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1 Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 13

Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 13


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Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 13
Direitos Autorais

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a ser desenvolvido.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 13

Breve Biografia do Autor

JOSÉ NEIVALDO DE SOUZA. É mestre em Filosofia e doutor em Teologia pela Universidade Gregori-
ana de Roma – Itália. Mestre em Psicologia Clínica com concentração em Psicanálise. É professor na pós-
graduação e no mestrado em Teologia da FTBP (Faculdade Teológica Batista do Paraná). Como professor
na Faculdade Evangélica do Paraná, leciona disciplinas ligadas às áreas da teologia, filosofia e psicologia

Avaliação, Instrumentos, Critérios


Avaliação única presencial: espera-se que o aluno leia o conteúdo de cada unidade, preparando-se para a
avaliação presencial que está marcada para o final do semestre.
Quando da avaliação, cada aluno receberá um texto (e o mesmo para todos). Após a leitura do mesmo,
será solicitado que o aluno discorra sobre o conteúdo, propondo uma relação entre o texto sugerido e o
conteúdo das unidades, que foi disponibilizado.

Apoio e Suporte ao Aluno


Além do apoio do Tutor, do apoio do Coordenador-Tutor do Pólo, o aluno terá à sua disposição o
suporte 0800, o suporte on-line via Internet, bem como a biblioteca na Sede da FTBP, as bibliotecas de
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apoio nos pólos e os links selecionadosemnossa biblioteca on-line.

Bibliografia Básica
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985.
BOCK, Ana. M. et Altri. Psicologias. São Paulo: Saraiva, 1999.
CONTE-SPONVILLE, André. A vida humana. São Paulo: Martins fontes, 2009.
GADAMER, Hans-georg. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006.
GESCHÉ, Adolfe. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.
KÖSTENBERGER, Andreas, j. (org.) Deus, casamento e família. Vida Nova: S\D
LELOUP, Jean-yves. O corpo e seus símbolos. Petrópolis: Vozes, 1998.
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2002.
MURAD, J.E. Drogas, o que é preciso saber. Belo Horizonte-MG, Ed. Lê. 1998.
PANASIEWICZ, R. Pluralismo religioso contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2007.

SOUZA, J. Neivaldo. Imagem humana a semelhança de Deus. São Paulo: Paulinas, 2010.

Bibliografia Complementar
ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di Filosofia. Torino: TEA, 1971.
ALVES, Rubem. Suspiro dos Oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1987.
BERARDINO, Angelo di (org.) Dicionário Patrístico e de Antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002.
BIBLIA. São Paulo: Vida Nova\Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.
CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008.
CASIMIRO, A. Dias\CHAVITT, R. Gedanke. Transtornos mentais e espiritualidade. Santa Barbara do
Oeste SP: Z3 editora e livraria, 2010.
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DIDAQUÉ. Col. Patrística: Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 2002.
FEUERBACH, L. Lessenza del Cristianesimo. Milano: Feltrinelli, 1975.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão (1927). Rio de Janeiro: Imago, 1974.
FROMM, Erich. Arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, s\d.
HARRINGTON, Wilfrid. Chave para a Bíblia. São Paulo: Paulus, 1985.
JONAS, Hans. Matéria, Espírito e Criação. Petrópolis: Vozes, 2010.
___, O Princípio Vida. Petrópolis: Vozes, 2004.
INACIO DE ANTIOQUIA. Carta a Policarpo. Col. Patrística: Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
IRINEU DE LION. Contra as heresias. Col. Patrística. São Paulo: Paulus, 1995.
LELOUP, Jean-yves. Cuidar do ser. Petrópolis: Vozes, 2001.
LOLAS, Fernando. Bioética. São Paulo: Loyola, 2001.
MILBY, Jessé b. A dependência das Drogas e seu tratamento. São Paulo, Ed. USP/Pioneira: 1988.

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ROTMAN, Flávio. Salvar o filho drogado. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1985.
OLIVEIRA, Pedro A.R.\MORI, Geraldo (org.). Religião e educação para a cidadania. São Paulo: Paulinas;
Belo Horizonte: Soter, 2011.
PLATÃO. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-crítica. Primeiras aproximações. Campinas, s\d.
___, “Diálogo e Ensino religioso” in Ciberteologia. Nº 33 – Ano VII – Janeiro/Fevereiro/Março 2011, pp.
20-48.
USARSKI, Frank (org.) O Espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.

Revistas e Sites:
Revista: Diálogo: revista de ensino religioso. São Paulo: Paulinas.
Revista: Família Cristã. São Paulo: Edições Paulinas.
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/tag/pastoral-da-sobriedade-regional-nnordeste-1-da-cnbb/ acesso
09\09\2013.
http://www.cebrid.epm.br/index.php acesso 02\08\2013.
http://www.direcionaleducador.com.br/edicao-72-jan/11/capa-educacao-e-religiao-na-escola-publica-direito-
do-educando-e-do-educador acesso 12\06\2013
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Sumário
Plano de Ensino ...................................................................................................................................... 07
Unidade 01
Teologia e problemas brasileiros ........................................................................................................... 08
Unidade 02
As drogas e a busca de sentido ............................................................................................................... 13
Unidade 03
A família como lugar de sentido ............................................................................................................ 19
Unidade 04
A saúde como problema ......................................................................................................................... 25
Unidade 05
A educação e religão: os desafios do ensino ......................................................................................... 29
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Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 13
Plano de Ensino
Ementa

Problemas brasileiros à luz da reflexão teológica: o sentido da vida entre as drogas e a família; saúde e
doença; religião, diálogo e ensino.

Objetivo Geral

Refletir, à luz da teologia, sobre alguns problemas comuns à humanidade, especificamente à sociedade
brasileira.

Objetivos Específicos

Expor alguns temas importantes à reflexão acadêmica;

Levar o aluno a uma consciência crítica capaz de argumentar em busca de soluções de problemas;

Facilitar ao estudante uma reflexão mais sistemática acerca de questões urgentes na sociedade brasileira.

Conteúdo Programático

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1. O Sentido da vida
2. As drogas e a busca de sentido
3. A família como lugar de sentido
4. A saúde como problema
5. Educação e religião: desafios do ensino
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 01

Teologia e problemas brasileiros

introdução

Não são poucos os problemas enfrentados Na esteira deste tema, à luz da teologia, seguem
no Brasil. Ultimamente, nos deparamos com outros que ajudam a pensar melhor questões
manifestações e essas se estendem aos confins pertinentes, não só à sociedade brasileira, mas a
do mundo. Mas o que especificamente querem todo mundo: família, saúde, educação religiosa
os manifestantes? Em geral, a manifestação e drogas.
já é um pedido socorro que se direcionam aos
abusos políticos e à corrupção generalizada. Em relação à família, enviesamo-nos pelas
Brasileiros e estrangeiros; jovens, adultos e palavras atribuídas a Leon Tolstoi: “A
velhos, todos clamam por mudança. verdadeira felicidade está na própria casa,
entre as alegrias da família”. A família é o
Entre as reivindicações, algumas apontam celeiro de bons cidadãos e, entre as alegrias que
para o sistema de saúde, educação, segurança, nela habitam, estão uma vida saudável, uma
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etc. Nesta direção, queremos ressaltar alguns boa educação e segurança. Sidarta Gautama
problemas a serem tratados em nosso estudo e orientava seus discípulos quanto ao segredo de
começamos com o mais importante entre eles, uma família saudável, observava que a saúde
pois busca atualizar um valor antigo e novo não é um problema a se lamentar, mas um
ao mesmo tempo: o sentido da vida. Tudo o olhar sábio e responsável pela vida presente. A
que buscamos, ainda que pensadores como família é também celeiro de uma boa educação.
Albert Camus e Jean-Paul Sartre pensem o Na Bíblia, encontramos em Provérbios 31.26:
contrário, é um sentido para a vida. Não somos “a boa educação consiste, principalmente, em
simplesmente seres “jogados” na existência falar com sabedoria e ensinar com amor”. Seu
ou um Dasein1, transcendemos o tempo e o princípio está no seio da família. Uma família
espaço em busca de sentido. Concordamos consistente, em todos os sentidos, é fortaleza
com Hans Jonas (2010, p. 26-27) ao dizer que contra problemas que hoje enfrentamos
na “explosão original”, juntamente com a em relação à falta de segurança, violência
matéria, surgiu a “possibilidade original” “da” e principalmente à toxicomania que vem
e “para” a transcendência. A existência, nesse assolando não só o Brasil, mas a humanidade.
sentido, é um caminho a um fim, predisposto
desde a origem.
1 Expressão cunhada por M. Heidegger e significa
“existência”.

1 - O sentido da vida

Qual é o sentido da vida? Eis a pergunta que ressuscitar uma filosofia que, há muito, parece
fundamenta nossa reflexão. O texto propõe estar dormindo: o sentido da vida.
algumas considerações acerca do assunto, num
momento em que os valores éticos e religiosos O que nos parece é que o sentido da vida, na
não passam de discursos bem elaborados em história do pensamento, não passa de uma
Congressos e altares religiosos. Num momento luta de ideias entre empiristas e racionalistas;
em que vemos eclodir a banalização da existência, existencialistas e idealistas. Propomos uma
calamos diante das ameaças, cedendo ao medo, reflexão que possa entender o sentido da vida
negando a coragem e a esperança. Cabe-nos numa dimensão mais holística, considerando que
pensar seriamente sobre o assunto a fim de o individuo, enquanto pessoa, não é só homo faber e
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 01
homo sapiens, mas espiritual, capaz de transcender a No mundo moderno e na Reforma, como trataram
própria existência em busca de algo que o realize. o tema? E atualmente como pensam o sentido?
São questões que se nos colocam como evento
Como trataram o tema na história do pensamento? antropológico.
Como o platonismo lidou com o tema? Como o
problema do sentido foi tomado pelo cristianismo?

2. O sentido da vida e o encontro da filosofia com a fé cristã

Platão, no século IV a.e.c., havia pensado sobre se orienta pela máxima: “as ideias movem a vida”,
o sentido da vida, contrapondo o mundo “real” mas sim, por uma certeza onde “a vida é dom de
das ideias ao mundo “irreal” das aparências. Para Deus”, e isso se testifica pela fé em Cristo que,
ele, vivemos uma vida de ilusões e, como numa pela inteira liberdade, mostrou o que é dar sentido
caverna escura, nada mais enxergamos senão à vida e à morte: “ninguém tira a minha vida, mas
sombras e vultos. Transcorremos nossa existência eu a dou livremente”. Esse testemunho aparece
achando que este mundo é verdadeiro, mas ele não nos evangelhos, nas epístolas de Paulo e nas Cartas
passa de ilusão e engano. Universais.
Buscar o sentido da vida, na perspectiva platônica, Os teólogos da igreja primitiva consideraram

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seria transgredir esta existência e deixar que a o pensamento platônico como um suporte
verdade brilhe nas trevas do erro que, segundo para a doutrina de Cristo. Mais tarde, na Idade
ele, nada mais é senão “opiniões” oriundas das Média, alguns pensadores cristãos aderiram ao
sensações físicas. As opiniões levam à injustiça, mas pensamento de Aristóteles como suporte para sua
a verdade, à justiça. A verdade, na perspectiva do teologia.
pensador grego, leva a uma vida com sentido, isto
é: “uma cura moral que nos disciplina e nos torna Justino Mártir, os Pais apostólicos, Orígenes,
mais justos”. Ela nos ensina a ter responsabilidade Irineu de Lion e Agostinho de Hipona, Anselmo
acerca do bem e do mal, como escreve: de Aosta e Tomás de Aquino compreenderam, a
partir da fé na revelação, que o sentido da vida
E se estou correto, fazer o Mal é o pior que pode pode começar ainda nesta terra, não se esgotando
ocorrer para aquele que o pratica, e maior mal ainda, na materialidade das coisas, mas as transcendendo.
se possível, é não ser punido por isto, que tipo de A realidade do Reino de Deus se expressa, segundo
proteção seria ridículo um homem não poder a maioria dos teólogos cristãos, na moral e na
prover para si próprio? Deveria ser, com certeza, a liberdade humana. Agostinho pensou acerca desse
contra o que nos causa maior mal.2 tema observando que, pelo livre arbítrio (bem
que vem de Deus), a pessoa encontra o sentido
O pensamento platônico, ao se encontrar com o de sua existência ao discernir as atitudes corretas
cristianismo, serve de analogia. No encontro com das erradas. Quem pratica a justiça, presente na
a fé cristã, o sentido da vida passa a ser pensado punição ou recompensa, pode entender que nela
a partir da pregação e vida de uma pessoa: Jesus Deus cobre de sentido a vida humana.3
de Nazaré. Não basta uma filosofia cuja certeza
2 Cf. Trad. D. Marcondes, 2007, p. 23. 3 Cf. Ibidem, p. 53.

