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Alteridade e subalternidade: intersecção entre O Quinze de Raquel de


Queiros e A árvore das palavras de Teolinda Gersão

Gilson Ventura*

Resumo
Se atermo-nos apenas ao contexto social em que ocorre o enredo da
obra queirozeana O Quinze -sertão brasileiro, fome, escassez, abandono, e o
próprio estilo da narrativa de Rachel- e o contexto que acortina a obra
portuguesa A árvore das palavras da escritora portuguesa Teolinda Gersão -
Moçambique, período marcado pela guerra colonial, sobressaindo ainda a
pobreza, injustiça, desigualdade social- talvez não nos salte aos olhos assim de
imediato nenhuma intersecção entre as duas obras, dadas as diferenças de
perspectivas que há entre uma e outra. Entretanto voltando nosso olhar à
questão de gênero, que emerge sob um olhar mais apurado os quais vão
destacar na literatura brasileira a personagem Conceição e na portuguesa Gita,
vemos a riqueza de inferências que há entre as obras e a grande contribuição
tanto para a literatura brasileira quanto para a portuguesa será consolidada
num trabalho comparativo entre uma obra e outra. Assim, pretende o presente
trabalho se ater ao dialogismo entre O Quinze e A árvore das palavras, tendo
como ponto de partida o perfil ideológico das personagens, que as fazem
representantes de um mesmo projeto: a ruptura com a tradição matrimonial
patriarcalista.

Palavras chave: O Quinze, Literatura brasileira, palavras, Rachel de Queiroz.

Abstract
summary
If we focus only on the social context in which the plot of Queiroz's work, The
Fifteen-Brazil, Hunger, Scarcity, Abandonment, and the Style of

______________________________________
*
Mestrando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MG. Bolsista da CAPES. Este
trabalho foi desenvolvido como parte das atividades da disciplina Teorias críticas e a leitura do
texto literário: Interseções, ministrada pelos professores Terezinha Taborda Moreira, Alexandre
Veloso de Abreu e Audemaro Taranto Goulart.

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Rachel's Narrative-and the Context that Acorates the Portuguese Work The
Tree of Words Portuguese writer Teolinda Gersão - Mozambique, a period
marked by the colonial war, still standing out poverty, injustice, social inequality
- we may think that there is no intersection between the two works, given the
differences in perspectives between one and the other. However turning our
attention to the question of gender, which emerges under a closer look which
will highlight in Brazilian literature the character Conceição and the Portuguese
Gita, we see the richness of inferences that exist between the works and the
great contribution both to the Brazilian literature And for the Portuguese it will be
consolidated in a comparative work between one work and another. Thus, the
present work intends to stick to the dialogism between The Fifteen and The
Tree of Words, starting with the ideological profile of the two characters, who
will make these two characters representing the same project: a rupture with the
patriarchal marital tradition .

Keywords: The Fifteen, Brazilian Literature, words, Rachel de Queiroz.

Introdução

Abordando a questão da subalternidade feminina na literatura,


encontramos vasta escrita das mais diversas em que tal tema é amplamente
discutido. Reportando a questão para o aspecto da tradição, temos uma
profícua reflexão no volume Tradição Contradição, em que Gerd Bornheim
contribui afirmando que, “de certa maneira estamos instalados em uma tradição
como que inseridos nela, a ponto de revelar-se muito difícil desembaraçar-nos
de suas peias” (BORNHEIM, 1987, p. 18). A verdade é que vemos que a
questão da subalternidade está de certa forma imbrincada à tradição, já que é
possível afirmar que em muitas culturas a subalternidade está enraizada nos
alicerces da tradição. Gayatri Chakravorty Spivak em “Pode o subalterno
falar?”, em uma reflexão em torno da subalternidade, ao se referir à questão
feminina chega a dizer que “o subalterno não pode falar. Não há valor algum
atribuído à mulher como um item respeitoso nas listas de prioridades globais”.
(SPIVAK, 2010, p. 126).

