40, é a faculdade de se autogovernar
e estabelecer regras próprias, observa-se que ela não é assegurada
em matéria de planejamento familiar.

38
Bacharel em Direito pela UNIPAC Itabirito, MG. Pós-graduanda em Direito
Civil e Processual Civil pela UNIPAC Itabirito.
39
Doutor e mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Professor de Direito
Civil da UNIPAC Itabirito e Mariana. Coordenador e Professor da Pós-
Graduação em Direito Civil e Processual Civil da UNIPAC Itabirito.
40
CARMINATE, Raphael Furtado. Autonomia Privada Do Testador E
Direito À Legítima: Estudo Crítico E Propositivo. Dissertação (Mestrado,
Direito) - PUC Minas, Belo Horizonte, MG, 2012.
324
Fundamentada na dignidade da pessoa humana e autonomia
privada, a Constituição Federal garantiu às pessoas o direito ao
planejamento familiar em seu art. 226, §7°. Em 1996, foi promulgada a
Lei n. 9.263, denominada “Lei do Planejamento Familiar”, cujo objeto
é regulamentação do referido dispositivo constitucional.
Apesar de reforçar planejamento familiar como direito de todo
cidadão, ao regulamentar o exercício desse direito, a Lei 9.263/96,
acaba restringindo ou, até mesmo, suprimindo-o, como ocorre, por
exemplo, às mulheres casadas (ou que vivem em união estável), que
necessitam de autorização de seu cônjuge para submeterem-se à
esterilização cirúrgica.
Ao limitar o exercício do direito ao planejamento familiar, no
que tange à esterilização cirúrgica, a lei viola a autonomia privada dos
envolvidos, visto tratar-se de ato de natureza existencial, que reclama
liberdade de escolha entre os envolvidos, não a intervenção do
Estado.
Neste artigo, será analisado o aparente conflito entre a
autonomia privada da mulher que deseja submeter-se à esterilização
cirúrgica e a normativa que a regulamenta. Para tanto, será primeiro
apresentada a evolução da autonomia feminina no núcleo familiar
para posterior estudo do conteúdo dos artigos 10 e 15 da Lei
9.263/96, além de projetos de lei destinados à sua alteração, sob a
perspectiva da autonomia privada dos indivíduos.

CONTEXTO HISTÓRICO

Para o correto entendimento do tema objeto do presente


artigo é fundamental o conhecimento histórico do tratamento
jurídico, demonstrando direitos assegurados e obrigações impostas
às famílias brasileiras.

325
O modelo família institucionalizada no Brasil foi herdado do
colonizador Portugal, que realizou mera “transferência da legislação
portuguesa para o Brasil, embora o contexto nacional fosse
completamente diferente daquele vivenciado pela Europa no mesmo
período”41.
Nesse sentido, devido inexistência de normas brasileiras e
união entre Estado e Igreja no período colonial, somente eram
consideradas famílias as entidades constituídas por meio de
casamento religioso.
Mesmo com o fim da colonização, a Igreja se manteve forte e
com grande influência, tendo o catolicismo sido definido à categoria
de religião oficial do império por meio da Constituição Imperial de
182442. Em razão disso, a Igreja exerceu grande influência sobre os
legisladores pátrios, especialmente no que tange à normativa das
famílias, tendo o Código Civil de 1916 mantido o mesmo e único
modelo de entidade familiar anteriormente estabelecido, qual seja, o
casamento pautado na monogamia, patriarcado, etc.
Entretanto, o matrimônio e toda essa estrutura familiar eram
predominantes apenas na alta sociedade, geralmente detentora de
propriedades e influência política na época, pois era forma de manter
o poder adquirido ao longo dos anos. Assim, este modelo familiar,
embora único dotado de reconhecimento legal, era distante da
realidade brasileira da época, no qual o comum era a constituição de
famílias informais – hoje intitulada união estável.

41
CARMINATE, Raphael Furtado. Capacidade das pessoas com deficiência
mental ou intelectual para constituir família. Belo Horizonte, MG:
D‘Plácido, 2019. ISBN 978-85-60519-99-6. p. 92.
42
Art. 5 A religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a
Regilião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu
culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas sem forma
algum exterior do Templo.
326
Aquela época era imposto à mulher a obrigação de se manter
virgem “para o casamento”, sob pena deste ser anulado, conforme
redação original dos artigos 219 e 220, do Código Civil de 1916:

Art. 219 Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro


cônjuge:
IV- o defloramento da mulher, ignorado pelo marido.
(Destaque nosso)
Art. 220 A anulação do casamento, nos casos do artigo
antecedente, n. I, II e III, só a poderá demandar o outro
cônjuge e, no caso do n. IV, só pelo marido43. (Destaque
nosso)

Neste contexto, a Igreja exerceu papel marcante com relação


ao controle da natalidade, acabando por interferir diretamente no
núcleo familiar.
Um dos instrumentos de comunicação muito utilizado pela
Igreja para repasse de dogmas e avisos eram as cartas. Dentre estas,
uma em específico publicada pelo Vaticano em 25/07/1968, intitulada
carta encíclica Humanae Vitae44, que aborda uma das respostas mais
diretas do Vaticano em face do progresso da medicina tendo como
foco o controle da natalidade.
O Vaticano pregava que a procriação humana era ato divino e
principal objetivo do casamento, para tanto, se posicionou de forma
contrária à utilização de métodos contraceptivos e esterilização
cirúrgica.

43
CÓDIGO CIVIL. Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916. CÓDIGO CIVIL DOS
ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Rio de Janeiro, RJ, 5 jan. 1916.
44
PAPA VI, Paulo. CARTA ENCÍCLICA HUMANAE VITAE: A transmissão da
vida. Roma: Vatican, 25 jul. 1968. Acesso em: 30 ago. 2019.
327
Assim, dentro do casamento formal estabelecido pela Igreja e pelo
Estado, a mulher nunca tinha vez, pois tinha o dever da fertilidade e a
obrigação da fidelidade, ao passo que o homem tinha o direito de
"possuir" outras mulheres. Esse tratamento desigual era legitimado
inclusive pela medicina, que garantia que a infertilidade era um
problema exclusivamente feminino, ajudando a Igreja a incutir na
mentalidade da mulher vários tabus morais como forma de controle
de seus corpos45.
Os dispositivos legais supracitados não foram recepcionados
pela Constituição Federal de 1988, pois violavam uma série de
princípios estabelecidos por ela, dentre eles a dignidade, autonomia e
igualdade. No texto constitucional, o planejamento familiar deixou de
ser objeto de responsabilidade estatal, delegando-se ao casal à
autonomia, restando apenas ao Estado propiciar os recursos
necessários para fazer cumprir o direito, conforme elencado no artigo,
226, § 7º46.
Além disso, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.565, §2º,
pautou-se a reafirmar a autonomia do casal na tomada de decisões
sobre o planejamento familiar47.

45
Ibidem.
46
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.
47
Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a
condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da
família.
§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse
328
BREVE CONSIDERAÇÕES SOBRE O BIODIREITO E O
PLANEJAMENTO FAMILIAR

A capacidade de procriação se faz presente em grande parte


dos seres humanos. O processo de gestação biologicamente é
exercido pelas mulheres, não atinge apenas sua condição física, como
também a psicológica, social, cultural e, não menos importante, a sua
vida profissional.
Neste prospecto, o Biodireito tem papel fundamental, pois é
ponto de interseção entre o Direito, a ética e os profissionais da
saúde, proporcionando maior segurança para a mulher na matéria
objeto deste estudo. Neste sentido, pode-se afirmar que constitui

“Ponte entre a ciência biológica e a ética, a “sua intuição


consistiu em pensar que a sobrevivência de grande parte da
espécie humana, em uma civilização decente e sustentável,
dependia do desenvolvimento e manutenção de um sistema
ético”48.

Salienta-se que o Biodireito se pauta, no poder de


autodeterminação do paciente, sintetizado na expressão
Consentimento Informado ou Consentimento Livre e Esclarecido, que,
juntos à autonomia privada na esfera jurídica são semelhantes em
significado. Ressalta-se no Direito Privado, o sentido da autonomia

direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas


ou públicas.
48
PESSINI, Leo. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao
imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista Bioética, São Paulo, p. A bioética-
internacionais, 21 jan. 2013. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/bioet/v21n1/a02v21n1. Acesso em: 31 ago. 2019.
329
privada se dá pela autorregulamentação; no Biodireito, em
49
contrapartida, pela autodeterminação .
Para tanto, a autodeterminação deve ocorrer da forma mais
transparente e esclarecedora possível, além do dever de respeitar os
direitos fundamentais, elencados na Constituição Federal de 1988,
devendo também cumprir os requisitos de validade, quais sejam,
informação, ausência de condicionantes externos e discernimento50.
Desta maneira, a autonomia privada do paciente é traçada
pelo seu próprio desejo, ou seja, mediante a sua liberdade de
escolher o que considera melhor para si, e não a tomada de decisão
realizada após inúmeras pressões externas, relativas à vontade
coletiva ou vício de consentimento.

No momento em que emitir sua decisão, o paciente deve


estar esclarecido do diagnóstico, do tratamento mais
adequado a se implementar e de seus efeitos, positivos e
negativos. A decisão deve ser revestida do maior número
possível de informações, que devem ser passadas de forma
clara e abrangente, avaliando as opções de tratamento, riscos
e benefícios.
A informação não deve simplesmente ser transmitida pelo
profissional de saúde, mas construída com o paciente. Isso
inclui não apenas uma linguagem clara e acessível, mas uma
real possibilidade de interação51.

49
NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. O Direito Pela Perspectiva Da
Autonomia Privada: Relação Jurídica, Situações Jurídicas e Teoria do Fato
Jurídico na Segunda Modernidade. 2ª. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2014.
p.105.
50
Ibidem,. p. 107.
51
Ibidem,. p. 107.
330
Além disso, insta salientar que a competência para a tomada
de decisões na área médica não se confunde com a capacidade civil,
estando relacionada à aptidão para distinguir e fazer apreciação do
fato pretendido, ou não.
Em suma, o objeto do Biodireito nesta temática, é assegurar
que a tomada de decisões dos envolvidos, desde que competentes
para tanto, seja efetivamente observada, pois irá repercutir apenas na
esfera corporal de cada um.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AUTONOMIA PRIVADA

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o


ordenamento jurídico pátrio passou a ser interpretado e aplicado de
maneira que os direitos fundamentais sejam assegurados a cada
indivíduo, dentre eles o respeito à dignidade e autonomia.
Não obstante, a Lei do Planejamento Familiar coloca em risco
a autonomia da mulher sobre o próprio corpo, uma vez que como na
gestação a mulher assume todos os riscos oriundos da gravidez e os
ônus relacionados à sua saúde, vida profissional e interesses próprios,
não é admissível que a lei estabeleça a atuação ou anuência de
terceiros como requisito para a tomada de determinadas decisões
nessa área.
Neste contexto, verifica-se que a lei supramencionada impõe a
autorização de um terceiro para a realização de esterilização cirúrgica
da mulher casada ou que vive em união estável, e a obriga a aguardar
um período nunca inferior a 60 (sessenta) dias após o parto ou aborto
espontâneo para a submissão ao procedimento.
Estas regras limitam o exercício do direito previsto na
Constituição Federal, em seu artigo 226, parágrafo 7°, infantilizando a
mulher ao pressupor que a mesma não tem discernimento para

331
tomar decisões complexas, trazendo à tona temas superados pelo
próprio texto constitucional, que equiparou homens e mulheres para
todos os fins.
É imprescindível, portanto, superar este cenário, a fim de se
assegurar à mulher que o exercício de seu direito à liberdade se dê de
forma autônoma, sem injustificáveis interferências da família, Estado,
ou de qualquer outra entidade. A mulher, por meio da autonomia
privada, exerceria a capacidade de autodeterminação sobre o seu
próprio corpo, como assevera Ana Carolina Brochado Teixeira:

É necessário que o direito fundamental à liberdade seja exercido da


forma mais genuína possível, sem atitudes paternalistas da família, do
governo ou de qualquer outra entidade intermediária. E para que isso
ocorra, é preciso que se investigue se existe um espaço exclusivo para
decisões pessoais, tutelado pela Constituição Federal, imune a
interferências externas normatizadas52.

Sendo assim, na tomada de decisões existenciais cujos


resultados repercutem apenas no próprio agente o âmbito de
atuação da autonomia privada é mais alargado, cabendo ao
Estado apenas estabelecer mecanismos para assegurar que
tais decisões são manifestações conscientes de vontade.
Compactua desse entendimento Maria Celina Bodin de
Moraes, a seguir:

No que se refere às relações extrapatrimoniais, o Código Civil, à luz


de interpretação constitucionalizada, possivelmente regrediu. Com
efeito, debate-se atualmente se, em virtude do mesmo princípio

52
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio
de Janeiro: Renovar, 2010. ISBN 978-85-7147-791-9, p.168.
332
fundamental da proteção da dignidade humana, não derivaria,
logicamente, uma expansão da autonomia privada no que se refere às
escolhas da vida privada de cada pessoa humana? Ou seja, a
privacidade garantida pela Constituição a uma pessoa digna,
plenamente capaz, não deveria significar, pelo menos em linha de
princípio, mais amplo poder de escolha sobre os seus bens mais
importantes?53

Cabe ressaltar que nas decisões existenciais autorreferentes a


autonomia privada deve, em regra, se sobrepor à intervenção estatal,
uma vez que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, é
um direito e garantia fundamental. Neste contexto, as lições de Ana
Carolina Brochado Teixeira:

Existe um núcleo vinculado a questões existenciais que


concerne à própria pessoa, principalmente quando esta
decisão interfere apenas em sua própria esfera jurídica
existencial, sem se referir a terceiros. A construção autônoma
dessas escolhas é que acarreta legitimidade das mesmas, pois
em matéria de tanta intimidade e de construção da vida
privada, não é possível conceber-se imposições heterônomas,
mesmo que essas venham do Estado ou do legislador. Se isto
ocorrer, tratar-se-á de ditadura, pois em regimes estatais
totalitários, o Estado imporá a moral – o ethos – que julgar
mais adequada, em detrimento daquela que a própria pessoa
escolheu, “pretendendo substituir integralmente o tecido
individual onde a vida faz sentir mais forte as suas razões”. A
imposição autoritária nesse espaço individual nega de forma

53
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade.
In: VIEIRA, José Ribas (Org.). 20 anos da Constituição cidadã de 1988:
efetivação ou impasse institucional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.372.
333
veemente a autonomia e a responsabilidade individuais54.

Destarte, Jorge Reis Novais retrata que a autonomia privada


possibilita a cada um viver de acordo com seu projeto existencial, por
meio da tomada de decisões individuais que construirão sua
particular forma de vida, não se coadunando com a possibilidade de
cessão ou limitação de direitos para suprir os desejos da maioria. A
possibilidade de tomada destas decisões rege uma sociedade
democrática, conforme exposto a seguir:

À luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa


humana, a opinião de cada um, e a possibilidade de a
exprimir, de lutar por ela e de viver segundo os próprios
padrões, é tão valiosa quanto a opinião do outro. Cada um
tem, garantida pelo Estado de Direito, uma esfera de
autonomia e liberdade individual que a maioria não pode
comprimir ou restringir, pelo simples facto de ser a maioria,
pelo simples facto de a autonomia individual se orientar num
sentido rejeitado ou hostilizado pela maioria. É como
concretização e expressão dessa ideia que, em nosso
entender, a imagem do trunfo cobra pleno sentido: a decisão
democrática de muitos da maioria, não quebra o direito
fundamental de um; o trunfo que lhe é dado pelo direito
fundamental, o que aqui equivale a dizer, que lhe advém do
respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
trunfa o interesse individual e dá-lhe uma especial força de
resistência, de armadura, perante a qual se detém e cede a
decisão democrática da maioria55.

54
Ibidem,. p. 180.
55
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos como trunfos contra a maioria – sentido e
alcance da vocação contramajoritária dos direitos fundamentais no estado
democrático de direito. In: CLEVE, Clèmerson Merlin; PAGLIARINI, Alexandre
334
Diante do exposto, afigura-se notório que em situações
envolvendo a autonomia corporal, deve partir do próprio indivíduo a
decisão sobre o fato. Para tanto, à decisão há de ser tomada após o
devido esclarecimento do procedimento, para que ocorra de forma
livre.

DISPOSITIVOS DA LEI N. 9.263/1996 QUE SE CONTRAPÕEM À


AUTONOMIA PRIVADA DA MULHER

Após as considerações acima, serão analisados os dispositivos


da Lei n. 9.263/1996 diretamente relacionados à autonomia da mulher
para a tomada de decisões relacionadas à esterilização cirúrgica.
Dentre os dispositivos a serem analisados, destacam-se o caput e os
§§1º, 2º e 5º, artigo 10 da referida lei, que possuem as seguintes
redações:

Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas


seguintes situações:
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e
maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com
dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de
sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato
cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa
interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade,
incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar,
visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto,

Coutinho; Sarlet, Iongo Wolfgang. Direitos humanos e democracia. Rio de


Janeiro: Forense, 2007, p. 80.
335
testemunhado em relatório escrito e assinado por dois
médicos.
§1º É condição para que se realize a esterilização o registro de
expressa manifestação da vontade em documento escrito
e firmado, após a informação a respeito dos riscos da
cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua
reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
§2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante
os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de
comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas
anteriores.
(...)
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização
depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
(Destaque nosso)
O inciso I, do artigo supracitado, estabelece capacidade
específica para a submissão à esterilização voluntária, composta pelos
seguintes requisitos: capacidade plena; idade superior a vinte e cinco
anos ou, pelo menos, dois filhos vivos. O inciso II do mesmo
dispositivo excepciona a presença de capacidade específica apenas
nas hipóteses em que há risco à vida ou à saúde da mulher ou do
futuro concepto, desde que haja relatório assinado por dois médicos.
A criação de capacidade específica para a esterilização viola a
autonomia privada, ao impor idade superior àquela prevista para a
prática dos atos da vida civil em geral, na qual “a pessoa fica
habilitada à prática de todos os atos da vida civil” (art. 5º CC)56.

56
Art. 5ºA menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa
fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante
instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por
336
Além disso, de acordo com a parte final do caput do mesmo
dispositivo, o processo de esterilização deve ser desencorajado por
uma equipe multidisciplinar, evidenciando um interesse estatal na
manutenção da fertilidade da mulher. Ora, considerando-se os
argumentos apresentados anteriormente, caberia à equipe
multidisciplinar esclarecer as consequências advindas do ato, de
forma que o consentimento da pessoa fosse manifestado de forma
livre e esclarecida, respeitando-se sua autonomia. O Conselho Federal
de Medicina esclarece o que é consentimento livre e esclarecido:

Considerando que o consentimento livre e esclarecido


consiste no ato de decisão, concordância e aprovação do
paciente ou de seu representante, após a necessária
informação e explicações, sob a responsabilidade do médico,
a respeito dos procedimentos diagnósticos ou terapêuticos
que lhe são indicados57.

A partir do momento que o paciente possui a capacidade de


decidir o que é melhor para si, tendo em vista que ela irá conviver
com o resultado final, não se faz necessária a influência de terceiros
sobre o seu próprio corpo, exceto em casos emergenciais em que não

sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;


II - pelo casamento;
III - pelo exercício de emprego público efetivo;
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de
emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos
completos tenha economia própria.(Destaque nosso)
57
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (País). Carlos Vital Tavares Corrêa
Lima. RECOMENDAÇÃO CFM Nº 1/2016. Brasília, 29 jan. 2016. Disponível
em: http://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf. Acesso em:
28 set. 2019.
337
esteja consciente para dar o seu consentimento.
Por conseguinte, o prazo de 60 (sessenta) dias estabelecido
entre a manifestação de vontade e a data do procedimento cirúrgico
mostra-se desarrazoado, pois não há nenhuma justificativa de ordem
técnica para se impor lapso temporal como requisito.
Isto posto, o parágrafo 5º do artigo em comento estabelece
como requisito para a esterilização o consentimento prévio do
cônjuge, caso esta seja feita na constância da sociedade conjugal.
Neste prospecto é perceptível a divergência se comparado aos
princípios constitucionais, em especial a autonomia privada dos
envolvidos. Além disso ao se exigir consentimento do cônjuge para a
realização do procedimento, acaba por prejudicar as conquistas
sexuais e reprodutivas da mulher brasileira, podendo também
estender este rol para outras esferas, impactando na decisão
individual de cada um.
Nesta senda, os requisitos elencados no parágrafo sujeita o
corpo do indivíduo à vontade de um terceiro, permitindo que o outro
exerça uma espécie de condomínio ou composse sobre o corpo
alheio, pois a partir do momento em que o interessado depende do
consentimento do cônjuge para realizar o procedimento, esta tem sua
autonomia violada. Essa regra é contestada na ADI 5.09758, na qual a
Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) aponta
indevida ingerência do Estado no planejamento reprodutivo e afronta
à liberdade individual.
À vista disso, ao serem analisados os requisitos considerados
mínimos para a esterilização cirúrgica, configurados pela lei, quais
sejam: capacidade civil plena, idade superior a vinte e cinco anos de

58
LEI 9.263/1996 "LEI DO PLANEJAMENTO FAMILIAR". Lei nº 9.263, de 13
de março de 2014. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. BRASÍLIA,
DF, 2014.
338
idade, ou no mínimo dois filhos vivos; percebe-se que tais exigências
ultrapassam os limites de intervenção do estado, pois a capacidade é
alcançada aos 18 (dezoito) anos de idade, e os demais requisitos são
no mínimo instrumentos contrários à dignidade da pessoa humana,
conforme esclarece Renata Barbosa de Almeida:

Capacidade de exercício é, nesse viés, o reconhecimento da


independência do sujeito para realizar a potencialidade de
titularizar poderes, direitos, faculdades, ônus e deveres,
dentro dos moldes pré-fixados normativamente através da
capacidade de direito. Ser capaz de fato consiste, então, na
possibilidade de adquirir e desenvolver titularidade autônoma
e pessoalmente, dispensando qualquer auxílio de ou
condução por terceiros59.

Desta maneira, ao atingir sua capacidade civil plena, o


indivíduo pode optar por nunca ter filhos, caso não os desejem;
decisão esta que fica totalmente adversa sob a interpretação da lei
supracitada.
No entanto, essa exigência é descabida, visto que desrespeita
completamente a autonomia privada, a qual pressupõe que as
decisões pessoais, inclusive sobre os direitos reprodutivos, não se
podem sujeitar à vontade de terceiros. Deste modo, Ana Carolina
Brochado Teixeira, trata que a autonomia da pessoa humana, deve
sempre estar acima de qualquer governo ou norma jurídica:

Não há alternativa a não ser concluir que os limites à

59
ALMEIDA, Renata Barbosa de. (In) capacidade dos esquizofrênicos: um
estudo sobre o exercício do direito à saúde. Tese (Doutorado). Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Direito. Belo Horizonte, 2011. P.45.
339
autonomia são internos, pois estão previstos pelo próprio
ordenamento jurídico, ou seja, os limites são internos porque
o ordenamento autoriza espaços para ação individual, de
modo que, em tais espaços, a decisão só é legítima se for
tomada pela própria pessoa, por fazer parte da construção da
sua vida privada. Afinal, indivíduos livres e iguais exercem sua
autonomia privada porque compartilham de uma autonomia
pública, que tem como finalidade perseguir interesses
comuns, coletivos, por conviverem em um Estado
Democrático de Direito. Logo, a própria ideia de autonomia
privada é limitada pelo “espaço” público, que é
democraticamente compartilhado entre todos60.

Para tanto, não cabe ao legislador interferir em situações


“subjetivas existenciais”, estabelecendo regras do que seria ou não
possível no núcleo familiar, e pior, na autonomia corporal, conforme
afirma Ana Carolina Brochado Teixeira:

Logo, a dignidade – vez que seu conceito está intimamente


relacionado com a autonomia – tem como função limitar a
atuação do legislador, do juiz, do médico, da família e de
outras entidades intermediárias em situações existenciais,
para que seja garantido tal espaço único de decisão pessoal,
principalmente quando afetas à própria saúde. Afinal, o
princípio moderno da dignidade exige que todos os
indivíduos sejam igualmente respeitados em suas liberdades,
para que possam, autonomamente, construir-se a si mesmos,
a agir segundo seus próprios valores61.

Ao ser permitida medidas com a finalidade de intervir no

60
Ibidem. p. 182.
61
Ibidem,. p. 194
340
controle de natalidade, o Estado acaba por interferir novamente no
núcleo familiar, e, assim, obstaculizar à previsão legal já elencada na
CF, em seu artigo 226, §7º.
Depois de lançadas essas considerações, a
(in)constitucionalidade dos dispositivos
acima arrolados da Lei 9.263/96, com o intuito de sanar as lacunas de
ampla interpretação pautadas por ela, que, além de possuir
dispositivos capazes de contrariar direitos assegurados pela
Constituição Federal, prima-se por demonstrar uma objetificação do
corpo ao estipular requisitos necessários para a esterilização, quais
sejam: a idade mínima de 25 anos, e 02 (dois) filhos vivos, observado
o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o
ato cirúrgico, e se for o caso, consentimento do cônjuge.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta perspectiva, a Lei 9.263/96 foi criada com o intuito de


formalizar os direitos assegurados no artigo 226, parágrafo 7º da
Constituição Federal de 1988. Entretanto, alguns dos dispositivos nela
contidos se divergem ao texto constitucional, no momento em que
dificulta e até mesmo impossibilita a realização da esterilização
cirúrgica voluntária mediante regras sem fundamento legal.
Ademais, ao estabelecer requisitos descabíeis para realizar a
esterilização cirúrgica, sendo eles: idade superior a vinte e cinco anos
de idade, no mínimo dois filhos vivos, além da necessidade do
consentimento do cônjuge na vigência da sociedade conjugal, pugna-
se por violar os princípios constitucionais que asseguram a autonomia
privada, dignidade e direito ao planejamento familiar.
Além disso, a disparidade da Lei do Planejamento Familiar em
desfavor da mulher fere sua dignidade e a torna incapaz para a

341
tomada de decisões relativas ao próprio corpo, desconsiderando sua
vontade conforme dispositivos elencados no artigo 10 da Lei
9.263/96, impossibilitando-a de ter a sua vontade cumprida.
Ademais, é perceptível a falta de isonomia nos tratamentos
dispensados aos homens e mulheres, uma vez que são impostas
barreiras às mulheres em períodos da gestação que são vivenciados
exclusivamente por elas.
Diante do exposto, enfatiza-se que ante a vastidão do tema
abordado pelo presente estudo, não se pretende esgotar a discussão
acerca das irregularidades advindas da Lei 9.263/96. Não obstante,
almeja-se promover a apreciação de um conteúdo imprescindível,
que incide diretamente sobre garantias individuais.
Tendo em vista a ampla disparidade existente entre a
Constituição Federal e a lei supramencionada, demanda-se que a lei
ordinária seja de fato interpretada sob a égide da Constituição, se
adequando à hierarquia normativa.
Por conseguinte, a aplicação da legislação infraconstitucional
acerca do tema em comento deve ser pautada por uma perspectiva
de liberdade e autonomia da mulher, sob pena de, ao se
impossibilitá-la de tomar decisões relativas ao próprio corpo, privá-la
destes direitos.
Levando-se em consideração que por muitos anos as
mulheres foram “silenciadas” por dispositivos capazes até mesmo de
criminalizá-las em situações que não estavam elencadas no rol do
artigo 10 da lei supramencionada, deve-se atentar para o risco
imposto à sua própria vida e a imposição de duras escolhas àquelas
que nunca almejaram a maternidade. Assim, o dispositivo
supramencionado, ao designar medidas necessárias para a
esterilização cirúrgica, não se preocupou com as consequências
advindas destas exigências para diferentes realidades familiares.
Portanto, não há que se falar em interferência estatal na
342
tomada de decisões que impliquem em resultados de foro individual.
Sendo assim, busca-se a reforma desta norma, porém, que ocorra sob
a égide da isonomia constitucional, consagrada a liberdade para
constituir família da forma que melhor lhe aprouver e vedando-se a
projeção do solipsismo jurisdicional embasado em escopos meta
jurídicos para intervir na individualidade particular dos cidadãos.

343
REFERÊNCIAS
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personalidade. In: VIEIRA, José Ribas (Org.). 20 anos da Constituição
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346
GESTÃO EDUCACIONAL NA PANDEMIA DO COVID-19: A
EXPERIÊNCIA DO CURSO DE DIREITO DA FUNDAÇÃO
PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA – ANO 2020
Crovymara Elias Batalha62
Fabiano César Rebuzzi Guzzo63
RESUMO:
A Pandemia Covid-19 representa uma mudança de paradigmas no
que diz respeito à Gestão Educacional, novas ações administrativas e
acadêmicas se fizeram necessárias, novas competências e habilidades
se fizeram presentes no cotidiano da Comunidade Docente, Discente
e Administrativa.

62
Mestre em Educação – Universidad Camilo Cienfuegos de Matanzas -
CUBA
Bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto
Bacharel em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.
Diretora da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.
Secretária de Planejamento do Município de Ouro Preto
Secretária de Educação do Município de Ouro Preto (2007)
Secretária de Educação do Município de Mariana (2002)
Superintendente Regional de Ensinode Ensino (1999/2002 – 2015/2018)
63
Mestre em Direito, “Direito e Globalização”, pela Universidade Vale do Rio
Verde
Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior pela PUC- Minas Gerais
Pós-Graduado em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto
Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal de Ouro
Preto
Professor Adjunto do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio
Carlos de Mariana.
Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de
Mariana.
Advogado.

347
Palavras-chave: Gestão Educacional, Ensino Jurídico, Ensino Remoto
Emergencial, Direito.

INTRODUÇÃO

Este Artigo tem como objetivo discorrer sobre as experiências


da Direção e Coordenação do Curso de Direito da Fundação Antônio
Carlos de Mariana (FUPAC) face as novas nuances de Gestão
Educacional advindas da Pandemia Mundial – COVID-19.
A Pandemia Mundial – COVID-19 representou e representa
mudanças de paradigmas face a transmutação do Ensino Presencial
para o Ensino Remoto de Emergência, o que por certo trouxe novos
desafios e perspectivas aos (as) Gestores (as) em Educação.
Para tal, elegeu-se como marco temporal aproximado, o período
compreendido, entre os meses de Março de 2020 à Dezembro de
2020, equivalente à (02) dois Semestres letivos, bem como, optou-se
por apontar as principais ações administrativas e acadêmicas
encaminhadas pela Instituição de Ensino para a manutenção das suas
atividades.
Importante mencionar que as ações administrativas e
acadêmicas com vistas à migração do Ensino Presencial para o Ensino
Remoto de Emergência pautaram-se, inicialmente, nas orientações do
Conselho Nacional de Educação (CNE), e, em seguida nas Normas
Federais, haja vista a normal carência legislativa sobre o tema.
Neste sentido a Direção e Coordenação do Curso de Direito
da Fupac Mariana consideraram em suas ações o disposto na Medida
Provisória n.º: 934/20, nas Portarias do Ministério da Educação n.º:
343, 345 e 395, 473, 544/20, no parecer CNE/CP Nº: 5/2020 aprovado
em 28 de abril 2020, na NOTA TÉCNICA Nº 32/2020 de 28 de maio de
2020, no parecer CNE/CP Nº: 11/2020 aprovado em 07 de julho 2020

348
e homologado parcialmente em despacho MEC de 03 de Agosto de
2020 e na Lei n.º 14.040/2020, normas estas que regulamentam o
Ensino Remoto em caráter Excepcional.
Salientando-se que as orientações constantes do Parecer
CNE/CP nº 5/2020, aprovado em 28 de abril de 2020 que trata da
Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo
de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga
horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19; e, o
Parecer CNE/CP nº 11/2020, aprovado em 7 de julho de 2020 que
trata de Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e
Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da
Pandemia foram as mais, coerentes e técnicas, para se minorar os
impactos sofridos pela suspensão das atividades presenciais no
Ensino Superior.
Ressaltando-se que a primeira Lei Federal sobre o tema foi
editada, após 05 (cinco) meses de Pandemia, sendo a Lei n.º 14.040
de 18 de Agosto de 2020 a qual estabeleceu normas educacionais
excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade
pública.
Feitas tais premissas iniciais o presente texto apresenta
tópicos onde discorremos sobre várias ações desenvolvidas no que
concerne às sistemáticas de encaminhamentos administrativos, aulas
remotas, avaliações remotas, trabalhos de conclusão de curso,
eventos e atividades práticas.

ENCAMINHAMENTOS INICIAIS – SISTEMÁTICA DE


COMUNICADOS:

Na semana de 16 a 20 de Março de 2020, quando os efeitos


da Pandemia Mundial de Covid-19 atingiram de modo efetivo todo o

349
sistema educacional do País, em um momento de incertezas face as
orientações incipientes por parte de Governos Federais, Estaduais e
Municipais, a Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana optou
por seguir, inicialmente, as diretrizes das Portarias nº 343/345, ambas
de Março de 2020, no sentido de não suspender o calendário
acadêmico do Curso de Direito, migrando do Ensino Presencial para o
Ensino Remoto de Emergência.
Sobre o Ensino Remoto Emergencial o artigo “The Difference
Between Emergency Remote Teaching and Online Learning” traz luz
sobre o tema:

Em contraste com as experiências que são planejadas desde o


início e projetadas para serem online, o ensino remoto de
emergência (ERT) é uma mudança temporária de ensino para
um modo de ensino alternativo devido a circunstâncias de
crise. Envolve o uso de soluções de ensino totalmente
remotas para instrução ou educação que, de outra forma,
seriam ministradas presencialmente ou como cursos
combinados ou híbridos e que retornariam a esse formato
assim que a crise ou emergência diminuísse. O objetivo
principal nessas circunstâncias não é recriar um ecossistema
educacional robusto, mas, sim, fornecer acesso temporário à
instrução e suporte educacional de uma maneira que seja
rápida de configurar e esteja disponível de forma confiável
durante uma emergência ou crise. (Hodges, Moore, Lockee,
Trust & Bond, 2020)

Tal encaminhamento também foi embasado em decisão


liminar do Tribunal Regional do Trabalho – MG no Dissídio Coletivo
0010443-06.2020.5.03.000064, suscitado pelo Sindicato dos

64
Disponível em : https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-
350
Professores do Estado de Minas Gerais (SINPRO – MG); decisão esta
que determinou a suspensão das atividades presenciais nas
Instituições de Ensino Superior Privadas.
Anota-se, ainda, que a opção de manter o calendário
acadêmico se deu objetivando realizar o maior número de atividades,
sejam elas, ensino, extensão, pesquisa, prática, etc., e, sem diminuição
dos dias letivos semestrais, mesmo com encaminhamentos do
Conselho Nacional de Educação (CNE) flexibilizando a questão dos
dias letivos, vejamos:

Em virtude da situação de calamidade pública decorrente da


pandemia da COVID-19, a Medida Provisória nº 934/2020
flexibilizou excepcionalmente a exigência do cumprimento do
calendário escolar ao dispensar os estabelecimentos de
ensino da obrigatoriedade de observância ao mínimo de
dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a
carga horária mínima anual estabelecida nos referidos
dispositivos, observadas as normas a serem editadas pelos
respectivos sistemas de ensino. (CNE 05, 2020)

Para a implementação dos encaminhamentos institucionais se


fez necessário ações administrativas e acadêmicas céleres, sendo o
uso dos Comunicados Administrativos divulgados no site institucional
fupacmariana.com.br, nas redes sociais, e compartilhados por toda
comunidade acadêmica, uma ferramenta importante na circulação
das informações. Do mesmo modo que se fez importante estabelecer
vias de comunicação com setores estratégicos da Instituição, como
por exemplo, setor de Tecnologias através do e-mail
clariceizidoro@bol.com.br, Secretaria através do e-mail

trt/comunicacao/noticias-
institucionais/downloads/Liminar_suspensao_aula.pdf
351
secretariafupac@gmail.com e Recursos Humanos e Financeiro através
do e-mail: patriciasouza@unipac.br.
A guisa de exemplo, foram relevantes os Comunicados
Administrativos n. º: 01 e 02 de 2020, no sentido de orientar
Discentes, Docentes e Corpo Administrativo para questões sanitárias
e para as novas práticas acadêmicas, vejamos:

COMUNICADO 01/2020
Ao Corpo Administrativo, Docente e Discente

A Direção da FUPAC Mariana acompanhando os últimos


acontecimentos sobre o Corona vírus (COVID-19) , informa
que as aulas serão ministradas normalmente hoje (16/03) e
amanhã (17/03).
Contudo, vamos adotar protocolo de prevenção com
a paralisação das aulas, segundo orientação do governo
estadual, no período de 18 a 22 de março.
ALGUMAS MEDIDAS QUE SERÃO ADOTADAS A PARTIR DE
HOJE:
• As portas e janelas das salas de aula deverão ficar abertas
para melhor circulação.
• Os funcionários, professores e alunos com sintomas de
gripe serão dispensados de suas atividades.
• Os funcionários, professores, alunos e familiares que tenham
retornado de viagem ao exterior é considerado grupo de
risco, portanto sugerimos que permaneçam em casa.
• Vamos suspender temporariamente as atividades avaliativas.
A coordenação e direção já estão alinhando com os
professores a possibilidade de aplicação remota do conteúdo
de aula, com vistas a diminuir os impactos sobre o calendário
acadêmico.
Conto com a compreensão de todos e peço-lhe que
352
aguardem nossas orientações!
Mariana, 16 de março de 2020
Crovymara Elias Batalha- Diretora - FUPAC – Mariana
(FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA,
2020a).

COMUNICADO 02/2020
Ao Corpo Administrativo, Docente e Discente,

A Direção e Coordenação da Fupac Mariana em atenção ao


atual surto do Corona vírus (COVID-19), bem como, em razão
de se minorar os impactos sofridos pela suspensão das
atividades presenciais no calendário acadêmico, faz os
seguintes encaminhamentos:
1 – As aulas presenciais anteriormente suspensas até o dia
22/03/2020 ficam suspensas até o dia 31/03/2020 conforme
decisão liminar proferida pelo TRT-MG em ação proposta
pelo Simpro-MG;
2 – As aulas presenciais do período de 23/03/2020 a
31/03/2020 serão substituídas por aulas virtuais no portal
Black Colaborate Ultra;
3 – As aulas serão ministradas no horário normal das
disciplinas, ou seja, período noturno das 19.00 as 22.30 horas,
sendo recomendado que os professores ministrem
semanalmente 1 hora de aula expositiva, 30 minutos de
debates, e o restante da carga horária (caso houver) com
vídeos, exercícios, textos, chats, etc.
4 – No período de 18/03/2020 a 20/03/2020 o setor de
informática da FUPAC Mariana estará disponível para a
353
realização de cadastros no Portal Black, bem como, para o
fornecimento de informações e resolução de dúvidas, atenção
ao e-mail: clariceizidoro@bol.com.br
5 – As aulas virtuais do período de 23/03/2020 a 31/03/2020
deverão ter a frequência dos alunos, bem como, a aferição de
pontuação (pontos de trabalho) à critério do professor para
que assim possamos considerar as atividades como oficiais;
6 – Dois tutoriais de funcionamento do portal, um para
professores outro para alunos estão sendo disponibilizados
no site da Instituição, bem como, divulgados via e-mail;
7 – No horário das aulas virtuais do período de 23/03/2020 a
31/03/2020 o setor de informática e/ou laboratório estarão
disponíveis para dar suporte à comunidade acadêmica;
8 - As provas da 1ª Etapa continuam por hora suspensas
sendo que soluções estão sendo pensadas pelo corpo
Diretivo da IES;
Contamos com a colaboração e compreensão de toda
comunidade acadêmica;
Mariana, 18/03/2020
Atenciosamente,
Crovymara Elias Batalha – Diretora
Bruno Martins Ferreira – Coordenador Administrativo
Fabiano César Rebuzzi Guzzo – Coordenador Acadêmico
(FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA,
2020b).