3. O paradigma da modernidade

Na Modernidade, nos deparamos com a, assim de mundo heliocêntrica que abre ao ser humano a
chamada, virada antropológica. Pensadores possibilidade de outras verdades sobre a natureza
como Copérnico e Galileu entenderam que e o universo. Nessa nova era, o homem é o único
o ser humano podia encontrar já, ainda nesta responsável por seu destino. O sentido da vida
terra, uma verdade que oferecesse sentido à encontra-se em sua capacidade de conhecer e
sua existência. A cosmovisão geocêntrica que dominar a natureza.
justificava a teologia antiga cede lugar a uma visão
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 01
A Razão humana determina, juntamente com que chega somente pela experimentação científica.
a experiência advinda pelos sentidos, quem dá a D. Hume, em seu Tratado sobre a Natureza Humana,
“medida de todas as coisas”.4 O método cartesiano contesta a metafísica tradicional observando que
induz a uma nova epistemologia cujo ponto de a mente capta somente as percepções: ver, ouvir,
partida está nas coisas finitas e particulares. David pensar, amar, odiar, etc.. Para ele, isso também
Hume e John Locke, na Inglaterra, defendem pode recair sobre as atitudes morais, pois “aprovar
a teoria não como uma ideia absoluta a ser um caráter e condenar outro não passam de duas
concretizada, mas como projeção e descrição percepções diferentes”.5
de experiências particulares. A vida, nessa visão,
busca o seu sentido na abordagem de uma verdade
4 O sofista Protágoras, na época de Platão, já observa que
“o homem é a medida de todas as coisas”. 5 Cf. trad. D. Marcondes, 2007, p. 79.

4. a Reforma Protestante como reação cristã

A Modernidade exigiu uma reforma religiosa. A as Sagradas Escrituras a fim de levá-las ao


filosofia, até então serva da teologia, a abandona conhecimento dos leigos. O Deus da bíblia, antes
para servir à ciência. A Reforma Protestante, conhecido somente pelos sacerdotes, ora se faz
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longe de ser uma filosofia, retoma o caminho feito presente através de outras traduções. A. Gesché
pelos primeiros cristãos inaugurando uma nova expressa bem essa nova postura ao observar que
Renascença: a do espírito. O sentido da vida seria no domínio da fé é vivido de forma incondicional,
encontrado somente em Deus. Pelas Sagradas pois tudo passa a ser graça. Para ele, sob a ótica
Escrituras, Ele revela sua Graça a todo aquele da graça: “Tudo é graça, mesmo que seja útil e
que crê. Como conhecer Deus num momento em necessário. Tudo deve ser recebido como louco e
que a ciência se alimenta de novos conhecimentos gratuito, mesmo que haja contrato e obrigação. A
e se impõe como o único caminho de verdade? vida é dom, somente isso” (2005, p. 7).
O monge agostiniano, Martinho Lutero, traduz

5. O advento pós-moderno

Na Modernidade, a “virada antropológica”, teórico e o ressurgir de um humanismo sem Deus.


transfere ao ser humano a responsabilidade sobre Toda moral religiosa devia ser submetida à crítica
a vida. O Iluminismo, nessa direção, justifica a do Super-homem. Vemos emergir, em Nietzsche,
evolução humana pela revolução nas ideias e a a negação não só da cristandade, mas também
transferência do céu para a terra. A vida só tem da modernidade: é preciso que o homem seja
sentido nessa transição. Francis Bacon declarara o abandonado em favor do Super-homem.
saber como poder. O que antes era sinal de pecado,
ora é virtude, e a tecnologia, cada vez sofisticada, K. Marx, da mesma forma, expressa seu
poderia ajudar a ciência a se desenvolver e trazer descontentamento em relação ao Idealismo,
ao ser humano um “novo paraíso”. No final do produtor de uma sociedade burguesa e de alienações
século XIX e início do XX, deparamos com o ápice religiosas. Em oposição a uma sociedade do lucro,
de um pensamento cujo Deus nada mais é senão Marx anuncia seu protesto em favor da classe
projeção humana ou descrição de experiências oprimida, de maneira especial, os proletariados:
puramente existenciais. F. Nietzsche, K. Marx e S. “operários do mundo inteiro uni-vos”. Para Marx
Freud apresentam tal pensamento. o grito dos oprimidos se direciona também aos
opressores que tornam a religião “o ópio do
O grito revolucionário de Nietzsche se expressa em povo”. Dois gritos, dirigidos ao poder econômico
“Deus está morto” e “super-homem”. A morte de e religioso. A burguesia, segundo Marx, se
Deus, para o fundador do niilismo, é muito mais enriquece por manipular o capital gerando, através
uma constatação do que um prenúncio. No ápice da mais-valia, mais lucro. Se o burguês possui os
da Modernidade, ele viu a catástrofe do ateísmo meios de produção, a classe operária nada possui a
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 01
não ser força de trabalho. A “exploração” é força existência e de outro, necessitamos, em nome da
de trabalho transformada em dinheiro. É a partir sobrevivência, eliminar o outro, tanto no sentido
dessa realidade que, segundo ele, os vilipendiados físico, quanto psíquico e espiritual.
e explorados devem tomar consciência. Para
Marx, é preciso mudar a estrutura: a consciência Freud entende que a religião propõe um sentido de
deve nascer da relação de produções e, sob essa vida, porém tal sentido é produto de uma neurose
perspectiva, a vida humana pode produzir sentido. infantil da humanidade, presente no inconsciente.
Marx critica o sentido da vida pregado pela religião. Através dela as ilusões, não a verdade, são
Segundo ele, ao oferecer, na eternidade, uma vida fortalecidas: é o principio do prazer se opondo ao
feliz, a religião contribui para que a estrutura social princípio da realidade.
nesta terra permaneça injusta. Ao colocar sua vida O sentido da vida, para esses pensadores, está
nas mãos de um Todo poderoso, o ser humano se em buscar uma vida de sentido. Até a crítica ao
submete, e o sentido que teria na vida está em dar sentido da vida é uma forma de encontrar outro
sentido à outra existência que não é a sua. sentido. Talvez esse não seja o único problema,
S. Freud não revolucionou a sociedade, como já que Albert Camus havia dito que a “única”
Marx, mas trouxe uma nova descoberta ao questão que realmente faz sentido é a do suicídio.
ser humano que, até então, era desconhecido: O problema do sentido não é algo específico de
o inconsciente. Qual é o sentido da vida para um povo, mas da humanidade. Não são poucos os
pensadores brasileiros que o ajudaram e ajudam

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Freud? Freud não quis trabalhar a vida como
um sentido, mas como uma realidade posta. Para a pensar uma nova cultura. Jean Yves Leloup
ele, a filosofia ou teologia buscam um sentido observa que, partindo da via espiritual, os que
de vida a partir da consciência, porém somos buscam sentido para vida se esforçam, em geral,
determinados por um poder do qual não sabemos para acabar com o orgulho, pois esse é o começo
nada: é “um estranho em nossa casa” cujas forças da ilusão e sua ausência, o começo da verdade: “da
se dividem e confluem, Eros e Tanatos. Pulsão de ilusão brotam as diversas espécies de males e da
vida e pulsão de morte. De um lado, segundo ele, verdade, a multidão dos bens humanos e divinos”
somos impulsionados para a preservação de nossa (2001, p. 48).

Resumo

O problema do sentido da vida está em dar sentido colocados em dúvida: Nietzsche anuncia a morte
ao “non sens”. O Idealismo platônico mostra, de Deus e da humanidade ao proclamar o super-
através de suas alegorias, principalmente o mito da homem; Marx mostra a triste realidade dividida
caverna, que a vida humana não tem sentido a não pelo capital, observando que tanto a economia
ser na verdade e justiça. O Cristianismo, de base quanto a religião gozam de uma estrutura que
filosófica platônica, entende que o Ideal platônico aliena: a vida nas mãos alheia; Freud, da mesma
nada mais é do que o Reino de Deus anunciado forma, entende que a personalidade é determinada
por Jesus Cristo em oposição ao mundo onde “jaz pelo inconsciente na medida em que o ser humano
o maligno”. A Idade Moderna com o advento da alimenta uma neurose em cuja base está a pulsão
ciência faz uma “revolução” abrindo as portas de vida e a pulsão de morte. É nesse dinamismo
para a autonomia e emancipação do ser humano que o ser humano, ao buscar o sentido para a vida,
em relação ao divino. A Pós-modernidade nada mais faz senão encontrar uma solução para
anuncia que tanto os valores universais e infinitos matar a morte.
quanto os valores da ciência e técnica podem ser
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 01

atividades

Sei responder

Considerando o estudo da primeira unidade, faça os exercícios:


1. Em sua opinião, o que é sentido de vida?

2. Qual era o interesse de Platão nesse tema?

3. No encontro da filosofia idealista platônica com o Cristianismo, o foco do sentido da vida mudou.
Como podemos abordá-lo?

4. Como a modernidade tratou a questão?


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5. O que podemos dizer sobre a Reforma protestante em relação ao sentido da vida?

6. E a pós-modernidade como tratou o problema?

7. Escreva sobre a relação do Iluminismo com o problema do sentido da vida

8. Por que podemos dizer que esse tema é um problema que interessa ao Brasil? Dê sua contribuição.

Referências

GESCHÉ, Adolfe. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.


JONAS, H. Matéria, Espírito e Criação. Petrópolis: Vozes, 2010.
LELOUP, Jean-Yves. Cuidar do Ser. Petrópolis: Vozes, 1996.
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2002.
PLATÃO. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Sugestões para aprofundar o tema

GESCHÉ, Adolfe. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.


SOUZA, José Neivaldo. Imagem humana à semelhança de Deus. São Paulo: Paulinas, 2010.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02
as drogas e a busca de sentido

introdução

Na primeira unidade, fizemos uma reflexão sobre muitas vezes, de mãos atadas, frente a um grande
o sentido da vida. Vimos sua importância e seu arsenal, sem poder fazer muito.
alcance existencial, abordados por pensadores em
épocas diferentes da história. A Teologia não está Os capítulos que seguem é uma reflexão sobre
isenta dessa reflexão, pois, se pensarmos bem, o a toxicomania e o adolescente. Num primeiro
grande problema do ser humano está em saber se a momento, procuramos apresentar um panorama
vida tem sentido e se este se encontra na existência das drogas: o tráfico e o uso de drogas por crianças,
humana ou fora dela. Muita gente, ao buscar um adolescentes e jovens. Em outro momento, uma
sentido para a vida, vive uma vida sem sentido, revisão sobre o trabalho pastoral junto a essa
atribuindo poder a certas realidades, como se elas realidade ingênua e frágil, e a busca de propostas
fossem bússola de viagem e capaz de orientar em práticas, de investimento missionário nesta parcela
da sociedade que clama por sentido.