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Fazendo uma reflexão em torno da subalternidade, passearemos pelas


duas obras perscrutando a presença da ruptura com essas tradições em cada
uma delas em diferentes níveis sociais, cada uma com sua peculiaridade,
considerando o contexto do sertão nordestino com a presença gritante da
miséria proporcionada pela seca predominante à época em O quinze e
Moçambique, também com sua escassez sub-humana, vivendo em um
contexto de guerra, tendo inclusive na narrativa a menção do momento em que
estoura a guerra o qual abordaremos mais adiante, o que vai ser de grande
importância no desenrolar geral do romance.

Conceição e Gita: alegorias


Criada com a avó desde que morrera a mãe, Conceição é uma
personagem pacata de O quinze. Professora, vinte e dois anos e uma grande
avidez pela leitura, mesmo nos períodos de férias, quando passava a
temporada com a avó na fazenda da família, seus melhores momentos eram
ao lado dos livros, à noite, quando a avó, carinhosamente chamada de Mãe
Nácia sempre a censurava pelas leituras, dizendo que “Esta menina tem umas
ideias!” (QUEIROZ, 2015. p.12).

Estaria com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse


umas ideias; escrevia um livro sobre pedagogia; rabiscara dois
sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da
biblioteca do avô. Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e
justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias,
estranhas e absurdas à avó.

Mas foram as ideias de Conceição, tão rechaçadas e censuradas pela


avó que fizeram com que a moça se tornasse uma mulher forte, não presa às
peias de uma tradição patriarcalista e extremamente autocrata, fazendo dela
um marco na literatura brasileira como representação da ruptura a esse
sistema.
De outro lado encontramos a figura de Gita, uma menina que, embora
ao contrario de Conceição fosse criada pela mãe, se apresenta de forma
extremamente alheia à filha, repugnando-a, fato que vamos entendendo no
desenrolar do enredo. Uma frustração devido a um casamento enganoso com
Laureano faz com que Amélia, mãe de Gita torne uma pessoa extremamente

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fria não só com a filha, mas também com o marido. Sabe-se que tal fato vai
influir de forma categórica na formação da menina Gita, que já em criança
mostrará sinais de irreverência. Gita ficava então aos cuidados da ama de leite,
a negra Loia, que possuía também uma filha de idade próxima à sua. O apego
de Gita á criança negra, Orquídea, torna-se então um desgosto para a mãe,
uma vez que repudiasse a menina e os negros em geral. Esse apego à amiga
negra já demonstra assim sinais de confronto com a mãe ausente.

Eu olhava Orquídea, na claridade frouxa, como se olhasse um


espelho. Do meu tamanho, em tudo igual a mim. [...] O dia inteiro eu
era sua irmã. [...] Até que vou ter com Loia: Quero o cabelo como
Orquídea. Penteado em trancinhas em volta da cabeça. [...] o
resultado é deslumbrante: fico exatamente igual a Orquídea.
Sacudo a cabeça, trémula de riso: as trancinhas abanam, mas
continuam no ar, balançam como antenas de insetos, não duas,
mas dez, espalhadas em volta. Abraço a minha imagem, que por
toda parte me segue, e que é Orquídea. Mas Amélia não gosta de
me ver. Tira isso depressa da cabeça, diz abrindo a porta do
quarto da costura (Gersão 2008: 17)

Encontramos assim, na relação de Gita com a mãe, sinal concreto que


pudesse motivar seu caráter contestador em sinal de protesto ao alheamento
da mãe, sendo tal relação claramente contrária à que tinha com o pai, já que
em vários momentos vimos Gita passeando e conversando em perfeita
harmonia com Laureano. Já em Conceição, não tendo sido criada pela mãe,
não experimentara desprezo ou alheamento, mas “suas ideias”, como dizia a
Mãe N’ácia viria dos livros os quais compunham sua estante. Duas realidades
diferentes, duas alegorias, uma de experiências, outra de teoria. Embora cada
uma dessas mulheres se representasse de maneira distinta na relação com a
subalternidade, vemo-las portadoras de um conflito interno que irá se
consolidando gradativamente até eclodir em reações externas. Conceição se
isenta do casamento e adota uma criança, ao fazê-lo, a autora passa, pela
personagem, a ideia de uma prova irrefutável de que no tocante aos trabalhos
atribuídos de maneira arbitrária à mulher não tivesse ela nenhuma dificuldade,
faria solitariamente e de maneira eficaz, não havendo para tanto a necessidade
de uma presença masculina, ou seja, a ideia da mulher independente. Vicente,
o primo de Conceição, um sujeito do mato e que nutria grande amor pelas