Pela leitura dos comunicados percebe-se que o Curso de


Direito da Fupac Mariana manteve a maioria das atividades
acadêmicas por via remota, inicialmente focando na realização de
aulas semanais síncronas e assíncronas, postagem de materiais

354
diversos, chats, fórum, etc., utilizando-se para tal de Ambiente Virtual
de Aprendizagem (AVA), já disponível previamente, denominado
Portal BlackBoard Colaborate.
Refletindo bem o contexto, o extrato do texto “O ensino
remoto frente às exigências do contexto de pandemia”, vejamos:

Nesse regime, quase a totalidade das disciplinas teóricas e


grande parte das atividades teórico-práticas passarão a ser
ministradas remotamente, em Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (AVA), dentro de um sistema institucional,
através do software Moodle e G Suite, pacote oferecido pela
universidade, que integra ferramentas como o Google
Classroom e Google Meet, , facilitando o acesso e registro de
todas as atividades planejadas em cada disciplina e,
realizadas, de forma síncrona ou assíncrona, com os docentes
e alunos e, entre os alunos, a depender do que for delineado
no plano de ensino. No entanto, em função de dificuldades
de equipamentos ou de entrada em plataforma, outros
aplicativos como WhatsApp e Telegram e redes sociais como
Facebook e Instagran, podem ser utilizados para facilitar o
acesso a diálogos, vídeos e documentos em pdf, desde que o
aluno disponha de conexão com a internet. (VALENTE,
MORAES, SANCHEZ, SOUZA, PACHECO, 2020, p. 05)

Assim, uma série de reuniões, treinamentos, cursos, tutoriais,


repositórios, textos, etc., sobre as ferramentas necessárias ao
desenvolvimento do Ensino Remoto de Emergência passaram a ser
cotidianos para a Comunidade Acadêmica. A Comunidade Acadêmica
se viu diante de uma abrupta mudança no que diz respeito as práticas
de ensino; se fez necessário adaptar-se a novas e inúmeras
habilidades, ferramentas e metodologias, até outrora não utilizadas, e
até mesmo, desconhecidas.

355
Fato é que as atividades de uma Instituição de Ensino Superior
vão além da organização das aulas e principais atividades acadêmicas
cotidianas. A manutenção ou migração de aulas presenciais para
remotas exigem encaminhamentos com relação à sistemática de
avaliações, atividades de extensão, estágios, eventos, TCC – Trabalhos
de Conclusão de Curso, ou seja, um grande emaranhado de ações se
fazem necessárias.
Para auxiliar a Direção e Coordenação na tomada de decisões
a CPA (Comissão Própria de Avaliação) elaborou e promoveu,
Avaliação Diagnóstica junto aos (as) Discentes tendo como foco o
funcionamento mais adequado do Ensino Remoto, sendo os
principais apontamentos:

O tempo de aula gravada assíncrona mais produtivo para os


alunos é de até 30 minutos;
Os alunos deram notas mais baixa quanto à aprendizagem o
ensino remoto em relaçãoao presencial;
Os alunos pontuaram melhor a flexibilidade do ensino remoto
em relação ao presencial
Predominou o uso do smartphone e do notebook para
acompanhamento das aulas;
Os alunos apontaram mais dificuldade de concentração na
aula gravada assíncrona que na ao vivo;
Os alunos apontaram que o ensino remoto exige muito
mais tempo e organização dos alunos, bem como, mais
organização dos professores;
A maioria dos alunos apontaram estar mais estressados
e ansiosos no ensino remoto comparado ao presencial;
A maioria sente-se mais insatisfeitos com seus resultados no
ensino remoto comparado ao presencial . (CAMPOS;
MOREIRA, 2020).

356
Ainda utilizando a Avaliação Diagnóstica elaborada pela CPA
(Comissão Própria de Avaliação), a qual teve importante colaboração
da Professora Mestre Magna das Graças Campos e da Discente Vivian
Machado Magalhães Moreira (2020), fundamental trazer a lume
ponto importante ao Ensino Remoto de Emergência que é o
Acesso/Acessibilidade da Comunidade Discente às tecnologias
necessárias ao desenvolvimento do processo de ensino e
aprendizagem nesta modalidade.
Percebe-se pelos gráficos abaixo que o item Qualidade da
Internet nos mais variados períodos do Curso, aponta que possuímos
um número razoável de Discentes com Acesso/Acessibilidade, mas
por sua vez é fato que está longe da totalidade do alunado,
merecendo atenção de Gestores, vejamos:

Figura 01 – Qualidade da Internet 1º/2º Períodos

Fonte: Avaliação diagnóstica – Alunos FUPAC MARIANA (CAMPOS;


MOREIRA, 2020)

357
Figura 02 – Qualidade da Internet 3º/4º Períodos

Fonte: Avaliação diagnóstica – Alunos FUPAC MARIANA (CAMPOS;


MOREIRA, 2020)

Figura 03 – Qualidade da Internet 5º/6º Períodos

Fonte: Avaliação diagnóstica – Alunos FUPAC MARIANA (CAMPOS;


MOREIRA, 2020)

358
Figura 04 – Qualidade da Internet 7º/8º Períodos

Fonte: Avaliação diagnóstica – Alunos FUPAC MARIANA (CAMPOS;


MOREIRA, 2020)

Figura 05 – Qualidade da Internet 9º/10º Períodos

Fonte: Avaliação diagnóstica – Alunos FUPAC MARIANA (CAMPOS;


MOREIRA, 2020)

359
Como dito acima, as atividades de uma Instituição de Ensino Superior
vão além da organização das aulas e principais atividades acadêmicas
cotidianas, muitas outras atividades se fazem rotineiras como
avaliações, estágios, trabalhos de conclusão de curso, eventos, etc.
Para as ações de Gestão Educacional em sede de Ensino Remoto
Emergencial se faz imprescindível saber se a Comunidade Discente
possui Acesso/Acessibilidade aos portais digitais, se este acesso é
síncrono ou assíncrono, ou seja, sabendo as reais condições dos (as)
alunos (as) do Curso de Direito da Fupac Mariana, se faz possível
adequar as ações às peculiaridades do público.
Mais, o momento de Ensino Remoto de Emergência traz reflexões
sobre o protagonismo no processo de aprendizagem, ponto relevante
já discutido há décadas, que volta à pauta, sendo considerado na
Gestão Educacional da Fupac Mariana, vejamos:

A ênfase na aprendizagem como paradigma para o Ensino


Superior alterará o papel dos participantes do processo: ao
aprendiz cabe o papel central, de sujeito que exerce as ações
necessárias para que aconteça sua aprendizagem : buscar as
informações, trabalhá-las, produzir um conhecimento,
adquirir habilidades, mudar atitudes e adquirir valores. Sem
dúvida, que essas ações serão realizadas com os outros
participantes do processo : com os professores e com os
colegas, pois, a aprendizagem não se faz isoladamente, mas
em parceria, em contato com os outros e com o mundo. O
professor terá substituído seu papel exclusivo de transmissor
de informações para o de mediador pedagógico ou de
orientador do processo de aprendizagem de seu aluno.
Donde sua pergunta agora será: o que meu aluno precisa
aprender de todo o conhecimento que tenho e de toda a
experiência que tenho vivido para que ele possa desenvolver
sua formação profissional? O ângulo é outro. A variação foi de
180 graus. (MASSETO, 2003, p. 03)

360
Desta feita nos tópicos seguintes discorre-se de forma específica as
ações encaminhadas por Direção e Coordenação no que diz respeito
às aulas, avaliações, trabalhos de conclusão de curso, eventos e
atividades práticas.

SISTEMÁTICA DE AULAS:

Quando se discorre sobre a Sistemática de Aulas, importante dizer


que foi este o primeiro foco da Gestão Educacional do Curso de
Direito da Fupac Mariana quando da decisão de migrar do Ensino
Presencial para o Ensino Remoto de Emergência.
Também se faz pertinente contextualizar as Orientações sobre
o tema repassadas pelo Núcleo de Estudos On-line (Neo)65,
disponibilizadas à Comunidade Acadêmica, em especial Docentes, no
Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) denominado Portal
BlackBoard Colaborate.
Assevera-se para o tutoriais “Guia do AVA – Ambiente Virtual
de Aprendizagem” e “Orientações Pedagógicas para aulas on line”,
onde diversas orientações foram dirigidas aos (as) Docentes no
sentido de desenvolver aulas síncronas e assíncronas, postagem de
atividades, atentando-se para carga horária semanal, e, sugerindo-se
inicialmente aulas de 30 (trinta) minutos, e, posteriormente, aulas de
50 (cinquenta) minutos.
Desta forma, partindo das Orientações Institucionais Gerais do

65
O Núcleo de Estudo on-line (Neo) é órgão que subsidia de informações as
unidades da FUPAC vinculadas à Barbacena. Orientações, tutoriais diversos,
principalmente em sede de pandemia, são disponibilizados internamente no
Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) denominado Portal BlackBoard
Colaborate . Disponível em: https://unipac.blackboard.com
361
Núcleo de Estudos On-line (Neo), bem como, dos dados mensurados
na citada Avaliação Diagnóstica elaborada pela CPA (Comissão
Própria de Avaliação), em especial, no quesito Acesso/Acessibilidade
Discente às Plataformas Digitais, a Gestão Educacional testou e
desenvolveu durante o ano de 2020 metodologias de aulas síncronas
e assíncronas, complementadas por atividades diversas no Ambiente
Virtual de Aprendizagem (AVA).
Salientando que reuniões periódicas com Docentes
subsidiaram o debate e troca de impressões sobre as melhores
alternativas há serem utilizadas, em especial, com a Professora Magna
Campos com formação e experiência na área Educacional.
Neste momento inicial, no Semestre de 2020/1 adotamos
dinâmica inicial onde as aulas foram ministradas no horário normal
das disciplinas, ou seja, período noturno das 19.00 as 22.30 horas,
sendo recomendado aos (as) Professores (as) ministrarem,
semanalmente, 1 (uma) hora de aula expositiva e 30 (trinta) minutos
para debates e dúvidas; sendo o restante da carga horária semanal
(caso houvesse), preenchida com vídeos, exercícios, textos, chats, etc.
Ainda foi sugerido que no caso de aulas gravadas, ou seja,
assíncronas que o (a) Docente estivesse disponível ao vivo no Portal
Black nos 30 minutos finais da aula para os sanar dúvidas; da mesmo
forma, foi orientado e sugerido o envio prévio do material de aula aos
(as) Discentes; que os links das respectivas aulas, vídeos, chats,
exercícios, textos, etc., fossem devidamente compartilhados com os
(as) Discentes; que os (as) Docentes disponibilizassem atividades
diversas para que os (as) Discentes executassem fora dos horários de
aulas, e, sobretudo, o uso de outras mídias auxiliares ao Portal
BlackBoard Colaborate.com vistas à suprir possíveis falhas de
comunicação.
Com o avançar das experiências com aulas síncronas e
assíncronas em tempos de Covid-19, no Semestre de 2020/2 já se fez
362
possível fazermos algumas adaptações face às preferências de
Docentes e Discentes, ou seja, face às especificidades de nossa
comunidade Acadêmica.
Neste segundo Semestre de 2020 já passamos a priorizar as
aulas síncronas realizadas nos horários normais de aula,
prioritariamente, entre às 19.30 e 22.30 horas, com a orientação de se
realizarem aulas de 50 (cinquenta) minutos, mantidas as orientações
quanto disponibilidade de materiais e manutenção da comunicação
entre Docentes e Discentes constantes do parágrafo anterior.
Ressalta-se que as orientações da Direção e Coordenação
sempre acentuaram para o fato das atividades de ensino síncronas
estarem disponíveis para serem realizadas de modo assíncrono face
às peculiaridades individuais da Comunidade Discentes.
Interessante mencionar que cada turma da Instituição
demostrou mediante Avaliação Diagnóstica elaborada pela CPA
(Comissão Própria de Avaliação) seu padrão ideal de aulas, seja
síncrono ou assíncrono; seja com maior duração ou menor duração
de tempo; sejam aulas regulares ou aulas conjugadas com atividades
à exemplo de textos, vídeos, fóruns, chats, etc.
Face as especificidades das turmas desenvolvemos modelos e
sistemáticas de aulas para o Curso de Direito que estão em constante
evolução, almejando potencializar o processo de Ensino e
Aprendizagem, e, quiçá aproveitarmos este conhecimento no futuro.
Neste sentido aponta a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, vejamos:

O considerável esforço despendido em permitir que


professores e alunos encontrem maneiras de aprender e
ensinar remotamente tem imenso potencial para aumentar a
eficácia pedagógica de professores e escolas no futuro, não
somente no retorno imediato à escola, mas além. O
conhecimento e a experiência adquiridos com várias
363
modalidades de aprendizado remoto são ferramentas que
podem ser aprofundadas e implantadas no futuro, criando
modalidades combinadas de ensino e aprendizagem, também
a serviço de uma maior personalização da educação e
estendendo o tempo e as oportunidades de aprendizagem
para todos os alunos. Será importante que as lições
aprendidas com essa experiência
da vida real sejam sistematicamente coletadas e avaliadas, e
que as escolas e os sistemas de ensino investiguem maneiras
pelas quais ambientes inovadores de ensino e aprendizagem
possam ser completamente integrados à escola.
(SCHLEICHER; REIMERS, 2020, p. 03)

Por fim, vale ressaltar a necessidade de constante diálogo neste


ponto, ouvindo segmentos para o melhor aproveitamento da
Sistemática de Aulas.

SISTEMÁTICA DE AVALIAÇÕES:

O assunto avaliação discente representa no Ensino Presencial


tópico de constante reflexão face às competências, habilidades,
práticas, etc., desejáveis aos (as) recém-formados (as), sendo, muitas
vezes ponto de divergências entre aqueles (as) que atuam nos mais
variados segmentos do ensino, sejam Docentes, Discentes, Gestores
(as) e todo segmento Administrativo.
Desta feita, no Ensino Remoto de Emergência, a complexidade
do tema avaliação não seria diferente do Ensino Presencial, ou
mesmo, mais difícil face as peculiaridades dos meios digitais para se
mensurar o processo de aprendizagem Discente.
Assim, para demonstrar o que foi realizado no Curso de
Direito da Fupac Mariana se faz prudente uma reflexão no sentido de
364
compreender o tema nos moldes do Parecer n. º 05 Conselho
Nacional de Educação, em especial no diz respeito à diversificação de
metodologias avaliativas, bem como, no que tange à não reprovação,
vejamos:

Sugere-se que as avaliações e exames nacionais e estaduais


considerem as ações de reorganização dos calendários de
cada sistema de ensino para o estabelecimento de seus
cronogramas. É importante garantir uma avaliação equilibrada
dos estudantes em função das diferentes situações que serão
enfrentadas em cada sistema de ensino, assegurando as
mesmas oportunidades a todos que participam das avaliações
em âmbitos municipal, estadual e nacional.
Neste sentido, as avaliações e exames de conclusão do ano
letivo de 2020 das escolas deverão levar em conta os conteúdos
curriculares efetivamente oferecidos aos estudantes, considerando o
contexto excepcional da pandemia, com o objetivo de evitar o
aumento da reprovação e do abandono no ensino fundamental e
médio.
Sugere-se também que os sistemas de ensino desenvolvam
instrumentos avaliativos que podem subsidiar o trabalho das escolas
e dos professores, tanto no período de realização de atividades
pedagógicas não presenciais como no retorno às aulas presenciais, a
saber:

criar questionário de auto avaliação das atividades ofertadas


aos estudantes no período de isolamento;
ofertar, por meio de salas virtuais, um espaço aos
estudantes para verificação da aprendizagem de forma
discursiva;
elaborar, após o retorno das aulas, uma atividade de
sondagem da compreensão dos conteúdos abordados de
365
forma remota;
criar, durante o período de atividades pedagógicas não
presenciais, uma lista de exercícios que contemplam os
conteúdos principais abordados nas atividades remotas;
utilizar atividades pedagógicas construídas (trilhas, materiais
complementares etc.) como instrumentos de avaliação
diagnóstica, mediante devolução dos estudantes, por meios
virtuais ou após retorno das aulas;
utilizar o acesso às videoaulas como critério avaliativo de
participação através dos indicadores gerados pelo relatório
de uso;
elaborar uma pesquisa científica sobre um determinado
tema com objetivos, hipóteses, metodologias, justificativa,
discussão teórica e conclusão;
criar materiais vinculados aos conteúdos estudados: cartilhas,
roteiros, históriaem quadrinhos, mapas mentais, cartazes; e
realizar avaliação oral individual ou em pares acerca de
temas estudadospreviamente. (CNE 05, 2020)

Do mesmo modo supra, também é importante contextualizar


as Orientações sobre o tema repassadas pelo já mencionado Núcleo
de Estudos On-line (Neo), disponibilizadas via Portal BlackBoard
Colaborate.
Ressalta-se em especial o tutorial “Orientações para a 1ª etapa
avaliativa on line” onde diversas orientações são dirigidas aos (as)
Docentes no sentido de elaborar mais de uma prova por turma,
questões randomizadas, provas no horário das aulas, respostas únicas
sem possibilidade de retorno para conferência, acesso único ao
Portal, etc.
Partindo das premissas advindas do Conselho Nacional de
Educação, das orientações repassadas Núcleo de Estudos On-line
366
(Neo), e, pautando nos dados de Acesso/Acessibilidade Discentes
acima mencionados na pesquisa CPA, a Gestão do Curso de Direito
da Fupac Mariana procurou desenvolver modelos avaliativos.
Neste sentido cabe asseverar, inicialmente que o modelo de 3
(três) Etapas Avaliativas fora mantido como no Ensino Presencial tanto
para o Semestre 2020/1, quanto para o Semestre 2020/2, sendo a 1ª
Etapa composta por uma prova discursiva no valor de 20 (vinte)
pontos e trabalho (s) no valor de 10 (dez) pontos; sendo a 2ª Etapa
composta por uma prova discursiva e objetiva no valor de 20 (vinte)
pontos e trabalho (s) no valor de 10 (dez) pontos; sendo a 3ª Etapa
composta por uma prova objetiva no valor de 30 (trinta) pontos e
trabalho (s) no valor de 10 (dez) pontos.
Frisa-se que no que quesito trabalhos a Comunidade Docente
recebeu plena autonomia para diversificar, usando o Ambiente Virtual
de Aprendizagem através de textos, exercícios, chats, fórum, etc.
Ressalta-se que a única mudança de imediato com relação ao
modelo avaliativo foi a suspensão de Prova Multidisciplinar,
envolvendo questões de todas as disciplinas específicas de cada
período, nos moldes do Exame Nacional de Cursos, que normalmente
se realizava na 2ª Etapa de provas.
Importante salientar que as dinâmicas de provas foram se
adaptando, por exemplo as duas Etapas iniciais do Semestre 2020/1
foram configuradas com dinâmica mais maleável à Comunidade
Discente, haja vista a novidade do processo avaliativo.
Nestas Etapas as provas foram realizadas com 24 (vinte e
quatro) horas de Duração, os (as) Discentes tiveram a oportunidade
de baixar o arquivo da prova para responder suas questões, e, enviar
aos (as) Docentes para correção. As tentativas de realização da prova
nestas Etapas foram definidas como 03 (três).
Já na 3ª Etapa do Semestre 2020/1 se fizeram adaptações na
dinâmica de Avaliações, já se permitindo aos (as) Docentes que
367
configurassem suas provas para serem realizadas dentro do próprio
Portal BlackBoard Colaborate, o tempo foi limitado à 05 (cinco) horas
com a realização das atividades no próprio horário de aulas, mantidas
as demais configurações como a possibilidade de 03 (três) tentativas
de resposta.
Quanto ao Semestre 2020/2 cabe asseverar para ajustes no
tempo das avaliações, sendo 24 (vinte e quatro) horas paras as provas
discursivas da 1ª Etapa, sendo 12 (doze) horas paras as provas
discursivas e objetivas da 2ª Etapa e, sendo 06 (seis) horas paras as
provas objetivas da 3ª Etapa.
Salientando que em ambos os períodos letivos foram
franqueadas datas específicas no Calendário Acadêmico com vistas a
atender às demandas por provas de 2ª Chamada de cada Etapa
Avaliativa.
Do mesmo modo, foram estabelecidas datas no calendário
Acadêmico para a realização do Exame Especial e 2ª Chamada de
Exame Especial para os (as) Discentes que não obtiveram o
coeficiente necessário à aprovação, em ambos os Semestres do ano
de 2020.
Fato é que a sistemática de avaliação talvez seja o ponto mais
paradigmático do Ensino Remoto de Emergência, difíceis são os
consensos, bem como, novas são às técnicas utilizadas, o que faz do
desenvolvimento de um modelo uma tarefa difícil.
Neste sentido este ponto merece melhores reflexões sobre
alternativas que possam mensurar o processo de aprendizagem
Discente, fugindo de modelos tradicionais, e, ciente que o plágio é
uma realidade que se potencializa nas avaliações virtuais.
Contudo, face as especificidades do momento, aparenta que o
Curso de Direito da Fupac Mariana vem desenvolvendo um modelo
considerando, em muito, o Acesso/Acessibilidade Discente.

368
SISTEMÁTICA DOS TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO:

Como salientado em tópicos anteriores a Gestão Educacional


da Direção e Coordenação do Curso de Direito da Fundação Antônio
Carlos de Mariana (FUPAC) pautou-se em manter as atividades da
Instituição em sede de Ensino Remoto de Emergência dentro de uma
proximidade com o Ensino Presencial.
Neste sentido os calendários dos Trabalhos de Conclusão de
Curso, conforme Editais FUPAC 001/20 e 002/20, foram mantidos,
sendo todas as fases do processo de orientação e defesas
desenvolvidas de modo remoto, havendo o contato entre Discentes e
Docentes, bem como, a imprescindível ajuda da Professora Magna
Campos no processo de orientação metodológica e controle de
plágios, também de modo remoto, usando para tal do e-mail:
monografiasfupacmariana@gmail.com e Portal BlackBoard
Colaborate.
Há que se considerar apoio da setor de Tecnologias através
do e-mail clariceizidoro@bol.com.br, bem como, da Secretaria de
Curso através do e-mail secretariafupac@gmail.com, em todas as
fases do processo.
Assim, tivemos em 2020/1, no período de 22 de Junho a 26 de
Junho, um total de 17 (dezessete) defesas de Trabalhos de Conclusão
de Cursos, bem como em 2020/2, no período de 02 de Dezembro a
08 de Dezembro, um total de 34 (trinta e quatro) defesas de
Trabalhos de Conclusão de Cursos.
Ressalta-se que todas as defesas foram realizadas via Portal
BlackBoard Colaborate, sendo devidamente gravadas e arquivadas
junto à Secretaria do Curso, tendo na composição das Bancas
Docentes do Curso de Direito, bem como, convidas e convidados
externos como Docentes de outras Instituições, Magistradas,
Defensores Públicos, ou seja, situação oportunizada pela sistemática
369
de defesas remota.
Neste sentido, a experiência de Trabalhos de Conclusão de
Curso realizados de modo remoto aparenta ser uma alternativa
interessante ao futuro, mesmo com o retorno gradativo das
atividades presenciais.

EVENTOS:

Como relatado em tópico supra, em um primeiro momento a


prioridade da Gestão do Curso de Direito da Fundação Antônio Carlos
de Mariana (FUPAC) foi zelar pela sistemática de aulas semanais
síncronas e assíncronas, postagem de materiais diversos, chats, fórum,
etc., utilizando-se para tal de Ambiente Virtual de Aprendizagem
(AVA), já disponível previamente, denominado Portal BlackBoard
Colaborate.
Assim atividades previstas para Semestre 2020/1 foram
suspensas, como por exemplo, importante atividade voltada para a
Extensão Universitária denominada Dia D da Extensão Fupac, a qual
estava planeja e organizada para acontecer em 28 de Março de 2020,
momento de muitas incertezas quanto à possibilidade de atividades
presenciais.
Por sua vez, no Semestre de 2020/2, com a Comunidade
Acadêmica melhor habituada ao Ambiente Virtual de Aprendizagem
(AVA) já foi possível, desenvolver iniciativas de cunho científico e
extensionista, com viés multidisciplinar.
Tal ponto se fez importante pois uma das poucas atividades
suspensas do Calendário do Curso foram as denominadas Atividades
Interdisciplinares, normalmente realizadas anualmente, ocasião que
duplas ou mesmo trios de Docentes realizam, seminários, debates,
estudos de caso, análise de filmes/documentários, etc., com uma

370
turma específica, buscando interagir os ramos de suas áreas de
conhecimento.
Os eventos realizados virtualmente, através de plataforma
digitais, permitiram que trouxéssemos convidados diversos, com a
participação da Docência do Curso de Direito Fupac Mariana.
Dentre os eventos realizados já em 24 de agosto de 2020
realizamos a Palestra “Ensino Jurídico em Tempos de Covid 19” com
Mateus de Moura Ferreira, (Professor FCDL) Bruno Camilloto Arantes
(Professor e Pró-Reitor de Gestão de Pessoas UFOP) Fabiano César
Rebuzzi Guzzo (Professor UFOP/FUPAC Mariana – Coordenador do
Curso de Direito FUPAC Mariana).
Em tal palestra a Comunidade Acadêmica teve a possibilidade
de conhecer as experiências de três Instituições de Ensino Superior da
Região, duas Privadas e uma Pública, tendo contanto com as
realidades advindas do Ensino Remoto de Emergência em sede de
Pandemia.
Seguindo o Calendário de Eventos realizou-se em 30 de
setembro de 2020 o Dia D da Extensão Fupac, atividade com o
escopo de integrar Comunidade Acadêmica e Local da cidade de
Mariana –MG.
Nesta atividade tivemos a participação dos (as) Docentes da
casa René Dentz, Magna Campos, Raphael Carminate, Rita Melo, bem
como, da Psicóloga Fupac Mariana Viviane Linhares realizando
minicursos com temas variados transitando em perspectivas
profissionais futuras, pessoas com deficiências, relações trabalhistas
em tempos de covid-19 e habilidades e competências de leitura.
Neste Evento ainda contamos com a Palestra extremamente
enriquecedora “Diálogos Construtivos e Transformadores para uma
formação crítica e socialmente responsável” com Marcos Eduardo C.
G. Knupp (Pró-Reitor de Extensão UFOP), momento ímpar em que a
Comunidade Acadêmica pode dialogar com profissional com ampla
371
experiência com Pesquisa em Extensão.
O Semestre Acadêmico de 2020/2 ainda contou com a
realização XIV Semana Jurídica que no dia 19 novembro de 2020 teve
a participação de Lucas Costa de Oliveira (Professor FUPAC e UFMG)
com a Palestra “Mercado Regulado de Órgãos e Tecidos Humanos:
Entre o Direito, a Economia e a Ética” e no dia 20 novembro de 2020
teve a participação de Emílio de Oliveira e Silva (Professor IBMEC e
Delegado de Polícia Civil – MG) com a Palestra “Criminalidade e
Ciberespaço no Mundo Pós-Coronavírus”.
Salienta-se, ainda, que na XIV Semana Jurídica realizou-se o
lançamento do 8º Livro Institucional denominado “Sobre Atualidades
do Direito66”, livro este com Artigos e Ensaios, muitos em parceria
entre Docentes e Discentes.
Nota-se pela descrição das atividades de cunho científico e
extensionista realizadas no ano de 2020 que este ponto foi uma
preocupação real da Gestão Educacional.

SISTEMÁTICAS DE ATIVIDADES PRÁTICAS – ESTÁGIO NPJ:

Ponto de relevância diz respeito às atividades de cunho


prático, sejam ela reais ou simuladas, bem como, no que diz respeito
ao Estágio Obrigatório, atividades estas que muitas vezes são
realizadas de modo presencial, o que por certo em contexto de
Pandemia Covid-19 representam mais um problema.
Neste sentido, ponderou o Conselho Nacional de Educação,
vejamos:
Quanto às atividades práticas, estágios ou extensão, estão
vivamente relacionadas ao aprendizado e muitas vezes localizadas

66
ISBN da obra 978-65-88017-00-5
372
nos períodos finais dos cursos. Se o conjunto do aprendizado do
curso não permite aulas ou atividades presenciais, seria de se esperar
que, aos estudantes em fase de estágio, ou de práticas didáticas,
fosse proporcionada, nesse período excepcional da pandemia, uma
forma adequada de cumpri-lo a distância. (CNE 05, 2020)
Quanto as atividades simuladas, o fato de termos o AVA
(Ambiente Virtual de Aprendizagem) - Portal Black Colaborate Ultra
permitiu o desenvolvimento das Disciplinas naturalmente sob a
responsabilidade dos (as) Docentes.
Por sua vez as atividades práticas reais, em especial o Estágio
Obrigatório via Núcleo de Prática Jurídica dependeu das orientações
do Parecer CNE/CP nº: 5/2020 aprovado em 28 de abril 2020 e a
NOTA TÉCNICA n.º 32/2020 de 28 de maio de 2020 para serem
realizadas de forma Remota, tendo o organograma das atividades
ficado a cargo da à Coordenação do NPJ – via e-mail:
npjmariana@yahoo.com.br.
Há que salientar o trabalho realizado pelo Coordenador do
NPJ Cleberson Ferreira, bem como, por Claudinéia Maciel haja vista
que em um primeiro momento, como medida sanitária suspendeu-se
as atividades e atendimentos presenciais do Núcleo de Prática
Jurídica; sendo que em um segundo momento os (as) estagiários (as)
passaram a atender de modo remoto à população, sob a supervisão
da Coordenação, utilizando-se do preenchimento de formulários on-
line.
Nos formulários foram feitas perguntas como: nome
completo, o gênero, o contato telefônico, a existência do aplicativo
WhatsApp, os números dos documentos pessoais, o município de
residência, a quantidade de pessoas pertencentes ao núcleo familiar,
a renda familiar, o assunto jurídico a ser atendido, etc.
Após a análise dos formulários, deu-se o retorno às pessoas
hipossuficientes por e-mail e/ou contato telefônico cadastrado nos
373
formulários on-line, bem como, os atendimentos e/ou conciliações
foram realizadas através de videoconferências pelo Portal
Universitário – Blackboard, utilizado pela IES.
Ou seja, com esta dinâmica se fez possível atender à
comunidade vulnerável, e, ao mesmo, tempo oportunizar as
atividades de Estágio à Comunidade Discente.
Ressaltando que as iniciativas dos Tribunais de virtualização de
processos físicos, bem como, de realização de audiências de modo
remoto auxiliaram na realização das atividades prática reais. Sistemas
digitais utilizados por Tribunais como o próprio PJE, bem como, Cisco
webex para audiências foram de grande valia para permitir a
realização do Estágio Obrigatório. A seguir dados Relatório Atividades
NPJ 2020 (MORAIS,2020):

Gráfico 01 – Principais bairros Marianenses das pessoas atendidas


de forma remota em 2020

Fonte: Fonte: Relatório Atividades NPJ 2020 (MORAIS, 2020)

Ainda com objetivo de potencializar atividades práticas,


mesmo que simuladas, em 24 novembro de 2020, realizou-se de
modo remoto o Simulado Fupac 2020/2 oriundo de uma parceria da

374
Coordenação Acadêmica, NPJ- Núcleo de Prática Jurídica, PROJETO
MENTORIA e Profs. (as) das disciplinas NPJ/NAJ.
O presente Simulado Fupac 2020/2 teve como escopo que os
(as) Discentes dos 7ª, 8ª, 9ª e 10ª Períodos pudessem ter contato com
questões reais Objetivas nos moldes de ENADE, OAB e Concursos
Públicos, bem como, que pudesse realizar uma auto avaliação de seu
processo de aprendizagem.
Necessário mencionar também as atividades do Projeto
Mentoria sob a supervisão da Psicóloga Viviane Linhares Vale e do Ex-
aluno do Curso de Direito da Fundação Antônio Carlos de Mariana
(FUPAC) Frankes Vieira.
O Projeto Mentoria utiliza-se de grupos de WhatsApp
subdivididos por períodos, onde monitores e supervisores trabalham,
diariamente, com revisão das questões das provas dos semestres
anteriores, e, uma vez por semana, com postagem sobre saúde
mental.
A ideia é que os alunos criem a prática da revisão de conteúdo
diariamente e com isso passem a ter resultados e envolvimento
diferenciados ao longo de todo seu percurso acadêmico.
Conforme Relatório do Projeto Mentoria 2020 (VALE; VIEIRA,
2020) percebemos um número considerável de participação Discente
nos grupos formados, considerando que o Curso de Direito da
Fundação Antônio Carlos de Mariana (FUPAC) possui, atualmente,
um universo de 276 (Duzentos e setenta e seis) Discentes
matriculados.

375
Gráfico 02 – Participantes Projeto Mentoria

Fonte: Relatório Projeto Mentoria (VALE; VIEIRA, 2020)

Da mesma forma, interessante mencionar que pelo citado


Relatório se pode perceber que a há nítida percepção Discente
quanto o aumento do seu aprendizado através do Projeto Mentoria,
demonstrando ser uma ferramenta muito útil na prática simulada de
questões ao estilo OAB, ENADE, Concursos Públicos, tendo na
interação entre Discentes novatos (as), veteranos (as), ex-alunos (as),
uma fórmula positiva, potencializada com o apoio do setor de
Psicologia institucional.
O gráfico a seguir elaborado pela Equipe do Projeto Mentoria
apresenta números sobre a mencionada percepção Discente,
vejamos:

376
Gráfico 03 – Nível Aprendizado Projeto Mentoria

Fonte: Relatório Projeto Mentoria (VALE; VIEIRA, 2020)

Nota-se pela descrição das atividades de cunho prático, sejam


simuladas ou reais, realizadas no ano de 2020 que foi uma
preocupação real da Gestão Educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tecer considerações sobre o próprio trabalho, por si só, o bom


senso diz não ser conveniente, contudo fica a sensação de
encaminhamentos acertados por parte da Gestão Educacional do
Curso de Direito da Fupac Mariana, principalmente, face as
especificidades do momento da Pandemia Covid-19.
Como dito acima, as decisões de cunho administrativo e
acadêmico se deram em momento de poucas orientações por parte
do Poder Estatal, com normas incipientes, até mesmo, pela pouca
experiência com situação semelhante.
Importante salientar todo envolvimento de Discentes,
Docentes e Administrativo; toda colaboração entre seguimentos para
que o Curso de Direito da Fupac Mariana pudesse, rapidamente, se
377
adaptar ao Ensino Remoto de Emergência, minorando impactos sobre
as atividades institucionais.
Fato é que terminamos o ano de 2019 com 309 (trezentos e
nove) Discentes matriculados (as), enquanto o ano de 2020 findamos
com 276 (duzentos e setenta e seis) Discentes matriculados (as), ou
seja, nossa diminuição de alunos (as) foi na ordem de 10 % (dez por
cento), impacto pequeno face ao grande número de Instituições de
Ensino Superior encerrando suas atividades face a Pandemia.
Da mesma forma, tão importante quanto ressaltar ações
institucionais desenvolvidas em sede de Pandemia Covid-19, são
prudentes as reflexões sobre os caminhos futuros.
Pensar os impactos futuros com indagações no seguinte
sentido são fundamentais: “O processo se aprendizagem esta
comprometido ?“ “Como está a qualidade do Trabalho Docente ?” “O
Ensino à Distância veio para ficar ? “Discentes e Docentes estão com o
emocional alterado ?
Fato é que a Gestão Educacional não será a mesma após o
Covid 19.

378
REFERÊNCIAS

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer Nº 05 de 28 de abril


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FACULDADE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA. Comunicado


01/2020. Dispõe sobre o protocolo de prevenção com paralisação
das aulas. Mariana, 16 de mar. 2020a.

FACULDADE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA. Comunicado


02/2020. Dispõe sobre formas de minorar os impactos sofridos pela
suspensão das atividades presenciais no calendário acadêmico.
Mariana, 18 de mar. 2020b.

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https://er.educause.edu/articles/2020/3/the-difference-between-
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TEODORO, Antônio. Ensinar e aprender no ensino superior: por
uma epistemologia pela curiosidade da formação
universitária. Ed. Cortez: Mackenzie, 2003.

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379
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VALE, Viviane Linhares; VIEIRA, FRANKS. Relatório Projeto Mentoria.


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VALENTE, Geilsa Soraia Cavalcanti, MORAES, Érica Brandão de,


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exigências do contexto de pandemia: Reflexões sobre a prática
docente. Disponível em:
https://www.rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/8153. Acesso
em: 08 mar. 2021.

380
A ARGUMENTAÇÃO EM DECISÕES JUDICIAIS: ANÁLISE DE
UMA SENTENÇA
Vívian Moreira67
Magna Campos68
RESUMO
Este artigo elabora uma breve análise dos tipos de argumentos da
ordem do convencimento, que ocorrem em uma decisão judicial
selecionada, em um estudo exploratório, a fim de se observar as
estratégias de sustentação da tese, de forma a atender aos preceitos
dispostos no art. 489, do CPC (2015), que pressupõe a necessidade de
a decisão judicial ter que enfrentar os principais argumentos das
partes, argumentando de forma substantiva.

Palavras-chave: Argumentação Substantiva. Decisão Judicial.


Convencimento. Sustentação de tese.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem o objetivo de analisar a estrutura textual


argumentativa de uma Decisão Judicial do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, da Comarca de São Gonçalo, proferida em 5
de setembro de 2020 (ANEXO A). Para tal, será investigada a estrutura
argumentativa da ordem do convencimento, bem como, sempre que
cabível, os recursos do raciocínio lógico jurídico empregados.
Antes de adentrar na argumentação em si, cabe salientar que

67
Graduanda em Direito pela FUPAC Mariana e Mestre em Relações
Internacionais pela PUC Minas.
68
Mestre em Letras, professora do curso de Direito da FUPAC-Mariana,
escritora.
381
há duas ordens de fenômenos, explicitadas por Reale (2002):

1. Natural: referente ao que é dado na natureza e abarca


o campo físico-matemático. Neste, há prevalência do
fato sobre a lei. Então, quando uma lei da física é
contrariada por um fato, o enunciado cede lugar ao
fato, alterando-se a lei;
2. Humana: referente ao que é construído culturalmente,
no qual as ciências sociais estão inseridas. A lei se
impõe sobre o fato, adequando meios a fins. Ou seja, a
norma é que gera a obrigatoriedade do
comportamento humano.