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direção à salvação.
Uma das realidades que constitui não só um Adolescentes e jovens passam não só por
problema no Brasil, mas no mundo, é a “droga”. transformações físicas, mas psíquicas e sociais.
Podemos perguntar se o uso abusivo de drogas, Nessa passagem, há o risco de conhecerem as
lícitas ou ilícitas, traz sentido à existência humana. drogas; por isso, urge uma reflexão que venha
Não são poucos os danos físicos, morais e considerar esse problema e os cuidados que se
psicológicos causados ao indivíduo e à sociedade. deve ter diante dele, pois uma vez abandonados à
Os males da dependência química geram outros sua própria sorte, o caminho de retorno é longo,
males de dependência: o usuário depende do difícil e doloroso. O tema é atual, presente nos
tráfico e, para manter o seu vício, muitas vezes meios de comunicação social, em congressos e
assalta e mata; a família do usuário é atingida reuniões de cúpulas do governo e nas igrejas. É
também ao ver que a solução para a cura de seu importante a continuidade do debate para que a
ente querido é muita escassa; o governo se vê sociedade, em geral, seja envolvida.
diante de outra autoridade, a dos traficantes e,

1. droga: uma realidade posta como solução de sentido

Droga, o que é? Não são poucos os autores que, ao “tóxico”.7 É neste segundo sentido que tratamos
tratar do conceito sob o ponto de vista médico e o tema.
farmacológico, descreve que, quando consumida,
é uma substância capaz de modificar as funções do Entre os consumidores de droga, em geral,
corpo.6 Essa modificação traz, muitas vezes, uma estão não só os mais pobres, mas os mais
determinada satisfação ou uma alegria passageira vulneráveis. São muitas as consequências, porém
e leva à dependência face ao vazio existencial e ao é importante observar que à carona da droga está
sentimento de liberdade. Há drogas favoráveis à uma diversidade de delitos, destruição familiar
saúde, quando utilizadas com controle, para fins e prejuízo moral e social. Essa é uma realidade
terapêuticos, e drogas maléficas que, sem o devido a ser abordada principalmente entre crianças e
controle, são objetos do vício e da violência contra adolescentes que buscam lidar com sua crise de
o próprio corpo, a este abuso denominamos existência. O prejuízo é enorme, e ROTMAN,
de forma clara, o expõe: “o tráfico crescente de

6 MILBY, Jessé b. A dependência das Drogas e seu 7 MURAD, J.E. Drogas, o que é preciso saber. Belo
tratamento. São Paulo, Ed. USP/Pioneira: 1988, p.2. Horizonte-MG, Ed. Lê. 1998. P.35
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02
drogas e o seu respectivo consumo entre crianças, idade entre 10 a 18 anos (52,2% de 10-14 e 47,5%
gestantes e adolescentes está se espalhando pelo de 15-18) e com situação escolar precária, sendo a
mundo de forma pandêmica, desestabilizando a maioria fora da escola (41,7% deixaram a escola e
estrutura das diversas nacionalidades, aniquilando 2,5% nunca conheceram escola).
a unidade da família e inclusive deformando, no
curso da gravidez, até quem ainda não nasceu para Os números aumentam ao mostrar o tempo que
a vida”.8 esses jovens viviam na rua. A maioria, 69,5%, vivia
na rua há mais de um ano e, entre os que tinham
Hoje, de cada 100 dependentes químicos, somente vínculo familiar, pelo menos 31,2% não tinham
cinco está em casa de recuperação e somente uma vivência em família. Não são poucos os
uma minoria consegue concluir o tratamento. motivos que levam crianças, adolescentes e jovens
Dados informados pela Pastoral da Sobriedade para as ruas. Entre estes, pelo menos 37,7% estão
do Regional Nordeste (CNBB) juntamente em busca de sustento.
com a Associação Brasileira Sobriedade e Paz
(ABRASP). Consciente desses dados e retomando Há mudanças de 2003 até hoje, e isso deve ser
as estatísticas passadas, vemos que o trabalho junto observado em relação aos tipos de drogas. O uso de
aos dependentes químicos é um desafio colocado crack e cola, por exemplo, aumentou e isso mostra
não só ao Estado, mas à igreja cristã. que a política de controle e repressão não foi
eficaz. Entre os usuários de drogas em 2003, quase
No Brasil, essa realidade vem sendo observada a metade expressou o desejo de parar ou diminuir
14

há décadas. O Centro Brasileiro de Informações o consumo, porém somente 0,7% procuraram


sobre Drogas (Cebrid) apresentou uma estatística ajuda e, ainda assim, com muitas dificuldades de
nas décadas de 80 e 90 demonstrando que aqueles acesso ao sistema de saúde, demonstrando uma
que vivem na rua são os mais atingidos por indiferença social. Os resultados são preocupantes,
essa realidade. Desde 2003, o interesse por esse pois apontam para outros riscos de saúde.
problema vem aumentando em paralelo com os
números estatísticos, pois tal realidade já não é tão O rompimento do vínculo familiar é observado
simples assim como o era em décadas passadas. como uma das principais causas. Pelo menos 26,6%
tinham uma relação ruim e 72,5% tinham rompido
Ana Regina Noto, pesquisadora do Centro com a família. Não basta o Estado assumir essa
Brasileiro de Informações sobre Drogas realidade, é preciso grande colaboração da família,
Psicotrópicas (CEBRID), observa que esse o seu papel é fundamental no controle e repressão
estudo vem ganhando proporções nacionais e das drogas.
internacionais ao demonstrar que, em algumas
capitais brasileiras, o problema vem se agravando É de se perguntar sobre nossa responsabilidade
cada vez mais. Ela nos relata que, em 27 face ao problema. Ao depararmos com essa
capitais brasileiras, foram entrevistados, sob um realidade, não só questionamos nossa atitude, mas
questionário elaborado pela Organização Mundial nos propomos trabalhar para que haja mudança e
da Saúde (OMS), em 2003, 2.807 jovens (75,5% que não só o individuo seja beneficiado, mas toda
do sexo masculino e 24,5% do feminino) com a a sociedade. Há uma reflexão capaz de iluminar os
caminhos sombrios dessa realidade?
8 ROTMAN, Dr. Flávio, Salvar o filho drogado. Rio de
Janeiro, Ed. Record, 1985, p.09.

2. Uma reflexão à luz da fé bíblica

As drogas são uma realidade, principalmente entre sentirem meros provedores.”9 E quando os pais
crianças, adolescentes e jovens. Essa situação nem provedores são? Como fica o problema?
tende a aumentar cada vez mais, pois como bem Eis uma questão a ser pensada em favor de uma
observa TIBA: “hoje os adolescentes são muito política que cultive e invista na família como o
apegados ao seu mundo social, seus amigos, seus primeiro órgão de apoio contra a falta de sentido.
programas, suas viagens, a ponto de seus pais se
A ética, enquanto reflexão sobre a moral e as leis,
9 Ibidem, p.33
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02
surgiu na antiga Grécia e tinha o propósito de ao sentido espiritual, eles careciam de uma boa
humanizar a sociedade e beneficiá-la em favor da orientação religiosa que os conduzisse à verdade e
saúde física, psíquica e espiritual. No encontro com ao cumprimento dela. O templo, ligado ao poder,
o Cristianismo, alguns valores foram agregados apesar de deter as Escrituras, as usava em favor
ao objeto da ética e outros fortalecidos. Entre os de interesses próprios, dificultando a inclusão de
fortalecidos está o amor. todos no plano divino. Jesus retoma o projeto
do Deuteronômio: resgate de uma sociedade
Como tratar o problema das drogas considerando construída sobre os mandamentos de Deus.
valores como responsabilidade e cuidado? Do Nessa sociedade, a exclusão não agrada a Deus e
ponto de vista de uma teologia cristã, entendemos todos são chamados a participar, como eleitos, da
que a droga, assim como tudo o que leva ao nova sociedade. No projeto de Deus, segundo a
pecado, traz malefícios ao indivíduo e à sociedade. novidade de Cristo, os pobres são incluídos.
Não ligamos a droga ao pecado, mas é importante
uma reflexão acerca de tudo aquilo que causa Libertar os cativos. Ao perguntarmos sobre o
dependência e oprime. que é cativeiro, deparamo-nos com o significado
atual do termo. Quando alguém mantém no
Em algumas passagens do Novo Testamento, cativeiro uma pessoa, um grupo ou uma classe
encontramos pistas para uma reflexão sobre o está impossibilitando a liberdade, o direito de
problema. No evangelho de Lucas (4.16-22), sob todos de ir e vir, de existir. O cativo vive a mercê
o qual buscamos algumas luzes, encontramos

15
do torturador, sob o medo e o desespero. Jesus
uma passagem interessante. O contexto literário atualiza o texto de Isaías. Se o profeta falava do
é o seguinte: Jesus, como de costume, entrou cativeiro físico, provavelmente o da Babilônia,
num dia de sábado na sinagoga de Nazaré. Ali lhe Jesus fala do cativeiro do coração. Ser cativo,
entregaram o livro do profeta Isaías, e ele o abriu em sua própria terra, é o pior dos cativeiros.
na passagem que diz: “O Espirito do Senhor está Jesus, no evangelho de João (8.31-32), diz:
sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar “Se permanecerdes em minha palavra, sereis
os pobres; enviou-me para proclamar libertação verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a
aos cativos e restauração da vista aos cegos, para verdade e a verdade vos tornará livres”.
pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano
aceitável do Senhor”. Depois de fechar o livro, Restaurar a vista aos cegos. Os olhos são a janela
diante das pessoas que tinham os olhares fitos da alma? Todos nós, com exceções, nascemos
nele, interpretou que naquele momento acabara com a capacidade de enxergar, porém, sob o
de se cumprir as Escrituras. ponto de vista cristão, remetemo-nos não ao dado
puramente físico da visão, mas em sua condição
É o inicio do ministério de Jesus. Ele acabara de contemplativa, um olhar cuidadoso capaz de
ser batizado por João Batista e de ser tentado transcender aos fenômenos.10 Jesus resgata aos
no deserto. Na sinagoga, ele anuncia que a “cegos” de sua escuridão, a graça de enxergar a vida
missão pela qual dará a própria vida é a mesma sob outro prisma: o do encontro. É sob o olhar
do profeta Isaias: 1) Evangelizar os pobres; de Jesus que o ser humano aprende a enxergar
2) Libertar os cativos; 3) Restaurar a vista aos uma vida nova. Jean-Yves Leloup (1998, 130), em
cegos; 4) pôr em liberdade os oprimidos, e 5) sua meditação sobre o olhar, expressa, de forma
apregoar o amor de Deus. simples, esta nova realidade: “olhos abertos, olhos
Evangelizar os pobres. A palavra Evangelho vem claros e luminosos. Entretanto, há olhos opacos,
do grego e significa “boa notícia”. Jesus atualiza a olhos sem visão. É muito duro ser olhado por
boa notícia de Isaías observando que os pobres, olhos sem olhar. Porque, então, ficamos reduzidos
na economia da salvação, têm o seu lugar. Numa a uma coisa, a um objeto. Não há o encontro de
terminologia bioética, os mais “vulneráveis” deste pessoa a pessoa, de coração a coração”.
mundo é um endereço a partir do qual o Reino Pôr em liberdade os oprimidos. O que é opressão?
de Deus se revela. Amar a Deus, sobre todas as Podemos falar de três tipos de opressão: física,
coisas, se concretiza no amor ao “próximo”. psíquica e espiritual. No que diz respeito ao
Os mais vulneráveis não têm acesso à qualidade
de vida, em todos os sentidos: na saúde física e, 10 Cf. SOUZA, J. Neivaldo. Imagem humana à semelhança
particularmente, espiritual. No que diz respeito divina. São Paulo: Paulinas, 2010, pp. 35-36.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02
primeiro, entendemos que tal situação leva ao ano de graça do Senhor. No Primeiro Testamento,
abandono do próprio corpo. O corpo físico já não as passagens relacionadas ao ano de graça dizem
é mais o lugar da realização. Reduzido à dimensão respeito ao plantio e à colheita. No Segundo
carnal, o físico se agarra em pequenos prazeres Testamento, refere-se ao amor de Deus que, através
como sentido. A satisfação de tais prazeres ora de Jesus, é plantado e colhido, independente do
vem como ópio, uma droga passageira que, tipo de terra (Mc 4.1-9). Todos são chamados à
por alguns momentos, traz um sentimento de vida, inclusive os mais necessitados.
felicidade eterna. A degradação física aponta
para outra: psíquica. O sentimento de vazio ou Não faltam passagens ilustrativas para uma
de constante angústia diante da realidade leva reflexão ética. Os valores morais são importantes
ao estresse e à depressão. Também em relação na sociedade: eliminar os hábitos que levam aos
à opressão espiritual, entendemos que a causa vícios e à dependência faz parte do plano de
está no favorecimento a outros deuses menores. humanização, e o Estado, visando aos benefícios
Tais pessoas precisam se libertar. Jesus resgata os sociais, se preocupa com isso. Sob a ótica cristã, tais
oprimidos do lamaçal da opressão devolvendo a valores transcendem a justiça social, econômica ou
eles o amor, a fé e a esperança. política, eles têm uma teleologia do alto, por isso
seu olhar é contemplativo e esperançoso.
Apregoar o amor de Deus. Isaías anunciava um
16