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coisas do campo, seria aquele por qual terá ela certo grau de afetividade
levando o leitor a imaginar que toda a narrativa concorria para outro desfecho
envolvendo Vicente e Conceição. A extrema diferença de hábitos entre os dois,
o enquadramento nos quais cada um vivia entretanto, não permite tal
desfecho.
Debruçando-nos sobre os inscritos de Judith Butter, nos chama muito a
atenção para o fenômeno que ela chama de “enquadramento social” 1, no qual
Conceição e Vicente viviam, cada um de forma extremamente contrárias, e é
exatamente essa diferença do lugar de pertencimento de ambos que vai
incomodar Conceição, ela se inquieta com o tipo de enquadramento pelo qual
vive o pretendente primo Vicente, tão distinto do qual ela vivia. Ela era a
professora da cidade, a amante dos livros, já Vicente

Todo dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, sempre fora


assim, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude [...]
E a moça lembrou-se de certa vez, em casa de major no dia em que
se inaugurou o gramofone, [...] mal começou a dança, entrou Vicente
encourado, vermelho, com o guarda peito encarnado, [...], A
Conceição pareceu que uma rajada de saúde e força invadia
subitamente a sala, purificando-a do falsete agudo do gramofone,
mas a mãe dele, que sentada ao sofá apreciava a dança, vendo
enxergou o contraste deprimente da rudeza do filho com o
pracianismo dos outros de cabelo empomado, calças de vinco
elegante e camisa fina por baixo da blusa caseira. (QUEIROZ, 2015,
p. 19)

É visível o descontentamento de Conceição com tais diferenças.


Encontramos assim já inicialmente sinais da repulsa de Conceição com uma
união matrimonial entre ambos. Pensava ela

No esquisito casal que seria o deles, quando à noite , nos serões da


fazenda, ela sublinhasse num livro querido um pensamento feliz e
quisesse repartir com alguém a impressão recebida. Talvez Vicente
levantasse a vista e lhe murmurasse um “é” distraído por detrás do
jornal... Mas naturalmente a que distância e com quanta indiferença...
Pensou que mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele
exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava.
(QUEIROZ, 2015, p. 88)

Todas essas divagações noturnas contribuiriam assim para a construção


de uma Conceição cada vez mais distante da tradição que envolvia o
matrimônio, tão exaltado na década de trinta.

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Como sabemos, to be framed (ser enquadrado) é uma expressão complexa em inglês: um
quadro pode ser emoldurado(framed) da mesma forma que um criminoso pode ser incriminado
pela polícia, ou uma pessoa inocente de modo que cair em uma armadilha ou ser incriminado
falsa ou fraudulentamente com base em provas plantadas que,no fim das contas, “provam” a
culpa da pessoa, pode significar framed.

Em Gita, vamos perceber desde sua infância, devido aos constantes


constrangimentos com a mãe que não havia nenhum sentimento de afetividade
entre ambas, sinais que vão moldando um caráter contestador na menina,
diante das obrigações absurdas que a mãe lhe impunha. Podemos exemplificar
com a cena em que a mãe a obriga a frequentar uma escola de dança apenas
para exibir para os outras pessoas que tinha uma filha dançarina. No dia de
uma apresentação na escola, Gita em sinal de protesto à mãe, faz questão de
sabotar o número e falhar no exato momento caindo na hora da dança. Na
adolescência seu caráter contestador se mostra de maneira ainda mais forte ao
se envolver com um grupo de amigos que lutam contra o domínio do
colonizador português. A firmeza e a formada individualidade de Gita são
percebidas no momento em que faz uma brincadeira com o namorado,
testando sua reação dizendo estar grávida. Ele reage de maneira tão
estapafúrdia e inesperada que a moça resolve romper de forma definitiva o
romance, ao ver que o rapaz seria incapaz de assumir a paternidade caso
fosse verdade, sugerindo ainda que abortasse a criança.
Em Literatura e sociedade Antônio Cândido contribui de forma bastante
esclarecedora ao trabalhar a literatura como a mola propulsora da sociedade,
ou seja, até que ponto a literatura servirá de forma prática e direta na
interpretação de fatores sociais, saindo da pura divagação literária à uma
aplicação social. Em seu volume, ao discorrer sobre estudos sociológicos
Cândido afirma que:

Para fixar ideias e delimitar terrenos, pode-se tentar uma enumeração


das modalidades mais comuns de estudos de tipo sociológico em
literatura [...] Um primeiro tipo seria formado por trabalhos que
procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um
gênero. [...] Um segundo tipo poderia ser formado pelos estudos que
procuram verificar a medida em que as obras espelham ou
representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos. É a
modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamente em
estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem
no livro. (CÂNDIDIDO, 2000, p. 10)

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Emparelhando os comportamentos de Gita e Conceição dentro das


obras analisadas é lícito que perguntemo-nos até que ponto as duas
personagens atuarão de forma a surtir algum efeito no comportamento social,
ou se a ruptura proposta fica no ego individualista de cada uma. A formação do
caráter de ambas as personagens vão irrefutavelmente passar por um
processo de formação do sujeito que foi amplamente trabalhado por Jacques-
Marie Émile Lacan. No artigo A noção lacaniana da subversão do sujeito, de
Wilson Camilo Chaves, essa abordagem é bem explícita quando afirma que
“Lacan não concebe o sujeito, aqui, como uma estrutura passiva, e sim como
uma estrutura reacional, que se produz e se desenvolve no meio”. Podemos
destacar a partir desse pensamento Lacaniano, duas diferentes concepções. A
primeira, quanto à personagem Conceição, que tendo abnegado a uma vida
enquadrada em uma tradição matrimonial presa à peia patriarcalista, que
inclusive “dizia alegremente que nascera solteirona”, se conduz, entretanto de
forma passiva estando sua contestação mais próxima do discurso que da ação.
Já a personagem Gita vai se comportar mais ativamente, como um sujeito
estático que não influencia o meio, antes, por ele é influenciado. É importante
salientar que estamos tratando aqui de Gita enquanto mulher, já distante da
fase da infância. Fato observado, por exemplo, quando ela faz questão de
incluir na sua narrativa as palavras do amigo Roberto verdadeira Ode à
liberdade feminina e à peia patriarcalista. Podemos ver aqui o tipo de pessoa
com as quais Gita mantinha afinidade:

Mas também há coisas para mudar em África, diz Roberto. Os ódios


entre os negros, por exemplo, ou a forma como as mulheres são
tratadas: carregam os filhos, a água, a lenha, o homem ao lado, a
caminhar como um rei, e ela carregando tudo tudo, como burro de
puxar carroça. Trabalham de sol a sol e quando calham são
espancadas pelos homens, as vezes casa sem amor, só porquê
convém à família, e depois a melhor comida é para o marido: quando
ele se senta à mesa ela não se senta com ele, come depois os restos,
e se for o caso também a sogra manda nela e lhe bate. (GERSÃO,
2004, p. 162)

Nessa perspectiva, o romance de Gersão trabalha uma pouco mais a


questão da reatividade do sujeito no meio. Na fase adolescente de Gita, além
de podermos avaliar os níveis ideológicos dos amigos, consequentemente os

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seus, há a cena em que Gita e os amigos resolvem, em uma festa a ser


realizada na escola, colocar um cartaz revolucionário, que dizia “Viva
Moçambique independente”. Antes do episódio do cartaz, entretanto, vários
momentos o precederam, momentos de reuniões, conversações entre o grupo
de amigos, que pudessem culminar com fato do cartaz em si, marcando assim
na obra um real engajamento da personagem na luta pela independência
moçambicana. Podemos ver um pouco desta luta social em O quinze quando
Conceição se envolve em favor dos desabrigados dos campos de
concentração do governo, em que pessoas extremamente necessitadas para
ali corriam em busca de socorro:

Conceição passava agora quase o dia inteiro no Campo de


Concentração, ajudando a tratar, vendo morrer às centenas as
criancinhas lazarentas e trôpegas que as retirantes atiravam no chão,
entre montes de trapos, como um lixo humano que aos poucos se
integrava de todo no imundo ambiente onde jazia.[...] De vez em
quando, porém, a avó tinha que repreendê-la por quase não comer,
por sempre chegar em casa atrasada.