Tendo em vista que o Direito é uma ciência social, pautada na


interferência humana, que adapta a natureza para seus fins, por meio
da cultura, para disciplinar formas de conduta humana, esta ciência se
enquadra na segunda ordem de fenômeno apresentada.
Diferentemente da realidade natural que abarca verdades absolutas, a
realidade humana trabalha com a verossimilhança, na ideia do
provável. Então, um sistema de argumentos conduz a uma conclusão
provável e não a uma prova inequívoca da verdade.
Outrossim, tendo em vista a realidade dinâmica – e,
compreendendo que o Direito não é capaz de regular todos os
comportamentos humanos, mudanças no ordenamento jurídico são
necessárias para acompanhar as mutações da sociedade, na qual o
Direito está posto.
Como o Direito se apresenta por meio do discurso o estudo
da linguagem torna-se fundamental, tal qual o estudo da estrutura
argumentativa dos textos jurídicos. De acordo com Ferdinand
Saussure (1975, p.15), o ponto de vista cria o objeto, o que indica que
a escolha das palavras e a sistematização do texto jurídico em prol de
382
determinada ideia dá forma à tese. Assim, como o sentido da norma
jurídica é plurívoco e, portanto, demanda interpretação para alcançar
os sentidos possíveis, o Direito está intrincado à dialética e à
argumentação.
Como toda ciência, o Direito está fundamentado em
princípios, que podem ser gerais ou constitucionais. Uma garantia
constitucional que merece destaque é a da motivação das decisões
judiciais, apresentada no artigo 93:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário


serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena
de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou
somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito
à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o
interesse público à informação. (BRASIL, 1989).

Assim, há uma “função política da motivação das decisões


judiciais”, que a partir da fundamentação, afere-se a legalidade da
decisão e a imparcialidade do juiz. Tal função está destinada: à
garantia das partes, na possibilidade de interpor recursos e liquidação
de sentença; aos órgãos superiores da Magistratura, na análise do
acerto ou erro das decisões; à sociedade como um todo, na formação
de juízo sobre as decisões do Poder Judiciário, quanto legítimas ou
ilegítimas. (DINAMARCO; BADARÓ; LOPES, 2020, p.99).
Nessa linha, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece a
obrigatoriedade da fundamentação judicial:

Art. 489. § 1º Não se considera fundamentada qualquer


decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão,
que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato
normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão
383
decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar
o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer
outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no
processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada
pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula,
sem identificar seus fundamentos determinantes nem
demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles
fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência
de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento. (BRASIL, 2015).

Realizada esta breve apresentação, demonstra-se a estrutura


do artigo. Após a introdução, a seção 2 define e elenca os principais
conteúdos teóricos acerca da argumentação, ao abordar o plano da
persuasão e do convencimento, adentrando no recurso do raciocínio
lógico. A seção 3 versa sobre a análise da decisão do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro à luz das ferramentas
argumentativas. E por fim, as considerações finais sobre a estrutura
retórica do texto jurídico em questão69.

ARGUMENTAÇÃO

69
Não será objeto de análise o mérito da decisão judicial e suas implicações
no ordenamento jurídico brasileiro.
384
A origem do estudo da argumentação remonta ao período da
Grécia Antiga. Na preocupação de expor suas ideias publicamente, de
forma que a tese fosse aceita pelos demais membros do regime
democrático, os gregos se debruçaram na arte da argumentação,
oratória e gramática.
A argumentação, portanto, consiste na defesa de uma tese
com o intuito de formar ou influenciar uma opinião daquele que, na
teoria da argumentação perelmaniana é chamado de auditório, ou
seja, o público-alvo70 a quem a argumentação é dirigida. Em última
instância, a intenção é gerar um assentimento do público, ou seja,
para além da mera concordância com a tese, a ação em prol da ideia
defendida.
A defesa dessa tese pode ocorrer por meio de duas
estratégias: persuasão e convencimento.

Persuadir e convencer

A persuasão é um recurso da argumentação que se vale de


fatores emocionais e da geração de desejo a fim de conquistar o
assentimento do auditório, normalmente realizada por meio da
cooptação dos sentimentos das pessoas, despertando-lhes
identificação, empatia, desejos, vontades, raiva, rejeição ao que se
tem como intenção influenciar. Já o convencimento está relacionado
ao uso de fatores mais racionais, materializáveis, muitas vezes, em
relações de causa e consequência, de premissas e conclusão, de apoio

70
Público-alvo pode ser definido como pessoa ou conjunto de pessoas para
a qual a argumentação é direcionada. Para a formação da opinião do
público-alvo, torna-se imprescindível o enquadramento discursivo, que
consiste na criação de um contexto adequado para tal, seja na escolha das
palavras, na forma da tratativa e na estratégia de argumentação.
385
em dados materiais como provas e dados estatísticos, dentre outras
possibilidades.
Na esfera do convencimento, Campos (2020) indica que,
comumente, são utilizados sete instrumentos de argumentação:

1. Autoridade: “citação de autores ou entidades


renomadas, autoridades num certo domínio do saber”,
(CAMPOS, 2020, p.32), assim, à argumentação centra-
se na credibilidade atribuída à palavra de alguém ou
de alguma instituição ou norma, incluindo as fontes
de normas jurídicas: constituição, leis, decretos,
códigos, jurisprudências, dentre outras;
2. Provas concretas: inclui dados estatísticos, laudos,
fotografias, gravações e testemunhas;
3. Causa e consequência: relação de causalidade entre
motivos e seus efeitos;
4. Exemplificação e ilustração: fruto do raciocínio
indutivo, expõe casos e situações particulares para
obter uma conclusão geral com regras aplicáveis a
outros caos e situações;
5. Oposição: recurso do contraditório;
6. Analogia: “raciocínio fundado na correspondência de
uma situação a outra parecida”. (CAMPOS, 2020, p.38);
7. Raciocínio lógico: apresentação de conclusões a partir
de premissas válidas.

No campo da argumentação jurídica, o raciocínio lógico se


constitui como uma das principais vertentes, tema este da próxima
subseção.

386
Raciocínio Lógico Jurídico

O raciocínio lógico jurídico é produzido por um composto de


proposições: de premissas e de conclusão. Proposição “é a ideia
expressa pelo conjunto de palavras (por sentença declarativa) que
pode ser classificada, unicamente, como verdadeira (V) ou falsa (F)”.
(CAMPOS, 2020). Portanto, um argumento de raciocínio lógico é um
conjunto de proposições, no qual as premissas são a base para
sustentação da conclusão. Ou seja,
o processo de pensamento dá estrutura a um raciocínio, e o
argumento representa esse processo estruturado em linguagem. O
argumento é um raciocínio expresso em linguagem, no qual se
derivam conclusões a partir de premissas (o processo de inferência).
O argumento lógico envolve declarações fundamentadas
racionalmente (as premissas fundamentam a conclusão e a conclusão
advém das premissas). Desta forma, um argumento consiste num
conjunto de proposições estruturadas de forma que uma é justificada
por outras(s). (CAMPOS, 2020, p. 16).
No caso do Direito, por se tratar de uma ciência social, a
conclusão é vista como aquela que mais se aproxima da realidade e
da verdade, a partir das premissas apresentadas. No Direito, a
dialética, a hermenêutica e o contraditório estão sempre presentes no
processo de construção da verdade processual, e por isto, não há que
se falar em verdade absoluta.
As premissas podem ser de duas ordens:

1. Premissa maior (PM): de caráter universal, geral ou


amplo. Engloba o parâmetro, representado pela norma
jurídica;
2. Premissa menor (Pm): de caráter particular, restrito e
singular. Abarca os elementos relevantes específicos,
387
quais sejam: os fatos ou o caso.

Valendo-se da definição de premissas e conclusão, é possível


estruturar, ao menos, três formas de raciocínio lógico jurídico:
indutivo, dedutivo e, aí dentro, o silogismo.
O raciocínio lógico indutivo “parte do particular (Pm) para o
geral (PM), ou apenas do conjunto de particulares se extrai uma
conclusão lógica. Caracteriza-se essencialmente por apresentar
conclusões provavelmente verdadeiras e não necessariamente
verdadeiras” (CAMPOS, 2020, p.25). Da análise das ocorrências nos
textos jurídicos, pode-se observar que mais que o aspecto formal
rígido do raciocínio lógico clássico, como pode ocorrer em outras
áreas, no Direito, é possível que esse caráter indutivo se estruture das
seguintes formas:

1. Premissa menor é ocupada pelo fato ou caso concreto,


a premissa maior é ocupada pela norma e a conclusão
é a subsunção do fato à norma;
2. Premissa menor é ocupada pela norma de hierarquia
inferior, a premissa maior com a norma de hierarquia
superior e a conclusão é a lógica da relação entre as
premissas;
3. Várias premissas menores, das quais se extrai uma
conclusão lógica e coerente.

Já o raciocínio lógico jurídico dedutivo é aquele que “parte da


premissa maior para a(s) premissa(s) menor(es), produzindo dessa
relação uma inferência lógica” (CAMPOS, 2020, p.19). Também aqui,
em um caráter mais prático que formal, pode-se encontrar deduções
estruturadas das seguintes maneiras:

388
1. A premissa maior é ocupada pela norma e a premissa
menor é ocupada por alguma extensão da norma, seja
uma norma de hierarquia inferior ou a consequência
jurídica prevista, mais a conclusão advinda dessa
relação entre as premissas;
2. A premissa maior é ocupada pela norma e a premissa
menor é ocupada pelo fato ou caso específico, cuja
conclusão seria uma espécie de sentença. Estrutura
esta, denominada silogismo.

A partir do embasamento teórico supracitado, a próxima


seção se debruçará a identificar dos elementos textuais contidos na
decisão judicial.

ANÁLISE DA DECISÃO JUDICIAL

A sentença proferida pelo Juiz de Direito, André Luiz Nicolitt,


em 5 de setembro de 2020 trata-se de requerimento de revogação de
prisão preventiva. Um mandado de prisão preventiva foi expedido em
novembro de 2017, porque a foto do réu constava em um álbum de
fotografias de suspeitos. Desta forma, as próximas subseções versarão
sobre cada um dos recursos argumentativos utilizados pelo juiz na
construção de sua sentença

Argumento de autoridade

Os primeiros recursos argumentativos utilizados pelo juiz são


da ordem da autoridade do argumento, pelo uso da citação de
legislações, de códigos e de instâncias jurídicas superiores que
reforçam a tese por ele desenvolvida: a de que não havia razões para
389
se decretar a prisão preventiva do réu, haja vista o estranhamento,
por parte do magistrado, de a foto de uma pessoa sem qualquer
antecedente criminal, que trabalhava regularmente, constar de um
álbum da polícia de fotografia de suspeitos. Elemento este muito
presente nos textos jurídicos, como forma de dar sustentação e
credibilidade ao argumento. Desta forma, podem-se destacar as
seguintes passagens, como exemplo de ocorrências deste tipo de
argumento:

Ocorrência 01: Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 7º:

5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem


demora, à presença de um juiz ou outra autoridade
autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a
ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em
liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua
liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o
seu comparecimento em juízo. (TJRJ, 2020, p.2).

Ocorrência 02: Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de


infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença
do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer
funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo
razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de
pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a
regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a
garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em
questão à audiência, a todos os atos do processo e, se
necessário for, para a execução da sentença. (TJRJ, 2020, p.2).

Ocorrência 03: Supremo Tribunal Federal, Conselho Nacional de


Justiça e Doutrina
390
[...] uma prisão que, à luz da legislação supra deve ser
analisada “sem demora”, o que ficou definido pelo STF, CNJ e
Doutrina, como em 24 horas, não pode ser arrastada sem
exame até retorno do funcionamento ordinário da Justiça
sem, com isso, se colocar em risco direitos fundamentais,
destacadamente em um quadro de pandemia. (TJRJ, 2020,
p.3).

Ocorrência 04: Código de Processo Penal:

CPP - Art. 312 - § 2o A decisão que decretar a prisão


preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de
perigo e existência concreta de fatos novos ou
contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida
adotada. (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019). (TJRJ, 2020,
p.4).
Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de
todos os procedimentos utilizados para manter e documentar
a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em
vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir
de seu reconhecimento até o descarte. (Incluído pela Lei no
13.964, de 2019)
§ 1o O início da cadeia de custódia dá-se com a preservação
do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais
nos quais seja detectada a existência de vestígio. (TJRJ, 2020,
p.5, 7).
§ 2o A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser
motivada e fundamentada em receio de perigo e existência
concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem
a aplicação da medida adotada. (Incluído pela Lei no 13.964, 8
de 2019)
§ 2o Não será admitida a decretação da prisão preventiva
com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou
como decorrência imediata de investigação criminal ou da
391
apresentação ou recebimento de denúncia. (Incluído pela Lei
no 13.964, de 2019)
Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a
prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada.
(Redação dada pela Lei no 13.964, de 2019)
§ 1o Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de
qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a
existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem
a aplicação da medida adotada. (Incluído pela Lei no 13.964,
de 2019)
§ 2o Não se considera fundamentada qualquer decisão
judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(Incluído pela Lei no 13.964, de 2019)
I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato
normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão
decidida; (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019)
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar
o motivo concreto de sua incidência no caso; (Incluído pela
Lei no 13.964, de 2019)
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer
outra decisão; (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019)
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no
processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada
pelo julgador; (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019)
V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula,
sem identificar seus fundamentos determinantes nem
demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles
fundamentos; (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou
precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência
de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento. (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019) (TJRJ,
392
2020, p.8,9).

Ocorrência 05: Agravo Regimental do Superior Tribunal de Justiça:

Trata-se de Habeas Corpus, com pedido de medida liminar,


impetrado contra acórdão da Quinta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), proferido no julgamento do AgRg no
HC 501.913/SP, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA.
(...) Alegando nulidade do acórdão, por considerar que a
condenação está lastreada apenas no reconhecimento
fotográfico realizado em sede policial (...) Na espécie, o
controverso reconhecimento fotográfico realizado durante a
investigação policial seguiu procedimento pouco ortodoxo
(...) Diante do exposto, com base no art. 192, caput, do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, CONCEDO
A ORDEM DE HABEAS CORPUS para ABSOLVER o paciente,
determinando a imediata soltura, com extensão dos efeitos
da decisão aos demais corréus na ação penal de origem, ante
a identidade de situações jurídicas (art. 580 do CPP) STF - HC
172606 - Min. Alexandre de Moraes. (TJRJ, 2020, p.5).

Ocorrência 06: Doutrina da Psicologia Aplicada

A psicologia aplicada tem se empenhado em investigar


fatores psicológicos que comprometem a produção da
memória. Neste ramo, encontramos contribuições que
dissecam as variáveis que podem interferir na precisão
(accuracy) da memória. Nesta quadra, a doutrina indica as
chamadas variáveis estimadoras (estimator variables), ou seja,
variáveis que estão sob o controle do sistema de justiça e que
se referem ao evento observado, bem como à pessoa do
observador/participante. Indicam-se também as variáveis que
estão sob o controle do próprio sistema de justiça, as
variáveis sistêmicas (systemic variables). (TJRJ, 2020, p.5, 6).

393
Ocorrência 07: Dicionário Aurélio

Se este álbum não foi constituído de uma prévia investigação


sobre os fatos, o que levou a supor que certos indivíduos
possam ter participado do crime, este álbum de suspeitos só
pode significar na acepção do Dicionário Aurélio, um álbum
de pessoas “que inspiram desconfiança”. (TJRJ, 2020, p.5, 7).

Ocorrência 08: Pacote Anticrime

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como


garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal ou para assegurar a
aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do
crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo
estado de liberdade do imputado. (TJRJ, 2020, p.8).

Ocorrência 09: Tribunal Regional Federal – 3ª Região

TRF – 3a Região - HABEAS CORPUS (307) No 5006442-


71.2020.4.03.0000
RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES
Num momento tão difícil, em que os prognósticos sobre a
evolução da epidemia são incertos, e diante do inusitado da
situação, é louvável que o E. Conselho Nacional de Justiça
tenha rapidamente expedido a Recomendação em tela, como
forma de auxiliar os juízes na sua difícil missão. ANTE O
EXPOSTO, DEFIRO a liminar para colocar o paciente em prisão
domiciliar, devendo a Defesa comprovar perante o Juízo de
primeiro grau o endereço em que o réu cumprirá a medida e
poderá ser localizado.
Comunique-se a autoridade impetrada para cumprimento
imediato, solicitando-lhe igualmente que preste as
informações legais. (TJRJ, 2020, p.10).

394
Argumento de prova concreta

O argumento de prova concreta também é utilizado pelo juiz


com o intuito de demonstrar evidências acerca do caso em
questão. Nesta linha, são demonstrados o print da tela do
sistema de registro de processos, a menção às provas nos
autos e os números de documentos do processo.

Ocorrência 01: Print do resultado da pesquisa sobre os processos do


réu

(TJRJ, 2020, p.3).

Ocorrência 02: Documento 0000007

Aduz que foi preso com seus instrumentos musicais,


comprovando sobejamente tratar-se de músico, violoncelista,
que atua intensamente no Município de Niterói (documento
0000007). (TJRJ, 2020, p.4).

Ocorrência 03: Provas nos autos

Há nos autos prova de residência, atividade laboral lícita, boas


referências, qualificado como um músico de destaque na
395
comunidade niteroiense, com FAC sem qualquer anotação.
(TJRJ, 2020, p.4).

Ocorrência 04: Docs 0000044

Precisamente sobre o caso, causa perplexidade como a foto


de alguém primário, de bons antecedentes, sem qualquer
passagem policial vai integrar álbuns de fotografias em sede
policial como suspeito. Nota-se que às fls. 46 (docs 0000044)
consta “após analisar o álbum de fotografia de suspeitos”.
(TJRJ, 2020, p.7).

Argumento de explicação

O argumento de explicação também é utilizado como forma


de complementar e explicar algumas ideias desenvolvidas ou
à parte ou advindas da articulação necessária entre os
argumentos anteriores.

Ocorrência 01: Da prisão preventiva

É certo também que toda prisão (em flagrante ou preventiva),


quando efetivada, deve ser levada ao conhecimento da
autoridade judiciária. (TJRJ, 2020, p.3).

Ocorrência 02: Do reconhecimento fotográfico

No caso em tela, não houve prisão em flagrante e trata-se de


autoria indicada por reconhecimento fotográfico. Sendo
assim, há que se ter maior rigor nestes casos para manter
uma prisão. (TJRJ, 2020, p.4, 5).
396
Ocorrência 03: Do reconhecimento fotográfico

Em termos doutrinários, o reconhecimento fotográfico é


colocado em causa em função de sua grande possibilidade de
erro. (TJRJ, 2020, p.5).

Ocorrência 04: Do reconhecimento fotográfico

Com tantas novidades e exigências legais, é praticamente


impossível vislumbrar motivos para se manter hígido um
decreto de 2017, que, à época, fundou-se exclusivamente em
um reconhecimento fotográfico, com o fim de encarcerar
muito tempo depois alguém com tantas credenciais. (TJRJ,
2020, p.9, 10).

Argumento de Oposição

Em algumas situações, o magistrado vale-se do


estabelecimento de contraposições para desqualificar os
argumentos e a tese de periculosidade do réu sustentados
pelo Ministério Público.

Ocorrência 01: Objeções ao reconhecimento fotográfico

São muitas as objeções que se pode fazer ao reconhecimento


fotográfico. Primeiro, porque não há previsão legal acerca da
sua existência, o que violaria o princípio da legalidade.
Segundo, porque, na maior parte das vezes, o
reconhecimento fotográfico é feito na delegacia, sem que
sejam acostadas ao procedimento “as supostas fotos
utilizadas” no catálogo, nem informado se houve comparação
com outras imagens, tampouco informação sobre como as
fotografias do indiciado foram parar no catálogo, o que viola
397
a ideia de cadeia de custódia da prova. Desse modo, não é
possível saber se o autor do “reconhecimento” indicou o
indivíduo reconhecido, confirmou uma opinião de terceiros,
ou, até mesmo, se existiram dúvidas se o autor da conduta
criminosa seria a pessoa da fotografia. Por fim, a falta de
participação do indiciado é algo que empobrece o ato
sobremaneira. (TJRJ, 2020, p.6).

Ocorrência 02: Do jovem violoncelista ao relatório policial

Com efeito, se de um lado temos um jovem violoncelista, sem


antecedentes, com amplos registros laborais, com formação
em Música por anos, sendo dotado de sofisticados
conhecimentos decorrentes de sua formação musical, como
domínio sobre leitura de partituras, músicas eruditas e
técnicas de solfejar; que é bem quisto pela comunidade, tudo
conforme documentos; e, de outro lado, temos um relatório
policial que não explica como sua foto constou do álbum sem
que houvesse uma investigação prévia, esta incongruência
fragiliza a utilização do reconhecimento para sustentar uma
prisão cautelar, vez que não há documentação da cadeia de
custódia da prova. (TJRJ, 2020, p.7, 8).

Ocorrência 03: Do perigo à arte

Saliente-se que a liberdade do acusado ao longo desses dois


anos não gerou qualquer problema para a sociedade, pois
não responde a qualquer outro crime, sendo que a única
organização de que se tem notícia a que o mesmo pertence é
uma organização musical. Ao que parece, ao invés de gerar
perigo, nesses 03 anos, vem promovendo arte, música e
cultura. (TJRJ, 2020, p.7, 8).

Raciocínio Lógico

398
A articulação de argumentos em forma de premissas para se
alcançar uma conclusão é um recurso do raciocínio lógico
presente na sentença, os quais podem ser observados, ao
menos em duas situações:

Raciocínio Indutivo

No parágrafo abaixo, o juiz concatenou premissas menores


para obter uma conclusão a partir delas.

São muitas as objeções que se pode fazer ao reconhecimento


fotográfico. Primeiro, porque não há previsão legal acerca da
sua existência, o que violaria o princípio da legalidade.
Segundo, porque, na maior parte das vezes, o
reconhecimento fotográfico é feito na delegacia, sem que
sejam acostadas ao procedimento “as supostas fotos
utilizadas” no catálogo, nem informado se houve comparação
com outras imagens, tampouco informação sobre como as
fotografias do indiciado foram parar no catálogo, o que viola
a ideia de cadeia de custódia da prova. Desse modo, não é
possível saber se o autor do “reconhecimento” indicou o
indivíduo reconhecido, confirmou uma opinião de terceiros,
ou, até mesmo, se existiram dúvidas se o autor da conduta
criminosa seria a pessoa da fotografia. Por fim, a falta de
participação do indiciado é algo que empobrece o ato
sobremaneira. (TJRJ, 2020, p.6).

Desta forma, pode-se esquematizar da seguinte forma:

• Premissa menor 1: “não há previsão legal acerca da sua


existência, o que violaria o princípio da legalidade”;
• Premissa menor 2: “na maior parte das vezes, o
399
reconhecimento fotográfico é feito na delegacia, sem
que sejam acostadas ao procedimento “as supostas
fotos utilizadas” no catálogo, nem informado se houve
comparação com outras imagens, tampouco
informação sobre como as fotografias do indiciado
foram parar no catálogo, o que viola a ideia de cadeia
de custódia da prova”;
• Conclusão: “Desse modo, não é possível saber se o
autor do “reconhecimento” indicou o indivíduo
reconhecido, confirmou uma opinião de terceiros, ou,
até mesmo, se existiram dúvidas se o autor da conduta
criminosa seria a pessoa da fotografia. Por fim, a falta
de participação do indiciado é algo que empobrece o
ato sobremaneira”.

Raciocínio Dedutivo

Há também o emprego de um raciocínio silogístico, estruturado da


seguinte maneira:

Como se nota às fls. 40, o mandado de prisão é de novembro


de 2017, de modo que após tanto tempo sem qualquer
ocorrência envolvendo o réu e sendo possível que sua não
localização tenha decorrido de inoperância do próprio Estado,
tudo isso faz desaparecer o quesito de contemporaneidade
exigível por legislação superveniente ao decreto e que se
aplica ao caso, vale transcrever:
CPP - Art. 312 - § 2o A decisão que decretar a prisão
preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de
perigo e existência concreta de fatos novos ou
contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida
adotada. (Incluído pela Lei no 13.964, de 2019). (TJRJ, 2020,
p.4).

400
• Premissa maior: “CPP - Art. 312 - § 2o A decisão que
decretar a prisão preventiva deve ser motivada e
fundamentada em receio de perigo e existência
concreta de fatos novos ou contemporâneos que
justifiquem a aplicação da medida adotada”;
• Premissa menor: “o mandado de prisão é de novembro
de 2017, de modo que após tanto tempo sem
qualquer ocorrência envolvendo o réu e sendo possível
que sua não localização tenha decorrido de
inoperância do próprio Estado”;
• Conclusão: “tudo isso faz desaparecer o quesito de
contemporaneidade exigível por legislação
superveniente ao decreto e que se aplica ao caso”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que a decisão foi fundamentada em diversos


recursos argumentativos da ordem do convencimento: autoridade,
prova concreta, explicação, oposição e raciocínio lógico. Todos estes
recursos argumentativos serviram bem ao propósito de sustentação
clara e objetiva da tese desenvolvida na decisão, a qual não se furtou
a enfrentar os argumentos apresentados pelo Ministério Público e a
evidenciar de forma substantiva as razões pela negação do pedido
feito ao juiz. Mais do que evocar leis e provas, trabalhou-se para
construir a relação dos argumentos com o caso específico, fugindo à
generalidade.
Desta forma, esta decisão serve como exemplo de como
sustentar uma linha argumentação e enfrentar os argumentos
contrários a contento.

401
REFERÊNCIAS

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e


emoção. 4 ed. Ateliê. 2001.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 21 de fev. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 9 de fev. 2021.

CAMPOS, Magna. Argumentação e raciocínio lógico jurídico:


parâmetros iniciais. Mariana, 2020. (Fascículo de aula)

CAMPOS, Magna. Introdução aos estudos da argumentação. 6 ed.


Mariana, 2020. (Fascículo de aula)

DINAMARCO, Cândido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi


Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo.
32 ed., São Paulo: Malheiros, 2020.

CONJUR. Decisão do processo nº 0021082-75.2020.8.19.0004. Inteiro


Teor. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/soltura-musico-
niteroi.pdf. Acesso em: 01 out. 2020.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo:


Editora Saraiva. 2002.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. Cultrix: São Paulo,


1975.

402
SANTANA, Maiara Pereira de. Formas retóricas de dizer: o jornalista
Celso Ming e seus artigos de opinião. 2015. 163 f. Dissertação
(Mestrado em Língua Portuguesa) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em:
<https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/14362/1/Maiara%20Pereira
%20de%20Santana.pdf> . Acesso em: 23 de out. 2020.

403
TODOS IGUAIS, TODOS IGUAIS... MAS ALGUNS MENOS
IGUAIS QUE OS OUTROS: O RECONHECIMENTO DO NOME
SOCIAL DOS SUJEITOS TRANS
Gabriella Pimenta71
Saulo Camello72
Magna Campos73
RESUMO

Este artigo desenvolve uma pesquisa exploratória sobre a luta pelo


direito reconhecimento do nome social de sujeitos trans como uma
forma de acesso à cidadania e de garantia aos direitos de
personalidade e de identidade. Para isso, foi feita uma pesquisa
bibliográfica com apoio documental em legislações pertinentes ao
tema. O estudo evidencia a longa espera e a árdua luta destes
sujeitos para terem o mínimo de respeito da sociedade por suas
condições e subjetividades, representado pelo reconhecimento
público e amplo de seus nomes sociais.

Palavras-chave: Identidade. Transgeneridade. Nome Social.


Cidadania. Direito à personalidade. Rejeição Social.

INTRODUÇÃO

O corpo acomoda, reflete, expressa e personaliza muito mais


que os aspectos biológicos designados à época do nascimento de um

71
Graduanda do 8° período do curso de Direito pela Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana- MG.
72
Graduando do 9° período do curso de Direito pela Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana- MG.
73
Professora universitária, Mestre em Letras e escritora.
404
indivíduo, representado pelo binarismo homem (macho) ou mulher
(fêmea). Para alguns, a identidade de gênero, masculina ou feminina,
discorda daquela que seria “pressuposta” pela biologia. Nestas
situações, ocorre a transgeneridade.
Todavia, é preciso ressaltar que pessoas transgêneras podem
apresentar orientações sexuais distintas, longe do estereotipo social
que se acredita lhes caber, de forma que se pode ter transgêneros
assexuados, hetero, homo ou bissexuais. Essa diversidade desafia
ainda mais a relação reducionista e preconceituosa presentes nos
binarismos homem/mulher, feminino/masculino.
Neste contexto, as reivindicações das pessoas trans, muitas
vezes invisibilizadas socialmente, têm conseguido, ainda que a
“passos lentos”, vazar a estrutura social binária e chegar ao Poder
Judiciário, em demandas pelo reconhecimento de direitos relacionado
à cidadania e ao direito de ser quem se sente que é, como é o caso,
do reconhecimento do nome social e de redesignação do gênero.
Entenda-se o nome social como aquele pelo qual a pessoa trans se
reconhece, diferentemente do nome de registro civil, que lhe foi
imposto no nascimento. Atrelado ao nome social vem a questão da
redesignação do gênero nos documentos oficiais, a fim de se exercer
a cidadania.
Sendo assim, este artigo irá discorrer acerca desta luta das
pessoas trans, por se tornarem sujeitos de direito, com suas
subjetividades reconhecidas, dentre outras coisas, por meio de seus
nomes sociais. Desta forma, serão tratados de dispositivos da
legislação nacional como Constituição Federal e Código Civil, julgados
e decisões judiciais, bem como as explicações ou provocações de
pesquisadores do tema contrapostos ou justapostos às demandas de
entidades representativas das pessoas trans e de casos
representativos nesta luta.

405
A luta pela cidadania por meio do reconhecimento do nome
social dos sujeitos trans

“Quando a gente é trans, a militância não é uma opção.


É um imperativo ético sobre as nossas vidas: ou a gente
luta ou a gente morre”. (Drª. Leilane Assunção)

Diversas são as lutas travadas por pessoas transgêneros em


seu dia a dia no Brasil. De acordo com a Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é consolidado como o país
que mais assassina transexuais e travestis, chegando a alcançar 151
mortes somente nos dez primeiros meses de 2020.
Os preconceitos enraizados em nossa sociedade, cuja cultura é
fundada em padrões do binarismo de gênero, estabelecida antes
mesmo do nascimento, acaba por excluir aqueles que não se
identificam com a imposição sobre seu gênero ou não aceitam a
definição dada ao seu corpo no nascimento, como feminino ou
masculino. Esse fator gera situações de vulnerabilidade para esses
indivíduos, na medida em que a expressão da diversidade de gênero
é combatida pelo discurso de ódio conservador, o que produz um
efeito perverso sobre a vida dos transgêneros, negando-lhes
igualdade e oportunidade, aumentando o preconceito e
consequentemente a marginalização e violência, como demonstra os
números de diversas pesquisas, dispostas no dossiê “A carne mais
barata do mercado”74.
Conforme mencionado, há ainda, no Brasil, uma grande

74
Dossiê realizado anualmente pelo Instituto Trans de Educação (IBTE) em
parceria com a organização internacional Trans Europe (TGEU) para
monitorar os números das violências sofridas pela população trans no Brasil.
O último dossiê divulgado em 2018 informa que no ano de 2017 ocorreram
185 assassinatos de pessoa trans no Brasil (BAHIA, CONCEIÇÃO, VIEIRA,
p.632, 2019)
406
dificuldade da sociedade em lidar com as pessoas trans, em razão da
identidade de gênero diferente daquela estabelecida como padrão
social, assim, a sociedade espera do indivíduo comportamentos em
conformidade com o sexo biológico, e, quando a pessoa não
corresponde a tal expectativa sofre um grande preconceito.
No entanto, a Constituição de 1988 tem como princípio
fundamental a cidadania, igualdade, liberdade e o pluralismo político,
sendo todo o ordenamento jurídico norteado por esses princípios,
que procuram sempre a inclusão e a união de diferentes classes e
grupos sociais, mas conservando as particularidades de cada
indivíduo.
O direito ao nome é uma forma de garantir cidadania aos
sujeitos, afinal é ele quem identifica e individualiza as pessoas em
todas as civilizações, tratando-se assim, de manifestação mais
expressiva da personalidade. Conforme expõe Venosa (2005, p. 21):

O nome, afinal, é o substantivo que distingue as coisas que


nos cercam, e o nome da pessoa a distingue das demais,
juntamente com outros atributos da personalidade, dentro da
sociedade. É pelo nome que a pessoa fica conhecida no seio
da família e da comunidade em que vive. Trata-se da
manifestação mais expressiva da personalidade.
Já para os sujeitos trans, o nome, por vezes, é motivo de
preconceito e de sofrimento, uma vez que o nome de batismo não
corresponde a identidade de gênero com a qual se identificam. Frente
a um histórico de muita luta por cidadania, a jurisprudência passou a
reconhecer a possibilidade de mudança de nome e de gênero para
pessoas transgêneras.

407
A longa espera pelo reconhecimento: o caso Roberta Close

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.


Simone de Beauvoir (1980)

Há que se citar um caso relevante para a matéria tratada, que,


até mesmo, serve de paradigma para o contexto atual da situação do
direito ao nome social e que também representa a constante luta por
cidadania de sujeitos transgêneros, o caso Roberta Close. Mulher
trans, modelo e atriz pioneira na cirurgia de redesignação sexual,
despertou olhares incrédulos dos brasileiros ao ser fotografada nua
para a revista Playboy, em 1990. O corpo transmutado foi um
acontecimento inexplicável para a época, porém a modelo chamava
atenção por sua beleza e talento, dividindo as opiniões e gerando
debates sobre as questões norteadoras acerca dos transgêneros.
Roberta Close tornou-se um grande fenômeno na indústria do
entretenimento.
A modelo passou pela cirurgia de redesignação sexual em 13
de agosto de 1989 e, após o procedimento, ingressou com sua
primeira ação em juízo postulando a mudança de nome e de sexo no
registro civil. Tereza Rodrigues Vieira, advogada de Roberta Close,
relata que obteve êxito nos pedidos formulados em primeira
instância, entretanto, o Ministério Público manifestou pelo
indeferimento e entrou com recurso para as instâncias superiores,
chegando ao Supremo Tribunal Federal, no ano de 1997. O guardião
da Constituição Federal, por sua vez, reformou a sentença de primeiro
grau, não autorizando qualquer alteração em seu registro civil
(VIEIRA, 2019, p.771).
O inconformismo de seu corpo com o que era disposto em
seu registro civil levou Roberta Close a enfrentar quinze anos de luta
no poder judiciário. Somente em 04 de março de 2015 a 9ª Vara de
408
Família do Rio de Janeiro reconheceu a necessidade de retificação de
nome sob o entendimento de que Luís Roberto Gambine Moreira
nasceu com características femininas e que, mediante a cirurgia de
redesignação sexual, considerada pelo tribunal como sendo
“corretiva”, poderia mudar seu nome por este não condizer com seu
gênero. Assim, expediu mandado judicial para que fosse emitida nova
certidão de registro de pessoa física, com o nome de Roberta
Gambine Moreira. Corrigiu-se também neste julgado a ressalva que
constava em sua certidão acerca de seu gênero: “feminino (operado)".
Esta premissa, que se refere à cirurgia de redesignação sexual
como elemento requisitório para ratificação do nome, estendeu-se
até o início do ano de 2018, quando o STJ (Supremo Tribunal de
Justiça) admitiu que o prenome e o gênero poderiam ser ratificados
sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização ou qualquer
tratamento hormonal (STJ, REsp. 1.626.739).

A legislação nacional

No Brasil, ainda não há legislação específica para normatizar


as demandas relacionadas à identidade de gênero dos sujeitos trans,
existem apenas algumas portarias e regulamentos esparsos sobre
determinados temas, como é o caso da possibilidade de retificação
do nome. (HATJE; RIBEIRO; MAGALHÃES,2019, p. 128)
Sobre o atual cenário do tema, que hoje é pacificado por
decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), acentuam os
pesquisadores da temática:

No Brasil, o Poder Judiciário já decidiu os caminhos para


aquisição do nome social em caso emblemático da pauta em
que uma cidadã LGBT prenome Sandra registrou novos

409
documento legais por Sandro, conforme discutido no SRT,
por meio do Recurso Extraordinário 670.422 RS, suspenso em
07/06/2017, posto em pauta em 28/02/2018, antes julgado
procedente parcialmente na ADI 4275 – Ação Direta de
Inconstitucionalidade, finalizada e proferida como
procedente, na sessão do Tribunal Pleno do STF, no dia 01 de
março de 2018. Tal ADI 4275 foi interpretada, deliberando aos
transgêneros e transsexuais que ensejem, com ou sem
cirurgia de transgenitalização e/ou uso de tratamentos
hormonais ou patologizantes (via laudo médico), a
deliberação por direito à alteração de prenome e sexo
imediatamente no registro civil. (FREITAS, LOURAU, 2019, p.3)

Diante do salientado, a decisão do STF, a ADI 4275, prevê a


alteração de nome, gênero ou ambos, fazendo com que a Lei
6.015/1973 (Lei de registros públicos) fosse interpretada em
consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana,
permitindo, assim, a realização da alteração do nome, dos agnomes
indicativos de gênero e o gênero na certidão de nascimento e de
casamento, esta última desde que haja autorização do cônjuge, tudo
isso sem mais a necessidade de realização de procedimentos
cirúrgicos ou tratamento hormonal.
O provimento nº 73 do CNJ passou então a regulamentar a
questão, dispondo sobre como se dá a averbação da alteração do
prenome e do gênero nos assentos de nascimento e de casamento de
pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais.
Imperioso acentuar o que se compreende como transgêneros
que também fazem jus a esse direito: os transexuais, travestis,
pessoas não-binárias e outros indivíduos que de alguma forma se
identificam dentro do abrangente conceito de transgeneridade.