3. Por uma ação pastoral frente às drogas

Vimos, através de dados, ainda que antigos, que realidade e julgá-la à luz da Palavra Deus, eis
as drogas são uma realidade. Talvez, no primeiro o segundo passo nesse processo. Tudo o que
momento, a tendência humana seja cegueira ou colabora para o pecado e a degradação humana
indiferença diante do problema, porém, ao lermos devem ser combatidos. Essa situação não agrada
o Evangelho de Lucas, percebemos que não somos a Deus. A igreja, sinal do Reino na terra, tem
chamados para sermos trevas, mas luzes. A partir uma missão também nesse campo: ensinar, curar
dessa nova consciência e dos valores que realmente e libertar a todos os que necessitam. O campo
importam, nossas ações missionárias devem dos necessitados é vasto, o de usuários de drogas,
ser transformadas. Em outras palavras, somos vem crescendo cada vez mais. São pessoas que, ao
semeadores do Reino de Deus e devemos fazê-lo buscarem um sentido de vida, não o encontram a
frutificar no coração das pessoas, principalmente não ser na ilusão que a droga produz. Há inúmeros
daquelas que mais clamam por Ele. textos bíblicos que ajudam a pensar e trazem luzes
para iluminar a situação de trevas.
Buscamos luzes para uma pastoral junto aos
usuários de drogas, principalmente àqueles mais No Primeiro Testamento, os Salmos podem
necessitados: os que vivem na rua e os que estão ajudar, pois há, para situações específicas,
na rua. É importante formar um grupo que se mensagens e reflexões específicas. Por exemplo:
interesse pelo problema e, à luz da Palavra de há salmos de súplica, motivados pela aflição
Deus, refletir sobre a melhor maneira de acolher individual diante dos perigos de doença e morte.
essas pessoas e inseri-las no plano da salvação. Há também outras classificações: penitência, ação
de graças e louvor que podem ajudar segundo a
Não basta saber da existência de drogados nas realidade apresentada.
ruas, isso todo mundo sabe, é preciso visitar os
locais, ouvir essas pessoas, ter conhecimento de Fora os salmos, a literatura profética também é
suas aflições, de sua fé e esperança. Ver é também interessante, pois exalta o chamado de Deus e a
se inteirar estatisticamente do número de pessoas missão neste mundo: “anunciar” o Reino de Deus;
que estão nessa condição e o lugar onde elas se “renunciar” a situações que aparentemente dão
encontram. Inteirar-se dessa realidade é o primeiro prazer e oferecem um sentido enganoso de vida;
passo para uma ação pastoral junto aos jovens “denunciar” tudo aquilo que destrói a vida e seus
drogados “de” e “na” rua. valores fundamentais.
Os desafios são muitos. Tomar consciência da No Segundo Testamento, os evangelhos sinóticos
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02
e João são interessantes. O discipulador pode A partir de uma reflexão bíblica o grupo pode se
se colocar no lugar dos discípulos e sentir, aventurar e agir. O caminho se faz caminhando,
com eles, que sua realidade deve ser superada porém é necessário que nessa estrada, as pessoas
na companhia de Jesus de Nazaré. Enfrentar que ali estão tenham em comum um objetivo:
as provações, no caminho de Cristo e de sua acolher os novos irmãos e fazê-los se sentir em
comunidade, é algo inovador. O jugo se torna casa; alimentá-los com outro alimento: o pão da
mais leve e fácil de ser carregado. Palavra que de fato mata a fome e preenche de
sentido o vazio; libertá-las do jugo das drogas
No evangelho de Mateus, principalmente o trazendo novas possibilidades e visões. O trabalho
“sermão da montanha”, Jesus traz uma proposta pode ser estendido à família dos usuários de
ética, isto é, de solidariedade e esperança. Também drogas. Ali também há alguém que sofre e precisa
os evangelhos de Marcos e Lucas, através das de apoio e orientação.
parábolas e milagres de Jesus, podem levar a uma
reflexão sobre a presença real de Cristo em meio É fundamental um planejamento. Entre as drogas,
ao sofrimento e luzes para transformação pessoal. o crack, além de ser a droga mais nociva, é também
A literatura joanina apresenta o caminho através a mais comum, pois já chegou a quase todos os
do qual o acesso à felicidade se torna possível. municípios brasileiros, no interior, no campo,
Deus, em Jesus de Nazaré, se mostra claramente até entre os índios. O trabalho de prevenção
e, através dos sinais, aponta para um reino de é importante, mas é preciso olhar para os

17
amor e de verdadeira alegria. Fora os evangelhos, dependentes para que eles recuperem o verdadeiro
as cartas, principalmente de Paulo, Tiago e Pedro, sentido da vida. Podíamos alargar nossa reflexão
ajudam a trazer luzes para uma prática junto aos aos alcoólatras, mas preferimos delimitar o tema
mais necessitados. a fim de pensar melhor e de forma mais objetiva
o problema.
Vimos o quanto é importante julgar a realidade
a partir das Escrituras Sagradas. Só a partir dessa A motivação do grupo é a “novidade” que o Reino
situação se pode eliminar o preconceito e buscar de Deus traz na pessoa de Jesus de Nazaré. As
novas formas de acolhida e trabalho junto a essas reuniões devem ser alegres e otimistas, mas o
pessoas. A Bíblia nos ajuda a julgar, principalmente trabalho também. Os agentes de pastoral devem
quando, na presença de Jesus, percebemos que não ser revolucionários nessa nova proposta. O único
é o pecador o mal a ser extirpado da sociedade, mas lugar diferente do mercado de capital, onde o
o pecado ou tudo aquilo que desgraça e obstrui o campo é grande e os trabalhadores são poucos, é
acesso à felicidade, a Deus. o campo da espiritualidade e do plantio do Reino
de Deus.

Resumo

As drogas não são um problema somente para o e sociais trazidos pelo uso das drogas são muitos.
Brasil, mas mundial. As motivações, que levam A dependência química gera outras dependências.
crianças, adolescentes e jovens a buscarem nas O texto procura abordar o tema partindo de uma
drogas um momento de felicidade podem estar metodologia simples: ver a realidade das drogas,
ligadas à falta de segurança familiar, à falta de uma em números estatísticos; julgar esse mal a partir da
boa educação e, principalmente, à falta de sentido. bíblia e pensar pistas práticas de trabalho a fim de
O abuso de drogas, lícitas ou ilícitas, traz sentido à ajudar aos interessados por esse campo de missão
existência humana ou é um falso sentido? Eis o que vasto e complexo.
o tema procura trabalhar. Os prejuízos familiares
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 02

atividades

Sei responder

1. Faça, em cinco linhas, um resumo do texto aprendido.

2. Por que as drogas constituem um problema a ser repensado?

3. Quem são os maiores desfavorecidos em relação ao uso de drogas no Brasil?

4. O número de dependentes químicos aumentou desde 2003? Qual a causa principal?

5. Como você ligaria esse tema ao tema do sentido da vida?

6. Como você ligaria esse tema ao tema da família?

7. Como você ligaria esse tema ao tema da saúde?


18

8. Como você ligaria esse tema ao tema da educação religiosa?

Referências

BIBLIA. São Paulo: Vida Nova\Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.


CONTE-SPONVILLE, André. A vida humana. São Paulo: Martins fontes, 2009.
HARRINGTON, Wilfrid. Chave para a Bíblia. São Paulo: Paulus, 1985.
LELOUP, Jean-Ives. O Corpo e seus símbolos. Petrópolis: Vozes, 1998.
MILBY, Jessé b. A dependência das Drogas e seu tratamento. São Paulo, Ed. USP/Pioneira: 1988.
MURAD, J.E. Drogas, o que é preciso saber. Belo Horizonte-MG, Ed. Lê. 1998. P.35
ROTMAN, Flávio. Salvar o filho drogado. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1985.
SOUZA, J. Neivaldo. Imagem humana à semelhança divina. São Paulo: Paulinas, 2010.
Sites:
http://www.arquidiocesedefortaleza.org.br/tag/pastoral-da-sobriedade-regional-nnordeste-1-da-cnbb/
acesso 09\09\2013.
http://www.cebrid.epm.br/index.php acesso 02\08\2013.

Sugestões para aprofundar o tema

MILBY, Jessé b. A dependência das Drogas e seu tratamento. São Paulo, Ed. USP/Pioneira: 1988.
MURAD, J.E. Drogas, o que é preciso saber. Belo Horizonte MG, Ed. Lê. 1998.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03
a família como lugar de sentido

introdução11
século XIX, que antes da família monogâmica,
Tendo em vista as grandes mudanças culturais e existiram outros modelos de família com base em
o emergir de um novo paradigma voltado para casamentos diferentes: a consanguínea (união entre
uma visão mais pluralista e menos exclusivista, irmãos e irmãs carnais e colaterais); punaluana
perguntamos: “e a família, como vai?” Essa (união de várias irmãs, carnais e colaterais, com o
pergunta nos leva a pensar sobre o que de fato marido de cada uma das outras: grupo de homens
é família, como ela foi concebida na história do casado com grupo de mulheres); sindiásmica (sem
Ocidente e quais são os novos modelos emergentes. obrigação de morar junto: somente pelo desejo);
Eis algumas questões que se nos colocam neste patriarcal (casamento de um homem com muitas
início do século XXI: podemos ainda falar de mulheres) e monogâmica (casamento de duas
família, no sentido tradicional do termo, ou pessoas que se unem, não só pelo desejo, mas pelo
devemos pensar sobre os novos modelos que, em compromisso de coabitação e exclusividade).

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nossa sociedade, clamam por compreensão? Eis o Tendo em vista estes pressupostos, propomos,
que pretendemos discutir. além disso, uma reflexão que venha tratar do
Para entendermos os desafios da família, é problema a partir de duas realidades: divina e
importante recorrermos à história, principalmente humana. Tais considerações apresentam os “novos
aos modelos que tradicionalmente vêm se desafios”, principalmente à família monogâmica e
impondo. Lewis Hanry Morgan observou, no ao entendimento sobre a diferença entre família
como instituição “revelada” por Deus e família
11 Este capítulo é resultado de um estudo apresentado no como projeto humanitário? Quais são os principais
X Congresso de Teologia da PUCPR (3-5 outubro de 2011) desafios colocados ao esse pequeno núcleo social?
cujo tema foi: “Teologia, Gênero e expressões: Para onde
caminhamos?”.
Eis o que vamos tratar nos tópicos posteriores.

