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O CONCEITO DE BIOPODER HOJE

RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. O conceito de Biopoder Hoje. BioSocieties, Volume 1,


Número 2, 2016.

Os autores se propõem a analisar o conceito de biopoder segundo sua


configuração contemporânea, mas a partir da noção defendida por Foucault, sobretudo
em sua obra devotada à história da sexualidade de 1976 em um capítulo intitulado “Direito
de morte e poder sobre a vida”. O poder sobre a vida, antes exercido pelo soberano que
tinha o direito de confiscar as coisas, o tempo, os corpos, e em última instância a vida dos
sujeitos foi deslocado para o Estado, tornando-se mais um elemento em uma variedade
de elementos atuando para gerar, incitar, reforçar, controlar, monitorar, otimizar e
organizar as forças.
Com as guerras contra suas próprias populações, Foucault afirma que o
poder está agora situado e exercido no nível da vida. Não se mata mais em nome do
soberano, mas em nome da existência de todos.
Afirmam os autores que embora Foucault não tenha realizado um estudo e
demonstração profundos da teoria do biopoder, formulou um diagrama bipolar que auxilia
no entendimento: um polo concentra-se na anatomia-política do corpo humano, cujo
objetivo é extrair ao máximo as suas forças e integrá-lo em sistemas eficientes; o outro
polo consiste em controles reguladores do corpo imbuído com os mecanismos da vida,
isto é, o nascimento, morbidade, a mortalidade, a longevidade etc, sendo que no século
XIX este dois polos foram unificados em uma série de “grandes tecnologias de poder” das
quais a sexualidade seria apenas uma.
Por outro lado, ao estabelecer-se desta maneira, novos tipos de disputa
política puderam emergir, nos quais “a vida como um objeto político” se voltava contra os
controles exercidos contra ela em nome das reinvindicações de um direito à vida, ao
próprio corpo, à saúde, à satisfação das necessidades.
O conceito de ‘biopoder’ serve para trazer à tona um campo composto por
tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais
da existência humana. As características vitais dos seres humanos, seres viventes
que nascem, crescem, habitam um corpo que pode ser treinado e aumentado, e
por fim adoecem e morrem. E as características vitais das coletividades ou
populações compostas de tais seres viventes (...) podemos usar o termo
‘biopolítica’ para abarcar todas as estratégias específicas e contestações sobre as
problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre
as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que
são desejáveis, legítimas e eficazes. (p. 28)
Os autores seguem na tentativa de definir o conceito de biopoder e afirmam
que sua definição na atualidade deve incluir no mínimo os seguintes elementos: a) um ou
mais discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos que podem fundir
duas ou mais áreas do conhecimento ou não; b) estratégias de intervenção sobre a
existência coletiva em nome da vida e da morte que pode ser direcionada a grupos
delimitados por região, raça, religião, gênero etc; c) modos de subjetivação, através dos
quais os indivíduos podem ser levados a atuar sobre si próprios.
Os limites do biopoder:
Ao formular a noção de biopoder na atualidade, os autores contratastaram
as formulações de alguns dos principais filósofos da atualidade para os quais o biopoder
da atualidade é uma técnica ligada à dominação, exploração, expropriação e eliminação
da vida, seria uma forma de poder ameaçar a vida de outro. Para Hardt e Negri, “ o
biopoder é um termo totalizante – serve para assegurar uma forma global de dominação
que eles designam ‘Império’” (p. 30) a partir de uma noção desenvolvida de forma
especulativa por Deleuze no qual ele afirma que as sociedades contemporâneas passara
de sociedades disciplinares para sociedades de controle. O biopoder seria exercido por
um Império global misterioso contra uma multidão de indivíduos no sentido de exploração
econômica. Nesse sentido, Rabinow e Rose concluem que essa teoria pode descrever
tudo, mas não pode analisar nada, justamente o contrário da noção proposta por
Foucault. “Devemos observar também que, para Foucault, o biopoder não emerge, ou
serve para dar suporte, a um único bloco de poder, grupo dominante, ou conjunto de
interesses.” (p. 32) Nesse sentido, pode-se observar a medicina como um campo
biopolítico de produção de bem-estar e segurança.
Já Giorgio Agamben teoriza o biopoder a partir do holocausto, seria esse
fenômeno o último exemplar de biopoder, fundamentando sua análise no sentido de que
todo poder emana da capacidade de um tomar a vida do outro. Esse poder seria
caracterizado pela noção do homo sacer, cuja vida não é sacrificável, mas ele pode ser
morto impunimente, pois sua essência já não é humana, não tem relevância. Porém, para
os autores, o holocausto é um fenômeno complexo que não encerra em si a verdade
sobre o biopoder. Foucault ao analisar o contexto do biopoder no fenômeno do holocausto
viu duas dimensões de generalização: a do biopoder e a da soberania “uma coincidência
entre um biopoder generalizado e uma ditadura que é ao mesmo tempo absoluta e
retransmitida ao longo de todo o corpo social” (p. 34).
Para Agamben, o poder, hoje, ainda é exercido em nome do soberano, todos
os agentes de múltiplas instituições (jurídica, médica, religiosa) estão exercendo poder a
partir de suas alianças com o soberano, sabendo ou não, eles realizam a vontade do
soberano. Mas para Rabinow e Rose, “a interpretação da biopolítica contemporânea
como a política de um Estado modelado sobre a figura do Soberano, e de todas as formas
de autoridade biopolítica como agentes deste Soberano, é útil aos absolutismos do século
XX, o nazismo e Stalin.” (p. 35) Com efeito e seguindo a linha foucaultiana, o poder
soberano foi exercido sobretudo na era pré-capitalista, em regimes monárquicos nos
quais ao soberano cabia o poder sobre a vida e a morte de seus súditos. Porém, as
formas de organização social sofreram mudanças e a partir do século passado definiram-
se a partir de problematização do conhecimento em geral em conflito com o sistema
anterior, conectando-se e relacionando-se com esses sistemas que emergiram também a
partir da mobilização de grupos sociais. “Corpos não-estatais têm exercido um papel
chave nas disputas e estratégias biopoliticas desde a origem do ‘social’ – organizações
filantrópicas, pesquisadores sociais, grupos de pressão, médicos, feministas e outros
tipos de reformadores, todos têm operado sobre o território do biopoder.” (p. 36/37) Após
o fim da Segunda Guerra Mundial, essas relações e tensões ganharam novo contorno,
inclusive no campo da medicina, como as comissões bioéticas, agências reguladoras,
organizações profissionais. “Todo um ‘complexo bioético’ no qual o poder dos agentes
médicos para ‘deixar morrer’ no fim da vida, no início da vida ou em reprodução são
simultaneamente acompanhados pela tecnologia médica e regulados por outras
autoridades como nunca antes.” (p. 37) Além disso, o biopoder passou a ser exercido no
nível molecular, isto é, também houve uma individualização de estratégias biopolíticas,
como orientações eugênicas para o casamento e a procriação, a requisição de mães
trabalhadoras auxiliares no cuidado com a saúde seus filhos entre outros.