Observa-se aqui os diferentes tipos de luta entre as personagens, a luta


de Conceição era passiva e subserviente, enquanto Gita se volta para
questões mais revolucionárias. Enquanto em Gita o que vale é expressar-se
pelas manifestações como o exemplo do cartaz na escola, Conceição afagava
sua consciência vivendo em prol dos afaimados, pois não hesitava em
“consumir todo o ordenado em alimentos e purgantes para os doentinhos do
campo” (QUEIROZ, 2015, p. 139)

Estrutura narrativa nas obras


Ao compararmos a estrutura narrativa nas duas obras, tal comparação
pode ser feita à luz do trabalho de Franz Karl Stanzel sobre formato
narratológico, nele Stanzel deixa postulado que

Há três situações narrativas possíveis, que resultam da significância


estrutural da oposição triádica de pessoa, perspectiva e modo. A
primeira situação narrativa recebe o nome de situação narrativa
figurativa e se caracteriza pela focalização interna, mas o narrador
não participa dos eventos e situações narrados. Alternam-se 1° e 3°
pessoas, sendo a 3° mais comum. Outra situação narrativa é
chamada de situação narrativa em primeira pessoa, onde o narrador
participa dos eventos e situações narrados como personagem em

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diversas intensidades. A última situação narrativa recebe o nome de


situação narrativa autoral/atorial e é marcada pela onisciência do
narrador que não participa dos eventos e situações narrados.

Assim, ao enquadrarmos as duas obras dentro dessa estrutura proposta


por Stanzel, percebemos que em O quinze predomina o que ele chama de
“situação narrativa figurativa” e se caracteriza pela focalização interna, o
narrador não participa dos eventos e situações narradas. Alternam-se entre a
primeira e terceira pessoas, sendo a terceira a mais comum, e no caso de O
quinze, predomina a terceira pessoa, sendo ainda uma estrutura simplificada.
O que vai acontecer em A árvore das palavras é um fenômeno que nos move a
observá-lo um pouco mais de perto, dado sua diversidade narrativa dentro da
obra. Temos assim, uma estrutura dividida em três partes que divergem
estruturalmente, tendo a primeira e a última parte o que Stanzel denominou de
“situação narrativa em primeira pessoa”, um narrador autodiegético, se
pretendermos utilizar um termo de Gerard Gennet 2, em que o narrador participa
dos eventos e situações narrados como personagem em diversas intensidades.
Outro elemento, entretanto está inserido ainda nestas duas partes da obra que
a enriquecerá sobremaneira, é a ocorrência de um fenômeno narratológico que
Stanzel chamará “situação narrativa figural”, em que há flashes de monólogos
interiores. Esse fenômeno ocorre algumas vezes dentro da narrativa de
Gersão, em cenas inclusive presentificadas como, por exemplo:

Mas com as formigas estava-se seguro. Ouvi formigas o que vou


dizer agora. Ou sentava-me debaixo do quintal e falava com o vento e
as folhas. A árvore abanava os ramos e eu pensava: a árvore das
palavras. [...] A cidade é um corpo vivo respirando, o meu, o teu , o
dos outros, o do mundo, é uma infinita intersecção de corpos, nos
momentos incontáveis do tempo, repetida como as ondas do mar. E é
inútil tentar olhá-la, como é inútil olhar as ondas -ainda mal se
levantaram e já se desfazem na areia, e também o nosso olhar se
desfaz com elas. Dizem que este verão vai ser mais quente que o
ano passado, anuncias sem levantar os olhos. E para a semana
começam saldos sensacionais no Fabião. (GERSÃO, 2004. p. 44)

Entre a primeira e a terceira parte, porém há uma mudança na estrutura


narrativa que muito a enriquece. É embutido um narrador em terceira pessoa
que vai contar a história pregressa de Amélia, mãe de Gita. A narradora-
protagonista, já declaradamente em uma desconfortável relação com a mãe

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talvez não se sentisse a vontade o bastante para narrar a história da ausente


mãe, cedendo assim o espaço da segunda parte para um narrador
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Gerard Genette (1995) utiliza desse termo para se referir a uma menor ou maior presença de
um narrador dentro da narrativa. O autodiegético é aquele narrador que está inserido no
enredo. É o narrador-protagonista.

heterodiegético nos contar a história da mãe Amélia. A estrutura narrativa do


romance então é contornada por um formato narratológico3 que faz da obra um
trabalho complexo exigindo um pouco mais de cuidado em termos de análise
estrutural.