1. Família: modelo divino

Há dicionários que trazem o conceito de família de No sentido religioso, incluindo as três grandes
forma bem limitada: “pessoas do mesmo sangue religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e
que vivem ou não em comum”. Essa definição Islamismo, o modelo de família de origem divina é
não expressa, de fato, o seu verdadeiro sentido. O patriarcal: o modelo de família revelado por Deus
termo Família vem do latim e indica, em oposição tem valor absoluto e infinito, o que garante sua
à concepção anterior: “conjunto de pessoas que verdade. Assim, a família terrena deve ser à imagem
vivem sob o mesmo teto” compreendendo o pai, e semelhança da família sagrada, isto é, como dizia
no regime patriarcal, como chefe da casa e a seguir H. Bergson: deve gozar da “existência real do ser
os agregados: mulher ou mulheres, os filhos, servos com o qual acredita estar em comunhão”.
e escravos. Em grego, a palavra oikoz (oikos) é a
mais apropriada e indica: “tenda” ou “morada”. No Primeiro Testamento, a família de Abraão é,
Assim, em sua origem, “família” tem um sentido ao mesmo tempo, uma família modelo, por conta
mais amplo e quer dizer: “casa”, entendida como da obediência a Deus, mas, péssimo exemplo para
“intimidade”, incluindo todos, de “vínculo” não quem, a todo custo, procura resolver suas próprias
só biológico, mas social, afetivo e educacional. dificuldades e limitações: lembramos aqui que Sara,
Família, nesse sentido, diz respeito às pessoas com o consentimento de Abraão, tentou resolver
intimas: filhos adotivos e biológicos, criados, sua angústia propondo que Abraão fecundasse
escravos e inclusive os animais que convivem sob Agar, sua escrava, e resolvesse, ao mesmo tempo,
uma lei paterna ou materna. dois problemas: o da sua infertilidade e o da falta
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03
de herdeiro para Abraão: “Vê, eu te peço: Iahweh o aborto, o infanticídio e o abandono de crianças.
não permitiu que eu desse à luz. Toma, pois a Isso não ficava só na teoria, era responsabilidade
minha serva. Talvez por ela eu venha a ter filhos”. do bispo dar uma família aos abandonados, isto
Abraão, não só obediente à sua mulher, mas à é, deviam acolher os órfãos da comunidade,
voz da sua própria consciência e, sem saber que a aceitá-los por filhos, educá-los no bem e ajudá-
boa intenção também corrompe, fez o que devia los a arrumar um bom trabalho. Também com
fazer. Agar teve um filho de Abraão ao qual deu o relação às viúvas e aos escravos da comunidade,
nome de Ismael. Não demorou muito, Sara, depois os bispos deviam ter alguma responsabilidade.
de adotar Ismael, concebeu Isaac; também não Entre os Pais apostólicos, Inácio, o terceiro bispo
demorou muito para que ela, possuída de ciúmes na sucessão de Pedro, exortava a Policarpo: “Não
em relação ao filho, excluísse da família, juntamente deixeis de atender as viúvas; depois do Senhor,
com Abraão, Agar e Ismael. Conta a Bíblia que és tu que deves cuidar delas. Nada seja feito sem
Deus resgatou a serva e seu filho formando outra teu parecer e não faças nada sem Deus, como de
família. Esta, logicamente, sem pai. fato não o fazes. Sê firme. Que as reuniões sejam
mais frequentes; convida a todos nominalmente.”
No Segundo Testamento, o apóstolo Paulo, O cuidado com as viúvas não se limitava aos
provavelmente olhando para o mau exemplo deveres da igreja, através do bispo, mas se estendia
da família de Abraão, propõe que a esposa seja às próprias viúvas. Policarpo de Esmirna pedia
submissa a seu marido, porque assim quer o às viúvas para serem sábias e intercessoras junto
Senhor; que o marido ame sua esposa e não a
20

ao Senhor: “fiquem afastadas de toda calúnia,


trate mal; que os filhos obedeçam a seus pais e que maledicência, falso testemunho, amor ao dinheiro
os pais não irritem ou desanimem os filhos, pois e qualquer mal. Saibam que elas são o altar de
isso agrada a Deus; que os servos obedeçam a seu Deus, e que ele examina, minuciosamente, cada
senhor, de coração, e o senhor cuide para que o coisa, e nada lhe escapa de nossos pensamentos,
servo não se desagrade e fuja, porque Deus quer sentimentos e segredos do coração.” (Fil., 4.3)
assim. (Cl 3.18-22). Para Inácio se deve também cuidar dos escravos,
Na época de Paulo, o direito romano entendia como está escrito na carta a Policarpo: “Não
que o matrimônio é uma lei a ser respeitada para desprezes os escravos e as escravas. Contudo, que
o bom andamento da família, mas com a chegada eles não se inflem de orgulho, mas que sirvam com
do Cristianismo, tal lei teve caráter ético-espiritual: maior zelo para a glória de Deus, a fim de obterem
esposo e esposa têm o mesmo valor diante de de Deus liberdade maior. Que eles não procurem
Deus. Clemente de Alexandria entendia que o tornar-se livres à custa da comunidade, para não se
único objetivo da relação sexual é a procriação tornarem escravos do desejo.” (4.1-3).
(Cf. Stromata, III, 58, 62), não para desvalorizar Na família, isto é, na casa, segundo os Pais da Igreja,
a mulher, mas para dar mais dignidade a ela e deve haver um código moral a ser respeitado: na
preservá-la daqueles que buscam de forma egoísta relação conjugal, o casal encontra-se em pé de
a satisfação e o prazer. Nessa linha, Justino de igualdade, porém no governo da casa, à imagem
Roma, em seu Diálogo com Trifão (93. 3), escreveu de Cristo, da igreja e da sociedade da época, devia
que o amor deve ser o motor que move, não só o haver uma hierarquia: na antiguidade judaico-cristã,
casal, mas toda relação humana, pois quem “ama o chefe de família era o marido, o pai, o senhor. O
ao seu próximo como a si mesmo, desejará para mesmo Inácio, bispo de Antioquia, em sua carta
ele os mesmos bens que deseja para si próprio, a Policarpo escrevia: “Dize às minhas irmãs que
porque ninguém desejará males para si mesmo.” amem o Senhor e se contentem com seus maridos
Os primeiros teólogos cristãos contestavam uma física e espiritualmente. Recomenda também aos
moral machista prejudicial à dignidade feminina, meus irmãos, em nome de Jesus Cristo, que amem
porém, no que diz respeito à economia e à salvação suas esposas, como o Senhor ama a Igreja.” (5.1-
da família, cabia ao pai essa responsabilidade. 2). O bispo de Esmirna, Policarpo, queimado
Irineu de Lion, de forma poética, dizia que a vivo por ter destruído ídolos pagãos, também
esposa devia estar pura para o esposo, assim exortava aos fiéis, em sua carta aos Filipenses, a
como o templo para o espírito (Adversus Haeresis cultivarem a família como imagem da igreja: às
V. 9, 4). A maioria dos pais da igreja abominava esposas aconselhou que caminhassem na fé, no
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03
amor, na pureza e na fidelidade a seus maridos; Martinho Lutero (1995, p. 335), que, ao exortar
e aos filhos que fossem educados no temor de alguém acerca da educação dos filhos, aponta para
Deus. (4.2). Sobre a educação dos filhos e o trato o projeto divino da família:
com os escravos, a Didaqué, um dos primeiros
compêndios de preceitos morais e instruções para Deus não deu os filhos e teu sustento somente para teu
a comunidade cristã, observa: “Não descuide de prazer ou para educá-los para a pompa d o
seu filho ou de sua filha; pelo contrário, instrua- mundo. Exige-se de ti seriamente que os eduques para
os desde a infância no temor de Deus. Não dê o serviço de Deus, ou então serás erradicado com
ordens com rudeza ao seu servo ou à sua serva, filhos e tudo, de modo que seja condenável tudo o que
pois eles esperam no mesmo Deus que você, para investes neles, como diz o primeiro mandamento:
que não percam o temor de Deus, que está acima “visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e
de uns e outros. Com efeito, ele não virá chamar a quarta geração daqueles que me odeiam.”(Ex 20.5).
pessoa pela aparência, mas aqueles que o Espírito A Bíblia, a Patrística e Tomás de Aquino deixam
preparou.” (4.9-10). transparecer que a família, apesar de se construir
Na Idade Média, Tomás de Aquino entendia que na terra, em meio a desafios, ela está no projeto de
a família é a ponte entre o indivíduo e a sociedade Deus e deve comportar não só os descendentes
(II-II, q. 50, a. 3) e, assim como o rei tem autoridade ou ascendentes consanguíneos, mas todos os que
sobre a sociedade, na família, a autoridade deve formam um corpo no sangue de Cristo. Essa ideia
aparece na Teologia católica do Concilio Vaticano

21
ser exercida pelo pai, compete a ele o “poder”, os
trabalhos e a economia da casa. A família encontra II, especificamente no documento Lumem Gentium
sua razão de ser em Deus. 43, ao observar que a família foi querida por
Deus a fim de se desenvolver para o bem de seus
Essa ideia aparece no grande reformador cristão, membros e o bem do corpo de Cristo.

2. Família: modelo humano

Na Modernidade, o modelo de família revelado natureza: “o deus do homem não é nada mais do
por Deus é questionado por grandes pensadores que a essência divinizada do homem, portanto
humanistas, e isso retrata o contexto sócio- a história da religião ou, o que dá na mesma, de
cultural do século XVIII – XX. Neste parágrafo, Deus..., nada mais é do que a história do homem.”
gostaríamos de ressaltar a crítica moderna sobre o Nesse caso, quando pensamos a família à luz do
modelo divino de família e a consequência de tal pensamento de Feuerbach, trazemos uma reflexão
pensamento hoje. limitada e transformamos o modelo de família,
Em sua crítica, Feuerbach, Freud e Nietzsche encontrada na Bíblia e na tradição, em família
entenderam que toda visão de mundo, cuja base puramente humana cujos membros divinizam suas
religiosa é o sentimento religioso, nada mais é próprias expectativas futuras. Segundo esse autor
senão uma construção da insegurança e do medo “não existe nenhum Deus, ou seja, nenhum ente,
diante do futuro. Essa ideia seria bem elaborada abstrato, supra-sensível, diverso da natureza e do
pelo filósofo L. Feuerbach ao observar que o poder homem que decide sobre o destino do universo e
divino nada mais é senão a personificação dos da humanidade a seu bel-prazer” (p. 29).
fenômenos naturais que produzem nos homens o K. Marx, companheiro e ao mesmo tempo rival de
mais alto grau de medo. Tudo que vem a reboque Feuerbach, envereda sua crítica, não em direção
da religião é, para ele, temor que o homem sente ao homem singular, mas ao homem social. A
não de Deus, mas dos seus próprios limites, isto família pensada, segundo a vontade de Deus, é
é, de si mesmo. Podemos ler isso em sua obra para ele objeto de crítica, pois para ele, a essência
Essência da Religião (1989, p. 23) onde dá a entender da religião “revelada” nada mais é senão a essência
que nenhuma revelação traria do infinito a verdade das relações sociais e econômicas. Assim, Deus,
sobre o ser humano. Para ele, a consciência religião e tudo o que gira ao redor da divinização
humana iludida se acha capaz de pensar além de si são produtos das relações humanas. Nessa direção,
mesma, mas nada mais pensa, senão a sua própria por mais que se procure provar que Deus tem um
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03
projeto para a família, tal prova vai se limitar a sob o plano divino, também tende a morrer.
uma projeção ou fruto da alienação pessoal e suas
relações. Nesse caso, uma família que busque em A crítica que se faz a esses grandes pensadores é
Deus e na doutrina religiosa orientação para a sua que a religião não morreu, parece que se fortaleceu
vida, nada mais busca senão abastecer suas próprias ainda mais na pós-modernidade. Mas e a família,
necessidades, porém sem ter consciência disso. enquanto vontade revelada de Deus ao homem,
Uma família assim não seria para Marx causa do ainda continua, mesmo tendo que enfrentar os
mal social, mas, por se pautar em uma idealização, desafios colocados pela técnica e a ciência?
passa a ser uma ideologia que, sem os pés no chão, Como pensar a família sob o ponto de vista divino,
justifica a exploração no trabalho, a dominação considerando a emancipação feminina e o papel
de uma classe sobre a outra, a propriedade da mulher, situações diferentes da época de Paulo
privada e a alienação dos trabalhadores diante da ou do Primeiro Testamento? Não há mais uma
possibilidade de se unirem. Assim, à luz de Marx, forma absoluta para se estruturar uma família.
entendemos que uma família, sob a orientação Hoje nos confrontamos com inúmeros modelos:
religiosa, pode ser iludida neste vale de lágrimas pais separados, filhos de casamentos anteriores,
social. Criticar o modelo tradicional de família, a morando na mesma casa; a mulher que, às vezes,
partir do pensamento de Marx, seria criticar o céu é mãe e pai ao mesmo tempo tendo que assumir a
a partir da terra; criticar as ideologias a partir da provisão da casa, e o inverso também acontece: o
política. Para ele, o que importa é a vida prática, pai assume o papel da mãe.
22