410
Direito à identidade pessoal como direito fundamental

O Direito Civil no século XXI tem como característica o uso da


Constituição Federal como fonte de respostas principiológicas
fundamentais, o que “remete à abertura do sistema jurídico e à
percepção de que aceitar a força normativa dos princípios e sua
aplicação direta às relações privadas” (FARIAS, NETTO, ROSENVALD,
2020, p.97).
Dessa forma, é ultrapassado pensar-se o Código Civil como
sendo a Constituição do Direito Privado, essa ideia ficou no século
passado. Tal fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil é
relevante para as questões novas de compreensões do direito ao
nome de sujeito transgênero, até mesmo porque, o Código Civil
possui um caráter conservador.
O Código Civil compreende o nome como direito fundamental
em seu artigo 16, dispondo que “toda pessoa tem direito ao nome,
nele compreendido o prenome e o sobrenome” (BRASIL, Código Civil,
2002). Como já dito, o nome é como a pessoa é identificada, é como
uma construção inerente à própria pessoa. Portanto, estamos
tratando de um elemento de representação que se transformou em
espelho da própria personalidade (SANCHES, BERENICE, 2017, p. 450).
Em 1988, com advento da nova Constituição, inaugurou-se o
Estado Democrático de Direito e as características constitucionais de
última geração respaldadas na liberdade individual. Logo em seu
preâmbulo, o poder constituinte institui um “Estado Democrático
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, Constituição Federal, 1988).
Frente aos princípios constitucionais que deliberam uma maior
liberdade individual, não reconhecer a possibilidade de ratificação de
411
nome e de gênero para aqueles que não se identificam com o nome
registral, nada mais é que um ato inconstitucional, contrário aos
valores que o Estado Democrático de Direito destina a assegurar.

Identidade de gênero: transgeneridade e nome social

No Brasil, percebe-se uma grande dificuldade da sociedade


em lidar com as pessoas trans, em razão da identidade de gênero
diferente daquela estabelecida como padrão social, sendo este
determinado pelo binarismo homem/mulher, assim como a sociedade
espera do indivíduo.
A dificuldade também se relaciona ao apagamento dos
indivíduos trans na sociedade, já que a compreensão sobre gênero e
sexualidade, infelizmente, ainda é dogmatizada por tabus e
preconceitos, chegando, até mesmo, a serem muitas vezes
confundidas.
Como exemplo, o atual presidente da república, em seu
primeiro discurso, anunciou o combate a “ideologia de gênero”,
tendo como base argumentativa o resguardo daquilo que chamou de
“família tradicional” brasileira, bem como as tradições judaico cristã.
Sua fala expõe a vulnerabilidade dos sujeitos trans, demonstrando
que além de toda desigualdade já existente, ainda há boicote para
que a matéria não seja tratada de modo científico, atrasando os
efeitos do conhecimento empírico do brasileiro, naturalizando as
desigualdades já existentes e invisibilizando o sujeito transgênero.
Nesta seara da discussão do nome social de tais sujeitos, é
preciso esclarecer alguns dos termos ou expressões utilizados nos
discursos e textos relacionados, tais como: orientação e opção sexual,
ideologia e identidade de gênero e transexualidade.
O conceito de sexo está associado à organização biológica de

412
cada indivíduo, baseando-se nas genitálias, órgãos reprodutivos, e
por consequência na quantidade de hormônios presentes. Ou seja, o
sexo refere-se à característica biológica, relativo ao momento do
nascimento do sujeito (JESUS, 2012, p. 13).
Sobre orientação sexual, a resolução n° 11 de Dezembro de
2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção
dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(CNCD/LGBT), compreende tal conceito de acordo com os princípios
da Yogyakarta: “Como uma referência à capacidade de cada pessoa
de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por
indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um
gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”
(CNCD/LGBT, Resolução n° 11, 2014).
O dispositivo mencionado acima compreende como
identidade de gênero:

[...] a profundamente sentida experiência interna e individual


do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao
sexo atribuída ao nascimento, incluindo o senso pessoal do
corpo (que pode envolver, por livre escolha modificação da
aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos
ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos. (CNCD/LGBT,
Resolução n° 11, 2014)

Assim, orientação sexual trata-se das diferentes formas de


atração afetiva ou sexual de cada indivíduo. Já a identidade de gênero
é a forma como cada um se reconhece.
Conforme Borges (2018), o indivíduo pode se reconhecer com
o gênero designado ao nascimento, ou seja, uma autopercepção
compatível com sexo biológico, por consequência, em harmonia com

413
o nome de registro; ou não. Portanto, quando essa autopercepção
não é compatível com o sexo biológico é o que se chama de
transgeneridade. Neste sentido, Vieira (2012, p.39) define o conceito
de transexual como:

[...] o indivíduo que possui a convicção inalterável de


pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de
Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais
externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia.
Segundo uma concepção moderna o transexual masculino é
uma mulher com corpo de homem. Um transexual feminino é,
evidentemente, o contrário. São, portanto, portadores de
neurodiscordância de gênero. Suas reações são, em geral,
aquelas próprias do sexo com o qual se identifica psíquica e
socialmente. Culpar este indivíduo é o mesmo que culpar a
bússola por apontar para o norte.

No entanto, não se pode afirmar que para se encaixar no


conceito de transexual faz-se necessário reprovar veementemente
seus órgãos sexuais externos e que, por isso, desejam realizar a
cirurgia, pois, por muitas vezes, esses sujeitos optam pela não
realização da cirurgia em razão de vários fatores. Conforme Cerqueira
(2015):

[...] existem casos relatados e catalogados de crianças que,


desde cedo, identificam-se com o sexo oposto e assumem
instintivamente um outro nome pela qual preferem ser
chamados. Esse outro nome (ou nome social) surge como
fenômeno natural de defesa da personalidade sexual
assumida pelo paciente, sendo um dos indicativos de
transgenitalismo.
414
A sociedade tem um ideal de que toda pessoa transexual é
gay ou lésbica, mas geralmente não são, em que pese serem
identificados como membros do mesmo movimento político, a
comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo,
Assexuais e mais).
Como mencionado, homossexuais sentem atração física e/ou
emocional por pessoas do mesmo sexo, o que não se associa com
sua identidade de gênero. Pois se reconhecem pelo gênero que lhes
foi atribuído quando nasceram, ao contrário das pessoas transexuais.
Como expõe Jesus (2012, p. 13):

Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou


homossexual, dependendo do gênero que adota e do gênero
com relação ao qual se atrai afetivo-sexualmente, portanto,
mulheres transexuais que se atraem por homens são
heterossexuais, tal como seus parceiros, homens transexuais
que se atraem por mulheres também; já mulheres transexuais
que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice
versa.

Sobre a ideologia de gênero, o pesquisador Rogério Diniz


Junqueira explica que “o termo ideologia de gênero não é
considerado um conceito teórico, mas um sintagma - ou seja, um
termo inventado que passou a ser usado como slogan” (BRANDA-
LISE, 2019 apud VIEIRA, TRENTIM, p. 146, 2019).
Sendo assim, o nome social se trata da designação usada
pelos transgêneros e travestis para se identificarem de acordo sua
identidade de gênero, uma vez que o nome de registro não se
encontra em conformidade com sua identidade de gênero. Sendo,
portanto, o nome social, uma tentativa de evitar que os sujeitos trans

415
vivenciem situações vexatórias, já que a temática ainda é um grande
tabu para a sociedade brasileira.

Direito ao nome como uma garantia a personalidade

O direito à personalidade é resguardado tanto pelo direito


privado quanto pelo público, o Código Civil estabelece que a
personalidade civil se inicia no nascimento, com vida, institui também,
que, tais direitos são irrenunciáveis e intransmissíveis. Entre os direitos
tidos como inerentes à personalidade, apresenta o direito ao próprio
corpo, ao nome, à imagem e à vida privada.
A Constituição Federal, da mesma forma, expõe no artigo 5º,
inciso X, que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, Constituição
Federal, 1988).
O direito ao nome é tutelado explicitamente pelo Código Civil
de 2002, no capítulo concernente ao direito da personalidade, ou
seja, o direito ao nome é intrínseco à personalidade, da mesma forma
que encontra guarida na Constituição Federal de 1988, posto que a
Carta Magna do país tem como fundamento a cidadania e a
dignidade da pessoa humana.
Como expõe Ceneviva (2010, p.207), o registro civil é a fonte
principal de referência estatística para o Estado. Além disso, o uso do
nome é de suma importância, pois é por meio dele que as pessoas
são identificadas ao ter o contato social. O nome, juntamente com a
aparência física, é a primeira coisa que apresenta e distingue os
sujeitos.
Em regra, o nome civil não pode sofrer alterações, em razão
do princípio da imutabilidade dos registros públicos. De acordo com

416
Ceneviva (2010, p.373), o princípio da imutabilidade encontra-se
presente na redação do art. 58 da LRP (Lei dos Registros Públicos),
desde o Regimento n. 18.542, de 1928, entretanto, o advento da Lei
9.708/98, alterou a redação do referido artigo, que em lugar de ter o
prenome por imutável, passou a afirmá-lo definitivo.
Conforme expõe Gonçalves (2018, p.79):

A imutabilidade do prenome é salutar, devendo ser afastada


somente em caso de necessidade comprovada, e não
simplesmente porque ele não agrada ao seu portador. A
facilitação da mudança pode ser realmente nociva aos
interesses sociais.

Deste modo, conforme exposto acima esse princípio é


suscetível de relativização em certos casos, sempre quando a
alteração do nome for imprescindível para resguardar outros direitos,
tão essenciais quanto ao princípio imutabilidade do prenome, são,
por exemplo, a dignidade da pessoa ou a sua honra e imagem.

Reconhecimento legal do direito de mudança de nome social das


pessoas trans: a luta pela cidadania

A luta para retificação do registro civil é marcada por um


histórico de sofrimento, lutas e avanços. A priori, os transexuais eram
vistos como “aberração”, logo em seguida atribuíam à condição um
caráter patológico, chamado "transexualismo" - o sufixo "ismo" vem
do grego, remetendo assim, a uma patologia que constava no
capitulo de problemas mentais do (Código Internacional De Doenças)
CID 10, no qual recebia o nome de Transtornos Da Identidade Sexual.
Após muitos anos de luta dos movimentos trans e LGBTQI+,
em 2018:

417
No mês de junho, a Organização Mundial da Saúde (OMS),
apresentou a CID-11 (Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). Dentre as
mudanças, comparando com a CID-10 (1990), a transexualidade foi
retirada da lista dos problemas de saúde mental e realocada como
incongruência de gênero, atualizando e padronizando mundialmente
a identidade de gênero. (Defensoria Pública Do Estado Do Paraná,
2018, p.1)
Assim, a transexualidade deixou de ser conceituada como uma
doença mental e passou a ser uma considerada característica, e,
portanto, conquista da população transgênera, dado que uma doença
afeta de forma negativa em um corpo. O CID 11 entrará em vigor em
janeiro de 2022, e, após 28 anos sendo classificada como Transtornos
da Identidade Sexual, passará a ser identificada como “Incongruência
de gênero”.
O Judiciário também apontava os sujeitos trans como
aberrações: “monstro, prostituta, bichinha: como a justiça condenou a
1ª cirurgia de mudança de sexo no Brasil” (BBC NEWS BRASIL, 2018).
Em 1971, fora realizada a primeira cirurgia para mudança de sexo
genital (masculino para feminino), entretanto, quando chegou ao
conhecimento do Ministério Público de São Paulo, o órgão denunciou
o médico responsável pela cirurgia, por lesão corporal gravíssima.

Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer


mudança de sexo. O que consegue é a criação de eunucos
estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis
perversões sexuais e, também, dos devassos que neles
satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados
em mulheres, e sim em verdadeiros monstros75. (BBC NEWS

75
Palavras do procurador Luiz de Mello Kujawski, em pedido de instauração
de inquérito Policial.
418
BRASIL, 2018)76

Assim como a ciência médica, com o passar do tempo, o


judiciário precisou se adequar a realidade para lidar com as
demandas dos sujeitos trans. Com a promulgação da Constituição
Federal, instaurou-se o estado Democrático de Direito, apresentando
dentre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e o
pluralismo político, com objetivo da promoção do bem de todos, sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras
formas de discriminação. (BRASIL, Constituição Federal,1988)
Antes da Constituição de 1988, a transexualidade era vista
como um pecado ou um crime, logo depois passou a ser conceituada
como uma condição médica e assim foi tratada por um bom tempo,
atualmente, passou a ser identificada como uma característica, o que
tem possibilitado a conscientização da população e a inserção dos
transexuais na vida cotidiana, como sujeitos de direitos.
Vale ressaltar que, até o atual momento não há leis especificas
que tratem sobre a retificação do nome civil ou até mesmo do uso do
nome social, no entanto, ao longo dos anos foram criados decretos,
regulamentos, entre outras iniciativas públicas e privadas que
instituem acerca do nome do transexual.
O Brasil é o único país do mundo onde, no vácuo de uma
legislação geral, instituições garantem um direito negado
globalmente. Aqui transmutamos o respeito à identidade de gênero
em “nome social”. Universidades, escolas, ministérios e outras esferas
do mundo público aprovam regulamentos que garantem às pessoas

76
ROSSI, Amanda. 'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a
1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC News Brasil. 28. Mar. 2018.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187. Acesso
em: 20 jan. 2021.
419
trans a utilização do “nome social”. Mudar sem alterar
substancialmente nada na vida da população mais excluída da
cidadania nacional. Assim, por exemplo, uma estudante transexual
terá seu nome feminino na chamada escolar, mas no mercado de
trabalho e em todas as outras dimensões da vida terão que continuar
se submetendo a todas as situações vexatórias e humilhantes e portar
documentos em completa dissonância com suas performances de
gênero. (BENTO, 2014, p.175)
Portanto, antes da possibilidade da alteração de nome, os
transexuais precisavam recorrer ao poder judiciário, ficando a mercê
do entendimento dos tribunais ou buscavam o uso da carteira de
nome social, a qual possibilita a utilização do nome pelo qual a
pessoa deseja ser identificada em diversos espaços sociais, ou seja, a
finalidade do instituto do nome social era suprir a lacuna legislativa
no que tange ao direito à personalidade dos transexuais para evitar
que esses sujeitos vivenciassem situações constrangedoras.
Santos (2015, p. 633) explica que a carteira de nome social é
“um documento físico semelhante à carteira de identidade comum,
com valor de registro civil, que traz a inscrição do nome social e o
número do registro geral de travestis e transexuais”.
Ocorre que, esse documento, contudo, não evitava que esses
sujeitos fossem submetidos a situações vexatórias, considerando a
impossibilidade do uso da carteira de nome social sem que outro
documento oficial com o nome de registro fosse apresentado
juntamente com a carteira social.
A Portaria n°. 16/2008-GS foi a primeira normativa que tratou
acerca utilização do nome social, criada pela Secretaria de Estado de
Educação do Estado do Pará por meio da qual se instituiu que a partir
2009 todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará
passariam a registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prenome
social de travestis e transexuais.
420
Em 2015, o conselho nacional de combate à discriminação e
promoção dos direitos de LGBT’S, juntamente com a presidência da
república e a secretaria de direitos humanos, elaborou a Resolução
n.12, com intuito de combater a discriminação e promover direitos de
pessoas LGBT’S, a qual:

Estabelece parâmetros para a garantia das condições de


acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais e
todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não
reconhecida em diferentes espaços sociais nos sistemas e
instituições de ensino, formulando orientações quanto ao
reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua
operacionalização. (CNCD/LGBT, Resolução n°12, 2015)

E, em 2016, foi criado o decreto 8.727 que expõe acerca do


direito ao uso do nome social da pessoa transexual e travesti na
administração pública federal direta, autárquica e funcional.
Conforme o decreto, tais entidades deveriam adotar o nome social do
sujeito trans em seus atos e procedimento. Ademais, ressalta que é
vedado o uso de expressões discriminatórias para referir-se a pessoas
travestis ou transexuais.
Portanto, observa-se que em razão das reivindicações, houve
um grande avanço no que tange os direitos do transexual,
atualmente, o direito ao nome social é algo consolidado pela doutrina
e por vários regulamentos esparsos, porém, insta salientar que trata-
se de uma medida transitória uma vez que, em 2018, no julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, o Supremo
Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível a alteração do nome no
registro civil sem a necessidade de realização de procedimento
cirúrgico, sendo esta, outra grande conquista para os transexuais.

421
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem que haja o reconhecimento de direitos mínimos, como é


o caso o direito ao nome correspondente à identidade de gênero no
registro civil, não se pode considerar uma pessoa realmente como um
“sujeito” de direitos, com isso a garantia da cidadania fica prejudicado
imensamente para as pessoas transsexuais e travestis.
A falta de uma legislação que garanta esse direito, fez com
que entidades e corporações, nos últimos anos, encontrassem
mecanismos internos para reconhecer o direito de uso do nome
social pelas pessoas trans, porém esses estatutos ou resoluções se
restringem exclusivamente a estes ambientes. O que mitiga os
constrangimentos tanto sociais como psicológicos destas pessoas em
algumas situações, mas ainda as deixam à mercê de tantas outras.
Apesar da lacuna na legislação, algumas decisões jurídicas têm
abarcado e discutido com fundamentos mais consistentes e menos
preconceituosos os interesses das pessoas trans, como é o caso da
ADI 4275/2018, que entendeu ser possível a alteração de nome e
gênero no registro civil sem a necessidade de realização de
procedimentos cirúrgicos ou tratamento hormonal. O que representa
um avanço no entendimento jurídico da questão.
Todavia, é preciso que o Estado saia de seu silêncio legislativo,
atuando assim para o combate à violência simbólica e à discriminação
que as pessoas trans sofrem constantemente na sociedade,
invisibilizadas que são pelas instituições de poder.

422
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VIEIRA, Thereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil.


2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

425
ACESSIBILIDADE ENQUANTO DIRETO FUNDAMENTAL: OS
DESAFIOS NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À LOCOMOÇÃO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA FÍSICA E A PRESERVAÇÃO DO
TRAÇADO URBANO EM UMA CIDADE HISTÓRICA
Maria de Lourdes Faria77
Israel Quirino78
RESUMO
O trabalho aborda a acessibilidade enquanto Direito Fundamental e
os desafios na efetivação do direito à locomoção da pessoa com
deficiência física e à preservação do traçado urbano em uma cidade
histórica. O objetivo principal deste trabalho é estudar a legislação
que versa sobre o direito de ir e vir da pessoa com deficiência física
(Lei 10.098/2000), discutindo as dificuldades que as cidades históricas
enfrentam para implantação da Lei 10.098/2000, diante das
exigências dos instrumentos de proteção ao patrimônio histórico. No
estudo do tema, analisamos as formas encontradas pelo município de
Mariana para dirimir conflito entre a lei 13.146/2015 e os
instrumentos de proteção do traçado urbano histórico,
especificamente o Decreto Lei 25/1937. Após a análise e discussão
desses documentos, foi constatado que há dispositivos legais capazes
de contemplar as necessidades das pessoas com deficiência (PcD),
situando o grande problema na fiscalização e no rigor da aplicação
destas leis. Há uma necessidade de se estabelecer um consenso entre
o Patrimônio Histórico e as leis que garantem o direito à livre
acessibilidade aos deficientes físicos, que permita o exercício pleno
do direito de ir e vir também nas cidades históricas.

77
Graduando do 10º período do Curso de Direito da Faculdade Presidente
Antônio Carlos de Mariana.
78
Professor de Direito Constitucional da FUPAC – Mariana. Mestre em Gestão
Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA.
426
Palavras-chave: Acessibilidade. Patrimônio Histórico. Pessoas com
Deficiência Física

INTRODUÇÃO

Historicamente, a vida de uma pessoa com deficiência não é


nada fácil. Portadores de alguma deficiência, no passado, sofriam
bastante com preconceito, ainda mais em um mundo que vivia sob a
perspectiva de uma visão religiosa. Acreditava-se que a presença de
alguma deficiência era devido a uma falha grave cometida pelo
indivíduo ou por seus pais e no caso, a deficiência, nada mais era, que
uma punição de Deus para com esta pessoa.
Essa forma de pensamento levou a muitos assassinatos de
crianças que nasciam com alguma deficiência nos tempos da Idade
Média e no período Colonial no Brasil. Com o passar dos anos, essa
situação foi mudando e as pessoas com alguma deficiência foram
ganhando espaço na sociedade.
No entanto, muito há para se fazer e se conquistar no que se
refere ao direito pleno de locomoção dessas pessoas, principalmente
quanto às políticas públicas de Mobilidade Urbana. O tema desta
pesquisa é a mobilidade urbana e a locomoção de pessoas com
deficiência física na cidade histórica de Mariana-MG, pela relevância e
contemporaneidade da discussão proposta e pela importância do
sítio histórico da cidade, tombado pelo governo federal desde 1945.
O objetivo principal, é debater as dificuldades enfrentadas por
pessoas com deficiência física em relação à mobilidade urbana na
cidade de Mariana, abordando o conflito entre a lei, a teoria, e a
realidade percebida nas ruas históricas, que acredita-se, ser o mesmo
desafio de outras tantas cidades com igual perfil urbano.

427
O trabalho aborda a acessibilidade enquanto Direito
Fundamental e os desafios na efetivação do direito a locomoção da
pessoa com deficiência física e a preservação do traçado urbano em
uma cidade histórica. Neste sentido, esta pesquisa tem a finalidade de
responder a três questionamentos: 1) o que diz a Legislação Brasileira
sobre o direito de ir e vir da pessoa com deficiência física?; 2) qual a
proposta da cidade histórica para resolver o conflito entre a pessoa
com deficiência e a preservação da arquitetura urbana de suas vias; 3)
quais são as medidas efetivamente tomadas no conflito entre o
direito individual de ir e vir a e preservação do acervo histórico da
cidade.
No intuito de se obter resposta ao primeiro questionamento,
faz-se necessário entender a leitura do Direito Constitucional acerca
do direito das pessoas com deficiência e, principalmente, o estatuto
da igualdade preconizado pela Constituição Federal (CF).
Do mesmo modo, para se responder ao segundo
questionamento deste trabalho, busca-se estudar as propostas
encontradas pelo município de Mariana para resolver o conflito
existente entre o direito das pessoas com deficiência física e a
preservação do patrimônio histórico. Neste sentido, parte deste
questionamento é entender qual são as medidas propostas pelo
município para poder atender às pessoas com deficiência,
considerando o fato de a cidade ser um patrimônio histórico
protegido.
No mesmo viés, para se ter uma resposta ao terceiro
questionamento desta pesquisa, verifica-se quais as formas
encontradas pelo município para dirimir o conflito existente entre a
Lei 13.146/2015 e os instrumentos de proteção do traçado urbano
histórico, especificamente o Decreto Lei 25/1937, de maneira efetiva e
objetiva, especificamente quanto a ação nas ruas, nos espaços
públicos e de uso comum.
428
O acervo jurídico de normas quanto à acessibilidade no Brasil
é robusto. A Lei 10.098/2000 que estabelece normas gerais e critérios
básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida, é uma diretriz a ser seguida
nos ordenamentos municipais, à luz do que estatui o artigo 182 da
CF. No mesmo teor, a Lei 13.146/2015, que institui a lei brasileira de
inclusão da pessoa com deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), exige ações de governo visando tornar realidade o
princípio da igualdade e, aliado ao que dispõe a Lei 12.587 que
institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana,
garantir o direito pleno de ir e vir às pessoas com deficiência.
Notadamente, são normas programáticas, que exigem ação dos
governos para tornar realidade o texto legal.
O direito de ir e vir é um direito universal expresso na
Constituição Federal e, reafirmado na Lei 13.146/15. O Estatuto da
pessoa com deficiência física, ainda não se tornou realidade, tendo
em vista que tais indivíduos enfrentam inúmeros obstáculos e não
possuem direito a uma locomoção plena. Diante dos conflitos que se
encontram nas leis que regulamentam o patrimônio histórico e o
direito da pessoa com deficiência física, há necessidade de se estudar
o referido tema, no intuito de proporcionar-lhes um maior incentivo e
novas perspectivas em seus objetivos sociais, espirituais e materiais,
exigindo dos órgãos competentes solução de tais conflitos. Daí a
relevância dessa contribuição acadêmica na construção de uma
perspectiva de discussão acerca da temática.
Devido aos obstáculos vividos no dia a dia pelas pessoas com
deficiência física na cidade histórica de Mariana, os atores envolvidos
na questão, as entidades representativas das pessoas com deficiência
e a administração local, buscam no ordenamento jurídico brasileiro as
vias de acesso para dirimir tais conflitos, preservando a integridade
do direito à locomoção, sem que haja barreiras que impeçam o ir e vir
429
das pessoas, sem que isso represente agressão ao patrimônio
histórico protegido.
Diante do exposto, esta pesquisa, de cunho bibliográfica e
documental, foi desenvolvida a partir de revisão bibliográfica da
literatura jurídica produzida em torno das normas que enfrentam a
questão, especificamente a Lei 13.146. Trata-se de um estudo
qualitativo, que visa encontrar os diversos significados, motivos,
aspirações e crenças das pessoas com deficiência física na cidade
histórica de Mariana. Para seu desdobramento, foi adotado o método
dedutivo para discussão da elaboração das formas específicas de
soluções apresentadas pelo Município de Mariana, para conciliar os
instrumentos jurídicos e a realidade cotidiana das pessoas com
deficiência física.

Estudo da Legislação sobre o direito de ir e vir da pessoa com


deficiência física (Lei 10.098/2000)
Contexto Histórico do Direito da Pessoa com Deficiência Física

Ao longo da história humana, desde a Antiguidade, sempre


houve pessoas com algum tipo de deficiência física. Boas (2020, p. 01)
conta que “[...] em Atenas, na Grécia Antiga, os recém-nascidos com
alguma deficiência eram colocados em uma vasilha de argila e
abandonados”. No entanto, a ignorância e a falta de conhecimento
naquela época, faziam com que estas pessoas ficassem à margem da
sociedade. Elas eram maltratadas, consideradas até amaldiçoadas por
Deus, ainda mais quando já nasciam com algum tipo de deficiência.
Na Idade Média, por exemplo, segundo Boas (2020, p. 01), “[...]
os deficientes físicos e mentais eram frequentemente vistos como
possuídos pelo demônio e eram queimados como as bruxas”. Com o
passar dos anos, a concepção de maldição foi sendo abandonada e

430
substituída pelo termo ‘invalidez’. Os deficientes deixam então de ser
tratados como maldição e passam à condição de estorvos, um peso.
Pelo menos deixaram de ser assassinados.
As mudanças neste cenário começaram a acontecer após os
séculos XVII e XVII. Boas (2020, p. 01) argumenta que “[...] durante os
séculos XVII e XVIII houve grande desenvolvimento no atendimento
às pessoas com deficiência em hospitais. Havia assistência
especializada em ortopedia para os mutilados das guerras e para
pessoas cegas e surdas”. No entanto, às adaptações visando à
melhoria das condições de mobilidade urbana pensando nos
deficientes, ainda demoraria bastante.
Inicialmente, cumpre ressaltar que as preocupações com os
problemas de mobilidade urbana com pessoas com PcD foram
iniciadas apenas na metade do Século XX. Neves (2010, p. 11) destaca
que “[...] após a Segunda Guerra Mundial, preocupou-se em
internacionalizar os direitos fundamentais, sobretudo pela ineficiência
da Liga das Nações e pelas práticas afrontosas a esses direitos
durante este período”, onde as cidades com suas fundações mais
recentes e as grandes cidades tem uma maior facilidade em adaptar-
se a esse novo contexto.
No dia 19 de dezembro do ano 2020, foram comemorados
vinte anos que foi sancionada a Lei 10.098/2000, pelo então
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso ((FHC, 1995-
2002). Porém, o que mudou nesses vinte anos para as pessoas com
PcD? Quais foram os ganhos que elas conseguiram e o que ainda
precisa mudar para que todos tenham seus direitos assegurados?
Muitas premissas dessa Lei permanecem sem respostas objetivas e
efetivas nas ruas das cidades brasileiras. Daí, é fácil concluir que as
cidades históricas brasileiras não tiveram nenhum planejamento
voltado à acessibilidade a pessoa com deficiência.
Conforme o pensamento de Garcias e Bernardis (2008), temos
431
como marco de uma “nova cidade” mais humanizada, a Carta de
Atenas de 1933, redescoberta em tempos atuais pelo Estatuto das
Cidades – Lei 10.257/2001 – e a Nova Carta de Atenas de 2003, que
propõe

[...] conservar a riqueza cultural e diversidade, construída ao


longo da história; conectar-se através de uma variedade de
redes funcionais; manter uma fecunda competitividade,
porém esforçando-se para a colaboração e cooperação e
contribuir para o bem-estar de seus habitantes e usuários.
No entanto, isso não quer dizer que seja unanimidade entre as
pessoas a conscientização e o respeito pelos direitos dos PcD no
cotidiano das cidades brasileiras. Trata-se, pois, de um conflito
bastante complexo, primeiro, por se tratar de uma cidade histórica
que deve ser preservada para não desconfigurar sua arquitetura
antiga e que não foi projetada pensando em pessoas com deficiência
física. Por outro lado, essas pessoas são cidadãs e precisam ter os
seus direitos à acessibilidade e mobilidade urbana garantidos, ao que
chamamos democratização da mobilidade urbana.
Embora a preocupação nas Nações Unidas com as pessoas
com deficiência tenha se iniciado em 1948, foi somente sessenta anos
depois que o governo brasileiro, como destacou Neves (2010, p. 11),
“[...] promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, organizada pelas Nações Unidas e já
ratificada em outros 23 países” (Decreto Legislativo n.º 186, de 9 de
julho de 2008). Porém, a autora comenta que ainda assim os Direitos
das Pessoas com Deficiência não fazem parte do texto Constitucional
(de maneira expressa ou específica).
Por força do parágrafo 3º do artigo 5º da CF, a Convenção
Internacional Sobre Direitos das Pessoas com Deficiência tem status
de Emenda Constitucional no Brasil, o que introduz na Carta Magna
esse tratamento específico.
432
Porém, não é somente o Brasil que teve atrasos em relação
aos direitos dos portadores de deficiência. Bahia e Schommer (2010,
p. 440) comentam que somente “[...] na década de 1970, a questão
dos direitos das pessoas com deficiência passou a ocupar espaço na
agenda política internacional”. Em outras palavras, entre a criação da
Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, e a entrada do
questionamento em relação aos direitos das pessoas com deficiência,
vige um espaço de pelo menos vinte anos.
Um dos marcos no processo que busca garantir igualdade de
oportunidades de inserção social de PcD em relação a outros
membros da coletividade foi a aprovação, em 1975, pela Organização
das Nações Unidas (ONU), da Declaração Universal dos Direitos das
Pessoas Portadoras de Deficiência (BAHIA; SCHOMMER, 2010, p. 440).
A partir da aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Pessoas Portadoras de Deficiência (1975), abriu-se
caminho para as políticas de inclusão social e acessibilidade. A partir
deste ponto iniciou-se o hoje conhecido Desenho Universal, que visa
contemplar a todos os cenários possíveis quanto à mobilidade
urbana, como corrimãos, rampas de acesso, elevadores para
cadeirantes nos ônibus, entre outras medidas. O Desenho Universal
posteriormente veio a se tornar, de fato, um documento mundial no
advento da Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência, assinada em Nova York no dia 30 de março de 2007.
Estamos, portanto, diante de uma área do Direito em franca
evolução, em seus conceitos, premissas e dogmas, além, é claro, da
positivação legal dessa realidade “nova”, embora tratando de uma
questão que, acredita-se, tenha surgido com o alvorecer da
humanidade.

433
Desafios a serem vencidos pela Lei 10.098/2000

É importante, antes de se fazer qualquer tipo de análise,


compreender o que representa acessibilidade e mobilidade urbana.
Para melhor compreensão acerca da acessibilidade, Mattos Neto,
Lamarão Neto e Santana (2012, p. 311) comentam que “[...]
acessibilidade é um conceito amplo, que abrange a possibilidade de
acesso fácil e seguro ao meio físico e aos meios de transporte”. A
acessibilidade nada mais é que a possibilidade do livre acesso de
forma segura e facilitada aos espaços físicos e aos meios de
transportes. É justamente, o que os cidadãos com PcD não possuem.
Porém, de acordo com a Lei 10.098, art. 2º, Inciso I, entende-se como
acessibilidade:

[...] a possibilidade e condição de alcance para utilização, com


segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e
equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos
sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de
deficiência ou com mobilidade reduzida (BRASIL, 2000, p. 01).
É importante destacar que no documento sancionado por
FHC, fica claro que a pessoa portadora de deficiência física precisa de
um ambiente que lhe proporcione segurança e autonomia. Não só
com relação aos ambientes, mas também aos mobiliários e
equipamentos urbanos, edificações, transportes, sistemas e meios de
comunicação. Autonomia no sentido amplo da palavra.
Nesse sentido, o artigo 1º, a Lei 10.098/2002 propõe “[...] a
supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos,
no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos
meios de transporte e de comunicação”. Em outras palavras, essa Lei
garante ao cadeirante e todo aquele que possui alguma dificuldade
de mobilidade que haverá um dispositivo de auxílio para que sua
dificuldade seja sanada.
434
II – barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou
impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação
com segurança das pessoas, classificadas em: a) barreiras
arquitetônicas urbanísticas: as existentes nas vias públicas e
nos espaços de uso público; b) barreiras arquitetônicas na
edificação: as existentes no interior dos edifícios públicos e
privados; c) barreiras arquitetônicas nos transportes: as
existentes nos meios de transportes; d) barreiras nas
comunicações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou
impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens
por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam
ou não de massa (BRASIL, 2000, p. 01).
Como foi mencionado, o texto legal, contempla a eliminação
de barreiras que inibem o cidadão PcD de ter seu direito à
acessibilidade garantido, tanto a nível urbanístico arquitetônico, como
também nos edifícios públicos e privados, além dos meios de
transportes e nas comunicações.
Contudo, princípios constitucionais encontram-se em
colidência quando se avalia que o Drecreto-Lei 25/1937 reserva
proteção especial aos equipamentos urbanos integrantes de núcleos
históricos tombados, constituindo-os como patrimônio do povo
(direito difuso), tornando-se muitas vezes obstáculos a serem
vencidos – escadarias, calçadas, pavimentação do piso dentre outros:

Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum


ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia
autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob
pena de multa de cinquenta por cento do dano causado
(BRASIL, 1937).
Isso implica dizer que mesmo com a legislação dando plenos
direitos de acessibilidade aos portadores de deficiência física, ainda
existe uma enorme diferença entre a teoria e a prática e imposições

435
legais a serem ponderadas, especialmente quando se trata de cidades
históricas.
Bergamo (2017) destaca que o deficiente físico ainda sofre
com as consequências da falta de inclusão social, especialmente
quando viver em uma cidade planejada ou pensada para pessoas sem
qualquer limitação de mobilidade.

Essa afirmação resulta patente, levando-se em conta que,


para uma existência digna, todo ser humano merece ter
viabilizada a busca de realizações nos diversos meandros da
vida social e econômica, o que lhe exige estar nos mais
variados lugares de uso público ou abertos a esse uso, na
demanda de práticas desde as mais comezinhas até́ as de
consecução mais complexa: ir a um cabeleireiro, a um
supermercado, a uma loja, a uma agência bancária, a uma
escola em qualquer nível, a uma clínica médica ou hospital, ao
local de trabalho etc. (MATTOS NETO; LAMARÃO NETO;
SANTANA, 2012, p. 311).
Em relação ao direito de todo cidadão de ir e vir, Batista (2019)
comenta que a caminhada se trata de uma forma de locomoção
muito comum e importante para a população, pois ela se caracteriza
por estimular a um meio ambiente sustentável, à saúde e à
autonomia de mobilidade, alicerçada no direito fundamental de ir e
vir (artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal).
Tal afirmativa comunga com a Lei 10.098, que define “[...]
pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida: a que
temporária ou permanentemente tem limitada sua capacidade de
relacionar-se com o meio e de utilizá-lo” (art. 2º, III). E com o que
prevê o artigo 3º, “[...] que o planejamento e a urbanização das vias
públicas, dos parques e dos demais espaços de uso público deverão
ser concebidos e executados de forma a torná-los acessíveis para as
pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida”.

436
Poder e dever dos municípios, à luz do que preleciona o artigo 182 da
CF.

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada


pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes.
Barbosa, Mattos e Avelar (2015, p. 80) destacam que o “[...]
direito de ir e vir está expresso na Constituição Federal de 1988, pois,
todos os homens nascem livres e a liberdade faz parte da natureza ser
humano e dos direitos inalienáveis como garantia equilibrada da
igualdade e da liberdade”. Em relação às pessoas com algum tipo de
deficiência não é diferente, por se tratar de pessoas detentoras destes
mesmos direitos à liberdade.
Mattos Neto, Lamarão Neto e Santana (2012, p. 311) destacam
que “[...] a importância da acessibilidade é incomensurável para as
pessoas com necessidades especiais”. Acessibilidade proporciona ao
indivíduo liberdade e independência, e negar-lhe esse direito é o
mesmo que lhe tirar a liberdade. Porém, Batista (2019) comenta que
“[...] deslocar-se a pé no meio urbano nem sempre é uma tarefa fácil e
segura. Principalmente quanto à qualidade dos espaços reservados ao
trânsito de pedestres”.
É também Batista (2019), que argumenta que “[...] nas ruas das
cidades de nosso país, ressalvando-se algumas exceções, percebe-se
a falta de uniformidade nas calçadas e de acessibilidade nos passeios
públicos”. É válido salientar que é direito do cidadão a livre
acessibilidade e a mobilidade urbana independentemente à sua
condição física. Essa condição, nas cidades históricas é parte do
acervo arquitetônico de uma época, para a qual existem normativos
de preservação.
Ainda segundo o mesmo autor, “[...] a preocupação com a
437
questão da mobilidade urbana para as PcDs, vista hoje como uma
parcela considerável da população, clama por uma constante análise”.
O que realmente facilita a luta pelos direitos das pessoas que são
portadoras de algum tipo de deficiência. A conscientização de boa
parte da população auxilia na compreensão, na luta e conquistas
pelos direitos destes cidadãos.
Em projetos mais recentes, em projetos de prédios, de
urbanização e diversos ambientes, em grande parte, a preocupação
com a acessibilidade para com pessoas com algum tipo de deficiência
e idosas são levadas em consideração.
Os problemas dos cadeirantes e outros indivíduos com
dificuldade de locomoção, se já são visíveis nas grandes cidades, são
praticamente intransponíveis nas cidades históricas no que se diz
respeito à mobilidade urbana. Cavalcante (2019) destaca que estes
são repetitivos e até cita alguns deles como “[...] calçamentos
totalmente inacessíveis, estradas esburacadas, transporte público
acessível de má qualidade”. Por se tratar de problemas comuns e
bastante repetitivos, somente cabe a um cadeirante perceber essa
dura realidade vivida por um portador de deficiência que um
indivíduo em outras condições não perceberia.
Vale destacar a fala de Neves (2010, p. 25), segundo o qual
“[...] o acesso aos sítios históricos é um direito, porém é um desafio
garanti-lo quando o foco em questão são as cidades históricas”. É um
direito a qualquer cidadão ter acesso aos sítios históricos, contudo,
cabe ao poder público garantir que este direito seja assegurado.
Cavalcante (2020) argumenta que a “[...] falta de acessibilidade é uma
das maiores dificuldades vividas pelo cadeirante”. E essa reclamação
deve ser levada em consideração pelas autoridades já que também os
impostos do cidadão com PcD contribuem para a manutenção da
máquina pública.
A cidade histórica pode ser definida como aquela portadora
438
de um núcleo central ou centro histórico, compreendido como um
espaço vivo, em constante transformação, no qual as marcas da
passagem do tempo se fazem presentes em construções que
expressam valores históricos e estéticos (JOKILEHTO, 2002, p.14 apud
NEVES, 2010, p. 25).
A preocupação com os centros-históricos das cidades
centenárias são os temas que merecem destaque no que se diz
respeito à mobilidade urbana. Nestes centros existe uma real
preocupação com alterações que podem interferir na estrutura de
cada prédio, visto se tratar de edificações antigas construídas por
outro modelo de arquitetura e execução de obra. Trata-se de
encontrar soluções que possam harmonizar o acervo do passado com
a possibilidade real de acessibilidade exigidas pelas leis presentes.
A preservação destes ambientes é mais que adotar uma
estética, ou alavancar recursos por meio do turismo, mas, também
estabelecer uma relação de identidade histórica, que permite ao
cidadão local conhecer suas origens. Deu-se início à manutenção
destes ambientes, mesmo que de forma primitiva, ainda no século
XIX. Porém, foi na primeira metade do século XX que esse movimento
de memória nacional ganhou força. Neves (2010, p. 26) destaca que
no país, “[...] durante a revolução de 1930, as questões referentes à
identidade nacional ganharam papel relevante, e foi quando iniciaram
oficialmente, às políticas públicas destinadas à preservação do
patrimônio histórico e artístico”.