Conceição e Gita: a ruptura


Quando Bornheim diz que estamos presos a uma tradição de difícil
rompimento (BORNHEIM, 1987, p. 18), e Spivak diz que “não há valor algum
atribuído à mulher” (SPIVAK, 2010, p. 126), como citado, há certa agonia que
nos incomoda como uma incógnita a ser desvendada que anseia por respostas
que nos satisfaçam. Sabe-se que um indivíduo que resolve romper com uma
tradição cauterizada pelos seus antepassados é tido variadas vezes como o
louco que se rebela, como a ovelha negra que envergonha. Se buscarmos nas
obras trabalhadas traços que coloquem as personagens dentro desse bojo,
decerto que não nos decepcionaríamos. Quando analisamos o modo com que
Gita era tratada por Amélia, não nos é difícil fazermos uma proporção do como
ela a trataria na adolescência, pois sendo a filha nascida em Moçambique e de
pele mestiça, era ela vista por Amélia da mesma forma que todos os negros
moçambicanos o eram. A frustração de Amélia é expressa no mau
relacionamento com a filha e o descaso e preconceito contra os negros:

Nos negros não se pode confiar, diz Amélia. Porque nos desejam o
mal e nos odeiam. Armam feitiços contra nós e podem trazer-nos a
doença ou a morte. Sim, o teu amigo, o teu amigo é o que te dá
morte. [...], dos negros não sabemos nada. Nem podemos procura-los
porque não sabemos onde moram, não têm endereço, vivem em
sítios vagos, palhotas iguais umas às outras, no meio de corredores
de caniço. (GERSÃO, 2004, p. 26)

Em O quinze, a voz da discriminação à ruptura e a força da tradição vem


da Mãe N’ácia, a avó inocente de Conceição, que ao vê-la atenta às leituras

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Entende-se formato narratológico pensados sob à luz das proposições de Franz Karl Stanzel.
A ideia de Stanzel é a de providenciar uma clara e sistemática consideração sobre as
complexidades da narrativa ficcional que resultam da relação intercambiada entre todo “contar
de histórias” e o que concerne a história em si e a maneira como a história é contada.
Questões relevantes como: a) O narrador habita o mundo da narrativa ou reside em outro
campo postulado de existência?; b) O narrador relata diretamente informações ao leitor ou as
filtra através da consciência de uma ou várias personagens?

e despreocupada com casamento aos vinte e dois anos, idade na qual a


maioria das moças já estavam senão casadas, noivas, a avó suspirava,
encolhia os ombros e dizia que “mulher que não casa é um aleijão” (QUEIROZ,
2015, p. 11). Vemos nos dois casos então sutis respostas aos que tentam
romper com a tradição como questiona Bornheim e como afirma de forma
pessimista Spivack.

O quinze e A árvore das palavras: o contexto


1922, ano marcado pela Semana de arte Moderna era ainda muito
recente no ano da publicação de O quinze, Raquel de Queiroz então uma
garota de dezenove anos, uma estudiosa de tudo que ocorrera nesse período,
quando contava ainda doze anos de idade. A capacidade de assimilação da
jovem faz fervilhar em sua mente o enredo do romance que acaba por culminar
no tema tão discutido à época através da personagem Conceição.
A Doutoranda em História Maria de Fátima Salum Moreira - FFLCH/USP
percorrendo por esses caminhos em seu artigo Homem e mulher na década de
30: tensões sociais e vida cotidiana faz uma breve incursão e observa como
andavam as questões que envolviam relacionamento homem e mulher nesses
agitados anos que vivia a jovem Raquel de Queiroz.

Os pronunciamentos em torno destas questões que a imprensa


paulista apresenta na década de 30, apontam para a existência de
tensões e reordenamentos nas relações entre homens e mulheres,
dentro e fora do casamento, [...]As inúmeras manifestações sobre tais
questões apresentaram- se, nesta imprensa, sob a forma de poesias,
crônicas, piadas, caricaturas, provérbios, etc.