portanto, a religião e todo o modelo de família que


se baseie na religião devem ser superados por um A família patriarcal hoje é questionada: pode-
pensamento mais evoluído, mais científico. se pensar em filhos sem a presença do pai
biológico, e as inseminações artificiais heterólogas
As ideias de Feuerbach e de Marx estão presentes comprovam isso; a união homoafetiva que vai,
em Freud, principalmente no que diz respeito à cada vez mais, conquistando seus direitos, etc.;
ilusão religiosa. S. Freud, em Totem e Tabu, parece enfim, são inúmeros os desafios da família que se
colocar a origem da família no mesmo momento vão produzindo conforme as mudanças culturais e
em que origina a religião. Tal origem consiste em históricas. Com relação à sexualidade: novas formas
acreditar que há um pai sobrenatural que cuida, de orientação sexual aparecem e jogam por terra
protege e pune os homens. Porém, segundo ele, valores construídos durante muito tempo. Hoje não
esse pai é ilusório, é construção de um superego é necessário recorrer à relação sexual para ter filhos,
inconsciente e devedor do complexo de Édipo: e o sexo não tem mais a função de procriação, mas
a relação Deus-homem é construída a partir da de recreação e prazer numa sociedade marcada
relação pai-filho. Por isso, diz Freud que a religião é pelo hedonismo onde tudo contribui para isso: o
a idade infantil da humanidade, pois tudo o que se marketing sobre erotismo, os anticoncepcionais, as
vive em relação aos projetos religiosos nada mais redes sociais, etc. Há uma busca pelo imediato, o
é senão uma expectativa futura sobre algo vivido lucro e o bem-estar, e tudo isso faz com que não
no passado: a relação com o pai da infância. Ao pensemos mais a título de infinito.
pensarmos a família numa ótica cristã, colocamo-
nos sob a crítica psicanalítica, segundo a qual a Para terminar, há um retorno de modelos pré-
origem cultural da família seria a mesma da religião patriarcais que querem se constituir formal ou
e se dá a partir de um “totem” ou uma idealização informalmente: veja o caso do pai que vive com
que representa a lei, tese já afirmada por Darwin e sua filha e com ela tem filhos, isso nada mais é
Atkinson para mostrar que os homens primitivos do que uma família consanguínea. Hoje, cada vez
ao viverem em hordas deviam se submeter aos mais aumenta o modelo de família Sindiásmica,
mandamentos de uma autoridade despótica: o Pai. onde as pessoas se casam, mas não moram juntas
Esteja ele vivo ou morto. ou, se moram juntas, não se comprometem uns
com os outros. Esses modelos existiam antes
Assim, compreendemos que a filosofia moderna da família monogâmica e também tinham uma
sob o pensamento de mestres como Feuerbach, justificação religiosa.
Marx e Freud entende que a religião tende a morrer
na medida em que o ser humano vai se tornando Para alguns teólogos, segundo Nicola Abbagnano,
mais adulto. Por analogia, uma família, construída não se trata de afirmar a religião a partir da relação
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03
Deus e o homem, pois isso é artigo de fé e não felicidade, o problema não está em ser religioso,
depende das formas místicas construídas pela mas em cultivar uma fé racional capaz de julgar
religiosidade. Quando se trata da família, e a a vida e ter consciência de que ali é possível
procura de um modelo que possa orientar para a encontrar o melhor caminho para ser feliz.

Resumo

Como tratar a família como um problema? A modelos de família, pensamos em uma infinidade,
família se torna um problema, colocado à reflexão, porém esses são colocados debaixo de dois grandes
na medida em que, em seu interior, há questões modelos: o divino e o humano. O primeiro trata da
como: o que é família? Quais são os modelos família à luz da teologia e da bíblia, e o segundo, a
de família? Há família perfeita? Qual é o papel partir do pensamento filosófico ocidental. O tema
da família na humanidade? Este trabalho tem o é provocativo e merece estar entre os problemas
objetivo de pensar sobre o tema e colocá-lo entre mais sérios, não só em nosso país, mas no mundo.
os principais problemas. Quando falamos de

23
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 03

atividades

Sei responder

Execute os exercícios:

1. O que você entende por família?

2. O que os antigos pensadores diziam sobre esse tema?

3. Como diferenciar os modelos de família?

4. Como descrever uma família patriarcal?

5. Uma família patriarcal pode estar sob o modelo divino de família?


24

6. Como diferenciar o modelo humano do modelo divino de família?

7. Segundo você, a poligamia caberia no modelo divino de saúde? Explique.

8. Quais são, segundo você, os maiores desafios colocados à família hoje?

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dizionario di Filosofia. Torino: TEA, 1971.


ALVES, Rubem. Suspiro dos Oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1987.
BERARDINO, Angelo di (org.) Dicionário Patrístico e de Antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002.
BÍBLIA DE JERUSALEM. São Paulo: Paulinas, 1973 (outras traduções também).
BOCK, Ana. M. et Altri. Psicologias. São Paulo: Saraiva, 1999.
DIDAQUÉ. Col. Patrística: Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 2002.
FEUERBACH, L. Lessenza del Cristianesimo. Milano: Feltrinelli, 1975.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão (1927). Rio de Janeiro: Imago, 1974.
INACIO DE ANTIOQUIA. Carta a Policarpo. Col. Patrística: Padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
IRINEU DE LION. Contra as heresias. Col. Patrística. São Paulo: Paulus, 1995.
Revista: Família Cristã. São Paulo: Edições Paulinas.

Sugestões para aprofundar o tema

Andreas J. Köstenberger (org.) Deus, casamento e família. Vida Nova:


Revista: Família Cristã. São Paulo: Edições Paulinas.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 04
a saúde como problema

introdução

O substantivo grego utilizado para saúde é homens perdem a saúde para juntar dinheiro
oloklhria (holokleria): "perfeito”, “inteiro”. Uma e depois perdem o dinheiro para recuperar a
pessoa saudável é inteira, perfeita. O verbo mais saúde”. Concordamos com ele. O dia a dia de
comum utilizado para essa palavra é sozw (sõzõ) um sistema social, baseado no capital como
e quer dizer “salvar”, por isso, aos seus sinônimos valor maior, envolve-nos num pragmatismo sem
acrescenta-se também salvação. Completude, tamanho de tal forma que deixamos de lado os
inteireza e salvação, eis o que significa saúde. valores que de fato importam. Nessa “roda-viva”,
chegamos a confundir os conceitos: saúde passa
Saúde é um termo, muitas vezes, banalizado devido ser interpretada como patologia, e patologia como
ao interesse do ser humano em relação ao ter, mais saúde.
do que ao ser. É comum ouvirmos “tenho saúde”
referindo-se a um objeto de compra e venda e aí Propomos refletir sobre esse tema. Aliás, ao

25
quem tem poder aquisitivo possui mais saúde, pois falarmos de problemas brasileiros, podemos dizer
tem acesso a uma melhor qualidade de vida, aos que ela está entre os problemas mais urgentes a
remédios, etc. serem resolvidos. Não nos limitamos ao dado
meramente físico da saúde, mas sim a abordá-la
Certa vez, perguntaram a Confúcio o que mais o em seu sentido holístico, assim como os gregos
surpreendia na humanidade, ele respondeu: “Os antigos o fizeram.

1. Corpo saudável

Pensar a saúde é pensar o corpo, cadeia de relações, vida” é só um nome que se dá para uma vida sem
autônomo e dependente, ativo e passivo, sujeito qualidade, e tal conceito goza de extraordinária
e objeto. Como observa P. Berger, diferente de popularidade, ignorando o fato que, muitas vezes,
outros mamíferos, o ser humano se vê num a população de um determinado país, cheio de
mundo por fazer e “a atividade que o homem recursos, pode não ter uma distribuição adequada
desenvolve em construir um mundo não é, dos bens necessários à vida: “que uma pessoa
portanto, um fenômeno biológico estranho, e sim socialmente excluída ou marginal esteja mais
a consequência direta da constituição biológica exposta a ter um estado de saúde mais sofrível e,
do homem”.12 Entendemos, com isso, que o fazer portanto, a ter qualidade de vida pior do que a de
implica, no organismo humano, o espírito ou a outra com grande prestígio social. Essa evidência
capacidade de transcendência do ser humano, pois também se aplica a sociedades animais, em que
como dizia H. Jonas: “mesmo em suas estruturas a perda de status leva até mesmo ao declínio e à
mais primitivas, o orgânico já prefigura o espiritual, morte”.14 Isso repercute em todas as áreas de
e que mesmo em suas dimensões mais elevadas o atuação do ser humano: física e metafísica15. Mas
espírito permanece parte do orgânico”.13 o que é um corpo saudável?
Há uma ideologia enraizada e, não é de hoje, O Teólogo e terapeuta francês Jean-Yves-Leloup16,
que confunde os conceitos, de tal forma a não ao fazer uma reflexão sobre o que é um corpo
sabermos qual é a fronteira estabelecida entre
14 LOLAS, Fernando. Bioética. São Paulo: Loyola, 2001,
saúde e doença. Muitas vezes, “qualidade de p. 86.
12 BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: 15 Chamo metafísica tudo o que diz respeito à
Paulinas, 1985, p.18. produção do homem sócio-psíquico-espiritual.
13 JONAS, Hans. O Princípio Vida. Petrópolis: Vozes, 16 LELOUP, Jean-yves. O corpo e seus símbolos.
2004, p. 11. Petrópolis: Vozes, 1998.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 04
saudável, observa que, infelizmente, o conceito Essa linguagem aponta também para a “escuta”
“saúde” é considerado, na maioria das vezes, no do corpo, principalmente no que diz respeito à sua
sentido físico. Segundo ele, devemos ampliar nossa enfermidade. Devemos escutar o corpo em todas
reflexão a fim de escutar a linguagem do corpo. as suas dimensões: física, psicológica e espiritual.

2. dimensão física

É o corpo em sua condição biológica. A pessoa Nosso corpo se compõe de membros e esses
chega ao mundo com qualidades inatas a serem funcionam em harmonia. Ter uma escuta
desenvolvidas, sujeita ao crescimento e, por médica sobre ele é importante, pois retomamos
isso, precisa se alimentar e buscar suprir suas a sua história, os acontecimentos passados e
necessidades básicas: alimentação, moradia, etc. identificamos o “vivido” a fim de aceitá-lo em
Nos tempos antigos, a medicina já avaliava a situações de sofrimento e dor, pois como escreveu
personalidade do indivíduo a partir de qualidades Santo Agostinho: “amamos o que conhecemos”.
somáticas como o humor, por exemplo. Os termos: Conhecer o corpo físico, não tudo, pois não se
colérico, sanguíneo, fleumático e melancólico limita à dimensão puramente biológica, é um
eram usados para caracterizar o comportamento passo importante para mergulharmos a fundo em
do indivíduo, mas esse tipo de análise torna-se seus mistérios e amá-lo mais ainda.
26

limitado, pois considera somente uma dimensão


do ser humano: a natural ou física.

3. dimensão psicológica

É qualidade constitutiva da alma humana. Como delas padecem, de suas metas e propósitos vitais, e
ser racional, o ser humano é capaz de pensar sua os transformam em escravos de uma constelação
existência no mundo, planejar suas relações e, alterada de ciclos sociais e vitais”.18
pela vontade, transformar e dar sentido à vida.
Aristóteles, em Política, observa que a alma se É importante observar a linguagem do corpo
compõe de duas partes, uma racional e outra não enquanto ser psíquico e, para isso, temos que
racional, porém submissa à razão. Para o pensador retomar as experiências vividas, escutar os traumas
de Estagira, a pessoa de bem se caracteriza pelas e os medos a fim de ouvi-los e lidar com eles. Quem
virtudes, submetendo-se ao que é melhor, isto é, é o ser humano? Quais são seus medos? Diante
ao racional.17 da sociedade, por que não assume os papéis que
lhe agradam e assume papéis que não lhe fazem
Pelo aspecto racional da alma, distinguimos os bem? Para Leloup, é importante lembrarmo-nos
comportamentos. Mas como distinguir uma das memórias de luz, antes de memorizarmos os
personalidade normal de uma anormal? O critério traumas e os medos. A nossa natureza verdadeira
social privilegia sempre o critério do “encaixe” testemunha a unidade, a liberdade do coração e
aos valores sociais fundamentais a uma vida do sopro; testemunha o nosso bem-estar e de
feliz. Quem não se ajusta a essa realidade, muitas todo o universo do qual somos parte; a nossa paz
vezes, é “rotulado” como “anormal”. Também testemunha um local no universo que está em paz.
aqui, a razão questiona os valores e busca meios Assim cuidar do corpo é cuidar da integridade
para esclarecer os critérios de normalidade em psicológica, inclusive.
uma determinada cultura. Durante muito tempo,
como bem escreve Lolas, procurou-se esclarecer 18 LOLAS, Fernando. Bioética. São Paulo: Loyola, 2001,
o campo da psicologia como lugar do sentido. Os pp. 83-84.
transtornos psicológicos privam as pessoas de seu
sentimento, vontade e razão, destruindo o que há
de mais nobre no ser humano: o raciocínio. “As
alterações de comportamento alienam, aos que