Monumentos e sítios históricos são insubstituíveis e é


necessário garantir sua preservação para futuras gerações,
porém o acesso a esses espaços também é um direito de
todos e essas barreiras dificultam o pleno acesso das pessoas
não possibilitando que estas se tornem cidadãos no pleno
gozo de seus direitos e deveres (NEVES, 2010, p. 25).
Considerando a questão em relação à unicidade dos
439
monumentos e sítios históricos, deve-se levar em consideração que
estes também estão à disposição para servir à população e que todos
têm o direito ao acesso a esses monumentos. A população que possui
algum tipo de deficiência tem um número bem relevante a ser
destacado. Holanda et al. (2015, p.176) afirmam que segundo a “[...]
Organização Mundial da Saúde (OMS),10% da população mundial
possui algum tipo de deficiência”. O que hoje representaria quase
setecentos milhões de pessoas por todo o planeta. Seria um pouco
mais que três vezes a população brasileira.
As cidades históricas brasileiras, concebidas durante o período
colonial, não raro ocuparam as colinas, em traçados urbanos restrito a
vielas e ladeiras que caracterizam os centros populacionais daquela
época. Ouro Preto, Salvador, Olinda dentre outros, são caracterizadas
por ocupações de encostas íngremes, onde a acessibilidade é negada
pela própria geografia.
O problema que vem junto com a deficiência física, como
destacam Holanda et at al (2015), é o isolamento social involuntário
no qual vivem essas pessoas com deficiência. Os autores comentam
que “[...] estima-se que mais de treze milhões de pessoas tenham em
algum grau a deficiência motora, representando uma importante
parcela da população que requer ações governamentais e da
sociedade civil visando garantir sua (re) inserção social”.
Em decorrência da dificuldade de deslocamento e de acesso
aos serviços de reabilitação, as pessoas com deficiência têm sua vida
social restrita ao convívio com a família, com muitas limitações para
inserção nos demais grupos sociais. Estabelece-se, então, uma
condição de isolamento social (HOLANDA et al., 2015, p. 176).
Imagine quantas vidas foram transformadas em verdadeiros
exílios por conta desta triste realidade. Quantos cadeirantes vivenciam
a cada dia problemas emocionais, principalmente aqueles tiveram
que conviver com esta realidade de forma abrupta por meio de um
440
acidente, uma doença degenerativa ou até mesmo um erro médico.
Bergamo (2017) destaca que a “[...] falta de mobilidade urbana, por
exemplo, traz desânimo e abre caminho para raiva, culpa, angústia…
Sentimentos que, se não há nenhum controle, aumentam o risco de
doenças como depressão”.
Por outro lado, existem barreiras que no mínimo dificultam
para que haja uma maior acessibilidade dentro dos centros históricos.
Neves (2010, p. 27) comenta que “[...] uma das dificuldades em se
promover acessibilidade em cidades históricas, é que estas não foram
planejadas para receber portadores de deficiência ou mobilidade
reduzida, colocando estas pessoas em situação perigosa”.
Barbosa (2016, p.144) destaca que “[...] muitas das críticas às
condições de mobilidade urbana no Brasil, inclusive no que concerne
à falta de acessibilidade das vias públicas às pessoas com deficiência,
são expressas em blogs na internet elaborados por estas pessoas”.
Para se fazer um trabalho adequado para atender às
especificações referentes às necessidades dos portadores de
deficiência física, Neves (2010, p. 27) destaca que “[...] para tornar um
espaço acessível é necessária grande pesquisa para verificar o que
pode ou não ser modificado e onde podem ser feitas essas
intervenções”.
Serão necessários estudos mais adequados para que as
intervenções sejam feitas atendendo ao que regulamenta o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), para que a identidade
histórica do local não seja prejudicada. Ao mesmo tempo, almeja-se
que as pessoas com PcD sejam devidamente contempladas com uma
cidade adaptada às suas necessidades para que a mobilidade não
sofra prejuízos.

441
Mobilidade Urbana, Patrimônio Histórico e PcD: propostas de
convivência

Em 2015 foi sancionada da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa


com Deficiência (Lei 13.146) que conforme positivado em seu artigo
1º, parágrafo único, tem por base tornar realidade entre nós os
preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso
Nacional por meio do Decreto Legislativo 186, de 09 de julho de
2008.
A legislação interna coloca o Brasil no rol das nações que
legislaram sobre o tema, ainda que de forma estritamente
programática, com eficácia limitada às políticas públicas a serem
efetivadas para essa população, a cargo dos governos federal,
estaduais e municipais. Esses últimos com maior procedência na
questão do curso urbano sob sua responsabilidade imediata. Isso,
sem desmerecer o que já havia sido positivado na Lei 10.098/2000,
cuja aplicabilidade ainda desafias as autoridades executivas do país.
Compreendendo a finalidade pela qual foi elaborada e
sancionada a Lei 13.146/2015 com relação ao que está determinado
no artigo 5º da Constituição Federal nas disposições relativas às
liberdades civis e à igualdade, cumpre relacionar as duas leis, que
contemplam o bem-estar dos portadores de deficiência física (Lei
10.098/2000 e Lei 13.146/2015), garantindo-lhes o direito à
acessibilidade, que muitas vezes não lhes é concedido naturalmente.
Novamente, a realidade está a desafiar as políticas públicas de
efetividade dos direitos positivados.
No Brasil, de acordo com Bahia e Schommer (2010, p. 442), foi
“[...] a partir de 1970, que as PcD foram reconhecidas como seres com
necessidades diferenciadas a serem atendidas pela sociedade, porém,
marcadas pelo estigma da dificuldade e da impossibilidade”.
442
Se se comparar as definições adotadas pela Lei 10.098/2000 e
13.146/2015, veremos que não se evoluiu muito no conceito:
Lei 10.098 – art. 2º, III

III – pessoa com deficiência: aquela que tem impedimento de


longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras,
pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas.
Lei 13.146/2015 art. 2º.
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou
mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas.
Ou seja, é mais do mesmo em uma sociedade que parece não
ter evoluído nos quinze anos que distanciam uma norma da outra.
Dispositivos legais, ao longo dos anos, foram criados para atender às
necessidades dos deficientes físicos e garantir o direito à
acessibilidade, sem correspondente política pública efetiva de
inclusão. Portanto, de acordo com Neves (2010, p. 19), “[...] o que falta
é um trabalho de fiscalização dos órgãos responsáveis para
aplicabilidade dos mesmos”. A falta de uma fiscalização adequada é o
que dificulta uma plena acessibilidade e uma condição mais digna aos
cidadãos com dificuldades de locomoção.
A diferença entre as leis de 2000 e 2015 é a amplitude da
segunda em relação à primeira. A forma mais ampla com que o
assunto é abordado, em que, além de preocupar-se com a questão da
acessibilidade, passa a considerar-se discriminação “[...] toda forma de
distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o
propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o
443
reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais de pessoa com deficiência”.

Apesar de avanços nas últimas décadas, ainda hoje, a


persistência de desinformação e inadequação das condições
de arquitetura, transporte e comunicação contribuem para
que pessoas talentosas e produtivas estejam afastadas do
mercado de trabalho (BAHIA; SCHOMMER, 2010, p. 442).

Neves (2010, p. 19) comenta que “[...] existem diversos


obstáculos que impedem ou restringem o acesso a livre locomoção
ou a utilização dos espaços, por qualquer pessoa, independente da
sua condição física”. Esses obstáculos acabam gerando uma exclusão
social aos deficientes físicos, uma vez que, de acordo com Cardoso
(2007, p. 31), “[...] acessibilidade urbana é condicionada pela interação
entre o uso do solo e o transporte e se constitui como um importante
indicador de exclusão social, ao lado, entre outros, da mobilidade, da
habitação, da educação e da renda”.
Esses obstáculos urbanísticos que impedem o ir e vir nas
cidades históricas, como já dito, compõem um cenário de preservação
protegido por lei, o que coloca as normas de tutela de direitos em
conflito. O que dificulta, por exemplo as adaptações necessárias para
poder oferecer a acessibilidade necessária para os cadeirantes, são
intervenções físicas que podem descaracterizar bens históricos
tutelados por norma específica, uma vez que para a elaboração de
rampas de acesso e o alargamento das calçadas, será necessária a
demolição daquilo que foi construído anteriormente, ferindo,
frontalmente o que dispõe o artigo 17 da Lei de Proteção ao
Patrimônio Histórico (Decreto-Lei 25/1937).

444
As formas encontradas pelo município de Mariana para diminuir
o conflito entre a lei 13.146/2015 e o Decreto Lei 25/1937.

Na condição de cidade histórica e tombada pelo Patrimônio


Histórico, Mariana tem o dever de elaborar uma política de
preservação de sua história (art. 23, III da CF), ao mesmo tempo em
que precisa zelar pelo bem-estar da coletividade (art. 23, X),
promovendo a inclusão dos setores marginalizados ou posto à
margem do integral usufruto de direitos.
Em visita à cidade de Mariana no ano de 2016, Martins (2016)
destaca que para atravessar as ruas da cidade, “[...] encontrou
passarelas elevadas para pedestres e rebaixamentos de calçada, ou
seja, nada que atende às normas de acessibilidade, mas os
rebaixamentos permitem a passagem em segurança”. A autora
enaltece alguns aspectos nos pontos turísticos da cidade que
atenderam às leis de acessibilidade para cadeirantes. No entanto,
quando passa para a locomoção no centro histórico da cidade a
situação muda de figura, a ponto de ganhar destaque o “[...] quão
distante a cidade está de promover o mínimo de dignidade às
pessoas com deficiência física”.
O fato é que esse questionamento em torno da preservação
do patrimônio histórico, como impedimento para que as cidades
históricas não se adaptem à realidade das pessoas com deficiência
não é plausível. Martins (2016) comenta que diversas cidades, tanto
no Brasil como no exterior, já demonstraram que é possível propiciar
acessibilidade e conservar o patrimônio histórico.
Entre as principais reclamações de Martins (2016) estão as
calçadas, pelo fato de serem estreitas e mal-conservadas, e o
calçamento das ruas em formato de pé-de-moleque”, o que ela
definiu como uma “tragédia”. No entanto, sabemos que esse tipo de
pavimentação (a tragédia) é comum nas ruas de Ouro Preto,
445
Tiradentes, São Thomé das Letras e Diamantina, por exemplo, e são
representações culturais dos séculos XVIII e XIX, protegidos pelo
Decreto-Lei n.º 25/1937.
Continua a autora, afirmando que por conta do estreitamento
das calçadas, ora seguia-se pela calçada e ora só era possível pelas
ruas. Imagine uma rua pavimentada com pedras em formato em pé-
de-moleque, se é desgastante para uma mulher que usa salto alto,
imagine para alguém que necessita de se locomover por meio de
uma cadeira de rodas.
Houaiss (2001 apud XAVIER, 2016, p. 08) afirma que “[...] a
mobilidade é definida como sendo ‘a possibilidade de se mover,
característica do que é móvel ou do que é capaz de se movimentar,
facilidade para andar’”. O plano de mobilidade urbana apresentado
no ano de 2019, que tem como meta principal fazer com que a cidade
de Mariana se adapte aos quesitos do Desenho Universal, na citação
abaixo, traz algumas medidas interventoras no projeto urbanístico da
cidade:

Implantar rota acessível de pedestres no eixo norte-sul da


sede municipal, entre a MG 129 e a MG 262, utilizando o
sistema viário principal; II. Implantar calçadas acessíveis ao
longo dos trechos urbanos das rodovias MG 129 e MG 262;
III. Implantar rota acessível de pedestres entre a sede
municipal e o distrito de Bandeirantes, seguindo a diretriz da
antiga ferrovia; IV. Implantar via compartilhada na Rua
Wenceslau Braz; V. Instituir programa contínuo de melhoria
das calçadas e travessias, considerando as condições de
acessibilidade (MARIANA, 2019, p. 07).
Em sua maioria, o plano de mobilidade urbana de Mariana
ainda é muito modesto, no que diz respeito às propostas efetivas de
intervenção que englobam a questão da acessibilidade urbana. Lóra
(2018, p. 43) lembra que “o PlanMob estabelece diretrizes, ações e

446
projetos voltados à organização, ao funcionamento e à gestão dos
espaços de circulação e dos serviços de transporte público”. Em quase
todo o projeto, a preocupação parece estar mais voltada para ciclistas
e pedestres do que com aqueles que realmente têm uma maior
necessidade de atenção, que são os portadores de deficiência física,
cuja dificuldade de locomoção é evidente.
O grande problema é que a função do Plano de Mobilidade
Urbana, cujo objetivo é estabelecer diretrizes, ações e projetos
voltados à organização, ao funcionamento e à gestão dos espaços de
circulação e serviços de transporte, não corresponde à altura seu
propósito. Há uma grande diferença entre a teoria e a realidade e isto
é um reflexo das Leis Federais voltadas às melhorias das condições de
vida das pessoas com deficiência, que em quinze anos não sofreram
nenhuma mudança significativa.

O que é o Plano Diretor do Município de Mariana e o Plano de


Mobilidade Urbana?

O Plano Diretor da cidade de Mariana foi aprovado em Janeiro


de 2004 e encontra-se, atualmente, em revisão. De acordo com Xavier
(2016, p. 38): “O Plano Diretor Municipal de Mariana- MG foi
elaborado em 2003 e foi publicado e sancionado em 02 de janeiro de
2004”. Era, para a época, um avanço em uma cidade de crescimento
assustadoramente desordenado. Porém, a dificuldade de harmonizar
a preservação do acervo arquitetônico histórico e a convivência
humana não foi suficientemente resolvida.

O Plano Diretor não aborda a questão da mobilidade de


forma específica ao longo do seu texto, porém faz algumas
considerações em relação ao Patrimônio, objeto de estudo
por se tratar do centro histórico tombado. Em seu Artigo 2, o
Plano Diretor apresenta seus princípios estruturais do
447
planejamento urbano-ambiental do Município, dentre eles
boa governança; inserção de Mariana na rede de cidades
globalizadas e utilização ambiental adequada do território
urbano (XAVIER, 2016, p. 38).
De acordo com afirmação de Xavier (2016), o Plano Diretor da
cidade de Mariana não abordou a questão dos problemas e da
mobilidade urbana em si. É um instrumento mais preocupado com as
questões que envolvem o patrimônio histórico, do que com o bem-
estar de cidadãos que necessitam de respostas às suas necessidades.
Com a revisão do Plano Diretor da cidade, vem sendo elaborado o
Plano de Mobilidade Urbana, que, de acordo com Mariana (2019, p.
02): “[...] é o resultado de um processo intenso de trabalho
desenvolvido até o momento, iniciado em maio de 2019”.
Este sim, tem como finalidade atender às questões
relacionadas à mobilidade urbana. O que se espera, a partir desta
ação do poder público, é atender as necessidades em relação à
mobilidade urbana presentes dentro do município. Segundo Mariana
(2019, p. 02), “[...] o objetivo principal é a oferta de condições
adequadas à mobilidade da população e da logística de circulação de
mercadorias, contribuindo com a melhoria da qualidade de vida na
cidade”.

As propostas foram desenvolvidas à luz dos princípios,


objetivos e diretrizes da PNMU, que indicam a prioridade e o
incentivo a utilização dos modos coletivos e não motorizados
de transportes e a acessibilidade universal, contribuindo para
a inclusão social e a sustentabilidade ambiental (MARIANA,
2019, p. 02).
Dentro das propostas apresentadas, a ideia é buscar adequar
o modelo de arquitetura presente na cidade histórica de Mariana ao
que sugere a proposta do desenho universal, além de atender ao que
é exigido na Política Nacional de Mobilidade Urbana. Outras
448
referências usadas de acordo com Mariana (2019, p. 02), foram: “[...] a
Lei Federal 9.503/1997, Código de Trânsito Brasileiro – CTB e as Leis
Federais 10.098/2000 – Lei da Acessibilidade e 13.146/2015 – Lei
Brasileira de Inclusão”.
O Plano de Mobilidade Urbana de Mariana, por sua vez, tem
como principal objetivo promover a igualdade no uso do espaço
público de circulação, ou seja, a democratização da acessibilidade
urbana. Como descrito, na citação do documento lançado em 2019:

O Plano de Mobilidade Urbana de Mariana – PlanMob


Mariana, tem como princípios: I. A equidade no uso do
espaço público de circulação, vias e logradouros; II. A
acessibilidade com desenho universal; III. A universalidade de
acesso ao transporte púbico coletivo como direito
fundamental (MARIANA, 2019, p. 04).
O grande desafio ainda existente na sociedade atual é
perceber o quanto em alguns aspectos a sociedade evoluiu, e como
em relação a outros, nada mudou, principalmente, quando se trata de
lidar com pessoas com deficiência. A cidade de Mariana, por se tratar
de uma cidade histórica, apresenta uma conjunto de obstáculos em
sua estrutura urbana que representa uma série de transtornos na vida
daqueles que possuem problemas de mobilidade.

O PlanMob Mariana é composto de um relatório final,


contendo: os princípios e objetivos gerais; a síntese dos
estudos realizados e da leitura técnica; a síntese da leitura
comunitária; os eixos estratégicos, compreendendo todos os
temas relativos à mobilidade; os objetivos específicos e
diretrizes para cada um dos temas da mobilidade urbana; as
propostas, estruturadas em programas e ações, contendo
detalhes e referências técnicas para subsidiar os projetos e a
implementação do Plano; a proposição de indicadores e
metas; o plano de ação, organizando os programas e ações
em curto, médio e longo prazo e a minuta de projeto de lei
449
(MARIANA, 2019, p. 02).
O PlanMob Mariana é uma forma de também democratizar a
mobilidade urbana em uma cidade em que cadeirantes têm que
disputar espaço com carros. As ruas, em boa parte do Centro
Histórico, possuem em sua pavimentação o calçamento conhecido
como “pé-de-moleque”, e as calçadas sendo estreitas, dificulta a vida
daqueles que necessitam das cadeiras de rodas, que são os que mais
sofrem com problemas na mobilidade.

O Plano de Mobilidade Urbana de Mariana – PlanMob


Mariana, tem como princípios: I. A equidade no uso do
espaço público de circulação, vias e logradouros; II. A
acessibilidade com desenho universal; III. A universalidade de
acesso ao transporte púbico coletivo como direito
fundamental; IV. A eficiência, eficácia e efetividade na
prestação dos serviços de transporte público coletivo e de
circulação; V. A compatibilização entre as necessidades de
deslocamento e a preservação do patrimônio ambiental,
histórico e cultural; VI. A redução das emissões de gases de
efeito estufa e da poluição atmosférica; VII. A gestão
democrática e o controle social (MARIANA, 2019, p. 04).
Dentro dos objetivos estabelecidos pelo Plano Diretor e pelo
Plano de Mobilidade Urbana de Mariana, está o de garantir a
eficiência e a efetividade na prestação dos serviços de transporte
público na cidade, que é um problema importante no município. Isto
envolve preocupações com o meio ambiente, o cuidado com as
principais riquezas da cidade, e, principalmente com um ambiente
mais saudável para a sua população.

I. Proporcionar o acesso amplo e democrático de todos os


cidadãos aos serviços básicos e equipamentos sociais; II.
Ampliar a acessibilidade às infraestruturas e aos serviços da
mobilidade urbana; III. Aumentar a atratividade e a segurança
dos deslocamentos não motorizados; IV. Ofertar um serviço
450
de transporte público coletivo de qualidade e acessível nas
dimensões física e tarifária; V. Promover a segurança nos
deslocamentos reduzindo o número de acidentes e de vítimas
fatais; VI. Contribuir para o desenvolvimento sustentável e a
inclusão social; VII. Consolidar a gestão integrada e
democrática como instrumento e garantia da construção
contínua e do aprimoramento do sistema de mobilidade
urbana (MARIANA, 2019, p. 04).
Proporcionar acesso amplo e democrático a todos os cidadãos
da cidade aos serviços básicos e aos equipamentos sociais é muito
importante. No entanto, não somente como algo escrito no papel,
mas, também como algo factível e real. Porém, transformar isso em
realidade, por muitas vezes fica mais à cargo do próprio cidadão, do
que do poder público, que geralmente só contribui por meio de uma
rígida fiscalização.

[...] a Rua Direita apresenta sérios problemas de excesso de


fluxos, uma vez que o uso do pedestre fica restrito ao passeio
e que os veículos fazem uma maior utilização do espaço
público. Além disso, a acessibilidade não foi contemplada e
inserida nas calçadas, mesmo após a vigência da Lei Federal
Nº 10.048 de 08 de novembro de 2000 que estabelece
normas gerais e critérios básicos para a promoção da
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com
mobilidade reduzida, assim como a Rua Dom Silvério e a Rua
das Mercês (XAVIER, 2016, p. 74).
Assim, atender à necessidade das pessoas com deficiência no
que se refere à mobilidade urbana na complexidade existente no
cenário de Mariana, por se tratar de uma cidade histórica, é uma
tarefa complexa no tocante a toda e qualquer ação interventora.
Como aponta o Plano de Mobilidade Urbana da cidade, serão
necessários estudos para que sejam apontadas ações adequadas para
uma intervenção eficaz para a melhora na acessibilidade, tendo em

451
vista que trata-se de uma cidade que está em amplo crescimento e
que muitas coisas concentram-se no entorno do Centro Histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste estudo, constatamos, com base no exame dos


documentos de referência, que foram formulados dispositivos legais
capazes de contemplar as necessidades das pessoas com PcD.
Contudo, as fontes consultadas demonstram problemas no que se
refere à fiscalização e ao rigor da aplicação destas leis. Há uma
necessidade de que haja um consenso entre o Patrimônio Histórico e
as leis que garantem o direito à livre acessibilidade aos deficientes
físicos, que permita que sejam também contemplados nas cidades
históricas.
Ao nos perguntarmos o que diz a Legislação Brasileira de 1988
sobre o direito de ir e vir da pessoa com deficiência física, que é a
Legislação vigente desde a redemocratização ocorrida no país em
1985, entende-se, que todos os homens nascem livres e que a
liberdade faz parte da natureza ser humano e dos direitos
inalienáveis. Aí inclui-se a garantia equilibrada da igualdade e da
liberdade.
No que se refere ao direito dado a todo cidadão de ir e vir,
também garantido pela Constituição Federal, além do direito à saúde
e à autonomia de mobilidade, alicerçada no direito fundamental de ir
e vir (artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal), certificamo-nos de
que, por Lei, a pessoa tem esse direito garantido. No entanto, suas
limitações de locomoção por conta da deficiência fazem com que
apareçam constantes obstáculos que dificultam essa movimentação.
Diante disso, outro questionamento que surge é: qual a
proposta da cidade histórica para resolver o conflito entre a pessoa

452
com deficiência e a preservação da arquitetura urbana de suas vias?
Ao que respondemos com base no que preconiza o Plano de
Mobilidade Urbana de Mariana, o Plamob. Sabendo das necessidades
apontadas pelos cadeirantes, o Plamob aparece como a principal
medida de tentativa de resolver as questões das pessoas com
deficiência. O Plamob Mariana, conforme apresentado neste estudo,
trata-se de uma forma de também democratizar a mobilidade urbana
por meio de medidas, como adaptações em locais públicos para
melhorar o acesso, promovendo, assim, a democratização da
acessibilidade em Mariana.
Em boa parte do Centro Histórico, as ruas de acesso têm em
sua pavimentação o calçamento conhecido como ‘pé-de-moleque’, e
algumas calçadas são estreitas, o que dificulta ainda mais o fluxo de
mobilidade. Aqueles que necessitam das cadeiras de rodas são os que
mais sofrem com tais problemas.
Por fim, outro questionamento que surge em meio aos
estudos aqui empreendidos, é sobre que medidas são efetivamente
tomadas no conflito entre o direito individual de ir e vir e a
preservação do cervo histórico da cidade de Mariana.
Cabe à legislação garantir que o direito de ir e vir do
cadeirante seja, definitivamente respeitado. O que não é, de fato. Em
quinze anos da existência da lei em prol daqueles que são portadores
de deficiência, houve pouquíssimas alterações. O que indica ainda
exigência de bastante esforço por parte do Direito individual, na
questão do direito de ir e vir na cidade de Mariana, tendo em vista
tratar-se um monumento histórico que tem sua manutenção
garantida por Lei. Nesse contexto, foram estabelecidos os Planos
Diretor e o de Mobilidade Urbana de Mariana, sendo que o segundo
aborda, especificamente, as questões que envolvem a mobilidade
urbana.
Dentro dos objetivos estabelecidos pelo Plano Diretor e pelo
453
Plano de Mobilidade Urbana de Mariana está o de garantir a
eficiência e a efetividade na prestação dos serviços de transporte
público na cidade, que é um problema ainda sem respostas no
município. Como aponta o Plano de Mobilidade Urbana da cidade,
serão necessários estudos para que sejam apontadas ações
adequadas para uma intervenção eficaz para a melhoria da questão
da acessibilidade.

454
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458
A PRISÃO PROVISÓRIA NO BRASIL E AS IMPRESSÕES
ACERCA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Bárbara Cândido de Carvalho79
Gabriela Araújo Gois80
RESUMO
No Brasil, a prisão provisória excede os limites da legalidade
haja vista que desconsidera o princípio constitucional da dignidade
humana estabelecido pela Constituição Federal quando a ação
institucionalizada do Direito Penal se afasta do viés garantista, ao
negar à pessoa acusada seus direitos e garantias fundamentais pois,
uma vez que o processo não transitar em julgado, o réu pode
responder em liberdade ao invés de aguardar o julgamento na prisão.
Uma questão que deve ser observada é que a maior parte dos presos
é caracterizada por jovens negros, de baixa escolaridade,
desempregados ou com empregos precários, moradores da periferia
e de baixa renda, portanto são pessoas que vivem sem o respaldo da
sociedade e sem o amparo das prerrogativas das leis. Este estudo tem
o objetivo de relacionar parte das causas e consequências da prisão
provisória no âmbito do Direito Penal do Inimigo proposto por
Jakobs; Meliá (2007). Um dos nítidos reflexos desta relação são as
prisões provisórias de crimes não hediondos, nem mesmo contra o
Estado, mas ainda assim cerceiam o direito à liberdade dos cidadãos
que estão sendo acusados. O presente estudo utiliza uma
metodologia descritiva, identificando os impactos da lei n° 12403/11

79
Professora de Direito Penal na Fundação Presidente Antônio Carlos -
FUPAC/Mariana. Pós-graduada em Advocacia Criminal pela ESA/FUMEC.
Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação Novos Direitos,
Novos Sujeitos da Universidade Federal de Ouro Preto.
80
Bacharelanda em Direito e membro do Núcleo de Pesquisa em Direito e
Psicanálise da FUPAC/Mariana.

459
na prisão provisória, bem como analisa as audiências de custódia e
medidas cautelares alternativas, tendo-as como hipóteses resolutivas
para o problema.

Palavras-chave: Prisão provisória. Direito Penal do Inimigo.


Audiências de custódia. Dignidade Humana.

INTRODUÇÃO

A situação acerca da prisão provisória no Brasil é complexa,


visto que apesar do réu ter direito a um advogado ao ser detido
(princípio do contraditório e ampla defesa81), não é o que acontece na
maioria dos casos. Geralmente, o advogado é contatado no momento
da audiência e não tem tempo de ouvir a versão do acusado antes de
sua oitiva. Contudo, esse mesmo indivíduo detido também tem
direito de, no prazo de um dia após ser preso provisoriamente, se
apresentar a um juiz apto a ouvi-lo e posteriormente julgá-lo
(princípio do juiz natural).
No documentário “Presos provisórios”, o qual aborda a prisão
antes do trânsito em julgado, Paula Jardim Duarte - pesquisadora do
ISER82 – explana que se a pessoa ainda não foi condenada poderia
responder o processo em liberdade. De fato, a prisão provisória
contraria o art 5°, LVII da CF/88, uma vez que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória” (princípio da presunção da inocência). Mas conforme
afirma Rubens Casara, juíz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro,

81
Conforme o art 5º, LV, da CF/88: “aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”.
82
ISER – Instituto de Estudos da Religião
460
“essa prisão provisória tem a finalidade de evitar riscos processuais e
o sistema de justiça criminal brasileiro possui distorções por não
ressocializar e não evitar novos crimes, potencializando a exclusão”.
Haja vista que a prisão provisória é usada de modo excessivo
no Brasil e que a grande maioria dos presos inclui jovens negros e
desfavorecidos economicamente, torna-se necessário avaliar se
realmente essas medidas prisionais estão sendo eficazes para prevenir
o crime e justas se aplicadas a criminosos reincidentes ou que
apresentam perigo à sociedade, sejam eles de quaisquer classes ou
etnias. Segundo o relatório Liberdade em Foco, do IDDD83(2016), o
excesso da prisão provisória no Brasil deve-se ao fato que 94,8% das
prisões em flagrante foram provisórias e 26,6% dos detidos obtiveram
liberdade provisória. Este relatório também aponta que há
costumeiras falhas na produção das evidências que legitimam a
prisão, desse modo dos 99 detentos entrevistados em São Paulo
apenas 29 (77,8%) afirmaram terem sido reconhecidos pelas vítimas
no interior da delegacia. Contudo, somente 14,3% dos entrevistados
declararam que as formalidades processuais do ato84 foram
cumpridas (IDDD, 2016).
O conceito de Direito se resume a um vínculo entre pessoas
dotadas de deveres perante a sociedade, enquanto o Direito Penal é
o único ramo do Direito capaz de empregar a coação mais intensa a
um inimigo. Portanto, Direito Penal do Inimigo é aquele através do
qual o Estado faz uso das medidas de segurança em combate ao
perigo, visando inclusive impedir a ação de terroristas. Na filosofia,
“inimigo” pode ser considerado sob a ótica de diferentes vertentes,
por exemplo: para Rousseau e Fichte, é todo homem delinquente;

83
IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa
84
As formalidades do reconhecimento pessoal são, por exemplo:
apresentação em sala própria, presença de pessoas não suspeita e a não
interferência policial.
461
enquanto para Hobbes, é o agente que pratica a alta traição e que
nega obedecer a constituição em vigor (JAKOBS; MELIÁ, 2007). Esses
conceitos filosóficos são apenas ideias propostas para nos ajudar a
entender o comportamento dos agentes e da justiça, não
necessariamente correspondentes à realidade, pois antes do século
XX a compreensão dos delitos tinha uma ótica mais estereotipada do
que são os desvios de comportamento.
No Brasil, a associação da desigualdade social com o Direito
Penal do Inimigo ocorre na realidade quando o apenado deixa de ser
tratado como um cidadão, ainda que o crime cometido nem tenha
sido contra o Estado ou que nem tenha sido um crime hediondo.
Estima-se que aproximadamente 36.128 pessoas encontram-se presas
em unidades sem assistência, sendo que mais da metade desses
encarcerados provém do Rio Grande do Norte, Goiás, Rio de Janeiro e
Ceará. O conceito de Direito Penal do Inimigo deveria ser amplificado,
afinal o indivíduo torna-se “inimigo” apenas pelo fato de ser
impedido de exercer sua cidadania dentro de sua nação, pois a falta
de assistência jurídica e de sadias condições de atendimento dentro
das unidades desrespeita a constituição no que tange aos direitos
humanos e fundamentais (IDDD, 2016).
Sendo assim, dentro dos estudos criminológicos, uma das
proposições da escola de Criminiologia Crítica foi o labelling
approach que estuda a criminalidade como uma ação seletiva devido
ao que as pessoas aparentam ser e não pelo que elas realmente são.
Infelizmente, existem muitos rótulos que circunscrevem-se nos
criminosos tipificam quais comportamentos podem ser considerados
criminosos como, por exemplo, a falsa noção de que as esferas mais
pobres da sociedade estão mais propensas ao crime. No Brasil esse
caráter estereotipado das punições é histórico, tendo em vista que as
manifestações culturais brasileiras provindas da África sempre foram
criminalizadas, bem como as danças (tais como o samba e funk) e as
462
religiões (que demonstram uma “arte da cura”). Porém, o que ocorre
na realidade é a hipótese inversa de que os conflitos sociais são
respostas à desigualdade social (BATISTA, 2011).
Entretanto, as questões acerca do tema têm sido levantadas e
uma medida importante para auxiliar na resolução dos problemas é a
audiência de custódia, através da qual o sujeito detido
provisoriamente tem seu caso avaliado por um juiz de custódia que
decide a medida cabível: se o réu continuará preso ou se poderá
aguardar o trânsito em julgado em liberdade.

PRISÃO PROVISÓRIA E DIREITO PENAL DO INIMIGO

Direito Penal do Inimigo, segundo o conceito de Jakobs; Meliá


(2007), é aquele que visa punir aos que atentam contra o Estado, seja
por atos terroristas, crimes econômicos ou demais infrações
perigosas:

“É inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e


não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à
norma.” (JAKOBS; MELIÁ, 2007)

Portanto, nesse tipo de direito o alvo é sempre o autor do


crime e não o crime. Desse modo, o inimigo passa a ser considerado
não-pessoa (Feinde sind aktuell unpersonen), ou seja, torna-se um
sujeito processual desvalido de direitos de um cidadão pois contra ele
se justificam procedimentos de Guerra (GOMES; BIANCHINI, 2004).
Mas no caso da prisão provisória no Brasil nem sempre o réu é
de fato um inimigo do Estado, mas sim indivíduos que permanecem
presos por não terem acesso à justiça. Além disso, a Constituição
Federal é bem clara ao estabelecer em seu art 5°, inciso LVII que
ninguém pode ser considerado culpado antes de ser julgado, sendo o
463
princípio de presunção da inocência uma das bases da justiça
brasileira.

Art 5°, LVII, da CF/88: “Ninguém será considerado culpado até


o trânsito em julgado de sentença penal”.

Interessante lembrar de Beccaria (1999) em sua alusão às


pessoas que inoportunam a ordem e o sossego público, mostra que
estes poderiam ter uma prisão correcional sem flagrante e mandado
de juiz desde que a mesma não excedesse vinte e quatro horas e
desde que o motivo da prisão fosse desacato ou outro motivo
falsamente declarado pela autoridade policial para justificar seu ato.
Mas no Brasil, apesar de acontecer com frequência, isso é
completamente inconstitucional e constitui um abuso de autoridade
por não ser realmente motivado por flagrante de delito, estado de
necessidade ou até mesmo legítima defesa, por exemplo.É mister
salientar que a evolução político-criminal atual segue duas vertentes
da realidade legislativa, que embora possam ser analisadas
individualmente, estão relacionadas. São elas: a simbólica e a
punitivista. Desse modo, o Direito Penal de fato se difere do Direito
Penal do inimigo e que considera o adiantamento da punibilidade, a
desproporção das penas previstas e a supressão de determinadas
garantias processuais, as quais são medidas anti-garantistas (JAKOBS;
MELIÁ, 2007).
A cada vez mais a sociedade questiona a justiça para solução
rápida de seus entraves, mas a mídia sensacionalista mostra os fatos
reais de crimes ocorridos em determinadas regiões do país, sempre
em busca da máxima audiência, incutindo a insegurança e o medo às
famílias e desviando a atenção da sociedade dos problemas sociais e
econômicos, que são as verdadeiras causas da criminalidade. Dessa
forma, o Direito Penal tem é bastante simbólico visto que políticos e

464
legisladores são pressionados por essa população repleta de
insegurança e, em prol de seus interesses pessoais, optam por
modificar as leis e incrementar as penas, surgindo assim o Direito
Penal Simbólico (JÚNIOR, 2016).
O Direito Penal simbólico trata de fenômenos de
neocriminalização de efeito representativo, uma vez que se difere da
realidade vivida pelos condenados por esta ser mais dura enquanto
aquelas são estipuladas por legisladores que entendem as penas
como merecidos meios de correção dos infratores, não importando o
caráter banal ou provisório dos delitos. Para Batista (2011), os estudos
de criminologia se baseiam em duas vertentes: o positivismo, que
identifica quem de fato comete o crime; e o rotulacionismo, que
indica um modo de agir baseado em aparências, ou seja, identifica
quem é apenas definido como criminoso. Dessa forma, a
criminalidade deixa de ser uma realidade objetiva para lidar como
uma definição, pois as normas tornam-se como regras de um jogo
que visam delimitar o poder punitivo. A escola criminológica que trata
desse tema é a labelling approach, que estuda a ação seletiva da
justiça pelos estereótipos dos agentes. No Brasil, é muito comum o
rotulacionismo, pois é possível observar uma acentuada discriminação
social e criminalização da cultura provinda da África (por exemplo, a
associação do funk com favelas e com crimes).
Na prisão, sofre tanto o condenado recebendo um tratamento
sub-humano, quanto sua família ao ver o descaso do Estado em não
fornecer mais celas e mais leitos, por talvez acreditar que isso faça
parte da punição ou por não querer investir nesses seres humanos
que vivem à margem da sociedade, mas que não deixam de serem
humanos.