A publicação de O quinze foi então mais uma obra que viria a engrossar
os objetos de contestação intelectual à época, embora Raquel nos seus
ingênuos dezenove anos não tivesse deixado explícita essa intenção. Tal era o
clima tensionado por essas questões de gênero que leva Vitor Hugo afirmar no

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Jornal O apito, fundado logo depois em 1932 que “A mulher é um demônio


bastante aperfeiçoado” (O apito, ed. 001, pg. 04 -1932). Outro fato que deve
ser analisado de perto é o fato de Graciliano Ramos, após ler a obra de
Raquel, expressasse sua incrédula opinião sobre a autoria de O quinze,
quando fez a seguinte indagação: “Seria realmente uma mulher? Uma garota
assim fazer um romance! Deve ser pseudônimo de Homem barbado”, tamanha
era a falta de reconhecimento social o qual vivia a mulher.

No contexto do romance A árvore das palavras é notória a presença da


hipocrisia social e religiosa que tanto incomoda a narradora. Já na
adolescência, deixada para trás as divagações da infância, Gita inicia um
processo de remissão à mãe Amélia sendo agora vista aos seus olhos com
mais misericórdia, fruto evidentemente do amadurecimento da garota que
gostava de brincar na casa preta. Suas observações a respeito dos costumes
moçambicanos vão servir no romance como uma consistente crítica,
principalmente que diz respeito à igreja:

Até na missa de domingo esse modo de estar era visível. Sobretudo


na catedral ou na igreja de Santo Antônio da Polana: os que podiam e
mandavam iam lá para serem vistos, para cumprimentar e serem
cumprimentados à saída, e eram bom vestirem-se com toaletes
caras, embora conviesse terem ao mesmo tempo um ar simples, por
vezes quase desportivo, e se não fosse tudo hipocrisia seria até
bonito de ver, famílias alinhadas nos bancos, o pai aparentando ainda
juventude, apesar das madeixas grisalhas, a mãe de preferência mais
nova mas sempre elegante e bem vestida e as crianças maiores e
menores ao lado dos pais , igualmente penteados e vestidas a
preceito.

Conclusão

É possível percebermos confortavelmente que embora as duas obras


tratem de temas diretamente distintos, com diferentes propostas e diferentes
tons narrativos, comparando-se as duas perspectivas e narrativas, vemos a
imensa riqueza de detalhes passiveis de aproximação e reflexão. Quando
analisamos a rudeza de Vicente na obra de Queiroz ao se mostrar
extremamente frio e alheio aos encantos da prima que por sinal reverbera tal
atitude se tornando cada vez mais fria ao longo do romance, vemos a mesma

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rudeza, embora de forma exacerbada em Rodrigo, namorado de Gita em A


árvore das palavras. Tal rudeza é expressa em sua totalidade no extremo
descontentamento ao tomar conhecimento da (suposta) gravidez de Gita.
Percebemos num trabalho comparativo como esse, a grande
possibilidade de endossar o trabalho de Antônio Cândido quando nos mostra
ser possível, em Literatura e Sociedade, analisar a sociedade a luz da
literatura. Ou seja, não existe sociedade sem literatura, nem literatura sem
sociedade.

Referências

BORNHEIM, Alfredo Gerd. (org.) et al., Tradição contradição. Rio de Janeiro:


Ed. Jorge Zahar Editor Ltda., 1987. 152 p.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2015.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Ed. T.A. Queiroz


Ltda., 2000. 182 p..

CHAVES, Wilson Camilo. A noção Lacaniana da subversão do sujeito.


Revista Psicologia Ciência e profissão, n°22, v. 4 p. 68-73, 2002.

FONTES, Lilian. ABC de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro, 2012. Editora


José Olympio.

GERSÃO, Teolinda, A árvore das palavras, 2004, São Paulo. Editora


Planeta.

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MOREIRA, Maria de Fátima Salum. Homem e mulher na década de 30:


tensões sociais e vida cotidiana. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis,
v. 15, n°: 21 p. 23-35.

QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2015.
166p.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2010.

STANZEL, Franz Karl. A Theory of Narrative. Translated by Charlotte


Goedsche Cambridge Univ. Press. 1984.

O apito, ed. 001. p. 04, 1932.


Disponível
em:<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspxbib720631&pag
fis=16&url=http://memoria.bn.br/docreader#>

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