17 Política, XIII, 5.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 04
4. dimensão espiritual

O corpo é um ente espiritual e necessita ser não, então há uma desarmonia na criação e, como
escutado no que existe de mistério. A saúde observa Leloup, é preciso interpretar as provações
espiritual é um bem, pois indica que o corpo está na sua totalidade sem opor o trabalho do médico,
em harmonia com o sobrenatural. Leloup observa, do psicólogo ao trabalho espiritual. A pessoa
com autoridade, que certas doenças são atribuídas tem “necessidade de todos estes esclarecimentos,
à quebra na relação do corpo com o espírito. Para devemos adotar uma linguagem discreta, mas que
ele, existem depressões ligadas a essa quebra que a deixe aberta. Que abra uma possibilidade de cura
podem nos dar uma boa lição de vida. Aprendemos e de alívio em sua doença”.
com a vida; através das quedas e das provações
aprendemos a transformar o nosso modo de ser e Saúde integral. Só o amor pelo corpo em todas
a buscar o verdadeiro eixo de nossa vida. “Porque, as suas dimensões é capaz de manter a ideia da
se podemos correr dançando para um abismo, “não separação”; o amor não é questão de “saúde
mais valeria coxearmos em uma direção que tenha pública”, mas de ética, a exemplo de Jesus de
um sentido”. Há um mistério “lá fora” que invade Nazaré, uma escolha e compromisso conscientes
o indivíduo contra sua vontade; mas o mesmo pela unidade, o bem. A opção pela saúde integral
mistério está “dentro” e provoca o indivíduo a é questão fundamental. E. Fromm, ao tratar do

27
exteriorizá-lo, isto é, a comunicá-lo através de uma amor como arte, dá a entender que a matéria
linguagem socializada. A graça de Deus é natural e prima é boa, é dada pelo meio ambiente no qual
sobrenatural. A história das conversões apresenta vivemos, a atitude do artista é trabalhá-la a fim de
experiências de atuação da graça de tal forma que preservar ou recuperar sua beleza. Nessa linha,
as ciências não podem contestar. Desconsiderar o corpo é uma matéria prima a ser cuidada; sem
esse pressuposto é perder a possibilidade de ver o esse trabalho, a doença aparece como prostração
ser humano em sua totalidade. de um membro qualquer e não como um corpo
a ser percebido. Por fim, uma frase de E. Fromm
A graça de Deus e a fé humana. Exteriorização expressa bem o quanto é importante vermos a
e interiorização, eis a dialética necessária à saúde como um todo:
espiritualidade humana. Para P. BERGER19,
a pessoa se exterioriza, efundindo-se, seja A experiência da separação desperta a
fisicamente ou mentalmente, sobre o mundo; ansiedade; é de fato, a fonte de toda a
objetiva-se, os produtos realizados são resultados ansiedade. Ser separado significa ser cortado,
de sua ação no mundo; interioriza-se, isto é, torna sem qualquer capacidade de usar os poderes
consciente essa realidade objetiva como se fosse humanos. Eis porque ser separado é o mesmo
toda sua. Podemos entender que a pessoa também que ser desamparado, incapaz de apreender o
se torna um ser sagrado na medida em que ela mundo, as coisas e as pessoas, de modo ativo;
transcende e encarna a grandeza do mundo. significa que o mundo nos pode invadir sem
que tenhamos condições para reagir. Assim,
Para concluir, vimos que o corpo é um ser a separação é a fonte de intensa ansiedade.
integral e, portanto, sua saúde ou doença deve Além disso, ela dá origem à vergonha e ao
ser considerada numa totalidade, pois quando o sentimento de culpa.20
físico goza de bem-estar, mas as outras dimensões
19, ibidem, p. 38 20 FROMM, E. A arte de amar, pp. 28-29.

Resumo

Ao refletir sobre o que é saúde, nosso pensamento, gregos antigos, ao tratar do tema, o tomaram em
não raras vezes, se direciona ao corpo, e este é sua totalidade; por isso, a etimologia primeira do
tomado de forma redutível. A saúde se torna termo está no substantivo holokleria. A saúde foi
um problema a ser pensado na medida em que entendida em seu sentido integral, isto é, perfeito.
tomamos em sua forma mais complexa. Os
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 04
Nossa reflexão segue neste sentido. Ainda que o as limitações do ser humano. A dimensão psíquica
termo seja separado para fins de análise, buscando e espiritual é tomada em conjunto principalmente
compreender sua totalidade. O físico é o lugar no que diz respeito à relação que a pessoa tem
onde se manifestam os mistérios da mente e do consigo mesma e o desejo de transcendência.
espírito. Nele podemos perceber as dificuldades e

atividades

Sei responder

Execute os exercícios:
1. O que você entende por saúde?
2. Como os antigos abordaram esse tema?
3. Escreva sobre a saúde em sua dimensão física.
28

4. Em poucas palavras, o que você entendeu por saúde psíquica?


5. Saúde espiritual, como entendê-la neste contexto de saúde integral?
6. Por que a doença deve ser considerada ao tratar do problema saúde?
7. Peter Berger, em sua análise, aborda o problema em três dimensões: exteriorização, objetivação e
interiorização. O que ele quer dizer com isso?
8. Como você interpreta as palavras de E. Fromm em relação à saúde integral?

Referências

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985.


CASIMIRO, A. Dias\CHAVITT, R. Gedanke. Transtornos mentais e espiritualidade. Santa Barbara
do Oeste SP: Z3 editora e livraria, 2010.
FROMM, Erich. Arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, s\d.
GADAMER, Hans-georg. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006.
JONAS, Hans. O Princípio Vida. Petrópolis: Vozes, 2004.
LELOUP, Jean-yves. O corpo e seus símbolos. Petrópolis: Vozes, 1998.
___, Cuidar do ser. Petrópolis: Vozes, 2001.
LOLAS, Fernando. Bioética. São Paulo: Loyola, 2001.

Sugestões para aprofundar o tema


CASIMIRO, A. Dias\CHAVITT, R. Gedanke. Transtornos mentais e espiritualidade. Santa Barbara
do Oeste SP: Z3 editora e livraria, 2010.
GADAMER, Hans-georg. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05
a educação e religião: os desafios do ensino

introdução

Sob o termo educação há uma realidade mais conhecimentos através de disciplinas teóricas e
ampla do que podemos pensar. Falamos de práticas. Nesse tipo de educação, apropriamos
educação formal e informal e, se quisermos, de nossa herança cultural de forma autônoma e
podemos debater até mesmo sobre uma educação criativa (Saviani, 1997).
não formal, mas este não é o caso. Eis aqui um
problema universal e, em se tratando de Brasil, Ao tratarmos da educação religiosa percebemos
exige grande debate. que os termos “formal” e “informal” se integram:
família, igreja e escola são parceiras na orientação
O que entendemos por educação informal e religiosa. O nosso interesse é ressaltar e debater
formal? No que concerne ao primeiro termo, é este tipo de educação transmitida pela escola
um tipo de educação espontânea cujo objetivo é ou, se quisermos, um ensino religioso que venha
transmitir os valores de uma determinada cultura. favorecer ao aluno uma aprendizagem mais ampla

29
Este processo se dá na família, na igreja e em outras sobre sua relação com o sagrado. Ainda que os
instituições cujos responsáveis são os pais ou termos se integrem, nosso debate privilegiará mais
tutores instituídos. Quanto à educação formal, ela o ensino religioso na escola, por isso vamos nos
está ligada à escola e tem como objetivo transmitir ater ao seu aspecto mais formal.

1. a religião como objeto científico

A educação religiosa, através do ensino formal, como um fenômeno e, como todo fenômeno,
é reconhecida pela Capes como uma orientação pode sim ser tomado como objeto de estudo. É a
importante face ao pluralismo cultural e, por partir desta segunda possibilidade que colocamos
isso, propõe que o ensino seja adequado em seus a religião como um problema a ser estudado e
métodos a fim de favorecer ao conhecimento um debatido nas escolas.
bom entendimento sobre o fenômeno religioso
que se expresse na pluralidade de tradições sócio- Saímos do dado puramente espiritualizado da
histórico-culturais e uma ética universal que cultive religião a fim de colocar o fenômeno religioso no
a tolerância e o diálogo com a diversidade. debatido transdisciplinar, isto é, não a discussão
sobre a religião, mais do que um debate sobre
Uma educação integral não exclui a relação com o ideias, é debate de sentido de vida, por isso
transcendente, mas entende que é uma realidade transcende o seu caráter puramente disciplinar.
importante para a formação cidadã. O Ensino Concordamos com o professor Silas Guerriero
Religioso, no currículo escolar, cumpre essa (2013, 8-13), em seu artigo, na revista Diálogo, que
função, pois leva ao aluno a consciência de que o termo religião não pode ser definido segundo os
ele é protagonista dessa história ao pensar valores limites do monoteísmo em detrimento de outras
que, ao serem colocados em prática, dão sentido crenças, pois se assim o for, a palavra se limitará
à sua vida. Eis o que pretende refletir este tópico. a poucas igrejas ou templos. Certo ele. Pensar
a religião, não só a partir de uma teologia da
Colocamos o problema: pode a religião ser objeto revelação, mas de forma ampla e interdisciplinar,
de estudo científico? A questão torna-se difícil para favorece o conhecimento e alarga a compreensão
o nosso debate se entendermos que a essência da do papel da fé na construção de uma sociedade
religião é o mistério e que somente os sacerdotes mais humanitária. Enquanto objeto de
e teólogos têm acesso às verdades insondáveis de estudo da Antropologia, a religião é tomada como
Deus os dos deuses. Por outro lado, começamos um objeto mais amplo, pois essa disciplina se
a discutir o problema se entendemos a religião
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05
interessa por outras tradições e culturas religiosas, lideranças, mas se coloca de forma humilde
fora do âmbito puramente cristão. Assim, pensar à razão humana a fim de ser compreendida a
a religião, não só teologicamente, mas numa relação com o sagrado. Acerca dessa visão,
perspectiva antropológica, favorece a reflexão, Frank Usarski (2013, pp. 14-19) observa que,
pois enquanto objeto interdisciplinar não se limita assim como todo fenômeno, a religião deve
à discussão, muitas vezes preconceituosa, sobre a ser confrontada com a exigência metodológica,
“verdadeira” e “falsa” religião. pois também ela tem o direito de se explicar e
se colocar ao cientista como algo estranho a ser
Nessa perspectiva, a religião deve ser pensada em conhecido e controlado, principalmente no que
seu contexto social e cultural; o que mais importa diz respeito aos seus pré-conceitos.21
é a coerência manifesta em sua Gestalt simbólica.
A religião torna-se um problema a ser debatido, Enquanto objeto de estudo científico, a religião
pois ainda há preconceitos quanto àquelas que não se limita à pura crença ou confissão de fé,
escapam ao rótulo de religiões “reveladas” e são apesar de orientar a vida e oferecer um sentido de
tratadas como primitivas ou não evoluídas. vida, mas se submete às pesquisas com intuito de
ajudar a ciência a sair da simples opinião.
Entendida como um fenômeno social e cultural a
religião pode ser tomada como objeto de estudo
científico, pois não parte de uma espiritualização 21 “Ensino religioso: o que ensinar? Como ensinar” in
cujo mistério inefável só se manifesta às Diálogo: revista do ensino religioso. São Paulo: Paulinas,
30

ano XVIII – n. 71 – ag\set. 2013, p. 19.

2. O desafio do ensino Religioso

Enquanto realidade empírica, a religião se uma ética capaz de humanizar uma cultura.
coloca à investigação da razão instrumental. O
conhecimento deve ser atualizado, o religioso A educação religiosa é um direito. A família e a
inclusive. É a partir dessa realidade que igreja têm a função de doutrinar os seus filhos nas
interpretamos os textos antigos e podemos aplicá- verdades garantidas por uma tradição específica,
los em situações e problemas hodiernos. O desafio porém na escola, por seu caráter estatal, esses
colocado ao estudo da religião é substituir os filhos tornam-se estudantes e pesquisadores, isto
dogmatismos e fundamentalismos pela humildade é, vão além do caráter puramente doutrinal da
da pesquisa cujo fim é uma ética que considere o fé a fim de expandir os conhecimentos sobre a
diálogo e o cuidado. cultura religiosa.