“O que se percebe, em última análise, é que onde não houver


respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser
humano, onde as condições mínimas para uma existência
465
digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do
poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade
(em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não
forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá
espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa),
por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e
injustiças”. (SARLET, 2009)
Há no país uma possível internacionalização do Direito
positivo, em que uma pena socialmente útil pode ser considerada
justa, baseando-se em punir para evitar reincidências dos delitos, não
compreendendo que a prisão é uma espécie de escola do crime, onde
um indivíduo apenado se revolta e passa a agir de modo pior. Aos
juízes cabe o rigoroso papel de decidir sanções, sempre em busca do
sentimento de dever cumprido, mas dentro do limite imposto pelo
Princípio da Legalidade, visto que a lei não deriva da vontade de
ninguém e, como afirmou Montesquieu (1748), a lei é natural de cada
pessoa, não cabendo a um juiz criar leis, sendo mister a tripartição de
poderes em prol da liberdade do cidadão.
Entretanto, há que se notar a incongruência do Direito Penal
simbólico, incongruente ao ponto de julgar casos de furtos de
insignificâncias como outro tipo qualquer de furto, a fim de firmar a
soberania do Estado, que tem poder de punir e de manter a ordem e
a proteção da sociedade. Mas a finalidade da pena deve ser como
apontou Beccaria (1764), ou seja, deve ter um efeito de recuperar o
indivíduo e não ser jamais uma mera vingança contra um delito.
Outro aspecto abordado por Jakobs; Meliá (2007) é o fato de
que quando novas normas surgem, outras mais obsoletas se
extinguem para dar lugar àquelas que adquirem maior importância
ao longo do tempo. Na Espanha desapareceram algumas legislações,
mas sabe-se que no Brasil ocorreu algo semelhante quando, por
exemplo, o adultério deixou de ser considerado crime (abolitio

466
criminis). Na verdade, cada cenário nacional tem um contexto.
Conforme Sozzo (2016), em toda América do Sul a mudança nas
propostas é mais moderada, isso seria um reflexo da maior
preocupação dos presidentes dos países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento em atender às classes econômicas mais baixas e
estas contém mais responsáveis por cometer delitos. O resultado
disso é que nos governos de esquerda notou-se maior taxa de
encarceramento. Em termos político-criminais, a esquerda abrange
mais a neocriminalização, bem como os crimes contra mulheres e de
discriminação. De acordo com Pierangeli (2011), a política governa os
povos e cabe à política criminal propor soluções para combater a
criminalidade.
Ainda que o punitivismo seja diferente do simbologismo,
ambas vertentes se relacionam, pois as legislações simbológicas
evitam que o punitivismo extrapole seus limites. É preciso que haja
uma resposta do Direito Penal às infrações praticadas pelos autores
de crimes, mas a punição deve ser moderada. Mas no caso do Direito
Penal do Inimigo é negado ao réu seus direitos e garantias
constitucionais desconsiderando o princípio de presunção da
inocência, segundo Bolfe (2014).
De acordo com Jakobs; Meliá (2007), os apenados não são
tratados como iguais, fato que se reforça as pesquisas do ISER, as
quais apontam que 40% dos prisioneiros no país estão em regime
provisório, muitos destes são na realidade inocentes, mas dentro do
cárcere não há distinção alguma e, sendo assim, estes são tratados
como os demais detentos.
No Brasil, a lei n° 12403/11 trouxe algumas mudanças a
respeito da prisão provisória, como a aceitação de fianças em alguns
casos e a adoção de medidas cautelares em detrimento de prisões.
Isso muito contribui em favor à redução da superlotação das celas e
da diminuição das condições degradantes as quais são impostas aos
467
réus. Sendo assim, contribui para tornar o Direito Penal mais humano
e solidário, tendo em vista que este é a última ratio no país.

A SUPERLOTAÇÃO DAS PENITENCIÁRIAS BRASILEIRAS


OCASIONADA PELA PRISÃO PROVISÓRIA

Ao longo dos anos, houve um considerável aumento da


população carcerária do Brasil. Em 2005, os presos totalizavam
361.402 (MJSP, 2005), em contrapartida, no ano de 2014 esse total
passou para 607.731 (DEPEN, 2014). Analisando as possíveis causas
desse aumento, percebe-se que as brechas nos procedimentos são os
fatores preponderantes para esse fim, pois tais procedimentos não
observam os requisitos legais, na maioria das vezes.
Dentre tantos fatores estudados, observa-se que
possivelmente a falta de empatia e compreensão das autoridades
para com o próximo é a origem das injustiças cometidas no sistema
prisional brasileiro, uma vez que os investigados são tratados de
modo desumano tanto no momento do flagrante de delito, quanto
nas instituições.
De acordo com o IDDD (2016), as abordagens policiais
costumam ser excessivas, pois 48,5% dos entrevistados alegaram
terem sofrido violências e, às vezes, os boletins de ocorrência
possuíam fatos narrados erroneamente. No entanto, é garantido pelo
artigo 155 do CPP que os documentos provindos de autoridade
policial não podem constar como provas de um crime. Além disso,
uma ação penal só pode ser instaurada se houver justa causa, sendo
assim é preciso existir materialidade e imprescindível que o réu esteja
acompanhado de um advogado. Conforme preceitua o Código de
Processo Penal:

Art. 155, do CPP: O juiz formará sua convicção pela livre


468
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não
podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas
as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Outro ponto de destaque da pesquisa do IDDD (2016) é que,


na realidade, as formalidades processuais da prisão (presença de
pessoas não suspeitas durante o reconhecimento, apresentação em
sala própria, não interferência policial e, em poucos casos, o direito ao
silêncio e à presença de advogado) não são cumpridas de fato, pois
apenas 22,3% dos presos entrevistados alegaram terem sido
informados sobre seus direitos de permanecerem calados e não
produzirem provas contra si mesmos. Ademais, 84,7% dos
entrevistados disseram que não leram os documentos por eles
assinados nas delegacias.
Na maioria das vezes, o preso desconhece o real motivo da
prisão. Por isso, a situação deveria sempre ser bem clara para que
haja justiça na condução dos fatos. Segundo o artigo 306, §2° do CPP,
é um direito do preso além de ler antes de assinar o documento
produzido na delegacia (ou se não souber ler alguém o fizer por ele,
no caso um advogado), obter uma cópia do mesmo assinada também
pela autoridade constando o motivo da prisão, o nome do condutor e
os nomes das testemunhas.

CPP - Decreto Lei nº 3.689 de 03 de Outubro de 1941


Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se
encontre serão comunicados imediatamente ao juiz
competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à
pessoa por ele indicada. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de
2011).
§ 2o No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante
469
recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o
motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

Os dados do DEPEN (2014) também corroboram a tese de que


a maioria dos presidiários no Brasil é composta por jovens e negros,
pois aponta que 56% da população prisional tem idade entre 15 e 29
anos e cerca de 67% dos presos no país são negros. Interessante que
apenas 51% dos brasileiros se declaram negros no IBGE daquele ano.
Não obstante, baseando-se no perfil sociodemográfico dos presídios
brasileiros, é verdadeira a tese de que um jovem negro da periferia
inocente perante um crime poderá ser considerado suspeito devido
ao racismo predominante no país.
Sendo assim, a superlotação das prisões deve-se,
principalmente, à indefensibilidade dos acusados junto ao sistema
opressor.

IMPLICAÇÕES DA LEI 12403/11 NA PRISÃO PROVISÓRIA

Conforme o Código Penal, a prisão provisória poderá ocorrer


em casos de crimes dolosos com pena privativa de liberdade máxima
de quatro anos, se o réu for reincidente, se houver violência
doméstica contra mulher, enfermo/deficiente, idoso ou criança.
Portanto, a prisão provisória uma medida cautelar que visa o
encarceramento do indiciado antes do trânsito em julgado e terá um
caráter garantidor da ordem e da segurança públicas quando os
indícios de autoria e as provas dos crimes forem plausíveis. É
importante ressaltar que o gênero prisão provisória se subdivide em
quatro espécies normativas: flagrante, temporária, domiciliar e
preventiva (CAVALCANTE, 2015).
Mas ao juiz cabe decidir entre dar a plena liberdade ao

470
indivíduo ou impor as medidas alternativas dispostas no artigo 319
do CPP85.

Art. 319, do CPP: São medidas cautelares diversas da prisão:


I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas
condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar
atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares
quando, por circunstancias relacionadas ao fato, deva o
indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para
evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada
quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o
indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a
permanência seja conveniente ou necessária para a
investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de
folga quando o investigado ou acusado tenha residência e
trabalho fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade
de natureza econômica ou financeira quando houver justo
receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de
crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os
peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26
do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o

85
CPP – Código de Processo Penal
471
comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do
seu andamento ou em caso de resistência injustificada a
ordem judicial;
IX - monitoração eletrônica.

Porém, a recente lei n° 12403/11 trouxe algumas mudanças


relativas à liberdade provisória em alguns casos bem como a
aceitação de fiança em crimes não graves e medidas cautelares
adotadas em substituição à prisão. Sendo assim, a nova lei cominou
na obrigatoriedade de haver justificativa e comprovação da
necessidade da prisão provisória.
Em favor do princípio da legalidade, que determina que “não
há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia
cominação legal” é que foi embasa da lei n° 12403/11. Esta lei
estipula as condições de atuação das medidas cautelares e em quais
casos estas podem ser substituídas por outras mais graves ou até
mesmo pela prisão preventiva. Além disso, a lei deixa claro em seu
artigo 283 as condições em que a prisão se aplica.

Lei 12403/2011. Art 283: Ninguém poderá ser preso senão em


flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente, em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da
investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária
ou prisão preventiva.
§ 1º As medidas cautelares previstas neste Título não se
aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou
alternativamente cominada pena privativa de liberdade.
§ 2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a
qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à
inviolabilidade do domicílio.
472
Em face das condições precárias e da superlotação do sistema
prisional brasileiro, busca-se evitar que as penas privativas de
liberdade sejam aplicadas a crimes de menor potencial ofensivo e a
lei 12403/11 contribuiu para esse fim. Afinal, a prisão é a última ratio
no país onde prepondera o princípio de presunção da inocência86
(CAVALCANTE, 2015).

AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA E MEDIDAS CAUTELARES


ALTERNATIVAS: UMA POSSÍVEL SOLUÇÃO

Em prol da garantia de legalidade da prisão em flagrante, da


rápida decisão sobre a liberdade ou prisão do réu e da análise de
irregularidades, tem sido perscrutada a efetividade das audiências de
custódia. Segundo dados do CNJ87(2017), no Brasil até junho de 2017
haviam sido realizadas 258.485 audiências de custódia, sendo que
desse total a porcentagem de casos que resultaram em liberdade foi
de 44,68% (115.497), enquanto os casos de prisão preventiva foram
de 55,32% (142.988). Dentre esses casos reportados, apenas 4,90%
(12.665) alegaram ter sofrido violência na prisão e 10,70% (27.669)
foram encaminhados para a assistência social.
Para Weber (2010), caberia a um “terceiro superior” comandar
o poder público bem como outrora os chefes das tribos organizavam
a sociedade primitiva. Mas para isso é necessário que esse terceiro
seja um ente não-interessado para garantir a imparcialidade das
decisões. Questiona-se, no entanto, se o juiz é de fato imparcial ou se

86
O princípio de presunção da inocência considera a garantia constitucional
do art 5º, inciso LVII, da Cf/88 em que “ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
87
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
473
permite que fatores externos influenciem suas decisões. Beccaria
(1999) apontou que ao magistrado cabe apenas aplicar a pena
prevista em lei (nulla poena sine praevia lege), não excedendo seus
limites.
Os juízes de outrora decidiam suas causas como inquisidores.
No entanto, ao longo dos anos a justiça se desenvolveu e a criação
do Ministério Público foi de suma importância para exercer, além de
suas devidas atribuições, o exercício de defesa do Estado. Sendo
assim, ao juíz tange agora somente exercer a ação penal, realizando
posteriomente a audiência de instrução e julgamento a fim de colher
oralmente as provas que confirmem sua concepção. Nesse aspecto é
importante observar que o acúmulo de funções do juíz mediante
tantas causas acarreta uma sobrecarga do mesmo. A leitura prévia
dos autos do inquérito auxilia o magistrado a conhecer os autos antes
do julgamento, além de evitar erros causados por omissão de
informação e de elaborar mais questões para os sujeitos de prova
(SCHÜNEMANN, 2012).

CONCLUSÃO
Cabe ao Estado manter as garantias constitucionais para os
indivíduos apenados, levando em consideração todos os princípios
penais, sendo o principal deles a dignidade da pessoa humana. Não é
possível adotar um sistema de punição exacerbado, como meramente
vingativo aos delitos. O Direito Penal simbólico não é eficiente, uma
vez que não se relaciona com o direito de fato. E o Direito Penal do
inimigo é um absurdo porque fere a dignidade, este tem uma função
apenas de mostrar eficácia, mas na realidade é inconstitucional, é
extremo e não pode ocorrer porque o Direito Penal perderia o caráter
de ultima ratio apontado no princípio da legalidade.
A lei 12403/11 muito contribuiu para o fim dos excessos

474
penais que tangem à prisão provisória, uma vez que impôs como
obrigatoriedade a justificativa e a comprovação de que de fato a
prisão provisória é um meio eficaz aos casos aos quais se aplica. O
apenado, apesar de ser considerado um inimigo da justiça, não deixa
de ser um ser humano dotado de seus direitos fundamentais e
provido de dignidade.
Portanto, reitera-se quão necessária é a observância
constitucional do processo penal, do direito penal e dos
procedimentos correlatos. Isso significa que, a partir da noção de
processo como garantia (BARROS, 2009), torna-se possível humanizar
as penas e os julgamentos, evitando um retrocesso que aplicava a
pena enquanto vingança privada.
Por isso, diante da proposição de que sejam devidamente aplicadas
as medidas cautelares, sejam seguidas as bases principiológicas, tal
como haja efetiva preocupação com as audiências de custódias,
entende-se ser um caminho a sanar parte de negligência atual do
sistema carcerário brasileiro. Para tanto, todos estes procedimentos
devem observar a base principiológica uníssona consolidada pelo
contraditório, ampla argumentação, fundamentação da decisão e o
terceiro imparcial, e precisa ser interpretada sem desconsiderar o
princípio constitucional da presunção de inocência e a garantia das
liberdades individuais dos sujeitos, para que não se defenda um
direito, em supressão a outros tantos, como as vidas das pessoas
presas provisoriamente.

475
REFERÊNCIAS
BARROS, Flaviane de Magalhães. [Re]forma do processo penal:
comentários críticos dos artigos modificados pelas Leis n. 11.690/08,
n. 11.719/08 e n. 11.900/09. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

BATISTA, Vera Malagutti. Introdução crítica à criminologia


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BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad. Flório de


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brasileira repressivismo e punitivismo como estratégias de contenção
da violência e da criminalidade. 2014. 46 f. Monografia de graduação
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476
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478
O DIREITO AO ACOMPANHANTE DA GESTANTE COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO DE SAÚDE BASEADA
NA DIGNIDADE HUMANA E SUAS LIMITAÇÕES FRENTE À
PANDEMIA OCASIONADA PELO SARS-COV-2
Kelly Christine Oliveira Mota de Andrade88
Raphael Furtado Carminate89
RESUMO

O objetivo do presente trabalho é trazer, de maneira breve, a


natureza do direito à saúde, bem como o seu conceito baseado na
tutela da dignidade da pessoa humana, e sua aplicação no contexto
obstétrico brasileiro no exercício do direito ao acompanhante. A
seguir, será trazida toda a normativa do direito ao acompanhante,
bem como as vantagens apontadas pelas evidências científicas
quando este direito é exercido. Serão apontadas as ocasiões
frequentes de desrespeito a esse direito e a falta de legitimidade
destas restrições, com base tanto na lei como nas normas infralegais
que a regulamentam. Por fim, será trazida a restrição ao exercício do
direito ao acompanhante no contexto da pandemia ocasionada pelo
SARS-COV-2, analisando-se sua legitimidade com base no que diz a
Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde brasileiro.
Conclui-se que não há motivo legítimo para que haja o impedimento
total do exercício do direito ao acompanhante garantido pela Lei
11.108/05, podendo haver algumas restrições conforme previsto pelo
Ministério da Saúde. Em todos os casos, no entanto, a mulher não
poderá deixar de ter o direito garantido.

88
Mestranda em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito
Previdenciário e do Trabalho pela PUC Minas. Bacharel em Direito pela
UFOP. Advogada.
89
Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Bacharel em Direito
pela UFOP. Professor de Direito Civil na UNIPAC. Advogado.
479
Palavras-chave: saúde, direito ao acompanhante, restrição, SARS-
COV-2, dignidade humana

INTRODUÇÃO

O conceito do que venha a ser saúde sofreu grandes


evoluções ao logo dos anos, culminando com a ideia atual de que o
instituto deve abarcar o bem-estar físico, psíquico e social da pessoa
humana, sendo vivida conforme aquilo que cada indivíduo entende
ser o melhor para si, conforme seus próprios desígnios subjetivos.
Trata-se, assim, da efetivação concreta do princípio da dignidade da
pessoa humana num contexto amplo do instituto da saúde.
A gestação e o parto, por sua vez, são momentos únicos na
vida de um casal, em especial na vida da mulher, e é vivido de
maneira pessoal e subjetiva por cada uma delas. Dentro deste
contexto, deve sempre ser assegurada a dignidade da parturiente,
como forma de efetivação de seu direito fundamental à saúde, em
seu conceito amplo, que leva em conta não apenas a ausência de
doenças, mas também o bem-estar físico, psíquico e social da pessoa
humana.
Apesar de todos esses conceitos, a partir do momento em que
a mulher concebe (ou que toma conhecimento desta concepção) até
o momento em que dá à luz seu filho, passa por várias situações
impostas socialmente e “clinicamente”, como algo estritamente
necessário ao bem-estar do feto que carrega, sem que, no entanto,
seja levado em consideração o seu conforto psíquico e social,
passando assim a ser vista como mero receptáculo de uma “vida”.
Em razão disso, várias medidas foram tomadas a fim de
garantir a dignidade e a autonomia da mulher em seu ciclo gravídico

480
puerperal ao longo dos anos, sendo a mais paradigmática delas a
edição da Lei Federal n° 11.108/2005, mais conhecida como Lei do
Acompanhante, que alterou a Lei 8.080/90 para garantir à parturiente
o direito à presença de um acompanhante de sua escolha durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
Mesmo diante do instrumento normativo editado, e de sua
regulamentação infralegal, sua aplicação ainda sofre muita resistência
por parte dos ambientes hospitalares, que impõem várias restrições
ao exercício do direito ao acompanhante, chegando-se inclusive a
negar o exercício do direito, sob fundamentos diversos. Atualmente,
tem-se usado a pandemia ocasionada pelo vírus SARS-COV-2 como
motivo idôneo para tal impedimento.
Este trabalho tem por objetivo trazer a situação ao debate, a
fim de discutir o exercício do direito ao acompanhante durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, seu conceito e
implicações. Pretende-se confrontar esse direito com os motivos de
restrição trazidos pelas instituições de saúde como forma de
relativizar e até mesmo impedir a presença do acompanhante
escolhido pela mulher e sua legitimidade frente ao conceito amplo de
saúde, como forma de tutela da dignidade humana. Em especial,
pretende-se discutir se a pandemia ocasionada pelo SARS-COV-2 é
motivo idôneo para o impedimento ou restrição do exercício ao
direito ao acompanhante.

A saúde como tutela da dignidade da pessoa humana e seu


conceito amplo

Ao longo da história brasileira, a saúde, como direito


garantido como forma de tutelar a dignidade da pessoa humana,
demorou para ser reconhecido. Antes de 1930, o Estado não possuía

481
qualquer organização acerca de um sistema de saúde pública,
atuando apenas no controle de doenças epidêmicas. Em 1930, com a
criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, é que houve uma
relativa democratização dos serviços de saúde, uma vez que o sistema
havia sido concebido apenas para beneficiar os trabalhadores formais,
que contribuíam para a então Previdência Social. (TEIXEIRA, 2010,
p.12 e 13).
A Constituição Federal de 1988 trouxe a saúde, pela primeira
vez, como um direito social, espécie de direito fundamental do
cidadão, ao dispor, no art. 6º, que:

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
(Brasil, 1988)

Apesar de estar prevista expressamente como um direito


social, este é uma espécie de direito fundamental, portanto, a saúde é
um direito fundamental. “Pelo fato de a Constituição tratar o direito à
saúde como direito social, conforme afirmado, está implícito ser ele
um direito fundamental, isto é, um direito fundamental social”.
(TEIXEIRA, 2010, p. 24)
Pode-se entender, portanto, que o conceito atual de saúde
abarca não apenas a efetivação de direitos sociais, mas de maneira
mais ampla, existe para tutelar a pessoa humana de forma integral,
garantindo-lhe sua total dignidade na efetivação de seus direitos
fundamentais.
A dignidade da pessoa humana está prevista no art. 1º, III de
nossa Carta Política como um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito Brasileiro, sendo um princípio norteador de
todo o ordenamento jurídico pátrio. Isso significa que os direitos
482
fundamentais previstos na Carta Política devem ser postos em prática
em sua máxima efetividade e amplitude, devendo satisfazer as
necessidades humanas individuais da maneira mais completa
possível. Com a saúde, direito fundamental social, não poderia ser
diferente.
Uma vez que a saúde passou a ser vista como uma tutela
inerente à dignidade da pessoa humana, era necessário garantir um
sistema democrático e de acesso universal a todos os cidadãos
brasileiros. Para que houvesse esse acesso, foi inserido na
Constituição o artigo 196, que prevê que a saúde é de “acesso
universal”, ou seja, a saúde passou a ser um direito garantido a todos,
sem depender de qualquer vínculo trabalhista, como era
anteriormente. Nesse dispositivo foi prevista também a criação do
Sistema Único do Saúde, o SUS.
A Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990 trouxe a estrutura e a
maneira como o SUS deve funcionar, determinando que sua atuação
deve seguir os princípios da universalidade, subsidiariedade e
municipalização. Prevê ainda em que consiste o dever do Estado na
preservação do direito à saúde, deixando claro que essa obrigação
não se consubstancia apenas no dever de curar doenças, mas
também na prevenção de moléstias, bem como na garantia de bem-
estar físico, mental e social. Vale a transcrição do dispositivo:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano,


devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu
pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na
formulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e
no estabelecimento de condições que assegurem acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação.

483
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família,
das empresas e da sociedade.
Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e
econômica do País, tendo a saúde como determinantes e
condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o
saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a
educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso
aos bens e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei nº
12.864, de 2013)
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações
que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a
garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar
físico, mental e social. (BRASIL, 1990)

Destaca-se que a referida Lei encontra-se em consonância


com o conceito de saúde trazido pela Organização Mundial de Saúde,
que prevê que “A saúde é um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
(OMS, 2006, p. 1)
Diante da nova sistemática trazida, tanto pela Constituição,
quanto pela Lei 8.080/1990, passa a existir uma nova acepção do
direito à saúde. Verifica-se que ter saúde é gozar de um estado de
não enfermidade, de um completo estado de bem-estar, o que abarca
sua acepção física, mental e social. É ter o princípio da dignidade
humana efetivado em todas as circunstâncias, como forma de
promover a pessoa em toda a sua individualidade, num amplo
conceito de saúde que não mais visa apenas a tratar doenças, mas
sim, promover a pessoa nos aspectos físico, psíquico e social.
Com isso, ao se utilizar de qualquer serviço de saúde em todo
o território nacional, seja pela iniciativa pública, seja pela iniciativa
privada, a pessoa terá direito a ter um serviço que não apenas

484
respeite, mas que promova a sua dignidade.
No contexto específico da atenção obstétrica brasileira, a
dignidade da mulher em seu ciclo gravídico puerperal também deve
ser promovida. Com vistas a essa efetivação, a Lei 8.080/90 foi
alterada pela Lei 11.108/05, trazendo o direito de a gestante ter um
acompanhante, de sua escolha, durante todo o atendimento
obstétrico relativo ao nascimento, isto é, durante todo o pré-parto,
parto e pós-parto.
Entende-se que o direito ao acompanhante é uma forma de
promover a dignidade da gestante no contexto do atendimento
obstétrico brasileiro, dentro do conceito amplo de saúde. Ao exercer
esse direito, conforme demonstram as evidências científicas, a mulher
se sentirá mais amparada no momento do nascimento, mais segura,
conseguirá lidar com a dor de uma forma mais positiva, e poderá
viver o momento de maneira mais satisfatória (SENADO FEDERAL,
2012). Trata-se, assim, da concretização do conceito de saúde em sua
forma ampla, de modo a tutelar a dignidade da mulher no contexto
do atendimento obstétrico.

O direito ao acompanhante e sua regulamentação


O direito ao acompanhante no momento do trabalho de
parto, parto e pós-parto imediato consubstancia-se, como já
explanado, como uma consequência direta do princípio da dignidade
humana, previsto na Constituição da República, em seu art. 1º, III, na
tutela do direito à saúde da mulher.
O Governo Federal brasileiro, reconhecendo a importância do
acompanhante e visando garantir a dignidade da mulher durante
todo o seu ciclo gravídico-puerperal (pré-natal, parto e pós-parto),
instituiu o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento
(PHPN), criado pelo Ministério da Saúde em 2000, pela Portaria

485
GM/MS nº. 569 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000). Em seu Anexo II, nos
Princípios Gerais e Condições para a Adequada Assistência ao Parto, a
Portaria n. 569/2000 do Ministério da Saúde assim dispõe:

A humanização da Assistência Obstétrica e Neonatal é


condição para o adequado acompanhamento do parto e
puerpério. Receber com dignidade a mulher e o recém-
nascido é uma obrigação das unidades. A adoção de práticas
humanizadas e seguras implica a organização das rotinas, dos
procedimentos e da estrutura física, bem como a
incorporação de condutas acolhedoras e não-
intervencionistas.
Para a adequada assistência à mulher e ao recém-nascido no
momento do parto, todas as Unidades Integrantes do SUS
têm como responsabilidades:
[...]
9. garantir a realização das seguintes atividades:
[...]
assegurar condições para que as parturientes tenham direito
a acompanhante durante a internação, desde que a estrutura
física assim permita; (...) (MINISTÉRIO DA SAUDE, 2000).

Verifica-se, portanto, que antes mesmo da edição da Lei do


Acompanhante, datada de 2005, o Brasil já tinha uma abordagem
normativa que reconhecia a importância do acompanhante para a
mulher durante o parto, numa perspectiva de preservação de sua
dignidade nesse momento tão importante, como forma de oferecer
um serviço de saúde completo, conforme as determinações da
Organização Mundial de Saúde.
Como já afirmado, o direito ao acompanhante foi trazido pela
legislação brasileira com o advento da Lei 11.108 de 7 de abril de
486
2005, que acrescentou o Capítulo VII à Lei 8.080 de 19 de setembro
de 1990, nos seguintes dizeres:

CAPÍTULO VII
DO SUBSISTEMA DE ACOMPANHAMENTO DURANTE O
TRABALHO DE PARTO, PARTO E PÓS-PARTO IMEDIATO
Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde -
SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a
permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um)
acompanhante durante todo o período de trabalho de parto,
parto e pós-parto imediato.
§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será
indicado pela parturiente.
§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos
direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da
lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder
Executivo.
Art. 19-L. (VETADO)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
(BRASIL, 2005)

Num primeiro momento, pode-se questionar o texto


escolhido, pois apesar de trazer a obrigação de se respeitar o direito
ao acompanhante de forma expressa, o legislador diz também que
são obrigados a respeitar o referido direito “Os serviços de saúde do
Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou conveniada”,
conforme previsto caput do art. 19-J. Em uma leitura desatenta, o
texto pode levar o operador a entender que a obrigatoriedade
existiria apenas para os serviços de saúde do SUS.
Entretanto, por uma interpretação lógico-sistemática, percebe-
487
se que esse raciocínio é equivocado. Isso porque a Lei 11.108/05 foi
editada para alterar a Lei 8.080/1990 que, por sua vez, é clara, em seu
art. 1º, em dizer que ela regula ações e serviços de saúde prestados
em todo o território nacional, seja por pessoas naturais ou jurídicas,
de direito público ou privado. Desse modo, pode-se afirmar com
tranquilidade que o direito ao acompanhante deve ser respeitado por
toda e qualquer instituição de saúde, pública ou privada, por rede
própria ou conveniada, em todo o território nacional.
Em dezembro de 2005, a fim de regulamentar o §2º do novel
artigo 19-J da Lei 8.08090, o Ministério da Saúde publicou a Portaria
2.418, trazendo o prazo para que as instituições hospitalares se
adequassem à referida lei, bem como definiu que o período
correspondente ao pós-parto imediato é aquele compreendido em
até dez dias após o parto (exceto em caso de alguma intercorrência
médica). A Portaria trouxe também a autorização do gestor para que
cobrasse as despesas com o acompanhante conforme tabela do SUS
(SENADO FEDERAL, 2012).
Em 2010, foi editada a Resolução Normativa n° 211 da
Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), que previu como
despesa do plano de saúde aquelas feitas pelo acompanhante da
mulher durante o acompanhamento no pré-parto, parto e pós-parto.
Atualmente, o assunto é tratado pela Resolução 428 da ANS, de 07 de
novembro de 2017, que em seu art. 23, prevê:

Do Plano Hospitalar com Obstetrícia


Art. 23. O Plano Hospitalar com Obstetrícia compreende toda
a cobertura definida no art. 22, acrescida dos procedimentos
relativos ao pré-natal, da assistência ao parto e puerpério,
observadas as seguintes exigências:
I – cobertura das despesas, incluindo paramentação,
acomodação e alimentação, relativas ao acompanhante
indicado pela mulher durante:
488
a) pré-parto;
b) parto; e
c) pós–parto imediato, entendido como o período que
abrange 10 (dez) dias após o parto, salvo intercorrências, a
critério médico; (AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
COMPLEMENTAR, 2017).
Assim, em cumprimento ao que dispõe a Lei 11.108/05 e sua
regulamentação, deverá ser respeitado o direito da gestante na
escolha de seu acompanhante em qualquer instituição de saúde em
todo o território nacional. Além disso, as despesas a ele relacionadas
deverão ser cobertas pelo SUS, caso a mulher esteja sendo atendida
por este sistema; ou por seu respectivo plano de saúde, caso a
mesma o esteja utilizando no momento do parto.
Várias são as pesquisas desenvolvidas acerca das vantagens
existentes quando a mulher é atendida nas instituições hospitalares
com um acompanhante de sua confiança no momento do parto. Em
um estudo desenvolvido pela Universidade Federal do Ceará, em
2013, foram ouvidas 20 mulheres, entre 18 e 35 anos, que se
internaram em hospital público de nível secundário, no município de
Fortaleza, Ceará. De acordo com o estudo, todas essas mulheres
tiveram o direito ao acompanhante respeitado pela instituição, sendo
que 4 delas não exerceram tal direito porque não havia ninguém que
pudesse lhes acompanhar (DODOU et al., 2013).
Nos resultados da pesquisa, as mulheres relataram que o
acompanhante agiu como amenizador do sentimento de solidão e
sofrimento, tiveram atuação durante o trabalho de parto (com
massagens, ajudando na realização de exercícios, ou simplesmente
segurando a mão da parturiente) e ainda ajudaram no sentimento de
confiança e segurança das gestantes.
Com isso, o estudo conclui que:

489
A importância da participação do acompanhante no parto e
nascimento está relacionada à minimização do sentimento de
solidão e da dor nestes momentos. A presença de alguém
conhecido e as atitudes adotadas por essas pessoas
proporcionaram às mulheres o conforto e a calma que
precisavam, sentindo-se mais confiantes e seguras. (DODOU
et al., 2013, p. 268)

Em outros estudos, ficou provado que a presença de um


acompanhante com a mulher no momento do parto

(...) é a melhor “tecnologia” disponível para um parto bem-


sucedido: mulheres que tiveram suporte emocional contínuo
durante o trabalho de parto e no parto, tiveram menor
probabilidade de receber analgesia, de ter parto operatório, e
relataram maior satisfação com a experiência do parto. Esse
suporte emocional estava associado com benefícios maiores
quando quem o provia não era membro da equipe hospitalar
e quando era disponibilizado desde o início do trabalho de
parto (Hodnett et al., 2007). Dessas evidências deriva a Lei
11.108/2005, denominada Lei do Acompanhante (Brasil,
2005). (SENADO FEDERAL, 2012, p. 16)

Assim, o direito ao acompanhante durante o trabalho de


parto, parto e pós-parto imediato, quando exercido pela mulher, traz
benefícios enormes parra o binômio mãe e bebê, concretizando a
dignidade de ambos no momento do nascimento. Além disso,
verifica-se que a edição da Lei 11.108/05 põe em prática a tutela do
direito à saúde, como forma de trazer bem-estar físico, psíquico e
emocional para a mulher no momento do nascimento, em
consonância com a mais moderna abordagem da obstetrícia mundial.
A Lei do Acompanhante, na verdade, foi uma verdadeira
(r)evolução na assistência ao nascimento no país, pois representa uma

490
primeira iniciativa de lei formal que privilegia o bem estar da
parturiente, com base em estudos científicos. Pode-se dizer, inclusive,
que este é o único instrumento legal humanizador do parto no Brasil,
visto que ainda não temos uma lei que tipifique e puna os atos de
violência contra a mulher no atendimento obstétrico brasileiro.
No entanto, mesmo com a edição da lei, ainda nos dias de
hoje a mulher acaba passando por várias modalidades de
desrespeitos no momento da gestação e especialmente no momento
do nascimento, ocasião em que lhes são perpetradas as mais variadas
violências, incluindo-se o cerceamento ao exercício do direito ao
acompanhante.
Diante desse cenário desumano, bem como de inúmeras
denúncias nos órgãos fiscalizadores de saúde, foi cunhada a
expressão “violência obstétrica” que, segundo a Defensoria Pública do
Estado de São Paulo, conceitua-se como:

A violência obstétrica existe e caracteriza-se pela


apropriação do corpo e processos reprodutivos das
mulheres pelos profissionais de saúde, através do
tratamento desumanizado, abuso da medicalização e
patologização dos processos naturais, causando a perda
da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre
seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na
qualidade de vida das mulheres (DEFENSORIA PÚBLICA DO
ESTADO DE SÃO PAULO, 2013, p.1)

É obvio que se a mulher tem direito a um acompanhante


durante todo o período em que se encontra internada, e esse direito
não é respeitado, estará ela sujeita a um atendimento desumanizado,
com o comprometimento de sua autonomia e dignidade. Trata-se da
mais perfeita subsunção ao conceito de violência obstétrica o
491
desrespeito ao exercício do direito ao acompanhante durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto. Até mesmo porque, é
justamente esse acompanhante quem irá fiscalizar a atuação dos
profissionais da saúde, na busca por um atendimento humanizado e
adequado à parturiente. É ele quem irá garantir que ela seja atendida
com dignidade.
Em 2012, foi apresentado um dossiê elaborado pela Rede
Parto do Princípio para a Comissão Mista Parlamentar de Inquérito da
Violência Contra as Mulheres, onde são relatados inúmeros casos de
violência obstétrica. O documento trouxe relatos sensíveis acerca do
atendimento de várias mulheres no momento do parto nas redes
pública e privada de todo o território nacional. Estes atendimentos
apresentam uma característica em comum, qual seja: o desrespeito à
dignidade e autonomia da mulher. Verifica-se que apesar do advento
da Lei do Acompanhante, as instituições hospitalares ainda insistem
em desrespeitá-la, utilizando-se de diversos argumentos, que não
possuem a menor fundamentação legal ou científica, o que veremos
mais detalhadamente no capítulo a seguir.
De acordo com o Dossiê Parirás com Dor, o descumprimento
da lei se dá justamente porque não há previsão de qualquer punição
àquele que a viola, vez que ela “não possui meios de estabelecer
punições a quem impedir ou não fizer cumprir a mesma, por falta de
fundamentos no corpo do Código Penal” (SENADO FEDERAL, 2012).
Observa-se que na redação original da Lei 11.108/05, aprovada pelo
Congresso Nacional, havia a previsão do acréscimo do art. 19-L à Lei
8.080/90, que previa que:

O descumprimento do disposto no art. 19-J e em seu


regulamento constitui crime de responsabilidade e sujeita o
infrator diretamente responsável às penalidades previstas na
legislação. (BRASIL, 2005)

492
Ocorre que este artigo foi vetado pelo Presidente da
República, ao argumento de que os atos ali descritos não poderiam
ser tipificados como crime de responsabilidade, conforme prevê o art.
85 da Constituição; e também porque tal previsão feriria o princípio
da reserva legal. (SENADO FEDERAL, 2012). Disso decorre que o Brasil
se encontra com uma lacuna legal a respeito da violência obstétrica,
uma vez que não há lei federal tipificando o ato e prevendo sanções
para quem o comete, o que leva as instituições hospitalares a
continuar desrespeitando a Lei do Acompanhante.
Sobre o assunto da tipificação da violência obstétrica, existe
um Projeto de Lei tramitando atualmente na Câmara dos Deputados,
de iniciativa do Deputado Federal Jean Wyllys, que trata da
assistência à mulher durante o ciclo gravídico-puerperal. Trata-se do
PL 7.633/2014, que se encontra apensado a vários outros projetos de
lei e até hoje não foi devidamente colocado em plenário para
votação.