Analítica do biopoder:
Para desenvolver o argumento, os autores passam à análise de três tópicos
que parecem condensar algumas das linhas biopolíticas da força ativa hoje, isto é, raça,
reprodução e medicina genômica. Para Rose e Rabinow a raça e a saúde, em relações
variáveis, tem sido um dos elementos centrais na genealogia do biopoder. Isso porque, a
exemplo do que estabelece a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial “qualquer doutrina de diferenciação ou
superioridade racial é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e
perigosa, e que não há justificativa para a discriminação racial, seja na teoria seja na
prática”. Como o Projeto Genoma Humano identificou que há 0,1% de diferença nos
genes entre os seres humanos, questiona-se se esta diferença poderia ser suficiente para
caracterizar a humanidade em raças e estabelecer-se uma hierarquia entre elas. Apesar
desta possibilidade e por temor a novas políticas de genocídio, o discurso médico tem
estabelecido que esta diferença biológica encontrada é insignificante em termos de
divisão por raça e que ela fundamenta apenas diferenças a serem consideradas para o
desenvolvimento de técnicas de saúde mais eficientes.
A reprodução já não é mais considerada e analisada nos termos em que o
foi por Foucault. Para ele, o controle da sexualidade dos indivíduos era o foco central da
biopolítica neste tema, no entanto, atualmente, para os autores, é a própria reprodução
que entra em foco e não mais a sexualidade. A reprodução passa a ser problematizada
por causa de suas consequências econômicas, ecológicas e políticas e também no
âmbito das relações médico-paciente, sendo que todas essas relações, macro e micro, ou
molar e molecular, combinam-se, tornando-se um espaço biopolítico por excelência,
embora seja difícil discernir alguma estratégia unificada neste campo. No entanto, ainda é
possível identificar formas de eugenia relacionada à saúde pública, como o controle de
Tay Sachs entre os judeus ocidentais na América do Norte e em Israel e da população em
geral no Chipre para identificar e eliminar a fibrose cística pela interdição do casamento.
A medicina genômica é relativamente nova no cenário biopolítico e ainda
hoje envolta em questões éticas que merecem controle e fiscalização para não tornarem-
se fundamento para políticas de extermínio, como o holocausto, ou de hierarquização
entre indivíduos ou entre “raças” que fundamentaram a escravidão. Assim, partindo de um
discurso de que a medicina genômica visa avançar na melhoria da saúde e do bem-estar
das pessoas, este processo envolve também o nível molecular, isto é, são os indivíduos,
na relação médico-paciente, quem também se submetem e alimentam esse tipo de
biopoder. Nesse sentido, há investimento de vários setores que vão do governamental,
passam pelas organizações capitalistas privadas e chegam ao particular, ao indivíduo que
alimentado pela esperança do bem-estar e da saúde também investe na prática.

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