É preciso uma postura que vá além das relações A pesar de seu caráter leigo, o Estado sofre
disciplinares, uma atitude transdisciplinar que influências religiosas e muitas vezes, por conta
comporte, no encontro com o outro, imanente ou disso, acaba cedendo à pressão quanto ao que
transcendente, uma consciência de pertencimento ensinar aos alunos sobre religião nas escolas
a um sentido. Nessa direção, colocamos o públicas. São muitos os desafios colocados
problema da religião não só como objeto científico, ao Ensino Religioso, mas vale a pena ressaltar
mas como objeto de compreensão a ser ensinado, dois: o fundamentalismo religioso e o diálogo
entendendo que ela produz um sentido de vida, inter-religioso.

2.1 O fundamentalismo religioso

A dicotomia fé-ciência dificulta o diálogo devido ao dogmatismo que ali vigora.


e, consequentemente, a dialética: ensino-
aprendizagem. Um dos grandes problemas Discutimos o Ensino Religioso a partir de nossa
relacionados a essa separação é o fundamentalismo cultura, por isso observamos preferencialmente o
religioso. Essa postura não é propriamente cristã, problema que se encontra em nossa própria casa:
mas existe em todas as religiões, sem exceção, fundamentalismo religioso cristão. Em se tratando
de Ensino Religioso, para esse movimento, a
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05
Bíblia é o único material capaz de cumprir a sem fé, ela está no nosso dia a dia e, se há oposição,
função didática na escola, pois ela é a Verdade a esta se encontra em relação à igreja, ao templo, à
ser lida literalmente. Seus pregadores cultivaram sinagoga e ao santuário.
a oposição entre fé e ciência e, por isso, reagem
a todo tipo de conhecimento que não venha das O fundamentalismo tem sua história. Em
Sagradas Escrituras. um texto escrito para a revista Ciberteologia,
observamos que, com o Iluminismo europeu,
A interpretação da Palavra não é o forte numa do século XIX, as bases antirreligiosas da
leitura fundamentalista, pois o que exige é modernidade vieram à tona provocando reação
o seguimento da letra, tal qual está escrita. por parte de católicos e evangélicos. De um
Convencidos de sua missão, esse movimento lado, a igreja católica reafirmava a infalibilidade
entende que a fidelidade à Palavra de Deus se da igreja e do outro os evangélicos pentecostais
resume em seguir literalmente os mandamentos. retomavam a infalibilidade das Escrituras, através
As Escrituras são infalíveis quanto à origem do movimento “Revival”. Esse movimento, em
da humanidade, mas as descobertas científicas oposição à cultura das luzes, propõe que todo
acerca da origem do universo são, para eles, puras o conhecimento sobre a origem do ser humano
hipóteses e, portanto, não dignas de confiança. deve ser esgotado na Palavra de Deus, opondo-
se a qualquer hipótese científica, entre elas o
Criacionismo bíblico ou Evolucionismo? O que Evolucionismo darwinista. Essa postura chegou
ensinar nas escolas? O fundamentalismo cultiva

31
ao Brasil e, atualmente, faz parte de alguns
um abismo entre as duas realidades: religiosa e projetos pedagógicos em muitas escolas.
secular. Muitos cientistas da religião e teólogos
veem isso como um obstáculo, pois não vivemos

2.2 O ensino religioso a partir do diálogo

Em oposição ao Fundamentalismo bíblico, o • Estabelecer relações de aprendizado e também


Ensino Religioso deve levar o aluno a ser sujeito de respeito à diversidade;
de sua própria história, por isso suas estratégias
• Selecionar conteúdos que fomentem a cons-
devem considerar as diversidades religiosas e
trução de valores;
o ensino-aprendizagem como “negociação de
sentidos”. Nessa direção, segundo Antônio Boing • Garantir autonomia de quem conhece, para
(2013, p. 46)22, é preciso considerar como objetivos que se possa aprofundar e aprender;
no Ensino Religioso:
• Sensibilizar para ações no espaço social, deco-
• Desenvolver o imaginário, a criatividade, o dificar a realidade e manter a atitude dialógica;
senso crítico-politizado e a postura ética;
• Despertar a criatividade, potencializar e encan-
• Perceber e construir valores e definir compor- tar a vida.
tamentos de respeito à pluralidade;
Em algumas universidades brasileiras, com
• Sensibilizar para a ação comprometida com a intuito de preparar profissionais para essa área,
dignidade do outro; colocam essas estratégias como inovadoras no
• Estimular a incorporação de imagens afetivo-
que diz respeito ao trato das religiões na escola.
-mentais do bem, do bom e do belo;
Capacitar professores de Ensino Religioso com
uma visão mais dialética e metodológica é um
• Relacionar as diversas experiências e manifes- desafio. No curso de Ciências da Religião, essa é
tações religiosas; uma preocupação. Habilitar não só professores,
mas pesquisadores torna-se um grande desafio
• Possibilitar o conhecimento do outro e de ou- em tempos de diálogo.23 Para Afonso M. Ligório
tras experiências;
23 A UEPA, Universidade do Estado foi a primeira a
22 Cf. Diálogo: Revista do Ensino Religioso. São Paulo: implantar o Curso de Licenciatura Plena em Ciências da
Paulinas, n. 71, ag\set. 2013. Religião em 2001.
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05
(2013, p 39-40)24, o ensino religioso exige um de hostilidade e antagonismo entre as diversas
pensar metodológico e objetivos claros, por isso os tradições religiosas”.25
objetivos devem ser ainda mais amplos:
O Ensino Religioso considerando o diálogo
Oferecer o conhecimento dos elementos básicos do inter-religioso e intercultural capacita os alunos
Fenômeno Religioso que emergem da experiência dos e pesquisadores para novos valores e visões
alunos na escola; analisar o papel das tradições religio- mais amplas acerca do sentido último da vida
sas na sociedade e na cultura; contribuir com a compre- humana. Retomando a epistemologia apontada
ensão das diferenças e semelhanças entre as tradições por Luiz Barco (2011, p.148) em prol de uma
religiosas; refletir sobre a relação entre os valores éti- educação libertadora e integral, podemos dizer
cos e práticas morais e ainda as matrizes religiosas pre- que compreensão religiosa, assim como todas as
sentes na sociedade e na cultura; apresentar a religião compreensões, tem seu objetivo: “compreender o
como uma referência de sentido para a existência dos conhecimento; compreender a alegria da convivência;
educandos e como um fator condicionante da postura compreender como e por que se faz; compreender
social e política; elucidar a problemática metodológica, a necessidade de ser e a beleza na diversidade de
curricular e legal do Ensino Religioso; e, finalmente, cada ser” 26
explicitar os processos de constituição, identificação
e interação das denominações religiosas em seus dife- A título de conclusão. No Brasil, sob o artigo 210,
rentes contextos. parágrafo 1, da Constituição Brasileira, é garantido
o Ensino Religioso. Ainda que a matrícula
32

Há algumas dificuldades a serem relevadas. Se a seja facultativa ao aluno, nas escolas públicas,
educação religiosa deve ser garantida em escolas esse direito foi garantido também na LDBEN
públicas, isso não é fácil, pois há que preservar 9.475/97:
a posição do Estado em relação a muitas
denominações religiosas que exigem prioridade Art. 33. O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é
no ensino. Superar essa dificuldade é um grande parte integrante da formação básica do cidadão, cons-
passo, pois evita a doutrinação da escola, favorece titui disciplina dos horários normais das escolas públi-
o acesso do educando ao conhecimento religioso cas de ensino fundamental, assegurado o respeito à di-
e valoriza um novo ethos, isto é, uma maneira nova versidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
de estar no mundo enquanto produtor de sentido. formas de proselitismo.

A partir dessa nova postura, o Ensino Religioso Tomado, muitas vezes, de forma radical,
não se limita a ler os textos sagrados, mas amplia principalmente por religiosos adeptos do
seus objetivos contemplando também reflexões fundamentalismo bíblico, tal direito limita o Ensino
relacionadas à cultura e tradição religiosa, às Religioso à exposição de temas bíblicos, isso talvez
teologias e seu diverso entendimento acerca do aconteça devido à abertura do parágrafo 2º às
transcende, aos ritos e ética religiosa. posições das diversas denominações cristãs que
visam mais à doutrinação dos alunos: “Os sistemas
Em um contexto de diversidade religiosa, de ensino ouvirão entidade civil, constituída
esses temas são pertinentes, pois nos ajudam a pelas diferentes denominações religiosas, para a
perceber que nenhuma tradição religiosa mantem definição dos conteúdos do ensino”.
o monopólio sobre o tempo e o espaço. Em seu
contexto, os diversos atores religiosos lançam mão O objetivo geral das religiões deveria ser o diálogo,
de valores e conteúdos disponíveis de suas tradições buscando a melhor forma de habitar este mundo.
para intervirem na sociedade e, através de uma A unilateralidade parte de facções religiosas que
educação para a cidadania, humanizar este mundo. não expressam o verdadeiro objetivo religioso e,
Nessa direção, podemos dizer, com a teóloga infelizmente, aparece na educação e, de maneira
espanhola Maria Pilar Aquino (2011, p. 28), “O mais específica, no ensino formal da religião.
atual pluralismo religioso apresenta possibilidades Eis um desafio colocado ao Ensino Religioso.
e oportunidades criativas para entender os estudos O Estado é laico, porém, como uma instituição
teológicos e religiosos em termos de interação e
25 Cf. OLIVEIRA, Pedro A.R.\MORI, Geraldo (org.).
interdependência, que superam as antigas relações
Religião e educação para a cidadania. São Paulo: Paulinas;
Belo Horizonte: Soter, 2011, pp. 21-37
24 Cf. Diálogo: revista do ensino religioso. 2013. 26 Ibdem,147-151
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05
a-religiosa tem por dever assegurar os bens contribuindo assim para que o cidadão amplie o
culturais de um povo e, entre eles, a liberdade seu horizonte de sentido e cultive uma fé mais
religiosa. Nessa direção, o Estado deve possibilitar dialogal e menos exclusivista.
uma aprendizagem mais ampla da cultura religiosa,

Resumo

Por que a educação, principalmente religiosa, é a serem pensados e colocados em prática. O


um problema a ser pensado? Entendemos que desafio maior desse tema é pensar uma educação
esse é um tema amplo e complexo. A teologia que seja ao mesmo tempo inclusiva e dialógica.
se preocupa com a educação, como forma de Em outras palavras, uma educação que seja capaz
formação para a cidadania, porém não se foca de dialogar com outros valores religiosos sem
de maneira especial sobre a educação religiosa, perder sua identidade.
pois acredita que a religião cristã tem valores

33
Teologia e Problemas Brasileiros Unidade 05

atividades

Sei responder

1. O que você entende por educação?

2. Como pensar a educação a partir dos valores religiosos? Dê sua contribuição.

3. Quais as grandes dificuldades do ensino religioso nas escolas hoje?

4. Em poucas palavras, o que você entendeu por ensino religioso?

5. Quais são os principais objetivos, segundo o texto, do ensino religioso na escola hoje?

6. O que diz a LDBEN sobre o ensino religioso?


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7. O que você aprendeu sobre fundamentalismo religioso?

8. Segundo você, é possível ensinar religião sem ser fundamentalista?

Referências

CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008.
PANASIEWICZ, R. Pluralismo religioso contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 2007.
OLIVEIRA, Pedro A.R.\MORI, Geraldo (org.). Religião e educação para a cidadania. São Paulo: Paulinas;
Belo Horizonte: Soter, 2011, pp. 21-37.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-crítica. Primeiras aproximações. Campinas, s\d.
SOUZA, J. Neivaldo. “Diálogo e Ensino religioso” in Ciberteologia. Nº 33 – Ano VII – Janeiro/Fevereiro/
Março 2011, pp. 20-48.
USARSKI, Frank (org.) O Espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007.
Revista: Diálogo: revista de ensino religioso. São Paulo: Paulinas.

Sugestões para aprofundar o tema

OLIVEIRA, Pedro A.R.\MORI, Geraldo (org.). Religião e educação para a cidadania. São Paulo: Paulinas;
Belo Horizonte: Soter, 2011, pp. 21-37.
Site: http://www.direcionaleducador.com.br/edicao-72-jan/11/capa-educacao-e-religiao-na-escola-publica-
direito-do-educando-e-do-educador acesso 12\09\2013.

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