As limitações e impedimentos trazidos pelas instituições


hospitalares ao exercício do direito ao acompanhante e sua
legitimidade

Diante do quadro avassalador de infrações às normas da Lei


11.108/05, foram desenvolvidos vários estudos acerca da realidade
vivida pelas mulheres quando de seu atendimento nas instituições de
saúde do país e o exercício do direito ao acompanhante.
A situação é extremamente calamitosa, visto que a mulher, no
momento de seu atendimento pela equipe hospitalar, vive emoções
mistas, entre a alegria da chegada de seu filho, e o medo de ser
cuidada pela equipe de saúde. Caso ela possa exercer o seu direito a
escolher seu acompanhante, no entanto, não há dúvidas de que
poderá passar por esse momento mais tranquila, e por que não, de
493
maneira prazerosa.
Conforme já relatado, no entanto, a realidade vivida pelas
parturientes no interior dos vários hospitais existentes no território
nacional ainda é de desrespeito à sua dignidade e de flagrante
humilhação. Verifica-se que apesar de o direito ao acompanhante ser
um dos poucos garantidos em nossa legislação, o mesmo é
amplamente desrespeitado.
Vários são os motivos alegados pelas instituições como
restrição e até mesmo impedimento do ingresso do acompanhante
em suas dependências:

É bastante frequente, em instituições privadas, o


estabelecimento de protocolos superiores à legislação
vigente. Já algumas instituições públicas ou conveniadas ao
SUS alegam desconhecimento do dispositivo, ou atribuem ao
setor privado o direito ao acompanhante como uma espécie
de “privilégio”, infringindo, portanto, os dispostos da Lei nº
8.080/90. Para fins de aplicação da Lei Federal 11.108/05 que
garante o direito ao acompanhante no pré-parto, parto e
pós-parto imediato, o pós-parto imediato é considerado
como os primeiros 10 dias após o parto, de acordo com a
Portaria do Ministério da Saúde nº 2.418/05. (SENADO
FEDERAL, 2012, p. 65)

Existem algumas modalidades de desrespeito à Lei do


Acompanhante. Em algumas ocasiões, houve restrições em relação à
escolha do acompanhante, exigindo-se que fosse, necessariamente,
uma mulher, o pai ou, ainda, que fosse profissional da área médica.
Esta é uma violação direta da lei, pois ela própria garante que o
acompanhante deverá ser livremente escolhido pela gestante, seja
homem, mulher, profissional da saúde ou não. Desse modo, não há
nenhuma legitimidade nessa restrição.
Verificou-se também que houve a restrição com relação ao
494
tempo de permanência do acompanhante, exigindo-se que o mesmo
permanecesse em companhia da parturiente apenas durante o pré-
parto, ou durante o parto, ou somente após o parto. Houve ocasiões,
ainda, em que foi permitido ao acompanhante permanecer em
companhia da parturiente somente no horário de visitas, ou seja,
durante todo o atendimento, a mulher permaneceu desacompanhada
de alguém de sua confiança. Esta é mais uma transgressão, pois não
há margem para dúvidas: a lei fala em pré-parto, parto e pós-parto,
sendo este último considerado como até dez dias após o nascimento,
definição trazida pela Portaria 2.418 do Ministério da Saúde.
Observou-se ainda a restrição ao exercício do direito ao
acompanhante conforme o vínculo da instituição hospitalar no
atendimento da gestante fosse público ou privado. Verificou-se que
vários foram os motivos alegados: “esse direito só vale para o SUS, só
pode na ala privada, só para quem paga quarto, é um direito só para
quem tem plano de quarto privativo, não pode ficar acompanhante
para quem tem acomodação de enfermaria ou quarto coletivo, só
para o particular.” (SENADO FEDERAL, 2012, p. 66).
Insta salientar, neste ponto, que há um verdadeiro descaso
para com o cumprimento da lei, já que foram encontrados
argumentos contraditórios entre si para negar o exercício ao direito
ao acompanhante: foi negado porque o atendimento era feito pelo
SUS; foi negado porque o atendimento era feito por meio de plano
da saúde; foi negado porque a pessoa estava na enfermaria; foi
negado para quem estava em quarto individual. Em linhas gerais,
verifica-se, pelo estudo, que só poderia gozar do exercício do direito
ao acompanhante a mulher que tivesse recursos para pagar
atendimento personalizado, em quarto individual, o que, sabemos,
não é a realidade da maioria das mulheres em nosso país. Com isso,
carecem de legitimidade todas as restrições impostas.
Ademais, não pairam dúvidas de que a Lei do Acompanhante
495
deve ser aplicada em qualquer instituição que preste serviços de
saúde, seja ela pública ou privada, em rede própria ou conveniada,
por interpretação lógico-sistemática do art. 1º da Lei 8.080/90.
Verificou-se, em algumas ocasiões, que o acompanhante pôde
permanecer com a parturiente apenas durante o pré-parto e o parto,
mas não lhe foi permitido permanecer durante o período de pós-
parto imediato, compreendido como os primeiros dez dias após o
parto, conforme previsto na Portaria 2.418/05 do Ministério da Saúde;
ou, ainda, foi cobrada uma taxa para que ele pudesse acompanhar o
nascimento, como forma de financiar sua paramentação para o
momento.

Ainda assim, é muito comum a prática de cobrança de taxa


para a entrada e permanência do acompanhante no pré-
parto, parto e pós-parto. Em algumas maternidades havia
cobrança da ‘taxa de paramentação’ que variava de 20 a 300
reais, muitas vezes sendo cobrada à vista no momento da
internação. Este é um caso típico de violência obstétrica de
caráter institucional, psicológico e material. (SENADO
FEDERAL, 2012, p. 73)

Este assunto também já foi abordado no Capítulo 2, onde se


demonstrou que tanto a Portaria 2.418/05 do Ministério da Saúde,
quanto a Resolução Normativa 428 da ANS preveem quem será
responsável pelo pagamento das despesas do acompanhante,
incluindo diária, alimentação e paramentação. Padece de
legitimidade, também, esta limitação.
Houve ainda o impedimento do exercício do direito ao
acompanhante pelo tipo de parto, ora argumentando-se que só seria
possível sua presença se fosse um parto normal, ora argumentando-
se que só seria possível se fosse uma cesariana. Verifica-se que
algumas instituições fundamentaram a restrição sob o fundamento de

496
que a Lei 11.108/05 não cita as expressões “bloco cirúrgico” ou
“cesariana”, argumentando que esta última não é modalidade de
parto, e sim, cirurgia, apesar de a classificação oficial da cesariana
(CID-10), adotada pelo Brasil, ser um subtipo de parto. (SENADO
FEDERAL, 2012, p. 67).
Mais uma vez, o argumento cai por terra, já que

Existem normatizações para o controle de infecção hospitalar


que devem ser aplicadas a todos os profissionais que entram
no bloco cirúrgico e inclusive aos acompanhantes, conforme a
RDC nº 38/2008 da ANVISA. Várias maternidades já acolhem
as mulheres com seus acompanhantes inclusive dentro dos
blocos cirúrgicos adotando práticas como paramentação
(vestes higienizadas, touca, máscara), movimentação restrita
dentro da sala. (SENADO FEDERAL, 2012, p. 68)

No ano de 2020, foi adicionada outra limitação ao exercício do


direito ao acompanhante por parte de algumas instituições
hospitalares: a pandemia ocasionada pelo SARS-COV-2. Alguns
veículos de informação90 trouxeram a notícia de que as mulheres têm
tido seu direito ao acompanhante cerceado, devido ao risco de
contaminação pelo referido vírus.
Tendo em vista que o assunto já rendeu algumas decisões
judiciais, iremos fazer a análise em capítulo separado.

90
Matéria publicada em 14 de maio de 2020, pela Revista Badaró. Disponível
para consulta em: https://revistabadaro.com.br/2020/05/14/perigos-da-
violencia-obstetrica-aumentam-na-pandemia/. O fato também foi noticiado
pelo site “Consultor Jurídico”, ao noticiar o ajuizamento de ação civil coletiva,
pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para garantir o exercício do
direito ao acompanhante. A notícia está disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-jun-04/hospital-permitir-acompanhante-
partos-durante-epidemia.
497
O direito ao acompanhante e sua limitação pela pandemia
ocasionada pelo SARS-COV-2

No final de 2019 foi identificado, em Wuhan, na China, um


vírus que vem ocasionando uma doença perigosa, denominada pela
Organização Mundial de Saúde de Covid-19 e que devido à sua
rápida evolução em alguns casos, vem ocasionando óbitos em
números assustadores91.
Em pesquisa feita no site covid.saude.gov.br, veículo oficial de
comunicação sobre a pandemia do Covid-19 no Brasil, verifica-se que
até o dia 03 de abril de 2021, o país contava com um acumulado de
12.910.082 casos da doença, ostentando o assustador número de
328.206 óbitos em sua decorrência92.
Diante dos números, as maternidades e hospitais brasileiros,
no ímpeto de conter a disseminação do vírus e tentar conter a
pandemia, começaram a editar atos administrativos restringindo ou
impedindo, de antemão, o exercício do direito ao acompanhante às
parturientes.
Em 18 de março de 2020, diante do quadro que se formou, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) manifestou-se acerca do tema
em seu sítio eletrônico, esclarecendo as dúvidas sobre o tema
gestação e Covid-19. Por meio de perguntas e respostas, restou claro
que a mulher não perde o direito a ter o acompanhante durante o

91
De acordo com matéria publicada no site g1.globo.com em 03/04/2020,
disponível para consulta em
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/03/da-
descoberta-de-uma-nova-doenca-ate-a-pandemia-a-evolucao-da-covid-19-
registrada-nos-tuites-da-oms.ghtml.
92
Certamente, no momento da publicação deste artigo, os números já terão
se alterado devido ao rápido avanço da doença. Para maiores
esclarecimentos sobre os números, consulte: https://covid.saude.gov.br/.
498
parto, mesmo aquelas que estejam comprovadamente infectadas,
cabendo aos profissionais de saúde a devida prevenção a fim de
reduzir os riscos de infecção (OMS, 2020).
Não há dúvidas de que os números são alarmantes. Diante
dessas informações, as maternidades, no intuito de tentar conter a
disseminação do vírus, têm restringido ou até impedido as gestantes
de exercerem o seu direito ao acompanhante no momento do pré-
parto, parto e pós-parto. O que se questiona é se esta limitação é
legítima, ou padece de justificativa plausível, como as limitações
trazidas no capítulo anterior.
Conforme já mencionado, o direito ao acompanhante está
intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, neste caso, da
mulher gestante, que, conforme mostram as evidências científicas,
gozam de inúmeros benefícios pelo exercício do direito ao
acompanhante. Trata-se da concretização do conceito de saúde
hodiernamente preconizado pela OMS e pela Lei 8.080/90, vez que
um atendimento humanizado, que garanta bem-estar físico,
psicológico e social é preconizado pelas diretrizes previstas pelo
Ministério da Saúde, e também pela própria Constituição.
Com isso, entende-se que o cerceamento a esse direito, ainda
que em tempos de pandemia, não se mostra razoável, sendo até
contraditório ao que preconiza a própria OMS e o Ministério da
Saúde, que já se manifestaram sobre o assunto, deixando claro que o
direito não deverá sofrer restrições, desde que atendidos os requisitos
ali previstos.
Com vistas a resguardar o direito internacionalmente
reconhecido, mesmo em tempos de pandemia por um vírus com alta
carga de transmissibilidade, o Ministério da Saúde, por meio da
Coordenação de Saúde das Mulheres, editou a da Nota Técnica Nº
9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, trazendo recomendações
para trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia Covid-
499
19, contendo informações para os profissionais da saúde no cuidado
de gestantes e recém-nascidos.
Na Nota, o Ministério da Saúde prevê que mulheres
assintomáticas não suspeitas ou que tenham testado negativo para o
vírus SARS-COV-2, deverão ter seus acompanhantes testados, a fim
de se excluir a possibilidade de infecção. Caso a gestante esteja
infectada ou tenha suspeita de infecção, o seu acompanhante deverá
ser admitido, desde que seja uma pessoa de seu convívio diário, uma
vez que o convívio diário com ela “não aumentará suas chances de
contaminação” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 1-2). Em ambos os
casos, deverá a equipe hospitalar tomar todas as precauções
necessárias para que não ocorra a infecção da gestante e do
acompanhante no primeiro caso; e para que não ocorra a infecção da
própria equipe no segundo caso.
Interpretando-se a Nota Técnica, pode-se pensar em duas
restrições legítimas ao exercício do direito ao acompanhante. A
primeira delas seria no caso de gestante assintomática ou não
suspeita, ou que tenha testado negativo para o vírus, mas que seu
acompanhante, que não seja de seu convívio diário, teste positivo.
Neste caso, a fim de proteger a gestante e o recém-nascido, deverá
ser assegurado à mulher que escolha outra pessoa para lhe
acompanhar, desde que este novo acompanhante teste negativo para
o vírus.
De outra monta, caso a mulher seja suspeita de ter o vírus, ou
teste positivo, o acompanhante por ela escolhido deverá ser de seu
convívio diário. Caso não seja, ela deverá escolher alguém de seu
convívio diário, levando em consideração que muito provavelmente
essa pessoa também será portadora do vírus, já que convive com a
gestante.
Importante mencionar que, em todos os casos, “O surgimento
de sintomas pelo acompanhante em qualquer momento do trabalho
500
de parto e parto implicará no seu afastamento com orientação a
buscar atendimento em local adequado”, conforme previsto no item
2.3.4 da Nota Técnica.
Verifica-se haver apenas uma restrição não legítima ao
exercício do direito ao acompanhante no documento: no item
2.16.1.1 há a previsão de haver acompanhante durante o pós-parto
apenas quando houver “instabilidade clínica da mulher ou condições
específicas do RN, ou ainda menores de idade”. (MINISTÉRIO DA
SAUDE, 2020, p. 3). Inicialmente, é importante mencionar que esta
última limitação fere a literalidade da Lei 11.108/05, que garante o
exercício do direito ao acompanhante durante o pós-parto,
compreendido como os dez dias que sucedem o nascimento.
Por outro lado, é importante pensar que se o acompanhante
permaneceu junto da parturiente durante todo o pré-parto e parto,
não seria razoável deixá-la sozinha durante o período do pós-parto,
vez que o fluxo da chegada do acompanhante ao ambiente hospitalar
já aconteceu, e que muitas vezes, este é um momento muito sensível
para a puérpera. O que se mostraria razoável seria, no máximo,
impedir a troca do acompanhante, como forma de controle de fluxo
de pessoas que tenham acesso ao ambiente hospitalar. Desse modo,
mostra-se ilegal e ilegítima esta restrição, devendo o acompanhante
permanecer junto à mulher até o dia da alta, sendo todos “orientados
sobre as medidas para redução da propagação do vírus”.
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 3).
Levando em consideração a dignidade da gestante em seu
atendimento obstétrico, dentro do conceito amplo de saúde, bem
como as recomendações trazidas pela Nota Técnica 09/2020, foi
proferida decisão liminar favorável a uma gestante, em mandado de
segurança93 ajuizado no Estado do Paraná, contra ato assinado pelo

93
Processo nº 0011367-06.2020.8.16.0129
501
Diretor Geral do hospital onde pretendia ter seu filho, que previu que:
Também está vetada a permanência de acompanhantes para
gestantes e puérperas. A permanência de acompanhante ocorrerá
somente em casos extremamente necessários, sob recomendação da
equipe de saúde” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ,
2020, p. 1-2).
Em caso análogo94, outra gestante, já em trabalho de parto,
também no Estado do Paraná, teve seu direito ao acompanhante
negado pelo Diretor Geral do Hospital Universitário do Oeste do
Paraná, também sob o fundamento de enfrentamento à pandemia
ocasionada pelo Covid-19. A mesma impetrou mandado de
segurança contra o ato, onde foi obtida a liminar favorável, sob o
fundamento de que a Lei do 11.10805 deve ser cumprida mesmo com
a pandemia, diante de todos os benefícios trazidos à mulher pela
presença do acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-
parto. A decisão também levou em conta as manifestações já
referidas da OMS e do Ministério da Saúde.
De outra monta, várias instituições já se mobilizam para
garantir o direito das gestantes ao acompanhante durante o
nascimento de seus filhos, como a Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro, que expediu recomendações neste sentido aos 92
Municípios do Estado, conforme noticiado em seu sítio eletrônico.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por sua vez,
ajuizou ação civil pública diante das várias denúncias de mulheres que
estavam sendo impedidas de exercerem seu direito ao acompanhante
no momento do nascimento de seus filhos. Em consulta ao sítio
eletrônico da instituição, verificou-se que foi concedida decisão
liminar no processo, ocasião em que o magistrado sustentou que: “os
cuidados com a Covid-19 não devem afastar os postulados da

94
Processo nº 0014883-67.2020.8.16.0021
502
dignidade da pessoa humana”. (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO
DE SÃO PAULO, 2020).
A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais também já
expediu recomendação conjunta, orientando o Município de Belo
Horizonte a respeitar o exercício do direito ao acompanhante pelas
gestantes, recomendando também que fossem suspensas as
internações para cesarianas eletivas na rede privada, já que tais
cirurgias trazem sobrecarga aos serviços de saúde no município.
Diante de todo o estudo ora explanado, pode-se concluir que
não há qualquer argumento legítimo a respaldar o total impedimento
do exercício do direito ao acompanhante pela mulher durante o
período de pré-parto, parto e pós-parto, ainda que seja em função da
pandemia ocasionada pelo SARS-COV-2. Trata-se de direito que
garante dignidade à mulher, como forma de vivenciar seu direito à
saúde dentro de seu conceito amplo, ou seja, nos aspectos físico,
psíquico e social, como determinam a OMS, a Constituição Federal e a
Lei 8.080/1990.
Legítimas serão algumas restrições, conforme a gestante e seu
acompanhante testem positivo ou negativo para o vírus SARS-COV-2;
ou conforme o acompanhante seja ou não do convívio diário da
parturiente. Em ambos os casos, o exercício do direito não deverá ser
impedido, e sim restringido, garantindo-se à mulher o direito de
escolher outra pessoa para lhe acompanhar, inclusive durante o pós-
parto, desde que cumpridos os requisitos previstos na Nota Técnica
09/2020.

CONCLUSÕES

A saúde é um direito social, espécie de direito fundamental, e


como tal, existe para tutelar a pessoa humana de forma integral,

503
garantindo-lhe sua total dignidade. Uma vez que a saúde passou a
ser vista como uma tutela inerente à dignidade da pessoa humana
pela Constituição de 1988, passou a ser necessário garantir um
sistema democrático e de acesso universal a todos, o que foi feito
pela introdução do art. 196 à Carta Magna, bem como pela edição da
Lei 8.080/90, que introduziram e sistematizaram o SUS em todo o
território nacional.
O conceito de saúde, de acordo com a Lei 8.080/90, veio em
consonância com as recomendações trazidas pela a OMS, segundo a
qual ter saúde é, além de gozar de um estado de ausência de
doenças, também usufruir de bem-estar físico, psicológico e social.
O direito ao acompanhante é uma forma de concretização da
dignidade da mulher no atendimento obstétrico brasileiro. Conforme
demonstram as evidências científicas, estar acompanhada por alguém
de sua confiança no momento do nascimento, proporciona à mulher
amparo e segurança no momento do nascimento, diminuição da dor,
além da vivência do momento de forma mais positiva e satisfatória.
Tudo isso em atendimento ao conceito amplo de saúde previsto pela
Lei 8.080/90.
O direito ao acompanhante está previsto na Lei 11.108/05, que
alterou a Lei 8.080/90 e lhe acrescentou o art. 19-J, prevendo a
obrigatoriedade das instituições prestadoras de serviço de saúde, em
todo o território nacional, públicas ou privadas, por rede própria ou
conveniada, de respeitarem o direito da mulher de escolher o seu
acompanhante no momento do pré-parto, parto e pós-parto.
O art. 19-J da Lei 8.080/90 foi regulamentado pela Portaria
2.418 do Ministério da Saúde, que trouxe o prazo para que as
instituições hospitalares se adequassem à referida lei, definiu que o
período correspondente ao pós-parto imediato é aquele
compreendido em até dez dias após o parto (exceto em caso de
alguma intercorrência médica) e ainda autorizou o gestor a cobrar as
504
despesas do acompanhante conforme tabela do SUS. Isso foi
completado pela Resolução nº 428/2017 da ANS, que previu que as
despesas do acompanhante da parturiente atendida por planos de
saúde deverão ser cobertas por este último.
Apesar de toda a normativa, e dos benefícios que os estudos
comprovam que os acompanhantes trazem à mulher no momento do
nascimento, várias são as ocasiões em que esse direito é
desrespeitado. Verificou-se que várias são as ocasiões e as
modalidades de desrespeito ao exercício do direito ao acompanhante
e que nenhuma dessas limitações é legítima, uma vez que para todos
estes “empecilhos”, já há respostas, seja na própria Lei 11.108/05, seja
na normativa infralegal.
Em 2020, diante da pandemia ocasionada pelo vírus SARS-
COV-2, as instituições hospitalares têm impedido totalmente o acesso
da parturiente ao exercício do direito ao acompanhante, sob o
argumento de tentar minimizar a expansão da pandemia.
Ocorre que o direito ao acompanhante é consectário do
princípio da dignidade humana, e só deve sofrer restrições que sejam
legítimas. Com isso, deve-se seguir as recomendações da OMS, que já
se manifestou publicamente pela permanência do exercício do direito
ao acompanhante; e do próprio Ministério da Saúde que, por meio da
edição da Nota Técnica 7/2020, previu que o direito ao
acompanhante não poderá ser impedido, devendo sofrer limitações
apenas na pessoa escolhida pela gestante, caso aquela esteja ou não
infectada pelo vírus causador da Covid-19; ou caso a pessoa seja ou
não de convívio diário da parturiente. Em todos os casos, deverá a
equipe hospitalar tomar todas as precauções necessárias para
diminuir os riscos de infecção. A restrição trazida para o momento do
pós-parto, no entanto, mostra-se ilegal e ilegítima e não deve ser
implementada.
Conclui-se, portanto, que não há qualquer argumento legítimo
505
a respaldar o total impedimento do exercício do direito ao
acompanhante pela mulher durante o período de pré-parto, parto e
pós-parto, ainda que seja em função da pandemia ocasionada pelo
SARS-COV-2. Trata-se de direito que garante dignidade à mulher,
como forma de vivenciar seu direito à saúde dentro de seu conceito
amplo, conforme preconizado pela OMS, a Constituição Federal e a
Lei 8.080/1990.

506
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511
O DEVER DE MITIGAR O SOFRIMENTO CAUSADO AOS
ANIMAIS EM EXPERIMENTOS CIENTÍFICOS
Antônio César Pereira Bento95
René Dentz96
RESUMO
O presente estudo tem por eixo central a utilização de animais para
pesquisas científicas. A utilização de animais para fins acadêmicos seja
pela dissecação ou vivissecção em universidades, bem como seu
sacrifício em prol das indústrias farmacêutica e cosmética ganhou, ao
longo dos anos contornos de repúdio em uma sociedade que cada
vez mais se identifica com os animais. A legislação vigente prevê a
proteção como regra geral, incluindo-se aí as cobaias, entretanto,
ainda não é adotado no Brasil soluções alternativas que mitiguem
esse impacto social causado pelos experimentos. Dessa forma, através
de pesquisa bibliográfica realizada em sítios acadêmicos na internet,
esse trabalho se propõe a analisar as implicações sociais e jurídicas
contidas nessa realidade, bem como investigar e avaliar as possíveis
alternativas, com vistas a extinguir o uso de cobaias em experimentos.
O que se depreende ao final do estudo é que, com muito esforço da
sociedade, a tratativa dada aos animais insurge com maior respeito e
dignidade. Entretanto, o próprio ser humano ainda tem muito que
compreender e avaliar quando se trata de seus próprios limites, tendo
em vista que grande parte da comunidade cientifica ainda se
posiciona contrariamente à substituição dos animais por técnicas
alternativas, somente por não ser o método mais convencional,

95
Bacharel em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana,
ourives e técnico em eletrotécnica.
96
Professor Universitário, Filósofo, Psicanalista, escritor e membro do
International Institute for Hermeneutics/Alemanha. Ph.D. pela Université de
Fribourg-Suíça.
512
comprometendo a credibilidade de suas pesquisas.

Palavras-chave: animais, experimentos, tortura, bioética, alternativas.

INTRODUÇÃO

A discussão acerca do uso de animais em pesquisas cientificas


e cosméticas permeia as mesas de debates ao longo do século XX e
adentrando o XXI. Isto porque, diferentemente de um passado em
que os animais eram vistos como propriedade e força motriz, agora
estes são reconhecidos como espécies vivas, passíveis de dor e
sofrimento.
O principal eixo dessa temática reside no fato de que a
experimentação em animais vivos inflige a eles um sofrimento atroz
em benefício de outra espécie, ou seja, não há resultado positivo para
o animal estudado. Somando-se a isso o fato de que muitas vezes, ao
transportar o estudo para um organismo humano, o pesquisador se
confronta com a diferença estrutural, imposta pela bioquímica de
cada espécie, cujos resultados podem ser inesperados, a exemplo os
filhos da Talidomida97 (GUIMARÃES et al, 2016).
A resistência encontrada no Brasil a respeito da abolição
definitiva de experimentos em cobaias vivas deve-se em grande parte
aos interesses particulares da indústria cosmética e farmacêutica, que
financiam os estudos desenvolvidos nas universidades.
Tal comportamento coloca o País na contramão do que se
observa pelo mundo afora.
Historicamente, a proteção aos animais foi manifestada pela

97
A Talidomida é um sedativo e hipnótico que, ao ser transportado para a
espécie humana acarretou vários casos de má formação congênita de fetos,
graças à interpretação errônea dos reais efeitos da droga.
513
primeira vez em Londres, em 1876, através de um documento
intitulado Cruelty to Animals Act, e cujo objetivo era disciplinar e
regularizar os experimentos e inspecionar as instituições de pesquisa
(PETROYANU: 1996).
Já em 1959, Russell e Burch publicaram o livro The Principles
of Humane Experimental Technique que determinava que os
experimentos com animais deveriam observar os 3 R’s: replacement
(substituição dos espécimes por estudos simulados ou amostras mais
primitivas), reduction (uso do menor número de animais e
procedimentos) e refinement (redução do sofrimento dos animais e
oferta do maior conforto possível) - (PETROYANU: 1996).
Atualmente no Brasil, a legislação mais importante nessa seara
é a Lei Arouca, sancionada em 08 de outubro de 2008, após vários
anos tramitando nas casas legislativas. Ela introduz importantes
instrumentos de controle e fiscalização, impedindo que os animais
destinados a estudos sejam tratados à revelia de um mínimo de
equilíbrio.
A discussão atual é, precipuamente, moral, mas, contudo,
jurídica em seu cerne. As mudanças ocorridas na forma como o ser
humano se relaciona com os animais é uma determinante para que
sejam revistos os procedimentos de experimentação, mas garantias
jurídicas são inseridas nesse contexto, haja vista a previsão
constitucional de proteção aos animais.
A Carta de 1988, no caput de seu artigo 225 prevê como
direito um meio ambiente devidamente equilibrado e, consoante a
esta garantia, seu parágrafo primeiro proíbe a exposição de animais à
crueldade. Ainda neste aspecto, o texto constitucional coloca como
obrigação da coletividade a proteção da fauna e da flora, a fim de
atingir os objetivos do referido artigo.
É crescente a preocupação em se adotar métodos que livrem
as cobaias do sofrimento a elas imposto. Não obstante, diversos
514
autores trazem à baila procedimentos cruéis aos quais são expostos
os animais, muitas vezes sem um benefício cientifico concreto.
Procedimentos dolorosos e cruéis são facilmente coletados na
literatura disponível, o que denota a necessidade de revisão dos
métodos utilizados, avaliados sob o prisma da ética e do atendimento
à legislação, a fim de garantir a abolição da crueldade infligida nos
laboratórios e cursos de medicina e biologia.
Esse estudo tem como foco justamente a avaliação dos
métodos substitutivos, bem como o resultado social que se busca ao
adotar essa importante modificação.
O que se percebe é que no mercado consumidor, cada vez
mais pessoas deixam de consumir marcas que testam seus produtos
em animais, havendo inclusive sites especializados que buscam
manter esse tipo de informação disponível ao cidadão.
Abandonar um modelo já utilizado em larga escala,
principalmente em tempos de capitalismo exacerbado como neste
século é, indubitavelmente, um processo longo e árduo, que sofrerá
inúmeras interferências por parte das indústrias cosmética e
farmacêutica, mas que urge e não pode mais ser protelado.
O presente estudo foi desenvolvido com vistas a conhecer a
respeito da utilização de animais como cobaias em experimentos
científicos das mais variadas naturezas, bem como analisar, sob a
ótica da ciência e da proteção animal, de maneira holística, qual o
cenário vislumbrado no século XXI.
A temática insere o debate sobre a profunda dicotomia entre
a proteção animal tal qual se verifica atualmente, com a evolução de
legislações e costumes, e, em contraposição, a defesa do uso desses
animais devido à tradição científica.
Como ciência social, o Direito não pode escusar-se de agir
prontamente. No caso em tela, de maneira consoante à bioética,
principalmente, por considerar o tratamento degradante dado às
515
espécies em laboratórios.
A pesquisa realizada encaixa-se na categoria geral da pesquisa
básica qualitativa, uma vez que os dados serão levantados com base
em estudos anteriores de autores.
E na categoria específica, classifica-se como pesquisa
bibliográfica, tendo em vista que se valerá da literatura disponível.
Não haverá pesquisa quantitativa neste trabalho. O objetivo precípuo
é levantar os dados históricos e recentes que culminaram na
ampliação dessa discussão pelo mundo afora e estabelecer uma
contraposição entre a situação atual e o que se pretende com a
adoção de métodos substitutivos.
O texto foi desenvolvido de maneira estruturada em tópicos
organizados sequencialmente, com vistas a contextualizar os
diferentes momentos de sua construção. Os passos seguidos foram o
levantamento de implicações históricas e sociais, o estudo dos
direitos dos animais – que se trata de matéria inovadora no campo do
Direito -, a discussão sobre a bioética, que não pode ser olvidada
dentro de uma temática que envolva experimentos com amostras
vivas, e finalmente, os avanços no campo da substituição animal.

Implicações Históricas e Sociais

Historicamente, a realidade mundial é de sobreposição do ser


humano em detrimento dos seres não humanos. Isso é denotado
facilmente analisando-se a dominação existente com a domesticação
animal, desde os primórdios, quando houve a dominação do fogo,
passando pela criação no imaginário humano de diversos deuses à
sua imagem e semelhança, principalmente na cultura europeia e,
futuramente, nas ocidentais, por imposição.
Nesse contexto, a destruição dos ecossistemas para

516
desenvolvimento humano, também configura tal dominação, dada
pelo alto poder destrutivo do progresso.
A dissecação de animais para fins de estudos remonta da
antiguidade, quando grandes estudiosos se dedicaram a entender e
diferenciar o funcionamento do organismo animal e humano.
Aristóteles concebeu a ideia de uma hierarquia de força, na qual
animais menores deveriam servir aos maiores e, consequentemente,
aos mais racionais (GUIMARÃES et al: 2016, p.2019)
Ainda da obra das autoras, percebe-se que as práticas de
vivissecção, que pode ser entendido como a experimentação em
organismos vivos, data de 200 a.C, em que Galeno através de suas
observações descobriu que as artérias transportam sangue ao invés
de ar, conforme acreditou-se durante muito tempo.
A ausente dicotomia entre ciência e religião impulsionou
durante muito tempo a vivissecção, tendo em vista que a Igreja não
via com bons olhos o estudo em cadáveres humanos, tampouco a
experimentação em organismos vivos. Mais tarde, já na segunda
metade do século XIX, o estudo de Charles Darwin a respeito do
processo evolutivo fomentou a identidade de características entre
animais e humanos e fez com que a vivissecção ganhasse traços cada
vez mais sólidos.
Nesse bojo, Tinoco e Correia (2011) contribuem:

Tal prática tem sua origem na Grécia antiga através do ‘pai da


medicina’, Hipócrates (500 a.C.), o qual realizava dissecações
(secção e individualização dos elementos anatômicos de um
organismo morto) com finalidade didática. Seguinte a ele,
mas ainda na Antiguidade e com o mesmo propósito,
seguiram as práticas de vivissecção com os fisiologistas
Alcmaeon (550 a.C.), Herophilus (300-250 a.C.) e Erasistratus
(350-240 a.C.).(TINOCO, CORREIA: 2011)

517
É importante fazer a diferenciação entre vivissecção e
dissecação. Da obra de Santos (2011): “Dentro da experimentação
animal, existem duas práticas que ocorrem, a dissecação (ação de
seccionar partes do corpo ou órgãos de animais mortos para estudar
sua anatomia) e a vivissecção (a realização de intervenções em
animais vivos, anestesiados ou não)”.
É justamente nesse ponto que reside a problemática em torno
do tema. Há relatos de estudos que infligiram grande sofrimento às
cobaias.
Ainda da obra de Tinoco e Correia (2011) é no século XVII que
o estudo com animais alcança seu apogeu, graças às experiências de
vivissecção de René Descartes. Foi ele quem introduziu a teoria do
animal-máquina, através da qual, o ser não humano era considerado
um ser autômato e sem capacidade de sentimentos e sensações,
como dor, medo, prazer. O filósofo tornou o uso de animais como a
regra na medicina, justificando-a pela supremacia do homem ao
animal.
Nesse período, estendendo-se ao longo do século XIX, a
preocupação com o não humano tornou-se realmente inexistente,
posto que estudiosos como Galien e Bernard defendiam a
indiferença, por parte do pesquisador, ao sofrimento imposto às
cobaias, além de estudos demasiadamente invasivos, como a
destruição da medula espinhal e a secção de nervos e artérias dos
animais (Santos, 2011).
Nessa seara, Molento (2007) leciona sobre a mudança de
perspectiva na relação homem-ambiente:

Em relação à preocupação com o bem-estar de animais não-


humanos, uma forte restrição aparece no ambiente científico
a partir do desenvolvimento da filosofia cartesiana, no século
518
XVII. Mais recentemente, com os avanços da pesquisa em
etologia animal na década de 1970, as preocupações com a
proteção do bem-estar animal, por vezes rotuladas
anteriormente como “leigas”, começam a adentrar de maneira
importante o ambiente acadêmico. O estudo científico do
comportamento animal pavimenta as bases para o
reconhecimento da complexidade da vida animal individual.
(MOLENTO, 2007)

O cenário após esses acontecimentos não demonstra


melhores expectativas, sendo que o trabalho de Bernard lançou as
bases para a ciência moderna, no que tange à vivisecção de seres
vivos, que é utilizada hodiernamente.
De acordo com Santos (2011) não há uma real contemplação
do problema, como ele se configura, pois tanto as práticas de
dissecação e vivissecção perduram, quanto não são impostas as
sanções cabíveis, a despeito das recentes alternativas a tais métodos.
Atualmente, de acordo com Paixão (2001) é bem extenso o rol
de interações científicas utilizando seres não humanos vivos:

Pesquisa básica - biológica, comportamental e psicológica.


Refere-se à formulação e testes de hipóteses sobre questões
teóricas fundamentais, tais como, a natureza da duplicação do
DNA, a atividade mitocondrial, as funções cerebrais, o
mecanismo de aprendizagem, enfim, com pouca relevância
para o efeito prático dessa pesquisa;
Pesquisa aplicada – biomédica e psicológica. Formulações e
testes de hipóteses sobre doenças, disfunções, defeitos
genéticos, etc., as quais não há necessariamente
consequências. Incluem-se nesta categoria os testes de novas
terapias: cirúrgicas, terapia gênica, tratamento à base de
radiação, tratamento de queimaduras, etc;

519
O desenvolvimento de substâncias químicas e drogas
terapêuticas. A diferença entre essa categoria e as anteriores
é que aqui se refere ao objetivo de encontrar uma substância
específica para um determinado propósito, mais do que o
conhecimento por si próprio;
Pesquisas voltadas para um aumento da produtividade e
eficiência dos animais na prática agropecuária;
Testes de várias substâncias quanto à sua segurança,
potencial de irritação e grau de toxicidade, tais como
cosméticos, aditivos alimentares, herbicidas, pesticidas,
químicos, industriais e drogas;
Uso em instituições educacionais para demonstrações,
vivisseções, treinamento cirúrgico, indução de distúrbios com
finalidades demonstrativas e projetos científicos.
Uso para extração de drogas e produtos biológicos, tais como
vacinas, sangue, soro, anticorpos monoclonais, proteínas de
animais geneticamente modificados para produzi-las, dentre
outros.

Há registros de experimentos extremamente degradantes aos


animais, dotados de crueldade extrema e, contudo, sem resultados
inovadores.
É o caso, por exemplo, de um teste chamado impotência
adquirida, destacado da obra de Ikeda e Smolarek (2015, p.08):

O teste consiste, por exemplo, em colocar quarenta cães em


uma caixa dividida em dois compartimentos, separados por
uma barreira. No início, tal barreira se encontra na altura do
lombo dos cães e, assim, são emitidos choques elétricos sob
as patas dos cães. Ao sentir dor, os cães aprendem a pular a
barreira para escaparem dos choques, porém, para
desencorajar o cão a pular, os experimentadores emitem
520
choques em ambos os compartimentos da caixa e,
posteriormente, bloqueiam a barreira com vidro. Mesmo
depois de inserido o bloqueio de vidro, os animais continuam
a saltar para escapar do choque, mas só conseguem esmagar
a cabeça no vidro. Os sintomas dos cães são: defecação,
micção, emissão de uivos e gritos, tremuras, ataques
dispositivos. Após alguns dias encarcerados, os cães deixaram
de tentar transpor a barreira e os experimentadores
“impressionados” por este fato, concluíram que a combinação
de barreira de vidro com choque nas patas é “muito eficaz” na
eliminação dos saltos dos cães. Essa experiência de
“impotência adquirida” demonstrou que era possível induzir
um estado de impotência e desespero através da
administração repetida de choque intensa e inescapável.
Apesar do sofrimento suportado pelos animais, os resultados
obtidos pelos cães são óbvios ou sem significado, ou seja,
esses estudos - que já duram mais de 50 anos - demonstram
que os psicólogos tentaram traduzir para um modo científico,
o que o senso-comum poderia ter descoberto de um jeito
menos doloroso (IKEDA; SMOLARECK: 2015).

Da obra dos autores ainda, extrai-se que, a despeito da


regulamentação internacional acerca da prestação de contas em
números, da quantidade de animais utilizados, bem como mortos em
experimentos, tais dados são manipulados para não corresponderem
à realidade, uma vez que se desprezam os registros de camundongos,
aves e ratos, que são a maior parte das amostras utilizadas.
Na mesma linha, Vargas e Cervi (2016) trazem uma gama de
experimentos nas mais diversas áreas e aos quais será traçado um
panorama.
Um dos testes trazidos pelas autoras é o de irritação dermal,
no qual uma parte ferida ou raspada da pelagem tem introduzido
algum agente que possa provocar reações, dentre alergias, úlceras e
521
edemas.
A seguir, as autoras relatam o teste de LD50, ou dose letal
50%. Nesse, cerca de 200 animais compunham a amostra e recebiam
alguma substância por sonda gástrica. Quando as cobaias não
morriam por perfuração de seus órgãos pela sonda, seus efeitos
registrados eram sangramentos nos olhos e boca, lesões pulmonares
e gástricas, coma e morte. A pesquisa era continuada até que
tivessem morrido 50% dos animais, momento em que os demais
eram sacrificados.
O teste de efeitos do açúcar na arcada dentária consiste em
impor uma dieta açucarada aos animais, provocando-lhes
descolamento da gengiva e perdas da arcada.
Outra gama de experimentos que chama a atenção é na
indústria armamentista. Nesses, as cobaias são expostas à radiação de
armas químicas, causando-lhes vômito, letargia e salivação, além de
serem usadas como alvos vivos, em testes balísticos, provas de
explosão, inalação de fumaça, descompressão, inalação de gases
tóxicos. O que surpreende, de acordo com as autoras, é que esses
testes não visam a proteção humana, que deveria ser destinada aos
combatentes, mas, outrossim, a eficientização das armas,
aumentando sua letalidade.
Por último, mas não esgotado o rol de testes aplicados em
animais, as autoras trazem sobre a pesquisa médico-científica, na qual
aqueles são utilizados como modelos para cirurgias torácicas,
abdominais, ortopédicas, transplantes, e outros, além de mutilação,
fratura de membros e decapitação. É um parque dos horrores98.
Nesse bojo, Santos (2011) corrobora que após anos de
experimentos sem sentido, a indústria começou a tropeçar, apurando
diferentes resultados em animais e em humanos. É o caso da

98
Vargas e Cervi (2016)
522
Talidomida.
Trata-se de um remédio para enjoos matinais prescritas para
grávidas, introduzido no mercado na segunda metade da década de
1950. Testado profundamente em cobaias teve sua liberação, graças à
inexistência de efeitos colaterais. Entretanto, nessas a metabolização
da droga foi muito diferente do que o observado em humanas, que
tiveram filhos malformados portadores de uma condição chamada
focomelia, que impede o feto de formar braços e pernas
(SANTOS:2011).
O autor detalha ainda sobre a mudança de perspectiva de
laboratórios após esse trágico ocorrido com a Talidomida. Já na
década de 1980, empresa como a Avon, a Procter e Gamble e a
Bristol-Myers reduziram significativamente seus estudos com cobaias.
No final dessa década, empresas como a Benetton, a Noxell
Corporation e a Cover Girl anunciaram, por motivos diversos, a
redução do uso de animais em seus laboratórios de cosméticos.
O final da década de 1980 e início dos anos 1990 foram
bastante voltados a mudança de paradigmas no cenário da
experimentação animal. Entretanto, em contraposição, ainda
persistem as mutilações, crueldades e criação de animais somente
com essa finalidade.
É um mercado amplo, fomentado pelas indústrias
farmacêutica e cosmética e que movimenta vultuosos valores
financeiros, o que impede da cessação total de sua prática.

Somente nos imensos valores financeiros que movimentam


laboratórios e indústrias de cosméticos, como esses
experimentos são financiados por agências governamentais,
não há lei que impeça os cientistas de realizá-los; há leis que
proíbem pessoas comuns de bater em cães até a morte, mas
os cientistas podem fazer a mesma coisa impunemente sem
que ninguém verifique se desse fato advirão benefícios. O

523
motivo é que a força e o prestígio do estabelecimento
científico, apoiados pelos vários grupos de interesses,
incluindo os que criam animais para vender os laboratórios,
tem sido suficientes para impedir as tentativas no sentido de
se realizar um controle legal efetivo (SINGER, 2009).

Apesar de ser consenso que a bioquímica dos organismos se


diferem sobremaneira entre si, quando comparados seres humanos e
não humanos, ainda é tangível a resistência encontrada para o
abandono das práticas vivisseccionistas.
As autoras Vargas e Cervi (2016) trazem um destaque da obra
do próprio Claude Bernard, pai do vivisseccionismo contemporâneo,
no qual o fisiologista admite a impossibilidade de adaptar as
conclusões dos estudos em animais para os humanos. Segundo ele,
os testes em cobaias provam muito pouco ou nada e é difícil
relacioná-los aos humanos.
Hodiernamente, o que acontece, é que muitos cientistas
sabem da disparidade entre organismos, e da possibilidade de
utilização de alternativas disponíveis. Entretanto, há o temor de
descrédito por suas descobertas, frente à não utilização de
metodologia convencional (SANTOS: 2011)
Isso tudo, atrapalha o desenvolvimento de tecnologias que
possibilitem o abandono definitivo do uso de animais vivos,
afastando a humanidade da garantia de um ambiente sustentável e
equilibrado, onde humanos e não humanos gozem de direitos
positivados e onde a ética caminhe emparelhada à ciência.
Em contraponto, a filósofa francesa Corine Pelluchon, em
entrevista à Revista Clarín (2020), demonstra sua extrema
preocupação com a situação que o próprio ser humano criou para si,
oriunda dos maus tratos a animais. Para Corine, a pandemia do
Covid-19 evidencia o fato de que “as pessoas não podem dominar

524
outros seres viventes, explorá-los como queiram sem nunca pagar as
consequências”.
Durante a entrevista, a filósofa reconhece que a forçosa
interação entre humanos e animais, seja pela destruição de seu
habitat, ou mesmo pela realização de experimentos ou criação
massiva, é a responsável por esse tipo de crise sanitária. Por terem
organismos diferentes, os animais são capazes de transmitir vírus
inofensivos a eles e letais aos humanos.
Interessante contribuição a esse estudo, Corine faz ao final de
sua entrevista, ao defender um novo modelo de desenvolvimento que
articule a proteção ambiental, a saúde, a justiça social e a relação com
os animais. Para ela, transformando as relações de consumo, levando-
se em conta esses pilares, o mundo como um todo evoluirá. A filósofa
acredita em uma política na qual os animais sejam tratados com mais
respeito e menos violência, o que incide diretamente à ética discutida
no escopo desse trabalho.

Direitos dos Animais

Durante muito tempo na história humana, os animais foram


vistos como meios de transporte (de pessoas ou de cargas), força
motriz e alimento (sendo e fornecendo, como no caso do leite).
Aspectos como estima para e pelos animais, nem convivência,
tampouco suas sensações neurais, como dor, medo e cansaço eram
considerados.
Nesse bojo, Oliveira (2011) traz em sua obra, uma crítica ao
modelo ético tradicional, no qual apenas fazem parte da ética aqueles
indivíduos que constituem a comunidade moral. Ou seja, seres
humanos desprovidos de capacidade intelectual, animais, as gerações
futuras, os estrangeiros, entre outros, nenhum desses grupos seria

525
sujeito de direitos. Não há que se falar em preservação ambiental,
nesse contexto, por exemplo, devido ao fato de que essa apenas
beneficiaria um grupo de pessoas que não fazem parte da
comunidade moral.

Por outro lado, os seres não racionais, em especial os


animais, não encerram valor em si e o possuem somente de
modo indireto e relativo, condicionado por uma vontade
exterior: eles são meios para a realização da vontade dos
seres racionais e, se existe um interesse em protegê-los, esse
depende de deveres indiretos de respeito (OLIVEIRA: 2011).

Nesse contexto, o autor introduz ainda a obra de Peter Singer,


na qual ele derruba o especismo e discute, de maneira aberta, sobre a
ética aplicada aos animais, e estes como sujeitos de direitos, tendo
em vista que, apesar de ter uma bioquímica diferente, eles também
sentem emoções, comprovadas pela observação de seu
comportamento.
Os direitos dos animais constituem temática inovadora no
campo do Direito, e, são considerados direitos de terceira geração.
No Brasil, são tutelados já pela Constituição Federal que, em seu
artigo 225 protege o meio ambiente ecologicamente equilibrado,
assim como a flora e a fauna, proibindo que os animais sejam
submetidos à crueldade.
De acordo com Tinoco e Correia (2010), as primeiras
legislações a suscitar a tratativa dos direitos dos animais, tinham
como escopo, na realidade, a proteção dos interesses humanos.
O primeiro registro de uma associação com objetivo de cuidar
dos animais se dá no século XIX, qual seja a Society for the Prevention
of Cruelty to Animals (Sociedade para a Prevenção da Crueldade com
Animais).
526
Ao longo dos anos, principalmente no final do século XX,
outras organizações não governamentais foram ganhando força e
espaço na discussão, em busca de direitos dos mais diversos, que
transitariam pelo abandono, maus tratos, violência e tortura
publicizadas – como no caso das touradas, e não obstante, o uso de
animais como cobaias em laboratórios.
No Brasil, as legislações datam da época da independência,
sendo o estado de São Paulo vanguardista nesse quesito, com a
imputação de multa àqueles que forem flagrados maltratando seus
cavalos com castigos bárbaros e imoderados.
A partir daí os demais estados foram se guarnecendo de
legislações atinentes ao tema e, no panorama federal, foram editadas
outras tantas que tutelavam o direito ambiental, e os animais em
todas elas. Entretanto, não se percebe no ordenamento, um texto que
trate especificamente e de maneira objetiva sobre os experimentos
com animais, até o ano de 1998, quando é editada a Lei 9.605/1998
mais conhecida como Lei de Crimes Ambientais, que criminaliza os
maus tratos e mutilação (art. 32), as experiências dolorosas (art. 32,
§1º). Para a realização de experiências em animais vivos que implique
em dor ou crueldade, a pena é de 3 meses a um ano de detenção e
multa, podendo ser aumentada de um terço a um sexto, se houver a
morte do animal (IKEDA, SAMOLARECK: 2015)
Em 2008, a polêmica Lei nº 11.794 foi sancionada, trazendo
em seu bojo, previsões pontuais sobre o uso de animais em
experimentos científicos no Brasil. A conhecida Lei Arouca passou a
ser a regra geral para tais práticas trouxe em seu texto a previsão de
maior rigor na fiscalização do uso de animais em experimentos, com a
implantação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação
Animal – CONCEA que, auxiliado pelos Comitês de Ética no Uso de
Animais – CEUA´s fará o controle dos experimentos envolvendo
animais. Segundo a Lei, cada instituição que fizer experiências desse
527
tipo deverá obrigatoriamente manter um CEUA em funcionamento
(DALBEN e EMMEL: 2013).
Vale ressaltar que, anteriormente a esta Lei, ficava a cargo de
cada cientista, dentro do escopo do seu trabalho, definir,
conjuntamente com a universidade à qual estava ligado, quais os
parâmetros éticos que seriam utilizados nas pesquisas.
Na contramão do que se observa na União Europeia, por
exemplo, que erradicou a utilização de animais em experimentos, o
Brasil, mesmo criando um diploma especifico para o tema, não
propôs a extinção da prática, criando apenas mecanismos que a
regule.
Dessa forma, a principal crítica à Lei Arouca é que, ao contrário
de incentivar as medidas alternativas, através de previsões legais,
financiamentos, criações de comitês para o desenvolvimento dessas
soluções, ela incentiva a continuidade da utilização de seres não
humanos em laboratórios.
Mais uma vez, o estado de São Paulo atua na dianteira,
proibindo através da Lei 15.316/2014 a utilização de animais em
experimentos ou testes para a indústria cosmética (IKEDA,
SAMOLARECK: 2015).

Bioética

Desde que a visão de Descartes sobre os animais caiu por


terra, com o advento de estudos e legislações que protegem os
animais, a discussão sobre sua utilização em laboratórios extrapolou o
campo da ciência, que isola qualquer fator emocional no decorrer de
seus estudos e deslocou-se para um novo campo, chamado bioética.
A ética trata de como as sociedades irão interagir com seus
acontecimentos e leva em conta o fator emocional contido. A bioética

528
é, então uma aplicação desse conceito dentro do campo da ciência,
na tentativa de humanizá-lo. É uma forma de deliberação que
considera normas sociais, culturais e religiosas acerca daquilo que é
entendido como eticamente propício, bom e justo (Franco et al:
2014). Nesse mesmo escopo, Fortes e Zoboli lecionam:

Bioética é ao mesmo tempo uma disciplina acadêmica e um


movimento cultural, fruto das repercussões sociopolíticas e
culturais do desenvolvimento tecnocientífico e político-social
ocorrido na segunda metade do século XX, período posterior
à Segunda Guerra Mundial, no ano que se desenvolveram as
denominadas éticas aplicadas: a ética na política, a ética nos
negócios, a ética ambiental e a Bioética. Seu nascimento se
deu em um período de extrema efervescência de
transformação de costumes e valores, coetâneo aos
movimentos sociais ecologista, feminista, das minorias raciais
e sexuais. (Fortes e Zoboli, 2004).

A bioética se fundamenta sobre quatro princípios, quais sejam:


o princípio da beneficência: é o agir visando o bem do outro, levando
em conta sua moral e evitando, a qualquer custo, provocar danos à
outra pessoa; princípio da não-maleficência: é evitar o mal a qualquer
custo. O profissional deve esclarecer os riscos ao paciente e trabalhar
em seu benefício; princípio da autonomia: a vontade do paciente
deve ser levada em consideração. A limitação para esse princípio é
quando o bem individual fere a coletividade; e, finalmente, o princípio
da justiça: direito à igualdade dos serviços de saúde a todos, vedada a
exclusão por critérios financeiros99
Dentre os diversos ramos das ciências e as muitas variedades
de religiões, os animais exerceram ao longo dos séculos papeis

99
ROSSI, 2019.
529
diversificados, sendo considerados deuses no antigo Egito, passando
por demônios para os medievais navegadores, sendo relegados à
condição de criaturas inferiores justamente pelo cristianismo, que
considera apenas o homem uma criação à imagem e semelhança de
Deus, sendo capaz de com Ele se comunicar.
Essa projeção está intrínseca ainda hoje e é demonstrada pela
coragem humana de torturar seres não humanos, muitas vezes sem
propósito.
Cientificamente, entretanto, é sabido que, apesar de ter uma
massa encefálica grande para o seu tamanho, se comparado aos
outros animais, o homem, pela Biologia moderna, é considerado sim,
uma espécie animal. Os demais, por sua vez, a despeito do que
acreditava a ultrapassada filosofia de Descartes, possuem capacidade
neurossensorial, com sensações de dor, cansaço, sentimentos (no
caso de animais domésticos, isso é bastante aparente, por se
apegarem aos seus tutores), e, respeitadas as limitações devidas, é
verificado ainda certo nível de cognição. Logo, a supremacia humana
é facilmente derrubada, pela própria ciência.
Justamente nesse momento em que se inicia o debate ético
que envolve a experimentação animal. Em países desenvolvidos como
o Japão, os comitês de ética têm papel importantíssimo, e realizam
forte fiscalização. A intenção é que sejam utilizados o menor número
de animais possível e que as práticas sejam aquelas de menor
potencial ofensivo.
O papel da Bioética, então é humanizar o desenvolvimento
dos processos laboratoriais, com vistas a garantir o direito dos
animais, sem especismo100. A ela cabe impedir o sofrimento

100
O termo é amplamente utilizado na literatura disponível e refere-se à
supremacia de espécies, em que o homem seria superior aos demais
animais.
530
desnecessário e a não utilização de objetivos claros e honestos que
enriqueçam os horizontes do conhecimento (SILVA, 2006)

Alternativas à Experimentação com Animais

Mormente a qualquer técnica utilizada como substitutiva aos


testes realizados com animais, é fundamental que os pesquisadores
se valham do bom senso e razoabilidade antes de aplicar testes cujos
resultados são óbvios e eivados de despropósito. Por exemplo,
ensaiar a toxicidade de álcool e tabaco em animais, bem como
arremessá-los contra paredes de concreto, em testes de colisão, ou
ainda um experimento realizado com ursos polares, no qual eles
foram obrigados a nada num tanque de petróleo e, ao tentarem se
limpar, ficaram tão intoxicados com o mineral, que vieram a óbito, só
podem ter um único desfecho.
O problema reside no fato de que, em pleno século XXI, ainda
seja discutida a necessidade da utilização de animais,
desconsiderando que alguns experimentos se dão por curiosidade,
prazer ou perversidade e são desprovidos de resultados
101
importantes .
Indubitavelmente, Russel e Burch lançaram, em 1959, as bases
para a discussão a respeito das alternativas ao uso de animais em
experimentos científicos. Utilizada ainda hoje, a sua técnica dos 3R’s
propõe a racionalização da pesquisa laboratorial nesse contexto, bem
como a sua humanização.
Os princípios dessa teoria são a substituição (replace) de
animais por métodos alternativos, a redução (reduce) da quantidade
destes submetidos a testes, melhorando os modelos estatísticos para

101
As experiências foram relatadas por Stefanelli (2011).
531
que pequenas amostras fossem capazes de gerar resultados válidos e,
o refinamento (refine) das técnicas utilizadas, com vistas a diminuir a
dor e o sofrimento, observados os cuidados com a assepsia e
analgesia durante todo o procedimento (MIZIARA et al, 2012).
Conforme foi explanado nos tópicos anteriores, a utilização de
animais em estudos laboratoriais é tema controverso e que,
principalmente à luz do século XXI vem sendo alvo de duras
represálias por parte da sociedade, que paulatinamente adota hábitos
como não consumir produtos de empresas que tenham tal prática.
Em um contrassenso, a comunidade cientifica, no entanto, se
divide quanto ao assunto, tendo em vista que enquanto alguns
cientistas estudam formas alternativas, outros se prendem ao
tradicionalismo e temem pela respeitabilidade de sua pesquisa caso
ela caminhe em sentido oposto ao senso comum.
Assim, problemas como falta de financiamentos e a resistência
de stakeholders são obstáculos para o fomento dessas alternativas
(FONSECA et al: 2018).
Os autores elencam métodos viáveis e com tanta validade
cientifica quanto os estudos com cobaias vivas. Dentre os métodos
mais possíveis, encontram-se:

Cultivo de células in vitro: o cultivo de células, tecidos e


órgãos é utilizado principalmente em pesquisa básica. Ele
permite realizar estudos de câncer, imunologia, testes
toxicológicos, produção de vacinas, desenvolvimento de
drogas, análise de doenças infecciosas, diagnose e
observação de doenças ou distúrbios genéticos. Uma
aplicação de extrema importância da cultura in vitro é na
produção de vacinas, as quais são produzidas a partir de
culturas de tecidos humanos. Por isso, as vacinas produzidas a
partir de animais são mais seguras, já que evitam que vírus
desconhecidos cruzem as barreiras das espécies e infectem o
ser humano com outras doenças e disfunções.
532
Cultivo de microrganismos: microrganismos, tais como
bactéria e protozoários, permitem realizar estudos de
metabolismo, genética e bioquímica. Podem ser utilizados
também para estimar os níveis de vitaminas em estudos
farmacológicos e toxicológicos e identificar antibióticos.
Estudos Epidemiológicos: a epidemiologia é baseada em
comparações. A partir dessas comparações, os pesquisadores
obtêm indícios dos níveis de exposição ao fator investigado.
Com estes estudos, conseguiu-se eliminar, ou reduzir,
drasticamente a incidência de doenças infecto contagiosa, ao
relacioná-las com as condições de higiene e saneamento.
Modelos matemáticos: modelos matemáticos podem
contribuir para o trabalho experimental através da definição
de variáveis e testando teorias, reduzindo o custo desses
experimentos e os tornando mais eficazes. Um exemplo disso
é a predição, através de modelos matemáticos, da estrutura
de proteínas, que poderiam prever suas propriedades físicas e
químicas
Simulações computacionais: os computadores podem
predizer reações biológicas causadas por drogas novas,
baseados no conhecimento de sua estrutura tridimensional,
eletrônica e química (FONSECA et al, 2018)

Nessa seara, Miziara et al (2012), trazem em sua obra fatos


interessantes da aplicação prática de tais sugestões. Os autores
evidenciam que, cada vez mais no campo da saúde esses novos
modelos são adotados e relatam que cientistas brasileiros criaram um
modelo matemático em computador que simula as características
anatômicas e fisiológicas da laringe com a finalidade acadêmica.
Otorrinolaringologistas brasileiros participaram do
desenvolvimento da plataforma SIMONT (Sinus Model Otorrino
Neuro Trainer). Trata-se de um moderno simulador de cirurgias

533
endoscópicas, nasossinusais e de base do o crânio. Nessa tecnologia,
é possível ter a reprodução de um ato cirúrgico completo, até com
sangramentos.
Já na Dinamarca, com a finalidade de possibilitar o estudo da
anatomia da orelha e dissecção do osso temporal, foi desenvolvido
um programa que já está disponível para download.
De acordo com Paixão (2011) uma solução bastante viável
reside na preparação da próxima geração de profissionais. Em sua
obra, a autora pontua que na área da educação é onde se registra a
maior decadência na utilização de animais, isto porque, os estudantes
são mais abertos à utilização de novas práticas, bem como estão mais
propensos à rejeição da metodologia tradicional, levados pela defesa
dos direitos dos animais.
A autora leciona ainda sobre uma tendência introduzida pela
engenharia genética como alternativa viável ao uso de cobaias. A
produção de animais transgênicos e, mais recentemente, a clonagem
possibilitam que certos experimentos, que não podem ser realizados
de outra forma, se utilizem de cobaias já criadas em laboratórios.
Há uma gama de possibilidades de experimentação quando se
trata de animais modificados geneticamente, inclusive aquelas ligadas
aos defeitos genéticos, que podem se manifestar após muitos anos.
Embora seja motivo de comemoração por um lado, a criação
de animais para testes, seja pela transgenia ou pela clonagem
desprezam, atualmente, o sofrimento animal que será criado, pois
mesmos estes têm um sistema nervoso. Também a questão ética tem
sido deixada de lado, tendo em vista que as mutações genéticas
podem representar um perigo para os seres humanos – no caso dos
animais criados para transplantes de órgãos, bem como a transmissão
de doenças ainda desconhecidas e, finalmente, a inflição de danos
aos animais em prol dos seres humanos.

534
CONCLUSÕES

A temática da experimentação animal não é nova no cenário


social e, sobretudo, no jurídico. Mesmo grandes nomes, como
Bernard, que evidenciaram o uso de cobaias através da vivissecção,
demonstram a coerente probabilidade de não correspondência entre
os organismos.
Graças à observância de todo o sofrimento aplicado aos
animais, descritos ao longo da história, através de experimentos
torturantes, a sociedade civil se mobilizou em organizações não
governamentais, com seu primeiro registro ainda no século XIX para
lutar pela causa animal.
No final da década de 1950, com a proposição da teoria dos
3R’s, o mundo se abriu para a discussão de medidas alternativas que
viabilizassem a sua aplicação. Empresas de renome como a Avon e a
Procter e Gamble já deram a largada nessa nova tendência.
Entretanto, o que se percebe é que a quebra de tal paradigma
estacionou até o final da década de 1980, momento no qual, emergiu
com mais força. Foi a partir daí que a proposição de alternativas
ganhou maior evidência, sendo que grandes potências, como a União
Europeia, baniram definitivamente, o uso de cobaias animais em
experimentos em laboratórios.
Já no século XXI, inúmeras são as alternativas oferecidas para
mitigar, ou mesmo abandonar o modelo de sofrimento animal.
Principalmente nos campos da automação, programação e
informática, somado ao conhecimento já produzido ao longo dos
séculos, é flagrante a evolução e a capacidade de construção de mais
saber com essas ferramentas.
Em contraposição, no entanto, uma parcela expressiva da
comunidade científica se fecha a essas possibilidades, devido ao
tradicionalismo arraigado em suas concepções. Há casos de cientistas
535
que temem pela credibilidade de seu trabalho, caso ele não seja
concebido utilizando-se do convencional.
Nesse caso, uma solução viável é trabalhar as novas gerações,
para que com sua visão de mundo, caminhem ao encontro de novas
técnicas e soluções viáveis.
Na seara científica, o Brasil vem demonstrando importante
participação no desenvolvimento de métodos alternativos. Em
contraposição, no campo jurídico, a despeito de locais onde já não é
mais permitido, sem exceções, o uso de animais, o País caminha ainda
em passos lentos e com pouca visão de futuro.
A legislação pátria é fraca e apenas cria comitês para a
experimentação laboratorial. A gama de sofrimentos infligidos,
passiveis de punição não elenca a vivissecção, nem se aprofunda no
campo científico e, por isso, recebe duras críticas das ONG’s
envolvidas na causa. A principal justificativa para a omissão legislativa
reside na vultuosa movimentação financeira, que a indústria
farmacêutica e cosmética impulsionam, gerando dividendos que
interessam a fatias diversas daqueles que estão diretamente
envolvidos.
Nesse bojo, apenas o estado de São Paulo, costumeiramente
vanguardista legislativo, aprovou em 2015 a vedação do uso de
animais em experimentos daquelas indústrias.
É impossível ignorar uma realidade já há séculos presente no
mundo. Não obstante, é fundamental perceber que já há muito
conhecimento construído, que fundamenta a utilização de técnicas
perfeitamente viáveis, como a modelagem computacional. Na pior
das hipóteses, a utilização de cadáveres, cordões umbilicais e a
biópsia são possibilidades de manejo de informações e formas de
agregar novos saberes, sem ofender ou ferir outras formas de vida.
Um ponto que chama a atenção no tocante ao conhecimento
já institucionalizado, é que ainda sejam realizados experimentos que
536
conduzam a um único resultado letal, sem novas implicações
científicas, movidos pela crueldade, curiosidade ou prazer, como
relatado no corpo desse estudo. Quando analisado sob este prisma, aí
que a abolição de experimentos com animais urge no cenário
mundial, haja vista, que alguns países ricos, transferem seus
laboratórios para países pobres, cujas legislações sejam as mais fracas
possíveis, permitindo que os estudos continuem sem maiores
obstáculos.
O Direito como ciência, deve caminhar ao lado das
necessidades sociais. Ao passo em que no século XXI já não são mais
toleradas crueldades com animais, na mesma medida em que surgem
cada vez mais organizações da sociedade civil com foco na defesa
dos direitos desses, cabe ao legislador debruçar-se sobre o tema,
estabelecendo critérios e sanções mais duras, que impeçam o uso
indiscriminado de cobaias em laboratórios.
A aplicação dos 3R’s deve ser uma constante até que o
objetivo máximo, qual seja, a erradicação dos testes, seja atingido. E
para tanto, é fundamental o fomento das pesquisas de soluções
alternativas, enrijecimento da legislação e da fiscalização, bem como
uma mudança de consciência e o investimento em estudos que já se
utilizem apenas de novas técnicas.
O foco desse novo século deve ser agregar conhecimento
preservando as espécies que convivem no planeta. A retrógrada ideia
de supremacia do ser humano em relação ao não humano já foi
abandonada há séculos, quando o homem percebeu a capacidade
neurossensorial do animal. Não obstante, há que se levar em conta, a
exemplo da recente pandemia de SARS Covid 19 que, é bastante
possível que a utilização incorreta de experimentação animal conduza
a doenças desconhecidas e de altíssimo potencial aniquilador.

537
REFERÊNCIAS

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<http://srvapp2s.santoangelo.uri.br/seer/index.php/direitosculturais/a
rticle/view/754>. Acesso em out/2020.
doi:http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v11i23.754.

541
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA REGIÃO DOS
INCONFIDENTES NA PANDEMIA DO COVID-19
Vívian Moreira102
René Dentz103

RESUMO

Este artigo parte da conjuntura social do Brasil de patriarcado e


machismo estrutural para indagar: a violência contra a mulher, em
casais heterossexuais, aumentou no período de isolamento social
provado pela pandemia do Covid-19? Foram utilizados dados de
violência doméstica da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança
Pública de Minas Gerais (SEJUSP) como plano de fundo para a
discussão da temática à luz do Direito e da Psicanálise.

Palavras-chave: Covid-19; Direito; Pandemia; Psicanálise; Violência


doméstica.

INTRODUÇÃO

O surgimento do vírus SARS-COV2 (Covid-19) no final do ano


de 2019 trouxe grandes desafios à humanidade. As tarefas
costumeiras se apresentaram de forma diferente diante do período
de isolamento social para contenção da propagação do vírus; e a
busca pelo autoconhecimento e a necessidade de se reinventar se

102
Aluna do curso de Direito da FUPAC-Mariana.
103
Professor da PUC-Minas e da FUPAC-Mariana; Psicanalista; Membro do
International Institute for Hermeneutics (Alemanha); Ph.D. pela Université de
Fribourg-Suíça.
542
fizeram imprescindíveis.
A sociedade brasileira, marcada pelo sistema patriarcal e
machismo estrutural colocaram a mulher à margem da história, ao
contá-la sob a ótica masculina. A predefinição de papeis para homens
e mulheres alinham expectativas de comportamentos e mantém o
status quo vigente, qual seja, a ocupação dos cargos de poder aos
homens. Um dos desdobramentos de tal vínculo hierárquico é a
violência doméstica, que viola os direitos fundamentais da mulher:
vida, bem estar e propriedade.
Nesta perspectiva, o presente artigo tem como objetivo geral
compreender os efeitos do isolamento social decorrente da pandemia
do Covid-19 sobre os casais heterossexuais. E como objetivo
específico, analisar se houve ou não aumento da violência doméstica
em casais heterossexuais no ano de 2020 na região dos Inconfidentes,
composta por Itabirito, Mariana e Ouro Preto, à luz do direito e da
psicanálise.
A pergunta de partida para esse trabalho é: a violência
doméstica contra a mulher, em casais heterossexuais, aumentou no
período de isolamento social no qual o casal passa mais tempo juntos
dentro de casa?
A hipótese é que sim, houve um aumento. Para confirmá-la ou
refutá-la utiliza-se a seguinte metodologia para aprofundar na
discussão acerca da temática: a próxima seção apresenta a tipificação
da violência contra a mulher à luz do Direito; a seção 3 contribui com
um novo olhar para a questão, sob a ótica da psicanálise; a seção 4
apresenta e analisa os dados estatísticos de ocorrências de violência
contra a mulher da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança
Pública de Minas Gerais (SEJUSP); e a seção 5, a conclusão.

543
TIPIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Em consonância com a Constituição da República Federativa


do Brasil de 1988 que aborda os direitos e garantias fundamentais, a
lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, comumente denominada Lei Maria
da Penha, tipifica os crimes contra a mulher.
De acordo com a Constituição:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção


do Estado. [...]
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir
a violência no âmbito de suas relações.

Os crimes contra a mulher no âmago familiar podem ocorrer


de diversas formas e graus de intensidade, que vão desde a violência
psicológica à violência sexual, conforme tipificados a seguir:

Violência psicológica

[...] entendida como qualquer conduta que lhe cause dano


emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
(BRASIL, 2006).

544
Violência moral

“[...] entendida como qualquer conduta que configure calúnia,


difamação ou injuria” à mulher. (BRASIL, 2006).

Violência patrimonial

“[...] entendida como qualquer conduta que configure


retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades”. (BRASIL, 2016).

Violência física

“[...] entendida como qualquer conduta que ofenda a


integridade física ou a saúde corporal” da mulher, como por exemplo
a lesão corporal, tortura, agressão física com ou sem arma de fogo ou
arma branca, homicídio, indução ao suicídio. (BRASIL, 2016).

Violência sexual

[...] entendida como qualquer conduta que constranja a


mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que
a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou
que a force a matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno, ou manipulação; ou que

545
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
(BRASIL, 2016).

A gradação desses tipos penais leva ao último estágio da


violência doméstica, quando esta culmina com o feminicídio.

A IDEIA PRÉ-CONCEBIDA DO FEMININO

A violência de homens contra mulheres está presente e


naturalizada na humanidade desde a Antiguidade, e apenas há
poucos séculos começou a ser questionada enquanto questão social
e de saúde pública, que viola os direitos humanos. A superioridade
masculina transpassa as fronteiras territoriais, culturais, étnicas e
socioeconômicas. E o movimento feminista do final do século XIX foi
o grande expoente desse questionamento.
Simone de Beauvoir provocou incômodo em 1946 ao
perguntar: “como metade da humanidade é uma minoria social?”. As
mulheres são maioria numérica, mas minoria social, no qual os
homens detêm os bens e ocupam posições de poder nas decisões
das sociedades. A autora desnaturalizou a condição feminina ao
evidenciar fatores sociais na construção das identidades masculina e
feminina. Para ela, “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
(BEAUVOIR, 1946/2000).
Nessa linha, os estudos de gênero surgiram para:

[...] contrapor o foco sobre o sexo biológico e a ideia da


existência de “uma suposta natureza” feminina e masculina.
Esse conceito trouxe a concepção de que papéis e
expectativas acerca de comportamentos femininos e
masculinos são o resultado de uma construção social que
varia de acordo com a cultura e o momento histórico de cada
546
sociedade. [...] Gênero é a construção social do masculino e
do feminino. [...] As pessoas aprendem a desempenhar os
papéis masculinos e femininos de acordo com regras, crenças
e tradições em função do contexto cultural de cada
sociedade. Há uma construção social diversa em cada cultura,
marcada pelo momento histórico, tempo e espaço em que as
pessoas vivem. (GUIMARÃES, 2015, p. 17).

Joan Scott (1995, p.85) trouxe grande contribuição ao afirmar


que “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos” e “gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder”. Assim, a relação
dialética entre eles implica que “qualquer informação sobre as
mulheres é necessariamente informação sobre os homens. Estudar
um, implica o estudo do outro”. (GUIMARÃES, p.16).
Às mulheres é dado o papel de cuidar das atividades
domésticas e o cuidado com os filhos, e ensinadas desde crianças a
serem emotivas e dependentes. Os homens, por sua vez, são
treinados para serem o chefe de família, independentes, livres e
racionais. Note-se que tais papeis geram uma necessidade de
conformidade por ambas as partes, que agem na busca de atender a
tais estereótipos. É claro que há um espectro de variedades dentro de
tal lógica binária simplista, visto que a realidade é mais complexa do
que podemos prever.
A partir dos demonstrativos estruturais da ideia pré-concebida
do feminino e da cultura patriarcal, entende-se que esta é uma
questão social que está inserida em uma subjetividade individual. E
para análise desta subjetividade, será utilizado o recurso da
psicanálise.
Criada pelo médico psiquiatra Sigmund Freud no final do
século XIX, a psicanálise é um método para investigação de processos

547
mentais, de escuta do inconsciente, por meio de sonhos,
pensamentos, sentimentos, fantasias e ato falho. A partir dos
atendimentos clínicos, nos quais os pacientes falavam de suas
neuroses, Freud desenvolveu sua teoria pelo método indutivo,
aplicável à diversos casos e situações.
Assim, a violência doméstica existente entre os casais
heterossexuais, no qual a mulher é a vítima, e o homem, o agressor,
pode ser analisada sob ambas as perspectivas. E a raiz da disfunção
dessa relação encontra-se na formação da personalidade e
subjetividade do homem e da mulher, que combinados, estabelecem
um arranjo violência.
A mulher perpetua na vida adulta o masoquismo primário, na
posição fundamental de não saber e de estar nas mãos do outro, se
deixando dominar, manipular e abusar. O agressor, portanto,
identifica na mulher o cerne do seu não saber, apresentado pela sua
falta de autoconfiança, para manipulá-la.
E na fantasia infantil de ser um sujeito ideal, concepção esta
rompida com o complexo de édipo, a mulher se questiona: onde foi
que o outro viu que eu sou falha?
É nesta fenda que a violência se mantém. Como uma forma
inconsciente de manter o homem no lugar ideal, de saber, de falo.
Pois a vítima, se enxergando enquanto falta, precisa do homem ideal
para viver.
Demonstrado o embasamento jurídico e psicanalítico acerca
da temática, a próxima seção apresenta os dados estatísticos do
índice de violência doméstica na região dos Inconfidentes.

ANÁLISE QUANTITATIVA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA REGIÃO


DOS INCONFIDENTES

548
Os dados do Monitor da Violência (parceria do G1 com o
Núcleo da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública) revelam que as lesões corporais dolosas em decorrência da
violência doméstica no Brasil reduziram 11% no primeiro semestre de
2020, comparado ao mesmo período de 2019. No mesmo período, os
casos de estupro caíram 21% e o estupro de vulnerável caiu 20%.
Com relação ao número de homicídios dolosos de mulheres
no país, este teve aumento de 2% no primeiro semestre de 2020,
comparado com o mesmo período do ano de 2019. Do total de 1.890
homicídios dolosos, 631 foram feminicídio.
Para todos os tipos e graus de violência doméstica que
ocorrem, até a ponta do iceberg com o feminicídio, as mulheres
negras, de periferia e com renda baixa foram as que mais sofreram.
O estado de Rondônia foi o que teve maior alta nas taxas de
homicídio doloso de mulheres no país, correspondendo a um
aumento de 255% no primeiro semestre de 2020 com relação ao
mesmo período de 2019. O Acre foi o estado com aumento mais
expressivo de feminicídios, com aumento de 167% no primeiro
semestre de 2020.
No nível nacional os dados demonstram queda das
notificações de violência doméstica e aumento do homicídio doloso
de mulheres, mas e na região dos Inconfidentes?
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública
de Minas Gerais apresenta os dados integrados, por município, de
ocorrências da Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e
Sistema Prisional. Com relação à violência contra a mulher praticada
pelo cônjuge, ex-cônjuge, companheiro e namorado, em ações cíveis
e criminais, de violência física, violência psicológica, violência
patrimonial, violência moral e violência sexual, os dados são:

549
GRÁFICO 1 – Comparativo do número de casos de violência
doméstica no primeiro semestre de 2019 e 2020

FONTE: Elaborado pelos(as) autores(as) com base na SEJUSP (2020).

GRÁFICO 2 – Comparativo do número de casos de violência


doméstica no segundo semestre de 2019 e 2020

550
FONTE: Elaborado pelos(as) autores(as) com base na SEJUSP (2020)104.

Com relação à taxa de feminicídio no período analisado, a


região teve um feminicídio em 2019, na cidade de Itabirito. Em
Mariana houve uma tentativa de feminicídio em 2019 e em Ouro
Preto, duas tentativas, sendo uma em 2019 e outra em 2020.
Resguardadas as diferenças sociais, étnicas, econômicas e
populacionais de cada cidade, os dados absolutos revelam que para o
primeiro semestre de 2020, Ouro Preto foi o único município a ter
queda no número de ocorrências de violência doméstica na região,
embora em termos comparativos, possui o maior índice de violência,
com relação ao mesmo período do ano de 2019. Itabirito e Mariana,
por sua vez, tiveram aumento nos casos.
No segundo semestre de 2020, Itabirito e Mariana mantiveram
alta nos índices. E Ouro Preto apresentou queda significativa nas
ocorrências deste tipo de violência.

É válido salientar que esses dados representam aqueles que


foram institucionalizados pelas agências de controle estatais e
conforme salienta a socióloga Ana Paula Portella, “o problema da
subnotificação é um problema grave para os crimes não letais, porque
depende da iniciativa da vítima. E, muitas vezes, as pessoas sofrem a
violência e preferem resolver o problema de outra maneira, e não por
meio da via institucional”. (MONITOR DA VIOLÊNCIA, 2020).

Contudo, a ponta do iceberg da violência doméstica, culminada com o


feminicídio não é subnotificada. Para a promotora de justiça Valéria
Scarance, “não há subnotificação de morte de mulheres. Mortes são
mortes, ainda que não registradas como feminicídio. Por isso, os

104
Os dados do segundo semestre de 2019 e 2020 correspondem ao
período de julho à novembro.
551
índices de assassinatos de mulheres representam um importante
indicador da evolução da violência de gênero no país”. (MONITOR DA
VIOLÊNCIA, 2020).

CONCLUSÃO
Conclui-se que a hipótese do aumento de violência doméstica
no período da pandemia do Covid-19 é parcialmente verdadeira, haja
visto que nos municípios de Itabirito e Mariana os índices se
mostrarem crescentes, mas em Ouro Preto, decrescentes.
De maneira geral, a microrregião dos Inconfidentes em Minas
Gerais não está em consonância com os dados nacionais que
apontam para redução de notificações de violência doméstica e
aumento do feminicídio.
A violência doméstica é uma questão multifatorial, que
engloba a estrutura de organização e funcionamento da sociedade,
passando pelo patriarcalismo e machismo, e as questões subjetivas
do sujeito que nela se encontra, incluindo seu inconsciente e
personalidade. O Direito, enquanto instância organizadora da
sociedade, cujo fim último é a busca pela harmonia e justiça, o faz por
meio de normas. E através da tipificação penal da violência doméstica,
órgãos estatais de controle se empenham em reparar os danos,
quando possível, para a mulher e para a sociedade.

552
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